RAPTO INTERNACIONAL DE MENORES
SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA
AUDIÇÃO DA CRIANÇA
VALORAÇÃO DA VONTADE DA CRIANÇA
Sumário


I. Numa situação de rapto internacional de menor, a vontade deste é um elemento importante a considerar, conjuntamente com as demais circunstâncias do caso concreto e deverá ser acolhida se não existirem outras razões que o desaconselhem.
II. Se a valoração da vontade de um menor depende essencialmente do grau do seu discernimento e da sua maturidade, também é verdade que a lei não raro aponta ou fixa a idade de 12 anos, como sendo aquela a partir da qual a opinião do jovem é relevante.

Texto Integral


Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

1. Relatório (feito com base no relatório da decisão apelada).

O Ministério Público veio instaurar procedimento judicial com vista ao regresso imediato ao ... da criança AA, nascida a ../../2012 em ..., na República ..., filha de BB e de CC, actualmente residente com a mãe na Rua ..., ..., ... ....
Invocou para tanto o Ministério Público, em síntese, que os pais da criança viveram em união de facto em ..., no ..., tendo após a sua separação, ocorrida em data indeterminada do ano de 2015, mantido ambos a sua residência naquela localidade.
Acrescentou que por sentença proferida a 21.07.2020, pelo Tribunal de Justiça do Estado de ..., Comarca de ..., ... – ..., ... Vara de Família e das Sucessões, foi homologado acordo a que os progenitores da criança chegaram quanto ao exercício das responsabilidades parentais e estabelecido a sua “guarda compartilhada”, embora a residência da menor tivesse sido fixada junto da progenitora.
Aduziu ainda o Ministério Público que, durante o ano de 2023, a mãe obteve consentimento do progenitor da filha para se deslocar temporariamente a território ..., entre os dias ../../2023 e ../../2024, a fim de aí privar com a sua mãe, avó materna da AA, mas que, decorrido aquele período, a progenitora, aqui sem qualquer autorização, se deslocou com a menor para Portugal, fixando aqui residência e transmitindo ao pai que não regressaria ao ..., onde a AA tinha residência desde o seu nascimento.
Alegou o Ministério Público, por último, que o progenitor da AA, não consentido nesta deslocação da filha, pretende o seu regresso ao ..., o que a mãe recusou mesmo depois ter sido instada a fazê-lo voluntariamente pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais.

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A progenitora foi pessoalmente citada para que, no prazo de 10 dias, alegasse o que tivesse por conveniente com respeito ao pedido de regresso imediato da filha ao ..., e para que requeresse os meios de prova que entendesse pertinentes, não tendo feito uso de qualquer dessas faculdades.
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Procedeu-se à audição da criança AA, bem como dos seus progenitores, CC e BB, este último através de meio de comunicação à distancia.
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Não se afigurando necessária a produção de mais provas, os autos foram com vista ao Ministério Público que emitiu douto parecer, fazendo-o no sentido de ser determinado o regresso imediato da criança AA ao local da sua residência habitual, do qual foi deslocada ilicitamente.
Nessa sequência, foi proferida decisão, com o seguinte dispositivo:
“Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide este Tribunal não ordenar o regresso imediato da criança AA ao local da sua residência habitual, sito na República ....
Sem custas.
Valor da causa: fixa-se em € 30.000,01, nos termos do artigo 303º, nº 1 do Código de Processo Civil.
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Registe.
Notifique.
Após trânsito, extraia certidão desta sentença, do requerimento inicial, do despacho de 14 de Junho de 2024, do douto parecer do Ministério Público e da acta da audição dos progenitores e da menor, e remeta-a à Direcção-Geral da Administração da Justiça, solicitando que a mesma seja entregue à competente Autoridade Central da República ....”.
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Inconformado com esta decisão, o Ministério Público dela interpôs recurso e formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):
III - Conclusões:

1. A retenção da criança AA por parte da sua mãe em território nacional é comprovadamente ilícita;
2. A posição da criança ao manifestar a sua preferência em residir com a sua mãe não traduz uma efectiva oposição ao seu regresso ao ... mas sim uma opção, uma (não) escolha entre duas realidades;
3. Aquela exteriorização de predileção, sendo que a alterativa seria abandonar a mãe e os irmãos, verdadeiramente impossível de conduzir a opção dissemelhante, traduz uma mera demostração de lealdade face ao que seria o desertar subsequente do agregado familiar nuclear e as incomensuráveis consequências afectivas e sentimentais daí derivadas;
4. Perante aquela realidade, nunca a criança optaria por outra via e, como tal, não é razoável daí inferir que a sua (não) escolha foi livre e consciente, ainda que porventura não tenha sofrido qualquer pressão (ainda que inconsciente) por parte da mãe;
5. Consequentemente, dessa manifestação de vontade não é igualmente possível extrair um qualquer sinal de maturidade da criança pois que não encerra uma análise reflexiva e responsável de todos os interesses em jogo, tarefa que incumbe em exclusivo aos Tribunais;
6. Da mesma forma, e por ser inviável, tal opção não foi alicerçada em qualquer evidência factual que o regresso consubstanciasse uma violação do superior interesse da criança;
7. De facto, AA viveu toda a sua vida no ..., onde aprendeu a comer, a andar e a falar e onde se mostra social e culturalmente inserida, e aí mantinha contactos regulares com o progenitor, e com outros membros da família paterna, junto de quem era feliz;
8. Dali apenas saiu no dia ../../2023 para visitar a avó materna na ... e, no dia 01 de Março de 2024, veio para Portugal com a oposição expressa e por diversos meios manifestada pelo seu pai, que chegou a dizer que a filha apenas viveria em Portugal “por cima do seu cadáver”;
9. A agora defendida ausência de maturidade da criança estriba-se, também, na evidente falta de experiência de vida, bem como no desconhecimento absoluto do território nacional, respectivos usos sociais e costumes;
10. Muito provavelmente a criança não conhece o valor do dinheiro e teve uma passagem de ano escolar puramente administrativa;
11. Para além do seu núcleo familiar adjacente, não terá quaisquer outros afectos devidamente consolidados, não teve tempo de se inteirar dos valores escolares e comunitários, das ambiências sociais dum meio profundamente distinto daquele de onde foi desenraizada à força;
12. É no ... que tem o seu pai, com quem sempre privou, a sua família alargada (paterna e materna, que não a mãe e os irmãos uterinos), onde estão os seus amigos de rua, os seus colegas de escola e onde tem todas as suas referências;
13. Estes modelos traduzem necessidades primárias, de saúde mental, que se criam entre grupos ou instituições e que vão servir de padrão e irão esculpir influências significativas na vida desta criança, para além de desempenharem um papel fundamental na formação da sua identidade, dos seus valores, dos comportamentos que irá futuramente assumir;
14. Toda esta realidade inultrapassável será fulcral na busca dos apoios emocionais que são determinantes na inserção gregária de AA;
15. A decisão unilateral tomada pela mãe da criança, que fez esboroar este clima de harmonia onde se inseria, retirou-lhe todas as referências sociais e relativamente às quais sempre existiu uma consciência de pertença, de integração e de identificação, mais a esbulhando das oportunidades de relacionamento social ali existentes com professores, amigos, vizinhos e restante família;
16. Como tal, o regresso da criança ao seu território de origem também defende o seu superior interesse e nem sequer o facto de falar regularmente com o pai pelo telefone pode mitigar aquela asserção;
17. A eventual existência de danos psicológicos laterais deve ser menorizada perante a preocupação que os Tribunais devem ter no sentido de enveredarem por decisões que desincentivem as práticas de retenções ilícitas, como ocorre, não devendo estas acabarem por se imporem como um facto consumado em benefício do progenitor infractor e com evidente prejuízo para a criança (e por arrasto para o progenitor cumpridor);
18. Sendo a mudança de residência uma questão de particular importância (também) perante o direito brasileiro, só nos competentes Tribunais poderá a mãe da criança obter uma decisão judicial que favoreça os seus interesses;
19. Foi violado, por indevida interpretação, o artº 13º, 2º §, da Convenção.
Termos em que se conclui no sentido supra exposto, julgando-se o recurso procedente e proferindo-se douta decisão a revogar aquela ora escrutinada e a determinar o regresso imediato da criança ao seu território de origem, como é de toda a JUSTIÇA!”.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido, como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC) – ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a única questão que se coloca a este Tribunal, é a de saber se não existe fundamento legal que obste à procedência da acção, máxime se não há fundamento que justifique/imponha a retenção da menor em Portugal.
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III. Fundamentação de facto.

Na decisão apelada, foram dados como provados os seguintes factos:
“Com base nos documentos juntos ao processo, na audição da criança AA e nas declarações tomadas aos progenitores, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
1. AA nasceu no dia ../../2012, no Estado ..., República ..., e é filha de BB e de CC.
2. Os pais da criança viveram juntos em ..., no ..., sendo que o seu progenitor ainda aí reside, na Rua ..., ..., ..., ....
3. Após se terem separado, a progenitora continuou a morar naquele Estado ..., fixando desde data não apurada residência na prefeitura de ..., juntamente com a menor.
4. Por sentença proferida em 21 de Julho de 2020 pelo Tribunal de Justiça do Estado de ..., Comarca de ..., ... – ..., ... Vara de Família e das Sucessões, no âmbito do processo nº 10... – ...04, foi homologado o acordo a que os progenitores da criança chegaram quanto ao exercício responsabilidades parentais e estabelecido a sua “guarda compartilhada”, embora a residência tenha sido fixada junto da progenitora.
5. Nesse acordo ficou ainda estipulado um regime de convívios entre a menor e o progenitor nos termos do qual este poderia ter a filha na sua companhia aos fins de semana, nas festividades de Natal e Ano Novo, durante um período de quinze dias nas férias escolares de Janeiro e outro período de quinze dias no mês de Julho de cada ano, no do dia do pai e, alternadamente em cada ano, no dia de aniversário da menor.
6. Durante o ano de 2023 a progenitora obteve consentimento do pai da filha para se deslocar temporariamente, entre os dias ../../2023 e ../../2024, a território ..., a fim de visitar a sua mãe, avó materna de AA.
7. Decorrido o referido prazo, e agora sem qualquer autorização do progenitor, no dia 1 de Março de 2024 a mãe da criança deslocou-se da ... para Portugal juntamente com a sua filha, fixando residência na Rua ..., ..., ..., nesta cidade ....
8. Posteriormente a progenitora matriculou a AA na Escola ..., estabelecimento de ensino onde, a partir do mês de Abril de 2024, a criança frequentou o 5º ano do ensino obrigatório, e transmitiu ao pai daquela que não iria regressar ao ..., pois pretendia passar viver em ....
9. A AA reside com a sua mãe e dois irmãos uterinos: DD e EE, nascidos, respectivamente, em ../../2021 e ../../2019.
10. Estas duas crianças são, também, filhas de FF, actual cônjuge da requerida e membro integrante do mesmo agregado familiar, que já habitava conjuntamente no ....
11. A menor frequentou a Escola ... entre os meses de Abril e Junho do corrente ano de 2024, tendo transitado para o 6º ano de escolaridade.
12. O pai da criança tem ocupação profissional, trabalhando como técnico de panificação.
13. Antes de viajar para a ... e, depois, para Portugal, a AA mantinha contactos regulares com o progenitor, convivendo com ele, e com outros membros da família paterna, em fins de semana alternados e em datas festivas.
14. Aquando da sua audição no âmbito deste processo a AA manifestou ser sua vontade continuar a viver em Portugal na companhia da sua mãe e irmãos, e não querer regressar ao ....
15. A Direcção-Geral da Administração da Justiça, na qualidade de autoridade central portuguesa, tentou junto da progenitora o regresso voluntário da criança ao ..., sem sucesso, pois que a mesma se opôs a esse retorno.”.
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IV. Do objecto do recurso.      

Está em causa nos presentes autos uma situação que se enquadra no chamado rapto internacional de crianças, regulamentado pela Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, aprovada/ratificada pelo Estado Português, pelo Decreto do Governo n.º 33/83, de 11 de Maio e que também foi subscrita pela República ....
Igualmente são aplicáveis ao caso vertente as regras e princípios consagrados no Regulamento (UE) nº 2019/1111 do Conselho, de 25 de Junho de 2019, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução das decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidades parentais e ao rapto internacional de crianças (doravante Regulamento Bruxelas II ter ou Regulamento).
Pese embora o ... não seja membro da União Europeia, aquele Regulamento e as regras nele contidas a respeito do rapto internacional de crianças devem ser também aqui observadas, dado o âmbito de aplicação espacial universal do dito Regulamento.
Estes instrumentos jurídicos têm como finalidade primordial assegurar o regresso imediato da criança deslocada ou retida ilicitamente ao país da sua residência habitual e aí ser entregue à pessoa a quem compete a sua guarda/tutela, ao abrigo da alínea a) do artigo 1.º da Convenção, sem prejuízo de poder ser determinada a sua retenção caso o seu superior interesse assim o exija.
Visam igualmente garantir que os direitos de guarda e de visita que existiam naquele Estado Contratante sejam respeitados nos outros Estados Contratantes, com respeito aos princípios da confiança e do respeito mútuo pelas decisões dos Estados Contratantes.
O art. 3º da Convenção, dispõe que: “A deslocação ou retenção de uma criança é considerada ilícita quando:
a) Tenha sido efectivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa ou a uma instituição ou a qualquer organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção; e
b) Este direito estiver a ser exercido de maneira efectiva, individualmente ou em conjunto, no momento da transferência ou da retenção, ou o devesse estar se tais acontecimentos não tivessem ocorrido.”.
Esse mesmo art. 3º, no § 2º, acrescenta que: “O direito de custódia referido na al a) pode designadamente resultar quer de uma atribuição de pleno direito, quer de uma decisão judicial ou administrativa, quer de um acordo vigente segundo o direito deste Estado”.
Também no art. 2º, nº 2, § 11 do Regulamento Bruxelas II ter, se entende por “«Deslocação ou retenção ilícitas»: a deslocação ou a retenção de uma criança quando:
a) viole o direito de guarda conferido por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor nos termos do direito do Estado-Membro onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção; e
b) no momento da deslocação ou retenção, o direito de guarda estivesse a ser efectivamente exercido, quer conjunta, quer separadamente, ou devesse estar a sê-lo, caso não tivesse ocorrido a deslocação ou retenção”.
Como bem se refere na decisão apelada (não sendo nesta parte a mesma censurada no recurso) resulta evidente que estamos perante uma situação de retenção ilícita da menor AA em território português - situação essa que a progenitora não contestou.
De facto, ficou provado que os progenitores da AA, após se terem separado, regularam judicialmente o exercício das responsabilidades parentais relativas à filha, acordando que a criança continuaria a residir com a mãe, mas estabelecendo um regime de “guarda compartilhada”, ficando ainda previsto nesse acordo, homologado por sentença proferida por tribunal, um regime de convívios entre a AA e o progenitor, convívios esses que, como ficou demonstrado também, antes de a criança ter viajado para a ..., vinham ocorrendo com regularidade, aos fins de semana e em datas festivas.
Mais ficou provado que a progenitora, após ter obtido consentimento do pai da filha para viajar para a ... e aí permanecer transitoriamente, deslocou-se, depois, para Portugal, trazendo a AA consigo e passando a viver na cidade ....
Para além disso, temos que esta deslocação da criança para Portugal e a sua permanência em território português não tiveram o acordo ou consentimento do progenitor.
Dúvidas não restam também, que o progenitor da AA tinha também, nas expressões da Convenção e do Regulamento, um “direito de custódia” ou um “direito guarda” relativo à filha AA; direito esse que aquele vinha exercendo efectivamente antes de a criança ter sido deslocada do local da sua residência habitual, situada na República ..., para Portugal.
Ou seja, como bem se continua a afirmar na decisão apelada, na situação agora em análise está mais do que evidenciado que, de acordo com o direito vigente no local da residência da criança, também o progenitor tinha e tem, de pleno direito e por acordo judicialmente homologado, o exercício do “poder familiar” sobre a filha, sendo indiscutível que no âmbito dos poderes-deveres que integram esse poder familiar se inclui o de decidir o local onde a filha AA há-de residir. Está também claro que a retenção da criança em Portugal, contra a vontade do progenitor, viola o direito de custódia ou direito e guarda que cabe ao pai.
Está assim inequivocamente demonstrado que nos encontramos perante uma situação de retenção ilícita da criança, seja à luz do artigo 3º da Convenção, seja ao abrigo do disposto pelo artigo 2º, nº 2, § 11 do Regulamento Bruxelas II ter.
Dispõe o art. 12º § 1º da Convenção de Haia de 1980 que: “quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do artigo 3.º e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respetiva deverá ordenar o regresso imediato da criança”.
Como se escreveu no Ac. desta Relação de Guimarães de 19.12.2023, relatora Sandra Melo, in www.dgsi.pt: “O princípio da célere restituição da criança subtraída ou retida ilicitamente, instituído nesta convenção, exige procedimentos expeditos e urgentes (como dispõe o seu artigo 2º) e tem apoio no artigo 11º da Convenção dos Direitos da Criança, estabelecendo como um dos direitos da criança o seu direito à reunião familiar em caso de separação dos pais. Incentiva os Estados a adotar medidas para combater a transferência ilegal de crianças para o exterior e a retenção ilícita das mesmas fora do seu país, promovendo a conclusão de acordos bilaterais ou multilaterais ou a adesão a acordos já existentes.
Pretende-se essencialmente garantir o restabelecimento da situação alterada pela ação daquele que deslocou ou reteve ilicitamente a criança, e por isso o seu regresso imediato deve ser a primeira providência a considerar pelas autoridades judiciárias de cada Estado”.
Sendo uma criança ilicitamente deslocada, a regra é o regresso da criança ao Estado da sua residência habitual.
No entanto, tal regra será afastada, se se provar (artigos 12º, 13º e 20º da Convenção de Haia) uma das seguintes situações:
1- se a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efetivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou se consentiu ou concordou posteriormente com esta transferência ou retenção; ou
2- se existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, numa situação intolerável;
3- se criança já atingiu idade e maturidade que justifiquem que se atendam as suas objeções ao regresso;
4- se pedido para o regresso não foi apresentado no Estado em que a criança se encontra dentro do período de um ano após a deslocação ou retenção ilícitas e a criança esteja já integrada no seu novo ambiente, ou se
5- o regresso da criança não seja concordante com os princípios fundamentais do Estado requerido relativos à protecção dos direitos do homem e das liberdades fundamentais.
Contudo, o Regulamento Bruxelas II ter coloca algumas restrições aos fundamentos de oposição ao regresso da criança previstos na Convenção de Haia de 1980.
Por um lado, o tribunal requerido não pode recusar o regresso da criança ao abrigo da al. b) do § 1 do artigo 13º da Convenção - risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a danos de ordem física ou psicológica, ou, de qualquer modo, ficar numa situação intolerável - se a parte que pretende o regresso da criança der garantias ao tribunal, apresentando meios de prova suficientes, ou se o tribunal tiver de outro qualquer modo essa convicção, de que foram tomadas providências adequadas para garantir a protecção da criança após o seu regresso [nº 3 do artigo 27º do Regulamento].
Por outro lado, o tribunal requerido também não poderá recusar o regresso da criança se a pessoa que o requereu não tiver tido a oportunidade de ser ouvida no processo (nº 1 do artigo 27º do Regulamento).
Em sede de aplicação da Convenção, o papel essencial do Tribunal do Estado requerido é o de restaurar o status quo ante, não esquecendo contudo que, de acordo com as regras da experiência, toda a decisão judicial que ordena o regresso de uma criança ao Estado onde tinha a sua residência habitual,  provoca sempre inevitáveis danos psicológicos para a criança, visto que a afastará do convívio do progenitor guardião/raptor que, na maioria dos casos, é a pessoa de maior referência do menor, e com quem mantém laços de afectividade mais próximos.
Por outro lado, o interesse da criança aconselha a que deva privilegiar-se a continuidade das suas relações afectivas com a pessoa que sempre esteve mais próxima de si.
Assim, deve atender-se sempre à relação afetiva da criança com a pessoa de referência que cuida de si no dia-a-dia e à opinião da própria criança, a qual pode ser relevante em qualquer idade, desde que expressa de forma inequívoca (cfr. Maria Clara Sottomayor, Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos casos de divórcio, 6ª edição revista, aumentada e atualizada, Almedina, Coimbra, pág. 150).
Apesar disso, não pode desvalorizar-se a preocupação que as instituições e os tribunais devem ter no sentido de optar por decisões que desincentivem as práticas de transferências e retenções “ilícitas”, evitando que as mesmas se imponham, como facto consumado, ao progenitor não infractor.
Finalmente, há que considerar-se que a ratio da Convenção parte do pressuposto de que os interesses da criança são de primordial importância em todas as questões relativas à sua custódia. Assim sendo, caso tudo indique que o regresso da criança, não vai de encontro ao seu interesse, ao abrigo da Convenção, então não deve ele ser decretado.
Em última instância, o critério primeiro a orientar a decisão do julgador é do superior e prevalente interesse da criança e do jovem.
Como bem se afirma na decisão apelada: “A prevalência do interesse da criança ou do jovem é afirmada na nossa lei interna pela consagração, nos artigos 4º, nº 1 do R.G.P.T.C. e 4º, al. a) da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (aprovada pela Lei nº 147/99, de 1 de Setembro) do princípio orientador segundo o qual “A intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afecto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto” – o que significa que, no confronto dos vários interesses em presença, ainda que todos eles legítimos (e nomeadamente os dos progenitores), deve sempre dar-se preferência e prevalência à solução que melhor garanta o exercício dos direitos a criança ou do jovem, e que melhor promova os seus interesses.
Mas também no domínio do direito supranacional – e é aquele que aqui primeiro se impõe observar -, a Convenção Sobre os Direitos da Criança manda atender ao superior interesse do menor, estatuindo, no seu artigo 3º, nº 1, que “Todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas, ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança”.
No caso dos autos, para o tribunal a quo, pese embora seja pacífico que a mãe reteve, de forma ilícita, a filha AA em Portugal, a verdade é que o superior interesse da menor e o respeito pela sua vontade, justificam que tenha decidido pela recusa do pedido de regresso da menor ao ..., apresentado pelo Ministério Público.
Como vimos já, um dos fundamentos da recusa a ordenar o regresso da criança é quando se verifique que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.
Resulta da factualidade dada como provada que a AA, que foi ouvida pelo Tribunal a quo no dia anterior a completar 12 anos de idade, manifestou ser sua vontade continuar a viver em Portugal na companhia da sua mãe e dois irmãos uterinos, e não querer regressar ao ....
Tal manifestação de vontade, tal como entendeu o Tribunal a quo, equivale a uma oposição ao seu regresso. É evidente que uma menor, com 12 anos de idade e que mantem uma boa relação com ambos os progenitores, posta nesta situação, não pretende magoar ou melindrar nenhum deles. Mas a verdade é que não manifestou qualquer desejo em regressar ao ..., pretendendo antes ficar a viver em Portugal.
E tal oposição é perfeitamente compreensível, dado que a AA sempre viveu com a sua progenitora, bem como com os seus irmãos uterinos, desde o nascimento destes, respectivamente, em ../../2021 e ../../2019.
Por outro lado, a AA completou 12 anos no dia seguinte ao da sua audição.
Ora, é precisamente a idade de 12 anos aquela que é, pelo nosso Legislador, e em diversas disposições legais, considerada como sendo a relevante em sede de atendibilidade e/ou valoração da vontade do menor (cfr. no Cód. Civil os artºs 1981º, n.º 1 al. a) e 1984º al. a) e o artº 1878; no Regime Geral do Processo Tutelar Cível a al. c) do nº 1 do art. 4º, a remissão que o corpo daquele nº 1 do artigo 4º faz para a al. j) do art. 4º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, onde estão também afirmados como critérios orientadores da intervenção os da audição obrigatória e da participação; o art. 5º nº 1 e 35º nº 3 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei nº 141/2015, de 8 de Setembro).
Por outro lado, quer a Convenção de Haia (artigo 13º, § 2), quer Regulamento Bruxelas II ter (artigos 21º e 26º), prescrevem a obrigatoriedade de dar às crianças que tenham atingido um certo grau de maturidade e desenvolvimento a possibilidade de serem ouvidas, e que as opiniões e vontades que manifestem sejam ponderadas nas decisões que, mais do que ninguém, dizem respeito.
E, os direitos de audição e participação da criança e do jovem estão consagrados, desde logo, no artigo 12º da Convenção sobre os Direitos da Criança, onde no seu nº 1 se prevê, que os Estados “garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade”.
Ou seja, se a valoração da vontade de um menor depende essencialmente do grau do seu discernimento e da sua maturidade, também é verdade que a lei não raro aponta ou fixa a idade de 12 anos, como sendo aquela a partir da qual a opinião do jovem é relevante.
Donde, poder extrair-se que o legislador pressupõe que a criança/menor, com idade superior a 12 anos, dispõe já da capacidade exigível para compreender os assuntos em discussão e relativos à sua pessoa, porque já suficientemente ponderada, madura e consciente.
Ora, tendo a AA 12 anos, tem já capacidade para compreender e valorar a situação familiar em que se encontra, bem como tem capacidade para tomar consciência das vantagens e desvantagens que para si podem advir de continuar a viver em Portugal, com a progenitora e irmãos, ou de regressar ao ..., para junto do progenitor.
Nessa medida, caso fosse tomada uma decisão pelo Tribunal, contrária à sua vontade, isso poderia levá-la a sentir-se desvalorizada, por não ter sido tomada em consideração a sua vontade.
Por outro lado, da factualidade dada como provada, não resulta de modo algum que a vontade manifestada pela AA no âmbito da audiência realizada nestes autos, tenha sido condicionada pela progenitora.
A tal acresce que nada nos autos nos permite considerar que se justifica, com fundamento na defesa do interesse superior da menor, não valorar ou relevar a sua vontade.
Daí poder concluir-se que correctamente agiu o Tribunal a quo ao tomar em consideração a vontade da menor e a sua vontade é no sentido de permanecer em Portugal.
Tal não significa que tenha de seguir-se a vontade da menor, mas sim que a sua vontade é um elemento importante a considerar, conjuntamente com as demais circunstâncias do caso concreto e deverá ser acolhida se não existirem outras razões que o desaconselhem.
E no caso dos autos, parece-nos não existirem essas outras razões.
É evidente que, estando os progenitores a viver um em Portugal e outro no ..., a AA sempre viverá apenas com um deles (salvo, eventualmente em períodos de férias), seja qual for a decisão a tomar. Donde, existirão sempre danos psicológicos para a menor, mas que não serão minorados com qualquer das decisões. Daí que não possam ser considerados para avaliar em que sentido aponta o interesse da criança, se aponta para o regresso ou para a manutenção da situação em que se encontra.
Por outro lado, também não podemos considerar que ao não determinar o regresso, se está a premiar o progenitor infractor, pois que é a própria Convenção, que prevê excepções.
A tal acresce que a AA teve sucesso escolar, vive com a progenitora com quem sempre viveu, na companhia de dois irmãos uterinos mais novos e do padrasto. Ou seja, tem boas condições para se converter numa adulta bem integrada.
Caso se determinasse o seu regresso ao ..., a AA iria cortar com a sua formação escolar em curso, deixaria o ambiente familiar que sempre teve e conheceu, passando a viver com o pai e deixando de viver com a mãe, com quem sempre viveu e também com os dois irmãos mais novos e o padrasto. Tais alterações de vivência, numa menor que se aproxima da puberdade ou adolescência, podem facilmente levar a sentimentos de revolta, tristeza e incompreensão, que evidentemente em nada contribuirão para o seu salutar desenvolvimento.
Concluímos, pois, que a permanência da menor no país, como é da sua vontade, é a solução que melhor assegura o seu superior interesse.
Improcede, pois, a apelação.
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Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º n.º 7 do CPC):
I. Numa situação de rapto internacional de menor, a vontade deste é um elemento importante a considerar, conjuntamente com as demais circunstâncias do caso concreto e deverá ser acolhida se não existirem outras razões que o desaconselhem.
II. Se a valoração da vontade de um menor depende essencialmente do grau do seu discernimento e da sua maturidade, também é verdade que a lei não raro aponta ou fixa a idade de 12 anos, como sendo aquela a partir da qual a opinião do jovem é relevante.
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V. Decisão.

Perante o exposto, acordam as Juízes que constituem este Colectivo da 3ª secção cível deste Tribunal da Relação, em julgar improcedente a apelação, confirmando, consequentemente, a decisão recorrida.
Sem custas, por delas estar isento o apelante.
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Guimarães, 17 de Outubro de 2024

Assinado electronicamente por:
Fernanda Proença Fernandes
Conceição Sampaio
Paula Ribas

(O presente acórdão não segue na sua redacção as regras do novo acordo ortográfico, com excepção das “citações/transcrições” efectuadas que o sigam)