ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
CRIME DE CONDUÇÃO PERIGOSA
CRIME DE CONDUÇÃO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
Sumário


Na ausência de qualquer outro facto que se tenha indiciado ou considerado provado, verifica-se o vício de erro notório na apreciação da prova da al. c) do nº 2 do artigo 410º do CPP, por contrariar, por forma clara e ostensiva as regras da experiência comum, perante o olhar de um cidadão mediano e do juiz suposto pela ordem jurídica:
a) A consideração como não provado que a condução com a TAS de 1.49 g/l reduz de forma significativa as capacidades de atenção, reação e controlo por parte do arguido na condução que efetuava e que, dessa forma, punha em causa a segurança da circulação rodoviária.
b) E a consideração como não provado que o arguido sabia que face à quantidade de bebidas alcoólicas ingeridas não estava em condições de conduzir o veículo em segurança e que poderia causar um embate e, assim, criar perigo para a vida, a integridade física e veículos dos demais utentes da via em que seguia, como veio a acontecer, perigo esse que o arguido representou, mas com o qual não se conformou.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

1. No processo comum singular nº 87/19...., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., Juízo Local Criminal de ... – Juiz ..., em que é arguido AA, com os demais sinais nos autos,  por sentença lida e depositada em 18.03.2024, foi proferida decisão com o seguinte teor (transcrição)[1]:
a) Absolvo o arguido AA da prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 291.º, n.º 1, alínea a) e nº 3, 285º, aplicável por força do artigo 294º, nº 3, 69.º, n.º 1 al. a)  do Código Penal, por referência aos artigos 63º, nº 1 e nº 3, alínea a), 87º, nºs 1 e 3 e 88º, nºs 1 a 3, do Código da Estrada;
b) Condeno o arguido AA pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de omissão de auxílio, previsto e punido pelo artigo 200.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros);
c) Condeno o arguido AA pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros);
d) Pela prática dos crimes elencados em b) e c), condeno o arguido AA na pena única de 235 (duzentos e trinta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), o que perfaz o total de € 1.645,00 (mil seiscentos e quarenta e cinco euros);
e) Condeno o arguido  AA, ao abrigo do disposto no artigo 69.º, n.º 1 al. a) do Código Penal, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 6 (seis) meses, advertindo-o de que tem o prazo de 10 (dez) dias, após o trânsito em julgado desta sentença para entregar a sua carta de condução e licença de condução, na secretaria deste Tribunal, ou em qualquer Posto Policial, a fim de cumprir a pena acessória, sob pena de não o fazendo incorrer na prática de um crime de desobediência, previsto e punível pelo artigo 348.º, n.º 1 alínea b) do Código Penal e, bem assim, de que caso não cumpra a pena acessória agora determinada, incorre na prática de um crime de violação de proibições previsto e punível pelo artigo 353.º do Código Penal;
f) Condeno o arguido nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC’s.

2. Não se conformando com tal decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público, extraindo da respetiva motivação, as seguintes conclusões (transcrição):
1. No âmbito dos presentes autos foi o arguido absolvido da prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291º, nº 1, alínea a) e nº 3, do Código Penal, com a agravação prevista no artigo 285º, aplicável por força do artigo 294º, nº 3, ambos do Código Penal, e por referência aos artigos 63º, nº 1 e nº 3, alínea a), 87º, nºs 1 e 3 e 88º, nºs 1 a 3, todos do Código da Estrada, de que vinha acusado.
2. Todavia, a sentença recorrida enferma do vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal, existindo erro notório na apreciação da prova.
3. Uma vez que ao dar como provada a matéria constante dos pontos 1), 2), 5), 6), 18), 19) e 21), o Tribunal a quo nunca podia ter considerado não provada a matéria inserta na alínea a) dos factos não provados, concretamente que “ O mencionado em 5., associado ao que se refere em 18., tenha reduzido de forma significativa as capacidades de atenção, reacção e controlo por parte do arguido na condução que efectuava e que, dessa forma, punha em causa a segurança da circulação rodoviária.”, e na alínea d), concretamente, que “O arguido sabia que face à quantidade de bebidas alcoólicas ingeridas não estava em condições de conduzir o veículo em segurança e que poderia causar um embate e, assim, criar perigo para a vida, a integridade física e veículos dos demais utentes da via em que seguia, como veio a acontecer, e perigo esse que o arguido representou, mas com o qual não se conformou.”.
4. Pois ao dar-se como provado que no dia ../../2019, pelas 01h00m, o arguido conduziu o automóvel com a matrícula ..-..-BB, na Auto-Estrada nº ...1, no sentido .../..., que o fez com uma TAS de 1,49 g/l, com um erro de +/- 0,19 g/l , que nessa ocasião o arguido se fazia acompanhar por BB e ainda que o arguido foi interveniente num acidente de viação, por ter accionado o travão de serviço do veículo por si conduzido, perdendo o controlo da viatura e embatendo, com a sua parte frontal, contra o separador central, imobilizando-se um pouco mais à frente em posição diagonal (sem que se tenha provado qualquer outro facto que estivesse na origem desta colisão que não o comportamento do arguido), é óbvio que naquelas circunstâncias de tempo e lugar o arguido não reunia as condições necessárias ao exercício da condução, e que o seu comportamento colocou em perigo a vida e a integridade física do seu passageiro, o assistente BB.
5. Estando, por conseguinte, verificados os elementos objectivo e subjectivo do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291º, nº 1, alínea a) e nº 3, do Código Penal (e não apenas de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292, nº 1, do Código Penal).
6. Razão por que não se entende por que se deu os factos constantes das alíneas a) e d) como não provados, sendo que, ao assim se considerar tal factualidade, a sentença recorrida incorreu no sobredito vício de erro notório na apreciação da prova.
7. Motivo pelo qual deve o arguido ser condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, do sobredito ilícito criminal.
8. Ao ter decidido como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 14º, 26º e 291º, nº 1, alínea a) e nº 3, ambos do Código Penal, e no artigo 410º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, deve a douta sentença recorrida ser revogada, dando-se provimento ao recurso ora apresentado, e, em consequência, condenar-se o arguido pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291º, nº 1, alínea a) e nº 3, do Código Penal (e não apenas pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292, nº 1, do Código Penal).
Vossas Excelências, no entanto, decidirão como for de JUSTIÇA.
3. O arguido, apesar de notificado, não respondeu ao recurso interposto pelo Ministério Público.
4. Nesta instância, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, tendo concluído aduzindo que (transcrição): Assim, em conclusão, o recurso do Ministério Público deverá ser julgado procedente julgando-se verificado o erro-vício anunciado, o erro notório na apreciação da prova em face da sobredita e evidenciada ilogicidade verificada entre concretos factos dados como provados e dados como não provados, devendo decidir-se da causa em recurso – n.º1 do art.º 426 do CPPenal, separando-se os específicos factos dados como não provados das alínea a) e d) de tal elenco para o dos factos provados, condenando-se, assim, o arguido pelo cometimento de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, por integral preenchimento dos elementos típicos deste crime, em pena de multa e na legal sanção acessória estradal.
5. Foi cumprido o disposto no artigo 417º nº2 do CPP, e não foi apresentada qualquer resposta.
6. Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II- FUNDAMENTAÇÃO

1. Objeto do recurso
O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso[2] do tribunal, cfr. artigos 402º, 403º, e 412º, nº 1 do CPP.
Assim, a questão a decidir no presente recurso, tal como se encontra delimitado pelas respetivas conclusões, reconduz a saber se a sentença recorrida se mostra inquinada do vício de erro notório na apreciação da prova do nº 2 al. c) do artigo 410º do CPP, pelo facto de, em face dos factos provados, nela deverem ter sido igualmente considerados provados factos que foram dados como não provados, ou seja, os factos indicados nas als. a) e d) dos factos não provados.

2. A Decisão recorrida
1. Na sentença recorrida foram considerados como provados e não provados os seguintes factos seguidos da respetiva fundamentação da matéria de facto:

A. Factos provados
Da discussão da causa e com relevância para a decisão a proferir resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia ../../2019, pelas 01h00m, o arguido AA conduzia o automóvel ligeiro de passageiros de marca “...”, modelo ..., com a matrícula ..-..-BB, na Auto-Estrada nº ...1, no sentido .../....
2. E transportava BB, que seguia no banco do passageiro da frente. 3. No sentido de marcha mencionado em 1., a faixa de rodagem tem três vias de trânsito, sendo que a mais à direita se encontra delimitada por linha longitudinal continua (separadora de vias de trânsito) a ser utilizada por utentes que circulam vindos da localidade de ... e para acesso à via de trânsito rápido, a qual depois é substituída por linha longitudinal descontinua.
4. Nessa ocasião, estava bom tempo, existia boa visibilidade, o piso encontrava-se em bom estado de conservação, seco e limpo.
5. O arguido tripulava a aludida viatura depois de ter ingerido bebidas alcoólicas.
6. Ao Km 27,3, após descrever uma curva para o lado esquerdo, o arguido accionou o travão de serviço do veículo por si conduzido, altura em que perdeu o controlo do mesmo e embateu, com a sua parte frontal, contra o separador central, imobilizando-se um pouco mais à frente em posição diagonal, oferecendo a lateral do lado oposto ao do condutor, ao sentido de marcha aí permitido, na via da esquerda, calcando a linha longitudinal descontínua.
7. No local onde o veículo ficou imobilizado a faixa de rodagem já é composta por três vias de trânsito, todas delimitadas por linha longitudinal descontínua.
8. Após a colisão, o arguido saiu da sua viatura, transpôs o separador central, e pediu a CC, condutor que circulava no sentido oposto, que o transportasse ao Hospital ..., abandonando o local.
9. Fê-lo sem sinalizar devidamente a ocorrência do acidente, concretamente, sem ligar as luzes de perigo da viatura sinistrada nem colocar o triângulo a, pelo menos, cerca de 30 metros da rectaguarda do veículo.
10. E sem cuidar de saber do real estado de BB nem providenciar por socorro ao mesmo, altura em que aquele se encontrava inconsciente.
11. Instantes depois, surge na sobredita via o automóvel ligeiro de passageiros de marca ...”, modelo ..., com a matrícula ..-HF-.. conduzido por DD, que circulava a velocidade não concretamente apurada, na via do meio, mas ocupando a partir de determinado momento parte da via da esquerda, sem se ter logrado apurar qualquer razão que o impedisse de circular na via mais à direita, ou o mais à direita na própria via em que seguia.
12. Não se apercebendo da presença na via da viatura com a matrícula ..-..-BB na via, DD embateu com a parte da frente, lado esquerdo, do seu veículo na lateral direita do automóvel com a matrícula ..-..-BB, quando BB já tinha recuperado os sentidos e havia aberto a porta do lado do passageiro, preparando-se para sair, capotando de seguida, e imobilizando-se uns metros mais à frente do veículo com a matrícula ..-..-BB.
13. Como consequência directa e necessária do sucedido resultaram para BB, as seguintes lesões:
- no membro inferior direito: coto de amputação adequado (desarticulação do joelho), sem sinais inflamatórios e bem almofadado, cicatriz hipertrófica com cerca de 10 cm por 3 cm na vertente lateral;
- no membro inferior esquerdo: coto de amputação transtibial ao nível do 1/3 médio da diáfise tibial com áreas de deformação cicatricial sobretudo na vertente lateral, cicatriz rosada na face anterior do joelho com cerca de 6.5 cm.
14. Estas lesões resultaram de traumatismo de natureza corto-contundente (ou actuando como tal) e determinaram 524 dias para a estabilização com afectação da capacidade de trabalho geral por 524 dias.
15. Resultaram, ainda, para BB as consequências permanentes descritas, as quais, sob o ponto de vista médico-legal, se traduzem em amputação transtibial bilateral, a qual o priva de dois importantes membros, provoca desfiguração grave e permanentemente; afecta de maneira grave a capacidade de trabalho, as capacidades de fruição sexual e a possibilidade de utilizar o corpo, bem como provoca situação clínica particularmente dolorosa e permanente e, ainda, em concreto, perigo para a vida de BB.
16. Nesse mesmo dia e por indicação de CC que regressou ao local do acidente após transportar o arguido ao Hospital ..., militares da G.N.R. de ... dirigiram-se a esta unidade de saúde e identificaram o arguido.
17. Nessa ocasião, procedeu-se à recolha de uma amostra de sangue ao arguido para realização de análise toxicológica.
18. Submetida tal amostra a exame laboratorial no I.N.M.L. – Delegação ..., apurou-se que o arguido apresentava uma T.A.S. de 1,49 g/l, com um erro de +/- 0,19 g/l.
19. O arguido quis conduzir o aludido automóvel com a matrícula ..-..-BB depois de ter ingerido bebidas alcoólicas, sabendo que circulava com o mesmo na via pública, que não o podia conduzir no estado em que se encontrava e que a quantidade de bebidas alcoólicas que ingerira era susceptível de lhe determinar uma taxa de álcool no sangue de valor igual ou superior ao mínimo penalmente permitido.
20. O arguido representou a necessidade de prestar socorro a BB em virtude de este correr risco de vida ou de lesão grave para a sua saúde, pelo facto de o veículo com a matrícula ..-..-BB ter ficado imobilizado em plena auto-estrada, nas condições referidas em 6. e 7., mas, ainda assim, absteve-se de o prestar, conformando-se com a situação de perigo, abandonando o local sem lhe prestar qualquer ajuda e sem sinalizar o acidente.
21. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Mais se provou que:
22. O arguido não tem antecedentes criminais.
23. Trabalha como distribuidor de publicidade, auferindo um vencimento mensal no valor de € 750,00.
24. Reside com um irmão, em casa arrendada, suportando mensalmente, a título de renda, o valor de € 33,00.
25. O irmão do arguido é funcionário da EMP01....
26. Contribui com uma média de € 80,00 mensais para as despesas daquela habitação.
27. Tem duas filhas já maiores de idade.
28. Contribuiu, mensalmente, com € 220,00 para a filha da mais nova, que se encontra a no 1.º ano do Curso de Medicina na Universidade ....
29. Não tem empréstimos.
30. Concluiu o 6.º ano de escolaridade.
31. Não denotou arrependimento, nem juízo de auto-censura quanto ao facto de ter deixado BB, seu amigo há mais de 30 anos, no interior do veículo automóvel nas circunstâncias mencionadas em 6. e 7.

*
B. Factos não provados
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa. Designadamente não se provou que:

a) O mencionado em 5., associado ao que se refere em 18., tenha reduzido de forma significativa as capacidades de atenção, reacção e controlo por parte do arguido na condução que efectuava e que, dessa forma, punha em causa a segurança da circulação rodoviária.
b) O mencionado em 12. se deveu exclusivamente à face da falta de sinalização do sobredito acidente por parte do arguido.
c) Aquando do mencionado em 12. BB encontrava-se totalmente no interior do veículo.
d) O arguido sabia que face à quantidade de bebidas alcoólicas ingeridas não estava em condições de conduzir o veículo em segurança e que poderia causar um embate e, assim, criar perigo para a vida, a integridade física e veículos dos demais utentes da via em que seguia, como veio a acontecer, e perigo esse que o arguido representou, mas com o qual não se conformou.
e) As lesões descritas em 13. a 15. decorreram única e exclusivamente da acção do arguido.
*
C. Motivação da matéria de facto
Estriba a decisão do Tribunal quanto aos Factos Provados e Não Provados, acima enunciada, a articulação de todos os meios de prova apresentados em Audiência de Discussão e Julgamento de que resultou valor probatório, devidamente articulados com as regras de experiência comum e que permitiram, no seu conjunto, ao Tribunal alcançar as conclusões que infra melhor se fundamentam (artigos 125.º, 127.º e 355.º, a contrario, do Código de Processo Penal).
O arguido devidamente esclarecido do direito de prestar declarações e, bem assim, e se remeter ao silêncio, sem que tal facto o pudesse desfavorecer, optou por trazer aos autos a sua versão da ocorrência dos factos.
Nessa sequência, confirmou que nas circunstâncias de tempo e lugar mencionados em 1., circulava ao volante do veículo com a matrícula ..-..-BB, acompanhado pelo seu amigo BB, a cerca de 80/90 km, no sentido .... Esclareceu, em consonância com o vertido no libelo acusatório, que estava bom tempo, havia boa visibilidade e que a estrada se encontrava em bom estado. Confessou que havia ingerido bebidas alcoólicas em momento prévio à condução, com perfeita consciência de que não podia conduzir após tal circunstância.
 Relatou que ao descrever uma curva para o lado esquerdo “o volante começou a andar de um lado para o outro”, altura em que perdeu o controlo do veículo por si conduzido, tendo embatido do separador central, ficando posteriormente o veículo atravessado na via da esquerda.
Afirmou ter perdido os sentidos por breves instantes, altura em que foi “acordado” por BB, que estava dentro do veículo, ainda com o cinto de segurança colocado e que perguntou se estava bem. Aí, disse-lhe que não se estava a sentir bem, “que lhe doía muito o peito e a cabeça” porque “havia embatido com a mesma no volante”, e que por essa razão o informou que iria procurar ajuda. Confessou não ter sinalizado o veículo, nem com os 4 piscas, nem com a aposição do triângulo. Esclareceu que transpôs, apeado, o separador central, fazendo sinal ao condutor de um veículo que circulava em sentido contrário ao seu, o qual parou e o transportou ao hospital. Não se recorda se tinha telemóvel consigo, nem se o AA estava ou não munido de tal dispositivo.
Por seu turno, a testemunha BB, nitidamente transtornado com a recordação do sucedido, afirmou que nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas em 1., circulava no veículo conduzido pelo arguido, a cerca de 70/80 km/h, no sentido ..., e que estava tudo bem, indo ambos a conversar. Entretanto “despistaram-se” e embateram contra o separador central. Relatou perdeu os sentidos, pois a dado momento “abriu a porta do lado passageiro e já não viu ninguém… estava sozinho”. Mencionou que depois houve um segundo embate, sendo que quando voltou a si, já se encontrava no hospital. Negou peremptoriamente ter falado com o arguido no dia dos factos, ou seja, e no que ora releva, após o primeiro embate, confirmando que mantém amizade com o mesmo, há mais de 30 anos.
A testemunha CC, afirmou que circulava na mesma estrada onde ocorreu o acidente, mas em sentido oposto. Entretanto apareceu um indivíduo apeado que lhe pediu para parar, ao que acedeu. Nessa altura, o tal indivíduo, aqui arguido, pediu-lhe para o levar ao hospital, informando-o, pelo caminho, “que tinha tido um acidente e que não podia ficar sem carta de condução”, deixando os documentos do veículo consigo, para que depois este lhos devolvesse, nunca tendo feito referência há existência de terceiros intervenientes no acidente. Salientou que o arguido se encontrava muito nervoso, pese embora não se recorde de o mesmo se ter queixado de alguma dor/indisposição. Após deixar o arguido no Hospital ..., e porque achou estranho o facto de este lhe ter entregue os documentos da viatura, regressou ao local do acidente, altura em que já lá estava o INEM e a PSP, tendo-os informado do sucedido e entregue os documentos do arguido. Aí, pelo que lhe foi dado a entender e pelo que constatou no local, já se havia dado o segundo embate.
A testemunha DD, condutor do veículo com a matrícula ..-HF-.., não conseguiu primeiramente esclarecer as concretas circunstâncias do acidente, nomeadamente em que via circulava, alegando perda de memória, afirmando apenas que sentiu um embate, seguido de capotamento, sendo que após o sucedido o seu veículo ficou imobilizado na via totalmente à esquerda, via onde também ficou o outro veículo. Salientou que “apagou por uns momentos”, sendo que quando recuperou os sentidos, saiu da viatura por si tripulada, “ouvindo gemidos de dor”, altura em que pediu ao amigo, a testemunha EE, para chamar uma ambulância. Recorda-se de o passageiro do outro veículo estar no chão (fora do veículo), e sem um membro. Instado, novamente, quanto às concretas circunstâncias em que ocorreu o embate, afirmou que o veículo que estava na via não tinha nenhuma sinalização (luzes/triângulo), e que tinha acabado de descrever uma curva, não se apercebendo do obstáculo e “não conseguindo travar”. Confirmou que embateu com a parte frontal do veículo por si conduzido no veículo que se encontrava imobilizado.
Já a testemunha EE, passageiro do veículo com a matrícula ..-HF-.., conduzido pela testemunha DD, afirmou que ia mexer no telemóvel, quando se apercebe do embate, tendo veículo capotado de seguida. Que assim que saiu do veículo, viu uma pessoa na via (fora do carro, o qual não tinha qualquer sinalização), BB, “sem uma perna”. Salientou que ficou em choque e que apenas se recorda de ter accionado os meios de socorro. Após o embate, afirmou que o veículo em que alegadamente seguia a testemunha BB estava na perpendicular, com a traseira próxima e virada para o separador central, na via da esquerda.
A testemunha FF, militar da GNR que elaborou o auto de notícia junto a fls. 4, a participação de acidente de fls. 7. e 8. e o croqui de fls. 9, o que permitiu, desde logo, a prova do insisto em 4., esclareceu que, quando chegou ao local já lá não se encontravam nem o condutor do veículo que se havia despistado, nem o passageiro, que já havia sido transportado para o hospital. Confirmou que a testemunha CC o abordou, dizendo que havia transportado o condutor do 1.º veículo ao hospital, tendo transmitido tal informação aos colegas do Posto Territorial ... da GNR, com vista a lá se deslocarem.
A testemunha GG, do NICAV de ..., que procedeu à elaboração do relatório intercalar junto a fls. 72 e ao relatório fotográfico de fls. 73 a 126, confirmou, no essencial, a existência de dois acidentes: o primeiro, um despiste, que leva ao embate com parte da frente do veículo ..-..-BB no separador central; o segundo, por parte do veículo ..-HF-.., que circula na via do meio, e que embate com a parte frontal na lateral direita do veículo BB, que estava na diagonal da via do meio.
Avancemos, desde já, e quanto à concreta posição do veículo BB aquando do segundo embate, parece-nos inequívoco, e a admitir-se que o mesmo circulava na via do meio, como afirmado pela testemunha GG, que a determinado momento terás ocupado parte da via da esquerda, conforme decorre da simples análise do croqui, nomeadamente do aí assinalado como local de embate n.º 2, a fls. 9.
Acresce que, aquando deste segundo episódio, também nos parece cristalino que a testemunha BB já se encontrava com a porta do passageiro aberta e muito provavelmente com a sua perna direita no exterior daquele. Repare-se no teor das fotografias juntas a fls. 104, 105 e 106 (fotografia nº 65) e 112 donde decorre que os vestígios hemáticos surgem na estrutura no veículo, onde supostamente a porta fecha e, por outro lado, não há deformação no habitáculo que possa justificar a amputação imediata do membro inferior direito (após o joelho), com meio contundente (veja-se informação clínica que deu origem ao relatório pericial, insista a fls. 320 verso). Para reforçar esta conclusão, atente-se ao que foi mencionado pelo próprio BB e pelas testemunhas EE e DD, sendo certo que também decorre da informação clínica que deu aso ao relatório pericial que aquando da chegada do INEM BB encontrava-se no exterior da viatura, o que se mostra compatível com os danos visíveis na porta do lado do passageiro após o embate (cfr. fls. 102 a 106, 110 a 112).
Quanto à dinâmica dos acidentes, verificamos que as afirmações prestadas pelo arguido e por BB quanto à existência de um prévio despiste encontram corroboração nas marcas pneumáticas constantes da reportagem fotográfica de fls.  80 a 82 associadas ao teor do croqui junto a fls. 9, donde decorre que em momento prévio à colisão no separador central, o arguido accionou o travão, tendo o veículo fugido já na diagonal (cfr. mais concretamente o rasto de travagem visível na fotografia junta n.º 17 junta a fls. 82). Também nos surge como indubitável, concatenando o teor do afirmado pelo arguido e por BB, com o teor das fotografias juntas a fls. 82 (vestígios da colisão no separador central), com os danos constatados na parte frontal no veículo BB (cfr. fotografias de fls. 107 a 109) e com o exarado no croqui de fls. 9, que o embate do BB no separador central se dá com a parte frontal do mesmo, imobilizando-se um pouco mais à frente em posição diagonal, oferecendo a lateral do lado oposto ao do condutor, ao sentido de marcha aí permitido, na via da esquerda, calcando a linha longitudinal descontinua, pois é nesta zona que surge o segundo embate.
Regressando ao segundo embate, e pese embora não se tenha apurado a concreta velocidade a que circulava o veículo HF, concluímos, desde logo, que a testemunha DD teria necessariamente que circular a uma velocidade excessiva (veja-se que, após o embate, o veículo por si conduzido capotou, distando desde do local de embate até ao local onde o veículo ficou imobilizado mais de 30 metros – cfr. croqui de fls. 9), o que não lhe permitiu imobilizar o veículo atempadamente, sendo certo que no local de embate já não estamos numa curva, mas sim numa recta (cfr. novamente o croqui de fls. 9 e a reportagem fotográfica de 78, 92, 102). Em idêntico diapasão, constatamos que caso a testemunha DD circulasse na via mais à direita ou o mais à direita possivel dentro da própria via em que circulava, o que lhe era imposto pelas regras estradais, não colidia com o obstáculo, considerando as dimensões do veículo por si conduzido, a dimensão daquela via e o local de embate. E desse facto tem perfeita consciência a sobredita testemunha, não sendo inocente o facto de alegar perda de memória na descrição das concretas circunstâncias em que terá ocorrido o embate.
Para a prova do mencionado em 3. consideramos o teor da reportagem fotográfica de fls. 74 a 78 donde resulta que a existência três vias de trânsito, sendo que a mais à direita se encontra delimitada por linha longitudinal continua (separadora de vias de trânsito) a ser utilizada por utentes que circulam vindos da localidade de ... e para acesso à via de trânsito rápido. Dessa mesma análise, conjugadas com o teor do croqui que nos indica os locais prováveis de embate, verificamos que aquando do segundo embate, as três de vias de trânsito já se encontram todas delimitadas por linha longitudinal descontinua e que já estamos numa recta.
Para a prova do ínsito em 18. atentamos, para além das declarações prestadas pelo arguido, o teor do relatório de exame químico-toxicológico de fls. 155 e de fls. 9, do apenso A.
Os relatórios periciais juntos a fls. 277 a 280 e 319 a 324 revelaram-se cruciais para a prova das várias lesões sofridas por BB, assim como, a data da cura das mesmas, conforme elencados nos pontos 13. a 15. do manancial fáctico considerado provado, com a especial relevância probatória que lhe é conferida pelo artigo 163.º, n,º 1 do Código de Processo Penal. Ressalvamos quanto a este exacto conspecto, e contrariamente ao que foi defendido pelo Ministério Público aquando da dedução de acusação, que em momento algum resulta dos sobreditos relatórios que as lesões sofridas por BB resultam da conduta do aqui arguido. Repare-se que em ambas as perícias se faz alusão conjunta aos dois embates por aquele sofrido, desconhecendo-se, em bom rigor, qual dos dois causou exactamente o quê, não nos sendo lícito concluir em sentido contrário, salientando que nos parece manifestamente provável, considerando o já exposto quanto à dinâmica dos respectivos acidentes e danos constatados nos veículos, que a maior parte das lesões sofridas por BB tenham sido causadas pelo segundo embate.
Aqui chegados, urge salientar que se constata que o arguido acabou por confessar os factos que relativamente aos quais não podia apresentar versão diversa, atenta a vasta prova já constante dos autos, ou seja, que era o próprio quem conduzir o BB, após a ingestão de bebidas alcoólicas, e que abandonou o local após o embate sem proceder à respectiva sinalização. O que arguido negou é que efectivamente este abandono sucedeu sem previamente constatar o estado em que se encontrava BB, o que não nos logrou convencer.
Por um lado, constatamos que o arguido foi capaz de perceber o que havia sucedido e alcançar as consequências dos seus actos: desde logo optando, por abandonar o local, transpondo o separador central, pedindo auxílio e entregando os documentos da viatura à testemunha CC, para que no hospital não o associassem à condução daquele veículo e para que não fosse possível a sua punição, pelo menos, por condução de veículo em estado de embriaguez, até porque “não podia ficar sem carta”.
Ora, o objectivo do arguido foi abandonar o local o mais rapidamente possível, e por essa razão nem sequer sinalizou, como se impunha, a existência de um obstáculo na via, ignorando por completo o estado em que BB se encontrava.
No mais, sabendo quer o arguido, quer BB que se haviam despistado em plena auto-estrada, sendo comummente sabido a que velocidade é permitido circular nessa via, associada ao facto de ser um local com afluência de trânsito, sem prejuízo da hora em questão, à concreta posição do veículo - oferecendo a lateral do lado oposto ao do condutor, ao sentido de marcha aí permitido, na via da esquerda -, sem qualquer sinalização, não nos parece minimamente coerente que BB tenha querido ficar imobilizado dentro do mesmo. Cremos, assim, que a versão trazida por BB é aquela que se coaduna com as regras da experiência e da vida. E contrariamente ao alegado pela defesa em sede de alegações, o por si referido não se encontra em contradição com o que havia mencionado aquando da elaboração do relatório pericial junto aos autos, pois o que se lê nesse documento é que BB “se recorda de ter saído do veículo e ter ido ver como estava o condutor, tendo posteriormente sofrido embate por outro veículo” . Ou seja, em momento algum BB afirmou que viu efectivamente o arguido ou que falou com o mesmo, o que cremos que efectivamente nunca sucedeu. O decorre da concatenação do por si mencionado é que perdeu os sentidos por momentos e que quando regressa a si, está sozinho, o que não invalida que ele sim tenha tido a preocupação de procurar o condutor.
Relativamente à prova dos respectivos elementos subjectivos, também aqui, conjugamos os factos considerados provados e elencados supra com as regras da experiência comum e da normalidade da vida. Considerando todo o exposto, não existem dúvidas de o arguido ter representado a necessidade de prestar socorro a BB em virtude deste correr risco de vida ou de lesão grave para a sua saúde, desde logo pelo facto de o veículo com a matrícula ..-..-BB ter ficado imobilizado em plena auto-estrada, nas condições já mencionadas, mas, ainda assim, absteve-se de o prestar, conformando-se com a situação de perigo, abandonando o local sem lhe prestar qualquer ajuda e sem sinalizar o acidente, apenas e só porque se queria imiscuir de toda e qualquer responsabilidade criminal.
A ausência de antecedentes criminais por parte do arguido provou-se com base no certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 404, verso.
As condições sócio-económicas, profissionais e familiares do arguido por força do teor das suas declarações, as quais se nos afiguraram credíveis, nesta parte, porque não contrariadas por qualquer outro elemento de prova.
*
A tomada de posição quanto aos factos não provados ficou a dever-se, no essencial, à ausência de prova cabal do aí inserto e à prova do contrário.
Mais concretamente o mencionado nas als. b) c) e e) resulta da prova do contrário, conforme explanado supra.
No mais, considerando a concreta dinâmica do acidente e a TAS detida pelo arguido aquando da sua prática, associada ainda à conduta posterior aos factos, entendemos que não foi possível concluir, com a certeza exigida no âmbito do processo penal, que a TAS por si detida tenha reduzido de forma significativa as capacidades de atenção, reacção e controlo por parte do arguido na condução e, portanto, que exista uma relação causal entre tal circunstância e o acidente ocorrido.

3- Apreciação do recurso

3.1- O Ministério Público, aqui recorrente, insurge-se contra a matéria de facto considerada não provada constante da sentença, invocando que esta padece do vício de erro notório na apreciação da proba da al. c) do nº 2 do artigo 410º do CPP. No seu entender, tendo sido dada como provada a factualidade que indica, não podiam ter sido considerados como não provados os factos descritos nas alíneas a) e d) da sentença   
  Vejamos, então, o invocado vício de erro notório na apreciação da prova do nº 2 al. c) do artigo 410º do CPP.
O referido preceito legal prevê a chamada “revista alargada”, dizendo que «Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.»

O aludido vício de erro notório na apreciação da prova é um vício de confeção da decisão ao nível da matéria de facto, que deverá resultar do texto da decisão por si só ou conjugadamente com as regras da experiência, distinguindo-se claramente do erro de julgamento da matéria de facto.
Efetivamente, o vício de erro notório na apreciação na prova verifica-se quando, analisada a decisão recorrida na sua globalidade e sem recurso a elementos extrínsecos, resulta de forma inequívoca que o tribunal fez uma apreciação ilógica da prova, em patente oposição às regras básicas da experiência comum, ou seja, sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal. Trata-se de um erro ostensivo, que é detetado pelo homem médio. Através da indicação das provas que serviram para formar a convicção do julgador e do seu exame crítico, o tribunal ad quem verifica se o tribunal a quo seguiu ou não um processo lógico e racional na apreciação da prova.
Como se escreveu no acórdão do STJ de 27/10/2010, “ o erro notório na apreciação da prova, nos termos do artº 410º, nº 2, al. c) do CPP, é uma anomalia de confeção técnica decisória, a resultar do texto da decisão recorrida, quando nela existam ou se revelam distorções de ordem lógica entre factos provados e não provados ou que traduzam uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorreta, que, por isso mesmo não passa despercebida imediatamente a uma verificação e observação sem esforço, tomando-se como ponto de referência o homem médio (…)» - cfr. CJ -  ASTJ – Ano XVIII, tomo III, pág. 243  e ss.
Outrossim, como bem se refere no Ac. RC de 06.02.2019, processo 72/18.1GTCBR.C1, disponível em www.dgsi.pt,  “O erro notório na apreciação da prova tem de ser ostensivo, que não escapa ao homem com uma cultura média, e nada tem que ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correta face à prova produzida em audiência de julgamento”.
Mais recentemente numa interpretação diferente, considerando que o erro não é aquele que é percetível pelo homem médio, sustentou-se que “O erro notório é a falha grosseira percetível pelo juiz em concreto pressuposto pela ordem jurídica”, cfr Ac. STJ de 23.06.2022, processo 11/20.0GACLD.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
Acresce dizer que para se aferir se o tribunal a quo incorreu em erro notório para efeito da disposição legal em análise, importa notar que o tribunal ad quem não vai analisar o conteúdo da prova, ou seja, saber se, por exemplo, o arguido e as testemunhas disseram ou não o que consta da fundamentação da sentença recorrida. O tribunal ad quem apenas vai analisar o percurso lógico seguido na apreciação da prova no sentido de dar resposta à questão de saber se os elementos de prova considerados permitiam concluir no sentido em que concluiu.            

No caso em apreço, com relvo para a decisão da questão em apreço, verifica-se que na sentença foi considerado provado, nomeadamente, que:

“1. No dia ../../2019, pelas 01h00m, o arguido AA conduzia o automóvel ligeiro de passageiros de marca “...”, modelo ..., com a matrícula ..-..-BB, na Auto-Estrada nº ...1, no sentido .../....
2. E transportava BB, que seguia no banco do passageiro da frente. 3. No sentido de marcha mencionado em 1., a faixa de rodagem tem três vias de trânsito, sendo que a mais à direita se encontra delimitada por linha longitudinal continua (separadora de vias de trânsito) a ser utilizada por utentes que circulam vindos da localidade de ... e para acesso à via de trânsito rápido, a qual depois é substituída por linha longitudinal descontinua.
4. Nessa ocasião, estava bom tempo, existia boa visibilidade, o piso encontrava-se em bom estado de conservação, seco e limpo.
5. O arguido tripulava a aludida viatura depois de ter ingerido bebidas alcoólicas.
6. Ao Km 27,3, após descrever uma curva para o lado esquerdo, o arguido accionou o travão de serviço do veículo por si conduzido, altura em que perdeu o controlo do mesmo e embateu, com a sua parte frontal, contra o separador central, imobilizando-se um pouco mais à frente em posição diagonal, oferecendo a lateral do lado oposto ao do condutor, ao sentido de marcha aí permitido, na via da esquerda, calcando a linha longitudinal descontínua.
7. No local onde o veículo ficou imobilizado a faixa de rodagem já é composta por três vias de trânsito, todas delimitadas por linha longitudinal descontínua.
8. Após a colisão, o arguido saiu da sua viatura, transpôs o separador central, e pediu a CC, condutor que circulava no sentido oposto, que o transportasse ao Hospital ..., abandonando o local.
9. Fê-lo sem sinalizar devidamente a ocorrência do acidente, concretamente, sem ligar as luzes de perigo da viatura sinistrada nem colocar o triângulo a, pelo menos, cerca de 30 metros da rectaguarda do veículo.
10. E sem cuidar de saber do real estado de BB nem providenciar por socorro ao mesmo, altura em que aquele se encontrava inconsciente.
11. Instantes depois, surge na sobredita via o automóvel ligeiro de passageiros de marca ...”, modelo ..., com a matrícula ..-HF-.. conduzido por DD, que circulava a velocidade não concretamente apurada, na via do meio, mas ocupando a partir de determinado momento parte da via da esquerda, sem se ter logrado apurar qualquer razão que o impedisse de circular na via mais à direita, ou o mais à direita na própria via em que seguia.
12. Não se apercebendo da presença na via da viatura com a matrícula ..-..-BB na via, DD embateu com a parte da frente, lado esquerdo, do seu veículo na lateral direita do automóvel com a matrícula ..-..-BB, quando BB já tinha recuperado os sentidos e havia aberto a porta do lado do passageiro, preparando-se para sair, capotando de seguida, e imobilizando-se uns metros mais à frente do veículo com a matrícula ..-..-BB.
(…)
18. Submetida tal amostra a exame laboratorial no I.N.M.L. – Delegação ..., apurou-se que o arguido apresentava uma T.A.S. de 1,49 g/l, com um erro de +/- 0,19 g/l.
19. O arguido quis conduzir o aludido automóvel com a matrícula ..-..-BB depois de ter ingerido bebidas alcoólicas, sabendo que circulava com o mesmo na via pública, que não o podia conduzir no estado em que se encontrava e que a quantidade de bebidas alcoólicas que ingerira era susceptível de lhe determinar uma taxa de álcool no sangue de valor igual ou superior ao mínimo penalmente permitido.
20. O arguido representou a necessidade de prestar socorro a BB em virtude de este correr risco de vida ou de lesão grave para a sua saúde, pelo facto de o veículo com a matrícula ..-..-BB ter ficado imobilizado em plena auto-estrada, nas condições referidas em 6. e 7., mas, ainda assim, absteve-se de o prestar, conformando-se com a situação de perigo, abandonando o local sem lhe prestar qualquer ajuda e sem sinalizar o acidente.
21. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.”

Por outro lado, foi considerado como não provado que:
 “a) O mencionado em 5., associado ao que se refere em 18., tenha reduzido de forma significativa as capacidades de atenção, reacção e controlo por parte do arguido na condução que efectuava e que, dessa forma, punha em causa a segurança da circulação rodoviária.
(…)
d) O arguido sabia que face à quantidade de bebidas alcoólicas ingeridas não estava em condições de conduzir o veículo em segurança e que poderia causar um embate e, assim, criar perigo para a vida, a integridade física e veículos dos demais utentes da via em que seguia, como veio a acontecer, e perigo esse que o arguido representou, mas com o qual não se conformou.”

No essencial, está em causa saber se:
- tendo sido considerado como provado que, nas circunstâncias apuradas, o arguido conduzia na via pública um veículo com motor com a TAS de 1,49 g/l, com a margem de erro de + / - 0,19 g/l; e que o arguido quis conduzir o aludido automóvel com a matrícula ..-..-BB depois de ter ingerido bebidas alcoólicas, sabendo que circulava com o mesmo na via pública, que não o podia conduzir no estado em que se encontrava e que a quantidade de bebidas alcoólicas que ingerira era suscetível de lhe determinar uma taxa de álcool no sangue de valor igual ou superior ao mínimo penalmente permitido; apesar disso.
- se podia ter sido considerado como não provado, como aconteceu no caso em apreço, que:
- a condução com a referida TAS reduz de forma significativa as capacidades de atenção, reação e controlo por parte do arguido na condução que efetuava e que, dessa forma, punha em causa a segurança da circulação rodoviária; e o arguido sabia que face à quantidade de bebidas alcoólicas ingeridas não estava em condições de conduzir o veículo em segurança e que poderia causar um embate e, assim, criar perigo para a vida, a integridade física e veículos dos demais utentes da via em que seguia, como veio a acontecer, e perigo esse que o arguido representou, mas com o qual não se conformou.
No que se refere à prova da redução, por forma significativa, das capacidades para conduzir um veículo na via pública daquele que conduza com a TAS de 1,49 g/l, a resposta é clara e óbvia. O cidadão comum tem disso consciência, tendo contribuído para essa consciencialização coletiva ( que se encontra solidificada no nosso país ), as campanhas que ao longo dos anos foram sendo efetuadas pela Prevenção Rodoviária Portuguesa e, de um modo geral,  a sensibilização do público efetuada através dos meios de comunicação social. Esta sensibilização da consciência coletiva é, de resto, desde longa data, suportada em vários trabalhos científicos que confirmam esse facto. Assim, por exemplo, vide Rui Tato Marinho (Assistente Hospitalar Graduado, Consultor em Gastrenterologia e Assistente da Faculdade de Medicina de Lisboa, in “Perspectiva médica sobre a taxa de alcoolemia de 0,2 mg/ml”, Revista Portuguesa de Clínica Geral), onde se refere   “..o risco de acidentes associados à ingestão de álcool aumenta  exponencialmente  com  a  TAS. Comparados indivíduos com e sem ingestão de álcool, concluiu-se que o risco relativo foi 1,4 vezes superior com TAS  de  0,2-0,4  mg/ml,  11,1vezes para  TAS  de  0,5-0,9  mg/ml,48 vezes para TAS de 1,0-1,4 mg/ml, e 380 vezes para TAS acima de 1,5mg/ml.”
E obviamente não foi por mero acaso que o legislador decidiu qualificar como crime a condução de veículo na via pública com TAS  de valor igual ou superior a 1.2 g/l. Ou seja, a qualificação como crime tem que ver com o reconhecimento de que se trata de uma conduta perigosa que põe em causa, por forma muito relevante, a segurança rodoviária, por diminuir drasticamente as capacidades do condutor, o que a ser levado a cabo com dolo ou negligência traduz-se numa conduta deveras censurável.
No caso vertente, apurou-se, tendo sido considerado como provado, o referido facto objetivo, ou seja, a condução de veículo com a TAS de 1.49 g/l, com a margem de erro de + / - 0,19 g/gl, tendo o arguido até admitido tal facto, confessando que havia ingerido bebidas alcoólicas em momento prévio à condução, com perfeita consciência de que não podia conduzir após tal circunstância, o que foi aceite pelo tribunal recorrido.
No sobredito contexto, e na ausência de qualquer outro facto que se tenha indiciado ou considerado provado, contraria, por forma clara e ostensiva as regras da experiência comum, perante o olhar de um cidadão mediano e do juiz suposto pela ordem jurídica, a consideração como não provado que a condução com a TAS de 1.49 g/l reduz de forma significativa as capacidades de atenção, reação e controlo por parte do arguido na condução que efetuava e que, dessa forma, punha em causa a segurança da circulação rodoviária. Assim como a consideração como não provado de que o arguido sabia que face à quantidade de bebidas alcoólicas ingeridas não estava em condições de conduzir o veículo em segurança e que poderia causar um embate e, assim, criar perigo para a vida, a integridade física e veículos dos demais utentes da via em que seguia, como veio a acontecer, perigo esse que o arguido representou, mas com o qual não se conformou. Estes factos deveriam, pois, ter sido considerados como provados.
Em síntese, no caso em apreço, relendo a fundamentação da decisão recorrida, acima transcrita na integra, e compaginando-a com os factos provados e não provados, tendo em conta tudo o que dissemos supra a propósito do suscitado vício da sentença de erro notório na apreciação da prova, facilmente se constata que a apreciação da prova levada a cabo pelo tribunal recorrido, na parte indicada pelo recorrente, é ilógica e ofende por forma crassa e ostensiva as regras da experiência comum, motivo pelo qual se mostra verificado o suscitado vício decisório de erro notório na apreciação da prova.  
Nesta conformidade, ao abrigo do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 426º, nº 1 e 431º al. a), ambos do CPP, porque é possível decidir da causa em face dos elementos de prova disponíveis, sem necessidade de proceder ao reenvio do processo para novo julgamento, impõe-se proceder à alteração da matéria de facto da sentença recorrida, considerando como provados os factos das als. a) e d) dela constante considerados como não provados, assim ficando sanado o vício indicado[3].
Em consequência desta alteração da matéria de facto, mostra-se arredado o motivo que conduziu o tribunal recorrido a absolver o arguido pela prática de um crime de condução perigosa do qual se encontrava acusado e a condená-lo pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
Importa notar que, como bem se refere no Ac. RP de 14.12.2017, processo 29/13.9PTVNG.P1, disponível em www.dgsi.pt, “Estando em causa uma única acção naturalística – condução de veiculo em estado de embriaguez que crie perigo para a avida, integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado – ocorre entre o crime de condução de veiculo em estado de embriaguez (artº 292º CP) e o crime de condução perigosa de veiculo rodoviário (artº 291º CP) uma relação de concurso aparente, sendo a conduta punida pela pena prevista por este último (artº 291º CP) porque mais grave.”
Ao arguido vem imputada, para além de um crime de omissão de auxílio, a prática, em autoria material, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 291.º, n.º 1, alínea a) e nº 3, 285º, aplicável por força do artigo 294º, nº 3, 69.º, n.º 1 al. a)  do Código Penal, por referência aos artigos 63º, nº 1 e nº 3, alínea a), 87º, nºs 1 e 3 e 88º, nºs 1 a 3, do Código da Estrada.
Com tipo legal de crime de condução perigosa de veículo rodoviário pretendeu-se evitar, ou pelo menos, manter dentro de certos limites, a sinistralidade rodoviária, que tinha vindo a aumentar assustadoramente no nosso país nos últimos anos ( e que se mantém ainda em níveis elevados), punindo todas aquelas condutas que se mostrem suscetíveis de lesar a segurança deste tipo de circulação, e que, ao mesmo tempo, coloquem em perigo a vida, a integridade física ou bens patrimoniais de valor elevado, cfr. Comentário Conimbricense ao Código Penal, tomo II, pág. 1079 e seguintes.
O tipo objetivo consiste, no que para o caso nos interessa, na falta de condições para a condução por se encontrar em estado de embriaguez e no perigo daí resultante para a vida ou integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado.
O tipo subjetivo consiste no dolo relativamente a todos os elementos do tipo objetivo, incluindo a criação de perigo para os bens jurídicos enumerados. No entanto, como se refere na ob. cit., pág. 1088, é suficiente o dolo eventual, pelo que basta que o agente tenha a consciência do perigo decorrente da sua conduta para outras pessoas ou para bens alheios de valor elevado, e se tenha conformado com essa situação.  
O n.º 3 abrange as situações quem que se verifique uma ação dolosa com perigo negligente; e o nº 4 ação e perigo negligentes.  
Trata-se de um crime de perigo concreto. Não basta, por conseguinte, ao preenchimento do tipo legal, a insegurança na condução, ou a violação grosseira das regras de circulação rodoviária, tornando-se necessário, que da análise das circunstâncias do caso concreto, se deduza a ocorrência desse mesmo perigo concreto, ob. cit. pág. 1087. No mesmo sentido vide, v.g., Ac RP de 28.03.2001, in www.dgsi.pt, n.º JTRP00031584.
No caso vertente, a atuação do arguido enquadra-se, efetivamente, no n.º 1 al. a)  e nº 3 do artigo 291º do C. Penal. De facto, o arguido conduzia na via pública um veículo automóvel, com uma TAS elevada de 1.49 g/l e criou, em concreto, perigo para a integridade física de terceiros concretamente o individuo por ele transportado, que seguida no lugar do pendura. 
A atuação do arguido, no que se refere à condução sob influência de álcool é intencional, tendo agido, pois, com dolo. Acresce que o arguido sabia que face à quantidade de bebidas alcoólicas ingeridas não estava em condições de conduzir o veículo em segurança e que poderia causar um embate e, assim, criar perigo para a vida, a integridade física e veículos dos demais utentes da via em que seguia, como veio a acontecer, e perigo esse que o arguido representou, mas com o qual não se conformou.”
Em face da factualidade dada como provada, não há dúvida de que o arguido cometeu o crime de condução perigosa de veículo rodoviário previsto e punido pelo artigo 291º, nº 1 al. a) e nº 3 do CP.
Porém, não vemos que exista fundamento legal para a imputada agravação por a pessoa transportada pelo arguido, e que seguia no lugar do pendura, ter sofrido ofensa à integridade física grave, uma vez que não existe nexo de causalidade adequada entre a condução em estado de embriaguez ou sob influência do álcool e este resultado. O que determinou o referido resultado foi a conduta do arguido consubstanciada nas infrações ao Código da Estada imputada na acusação ao arguido. Ou seja, a violação do 63.º, n.ºs 1 e 3 al. a) (que se reporta à sinalização de perigo em caso de viatura imobilizada por acidente), 87.º, n.ºs 1 e 3 (comportamento em caso de avaria ou acidente) e 88.º, n.º 1 a 3 (pré-sinalização de perigo) do Código da Estrada, normativos que nada tem que ver com a condução de veículo em estado de embriaguez. E ainda assim, não resultou provado que as lesões sofridas pela pessoa transportada pelo arguido tenham decorrido única e exclusivamente da conduta do arguido (cfr. al. e) dos factos não provados).
Assim, uma vez que o processo contém todos os elementos necessários para a decisão, importa dar cumprimento ao AFJ nº 4/2016, Diário da República n.º 36/2016, Série I de 2016-02-22, segundo o qual «Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal.»
O crime cometido de condução perigosa de veículo rodoviário perpetrado pelo arguido é punível com pena de prisão de 30 dias a dois anos ou pena de multa de 10 a 240 dias e com proibição de conduzir veículos a motor de 3 meses a 3 anos – artigos 41º, nº 1, 47º, nº 1, 291º, nº 1 a) e nº 3 e 69º, nº 1 al. a), todos do C. Penal.
Tendo presente o comando do artigo 70º do C. Penal “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa ou pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidade da punição".
Às finalidades da punição refere-se o artigo 40º, n.º 1 do C. Penal, que estatui "A aplicação das penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade".
A propósito desta norma a Prof. Fernanda Palma, in Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal, AAFDL, ed. 1998, pág. 26, escreveu:
“O artigo 40°, norma sem paralelo no Código de 1982, traça as finalidades da punição: a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
A proteção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos outros cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva).
A proteção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial.
Por outro lado, a reintegração do agente significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena.
E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela protecção de bens jurídicos”.
Aplicação da pena de prisão deverá ser uma última ratio, apenas sendo de aplicar quando efetivamente seja necessária. Sobre esta matéria vide F. Di­as, A pena de multa de substituição, R.L.J., ano 125º, pág. 202).
No caso em apreço, não obstante a TAS ser elevada e a gravidade dos factos, a verdade é que o arguido é primário e encontra-se inserido em termos sociais e profissionais.                  
Por isso, julgamos que a pena de multa satisfaz as exigências de prevenção (geral e especial). que se fazem sentir, optando-se, consequentemente, pela aplicação deste tipo de pena.
Feita a opção pela pena de multa, há que determinar agora a medida da pena de multa e da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor de acordo com os parâmetros fixados pelo artigo 71º, nº1 e 2 do C. Penal.
Na determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, o tribunal atenderá à culpa do agente e às exigências de prevenção bem como a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor do agente ou contra ele (artigo 71.°, n.ºs 1 e 2, do CP).
Logo, num primeiro momento, a medida da pena há de ser dada pela medida de tutela dos bens jurídicos, no caso concreto, traduzindo a ideia de prevenção geral positiva, enquanto «reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida»[4].
Valorada em concreto a medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, a culpa funciona como limite máximo da pena, dentro da moldura assim encontrada, que as considerações de prevenção geral, quer positiva ou de integração, quer negativa ou de intimidação, não podem ultrapassar.
Por último, devem atuar considerações de prevenção especial, de socialização ou de suficiente advertência.
Os concretos fatores de medida da pena, constantes do elenco, não exaustivo, do n.º2 do artigo 71.° do CP, relevam tanto pela via da culpa como pela via da prevenção.
No caso concreto, deverá ter-se em conta:
- A culpa do arguido (ação dolosa e perigo negligente) que é a suposta para o tipo de crime em presença;
- O grau de ilicitude dos factos, que é elevado atenta a TAS apresentada e o contexto dos factos;
- Não se fazem sentir especiais exigências de prevenção especial, uma vez que o arguido é primário.  Por outro lado, são conhe­cidas as particulares necessidades de pre­venção geral relativamente a este tipo de ilí­cito, atento o elevado número de casos de condução perigosa com álcool que continuam a ocorrer.
No âmbito dos crimes de circulação rodoviária, as exigências de prevenção geral são muito importantes, quer pela sua excessiva frequência, quer pela gravidade das suas consequências, devendo assinalar-se às penas, por esses crimes, um efeito de prevenção geral de intimidação;
Assim, ponderando o circunstancialismo dos autos, bem assim, tendo em conta o disposto no artigo 47º, nº 2 do C. Penal, a situação económica e financeira do arguido retratada na sentença recorrida e a moldura penal da norma incriminadora, julga-se adequado condená-lo na pena de cento e vinte dias de multa, à taxa diária de sete euros e na pena acessória de inibição de conduzir veículos motorizados pelo período de oito meses, esta de acordo com o previsto no artigo 69º, nº 1 al. a) do CP.
Uma vez que vai ser revogada a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, importa desfazer o cúmulo jurídico efetuado e proceder à realização de novo cúmulo jurídico por forma a nele incluir as parcelares penas dos crimes de omissão de auxílio e de condução perigosa de veículo rodoviário perpetrados pelo arguido.
De forma que importa agora considerar os factos em globo, ou seja, no seu conjunto e a personalidade do arguido, em conformidade com o disposto no artigo 77º do CP.
Para além da gravidade dos factos, das suas consequências e da culpa do arguido, não obstante a confissão, evidencia-se sobremaneira, em termos negativos, a circunstância de o arguido não ter interiorizado o desvalor da sua conduta quanto a ter deixado a vítima no interior do automóvel nas circunstâncias referidas em 6 e 7 dos factos provados, tanto mais que até era seu amigo há mais de 30 anos (cfr. ponto 31 dos factos provados). Por isso, somos levados a concluir que os factos evidenciam que o arguido é detentor de uma personalidade muito desconforme ao dever ser jurídico-penal, carecendo de consciencializar os valores da comunidade em que encontra inserido.
Assim, dentro de uma moldura de 200 a 320 dias de multa, cr. nº 2 do artigo 77º do CP, temos como adequada e justa a pena única de 280 (duzentos e oitenta) dias de multa, à sobredita taxa diária de sete euros.     

 III – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, pelo que se decide:

1) Proceder à alteração da matéria de facto pela forma seguinte:
Eliminar dos factos não provados da sentença recorrida as als. a) e d) dos factos não provados, os quais transitarão para os factos provados, com a seguinte redação e numeração:
19º-A “ O arguido conduzia o veículo com a TAS apresentada, o que lhe reduzia de forma significativa as capacidades de atenção, reação e controlo na condução que efetuava, pondo dessa forma em causa a segurança da circulação rodoviária”.
19-B O arguido sabia que face à quantidade de bebidas alcoólicas ingeridas não estava em condições de conduzir o veículo em segurança e que poderia causar um embate e, assim, criar perigo para a vida, a integridade física e veículos dos demais utentes da via em que seguia, como veio a acontecer, perigo esse que o arguido representou, mas com o qual não se conformou.”
2) Revogar a sentença recorrida na parte em que absolveu o arguido da prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário e o condenou pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, procedendo ao respetivo cúmulo jurídico de penas, bem assim na correspondente pena acessória de inibição de conduzir.
3) Condenar o arguido pela prática, em autoria material, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário p. e p. pelo artigo 291º, n.º 1, al. a) e nº 3 do C. Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 7,00 (sete) euros;
4) Proceder ao cúmulo jurídico da pena referida supra em 3) e da pena a que se alude na al. b) do dispositivo da sentença recorrida, relativa ao crime de omissão de auxílio, e condenar o arguido na pena única de 280  (duzentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de sete euros; 
5) Condenar o arguido na pena acessória de inibição conduzir veículos a motor, pelo período de 8 (oito) meses, nos termos do disposto no artigo 69º, nº 1 al. a) do C. Penal;  
6) Confirmar, quanto ao mais, a sentença recorrida.   
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Após trânsito, comunique, enviando certidão deste acórdão ao IMTT e remeta boletim à D.S.I.C..
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No prazo de 10 dias contados do trânsito em julgado deste acórdão deverá o arguido proceder à entrega da sua carta de condução na secretaria do tribunal de primeira instância ou em qualquer posto policial, nos termos do disposto no artigo 69º, nº 3 do C. Penal, a fim de cumprir a pena acessória, sob pena de não o fazendo incorrer na prática de um crime de desobediência, previsto e punível pelo artigo 348.º, n.º 1 alínea b) do Código Penal. O arguido fica esclarecido de que caso não cumpra a pena acessória agora determinada, incorre na prática de um crime de violação de proibições previsto e punível pelo artigo 353.º do Código Penal.
Sem custas do recurso.
Notifique.
Texto integralmente elaborado pelo seu relator e revisto pelos seus signatários– artigo 94º, nº 2 do CPP, encontrando-se assinado eletronicamente na 1ª página, nos termos do disposto no artigo 19º da Portaria nº 280/2013, de 26.08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20.09.
Guimarães, 08 de outubro de 2024

Os Juízes Desembargadores
Armando Azevedo (relator)
Pedro Cunha Lopes (1º adjunto )
Florbela Sebastião e Silva (2º adjunto)


[1] Nas transcrições das peças processuais irá reproduzir-se a ortografia segundo o texto original, sem prejuízo da correção de erros ou lapsos manifestos, bem assim da formatação do texto, da responsabilidade do relator.
[2] Entre as questões de conhecimento oficioso do tribunal estão os vícios da sentença do nº 2 do artigo 410º do C.P.P., cfr. Ac. do STJ nº 7/95, de 19.10, in DR, I-A, de 28.12.1995, as nulidades da sentença do artigo 379º, nº 1 e nº 2 do CPP, irregularidades no caso no nº 2 do artigo 123º do CPP e as nulidades insanáveis do artigo 119º do C.P.P..
[3] Na verdade, como salienta Mouraz Lopes, “A subsidiariedade do processo de reenvio comporta em primeira linha a exigência por parte do tribunal de recurso que o vício seja sanado pelo tribunal e no próprio recurso, existindo nos autos elementos suficientes para tal. Este conhecimento pelo tribunal de recurso, que deve sanar os vícios e não reenviando, sem mais para novo julgamento, está dentro dos poderes de cognição do Tribunal”, cfr. Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, Tomo V, pág. 303.
[4] F. Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, p. 72-73.