ACIDENTE DE TRABALHO
TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO
VINCULAÇÃO TEMÁTICA
MÁ FÉ
Sumário


I. O artigo 112.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho, determina que do auto de tentativa de conciliação realizada na fase conciliatória nas ações emergentes de acidente de trabalho constem os factos sobre os quais tenha havido ou não acordo.
II. As partes ao tomarem posição concreta e definida sobre cada um dos factos circunscrevem o litígio na fase contenciosa às questões acerca das quais não foi possível obter acordo, o mesmo é dizer que é essa posição assumida sobre cada um dos factos que delimita o princípio da vinculação temática.
III. Na intervenção nos processos as partes devem agir de boa fé e cooperar de forma a se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.
IV. Deve ser condenada como litigante de má fé a ré/seguradora que na tentativa de conciliação realizada na fase conciliatória do processo emergente de acidente de trabalho aceita determinado facto, relevante para a qualificação do evento como acidente de trabalho, e, posteriormente, na fase contenciosa, pede, sem fundamento, a anulação da declaração, por divergência entre a vontade real e a vontade declarada.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral


Proc. n.º 1500/23.0T8PTM-B.E1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]:

I. Relatório
No âmbito do proc. n.º 1550/23.0T8PTM, em que é sinistrado/autor AA e responsável/ré Fidelidade Companhia de Seguros, S.A., procedeu-se em 09-01-2024 à tentativa de conciliação a que aludem os artigos 108º e segts. do Código de Processo do Trabalho, constando do respetivo auto o seguinte:

«Presentes
Sinistrado:
AA, portador do cartão de cidadão n.º (…)
Entidade Responsável:
Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A., representada pela Dra. BB, que apresenta neste ato substabelecimento passado pelo Dr. CC, com procuração arquivada nesta Procuradoria.
*
Após confirmar a identidade dos presentes, e da sua capacidade e legitimidade para intervir no ato, disse o Digno Magistrado do Ministério Público:
“Dos elementos constantes dos autos, resulta que o sinistrado foi vítima de acidente de
trabalho ocorrido em Local 1, no dia 17-01-2023, cerca das 08:30 horas, sofrendo traumatismo do joelho direito ao subir para um Veículo de Apoio Logístico Especial, no propósito de efetuar verificações técnicas, no âmbito das suas funções profissionais.
O perito médico-legal considerou que o sinistrado se encontra curado sem desvalorização desde o dia 29-01-2023, data que atribuiu como sendo a da cura clínica, e que esteve afetado de Incapacidade Temporária Absoluta, de 18-01-2023 a 29-01-2023.
No momento em que ocorreu o acidente prestava serviço à sua entidade empregadora, Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários ..., exercendo a profissão de bombeiro, auferindo uma retribuição anual de € 16904,34 [(base: € 860,00 x 14) + (diuturnidade: € 50,00 x 14) + (subsídio de turno: € 215,00 x 14) + (subsídio alimentação: € 4,77 x 242)].
Na data em que ocorreu o acidente de trabalho, a responsabilidade infortunística da entidade empregadora encontrava-se totalmente transferida para a entidade seguradora aqui representada.”
Dada a palavra ao sinistrado, pelo mesmo foi dito que não se encontra ressarcido da indemnização legal devida pelo período de incapacidade temporária, e, indica para efeitos de pagamento por transferência bancária das prestações em dinheiro devidas pela reparação do acidente, o IBAN (…) correspondente à conta bancária de que é titular.
Seguidamente, com base nestes pressupostos de facto e na legislação em vigor, o Magistrado do Ministério Público propôs às partes o seguinte acordo:
“A entidade responsável pagará ao sinistrado o montante de € 389,04, a título de indemnização legal devida pelo período em que esteve afetado por Incapacidade Temporária.”
O sinistrado reconhece o nexo causal entre o acidente de trabalho ocorrido em Local 1, no dia 17-01-2023, cerca das 08:30 horas, do qual lhe resultou traumatismo do joelho direito, ao subir para um Veículo de Apoio Logístico Especial, no propósito de efetuar verificações técnicas no âmbito das suas funções profissionais, e as lesões resultantes do mesmo, assim como que, à data em que o acidente ocorreu, auferia uma retribuição anual de € 16904,34, mas não concorda o resultado da perícia médico-legal, designadamente em relação ao período da Incapacidade Temporária, uma vez que considera que à data da cura clínica atribuída ainda não se encontrava curado das lesões resultantes do acidente, e ainda em relação à não atribuição de Incapacidade Permanente, pois considera que se encontra incapacitado devido às sequelas resultante do evento, motivos pelos quais não aceita o acordo proposto pelo Magistrado do Ministério Público.
A entidade responsável reconhece a existência do evento a que os autos se reportam, que lhe foi participado como tendo ocorrido em Local 1 no dia 17-01-2023, cerca das 08:30 horas, e do qual terá resultado para o sinistrado, traumatismo do joelho direito, quando este subia para um Veículo de Apoio Logístico Especial no propósito de efetuar verificações técnicas no âmbito das suas funções profissionais, mas considera que esse evento se encontra descaraterizado como acidente de trabalho, porque nem todo o evento que ocorre no local e tempo de trabalho é, para efeitos legais, um acidente de trabalho, pois, com efeito, um acidente de trabalho pressupõe, antes de mais, a ocorrência de um acidente, ou seja, um acontecimento naturalístico ou factual, de verificação súbita e imprevista, de origem externa à constituição da vítima e causador de uma lesão, pelo que a situação descrita não preenche os requisitos de um acidente de trabalho, nos termos dispostos no artigo 8.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, não podendo, por conseguinte, a entidade seguradora assumir a responsabilidade pela reparação do evento, não concordando ainda com o resultado da perícia médico-legal, nomeadamente com o período e grau da Incapacidade Temporária atribuída, motivos pelos quais não aceita o acordo proposto pelo Magistrado do Ministério Público.
Seguidamente pelo Digno Magistrado do Ministério Público foi proferido o seguinte despacho:
“Dada a capacidade e legitimidade das partes e a posição por elas assumida, dou-as por não conciliadas.
(…)».

Em 23-01-2024, o autor, com o patrocínio do Ministério Público, intentou ação especial emergente de acidente de trabalho contra a referida seguradora, onde alegou, entre o mais, que «[n]o dia 17 de janeiro de 2023, cerca das 08h30, no seu local e horário de trabalho, ao subir para um veículo de apoio logístico especial, no propósito de efetuar verificações técnicas, no âmbito das suas funções profissionais, o Autor sofreu traumatismo do joelho direito (…)» e que «[e]m virtude do referido evento, o Autor sofreu traumatismo do joelho direito por torsão (esforço) com sinais de contusão (dor), tendo-lhe sido prestada assistência no Centro Hospitalar ... e no Centro de Saúde ... (…)».

Em 19-02-2024, a ré contestou a ação, defendendo-se, no que ora importa, por exceção, alegando que a posição assumida pelo seu representante na tentativa de conciliação ficou a dever-se a má interpretação relativamente às instruções que lhe foram transmitidas, acabando por aceitar o que não queria, ou seja, «[q]ue do evento participado terá resultado para o sinistrado traumatismo do joelho direito».
E isto porque, afirmou, na participação do acidente que lhe foi remetida, assim como na posterior participação ao tribunal, não foi feita qualquer referência quanto à existência de um traumatismo no joelho.
De igual modo, acrescentou, antes da realização da tentativa de conciliação juntou aos autos carta a justificar esse motivo para a recusa do acordo, pelo que quer o sinistrado quer o Ministério Público sabiam da essencialidade desse motivo (traumatismo do joelho) para aceitar o acordo.
Concluiu, por consequência, que se verificou divergência entre a vontade por si declarada na tentativa de conciliação (existência de traumatismo) e a vontade real (inexistência de traumatismo), pelo que deve, nessa parte (de referência a traumatismo), anular-se o auto de tentativa de conciliação.

Em sede de despacho saneador foi afirmado, entre o mais, o seguinte:
«(…) tendo em conta todas as soluções plausíveis de direito (atendendo à invocação da anulabilidade da confissão – mesmo apesar de a ré ter sido representada na tentativa de conciliação por Ilustre advogada), as circunstâncias relacionadas com a existência e caracterização do acidente têm de se considerar controvertidas;
- foi alegado que a lesão foi constatada no local de trabalho, pelo que provando-se ess[e] facto o autor beneficiará da presunção prevista no artigo 10.º da LAT – referida Lei 98/2009);
- seguem os autos para se apurar da existência e caracterização de um evento como acidente de trabalho, os montantes pagos pela Segurança Social ao autor a título de subsídio de doença e a possível responsabilização da seguradora pelas eventuais indemnizações reclamadas, sendo este o objecto do litígio».
E quanto aos “temas de prova”, escreveu-se no mesmo despacho saneador:
«Perante o que ficou dito, serão temas da prova neste processo principal a existência da lesão durante a prestação do trabalho, nexo causal entre essa lesão e as incapacidades referidas e os pagamentos feitos pela Segurança Social ao autor a título de subsídio de doença».

Na audiência de discussão e julgamento, realizada em 16-05-2024, o exmo. julgador a quo ditou para a ata o seguinte despacho:
«Tendo em conta o que já resulta alertado no despacho saneador e a ausência de prova relativamente ao invocado erro em que a seguradora pretendia anular as declarações prestadas na tentativa de conciliação, poderá estar em causa uma litigância de má-fé e, como tal, ficam as partes, designadamente a seguradora ré, notificadas para se pronunciarem sobre a questão, no prazo de 10 dias».

Em resposta, a ré afirmou, em síntese, que as instruções que transmitiu a quem a iria representar na tentativa de conciliação revelam que não aceitava a existência de acidente, a caracterização do suposto acidente como um acidente de trabalho, a existência de um nexo causal entre o hipotético acidente e a alegada lesão, a natureza e grau de incapacidade atribuída pelo INML, concluindo que a sua postura “jamais” se poderá considerar subsumível ao disposto no artigo 542.º do Código de Processo Civil.

Em 06-06-2024 foi proferida sentença, contendo na parte decisória, no que ora releva, o seguinte:
«(…) decide-se condenar a ré “Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A.” como litigante de má fé em multa de 8 (oito) Unidades de conta».
Na sentença motivou-se assim a resposta à matéria de facto:
«Além da matéria já assente nos autos, para a resposta à matéria controvertida atendeu-se à conjugação de toda a prova apresentada.
Essencialmente, além da documentação clínica junta aos autos e relatórios periciais (de onde resulta, sem margem para grandes dúvidas, que o autor sofreu um traumatismo no joelho), não poderia deixar de se atender à conjugação das declarações do autor com os depoimentos de DD, EE e FF. Na verdade, especialmente do depoimento de EE, que viu o autor antes e depois da hora indicada e bem viu as consequências no corpo do autor de algo que se terá passado nessa altura (que, reafirme-se, era o tempo de trabalho do autor, nas instalações da sua entidade patronal) e que dão especial credibilidade à versão do autor (que não é desmentida por qualquer elemento de prova segura e séria).
Na verdade, a entidade seguradora ré limitou-se a juntar uma suposta transcrição de um telefonema e depoimento de alguém (GG) que viu essa transcrição. Nenhuma prova existiu que a conversa tenha sido a indicada (o autor negou-o), sendo que tal transcrição (não se sabendo quem a fez e em que condições) não tem, naturalmente, qualquer valia probatória.
Nenhuma prova foi apresentada, por outro lado, quanto à matéria alegada pela ré e que, por isso, veio a ser elencada nos factos não provados. Nenhuma testemunha o referiu e o documento que apresentou após o encerramento da audiência não pode ser usado (não só por isso, mas sobretudo pelo que se dispõe no artigo 92.º, n.º 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados, por referência à alínea a), do n.º 1, do mesmo artigo).
De resto, perante o disposto no artigo 131.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo do Trabalho, perante a falta de prova que pudesse levar à anulação do auto de tentativa de conciliação, os factos relacionados com a existência, no tempo e local de trabalho, de traumatismo no corpo do autor teriam sempre de se considerar assentes».

E, com eventual relevância para o caso, na “fundamentação de direito” consta o seguinte:
«Litigância de má fé:
Resultou dos articulados e da discussão da causa que:
1. Na tentativa de conciliação que teve lugar no dia 09/01/2024, em fase conciliatória, o Ministério Público disse que: “Dos elementos constantes dos autos, resulta que o sinistrado foi vítima de acidente de trabalho ocorrido em Local 1, no dia 17-01-2023, cerca das 08:30 horas, sofrendo traumatismo do joelho direito ao subir para um Veículo de Apoio Logístico Especial, no propósito de efetuar verificações técnicas, no âmbito das suas funções profissionais. O perito médico legal considerou que o sinistrado se encontra curado sem desvalorização desde o dia 29-01-2023, data que atribuiu como sendo a da cura clínica, e que esteve afetado de Incapacidade Temporária Absoluta, de 18-01-2023 a 29-01-2023. No momento em que ocorreu o acidente prestava serviço à sua entidade empregadora, Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários ..., exercendo a profissão de bombeiro, auferindo uma retribuição anual de € 16904,34 [(base: € 860,00 x 14) + (diuturnidade: € 50,00 x 14) + (subsídio de turno: € 215,00 x 14) + (subsídio alimentação: € 4,77 x 242)]. Na data em que ocorreu o acidente de trabalho, a responsabilidade infortunística da entidade empregadora encontrava-se totalmente transferida para a entidade seguradora aqui representada.”
2. A ora ré “Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A.”, representada por BB, com substabelecimento passado por CC, advogado com procuração arquivada na Procuradoria do Ministério Público, declarou nessa ocasião que: “A entidade responsável reconhece a existência do evento a que os autos se reportam, que lhe foi participado como tendo ocorrido em Local 1 no dia 17-01-2023, cerca das 08:30 horas, e do qual terá resultado para o sinistrado, traumatismo do joelho direito, quando este subia para um Veículo de Apoio Logístico Especial no propósito de efetuar verificações técnicas no âmbito das suas funções profissionais, mas considera que esse evento se encontra descaraterizado como acidente de trabalho, porque nem todo o evento que ocorre no local e tempo de trabalho é, para efeitos legais, um acidente de trabalho, pois, com efeito, um acidente de trabalho pressupõe, antes de mais, a ocorrência de um acidente, ou seja, um acontecimento naturalístico ou factual, de verificação súbita e imprevista, de origem externa à constituição da vítima e causador de uma lesão, pelo que a situação descrita não preenche os requisitos de um acidente de trabalho, nos termos dispostos no artigo 8.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, não podendo, por conseguinte, a entidade seguradora assumir a responsabilidade pela reparação do evento, não concordando ainda com o resultado da perícia médico-legal, nomeadamente com o período e grau da Incapacidade Temporária atribuída, motivos pelos quais não aceita o acordo proposto pelo Magistrado do Ministério Público”.
3. Foi apresentada petição inicial pelo autor.
4. Na contestação que apresentou a ré “Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A.” veio invocar a anulabilidade desse auto de tentativa de conciliação e impugna os factos alegados na petição inicial sem apresentar qualquer outra versão ou facto descaracterizador.
5. A ré “Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A.” tomou posição definida sobre os factos concretos em causa e descritos no auto de conciliação, sabendo que a isso era obrigada, mas depois veio a impugnar esses mesmos factos e sabendo que não o podia fazer.
Estes factos resultaram provados pela consideração do processado.
Cumprido o contraditório (a ré seguradora veio, por requerimento de 27/05/2024, defender que “a sua actuação nestes autos jamais poderá ser enquadrada no âmbito de litigância de má-fé”), cumpre apreciar.
As partes (ainda para mais as que se fazem acompanhar por ilustres advogados), no âmbito da resolução de conflitos de direito privado nos Tribunais, devem pautar a sua actuação pelas regras da cooperação inter-subjectiva, pela lealdade e pela boa fé (ver Abrantes Geraldes, Temas Judiciários, I Volume, Almedina, pág. 304). Actualmente, logo nos artigos 7.º e 8.º do Novo Código de Processo Civil decorrem, para as partes, os deveres de cooperação e de boa fé processual.
Entre outros deveres, deverão as partes colaborar na resolução do litígio com a maior brevidade, o que impõe que se harmonizem os respectivos comportamentos e se adopte uma postura ética e deontologicamente irrepreensível.
A justa composição do litígio só será justa se “tiver sido promovida a descoberta da verdade material, se os diversos intervenientes tiverem cooperado no sentido da sua busca, se a actividade processual se tiver pautado pelos princípios da boa fé se, enfim, os mecanismos processuais tiverem sido usados dentro do espírito do sistema” (Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 305).
Por ser assim, a ilegitimidade do exercício do direito de acção ou defesa é sancionada, no processo civil, com a litigância de má fé e a correspondente condenação do litigante em multa e, eventualmente, em indemnização à parte contrária.
Na verdade, dispõe o artigo 542º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que, tendo alguma das partes litigado de má fé, será condenada em multa.
A condenação por litigância de má fé não se encontra na dependência de nenhum pedido das partes expressamente formulado nesse sentido, podendo/devendo o Tribunal conhecer da sua existência, oficiosamente.
E as sanções não deixarão de se aplicar mesmo à parte vencedora, sem qualquer diferenciação.
Dispõe artigo 542.º, n.º 2, do Código de Processo Civil que se diz litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
- alínea a): tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
- alínea b): tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
- alínea c): tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
- alínea d): tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
A actuação da ré, ao violar um dos principais deveres de quem é chamado a uma tentativa de conciliação e posterior actuação contraditória com a posição ali assumida, de forma dolosa, é claramente susceptível de se enquadrar nas citadas alíneas c) e d), do n.º 2, do artigo 542.º do Código de Processo Civil.
Não colhe a argumentação de que tudo, afinal, é permitido às seguradoras: não se pode dizer uma coisa na tentativa de conciliação, admitindo factos concretos (como a existência de um traumatismo no tempo e local de trabalho do ora autor) para depois, sem a menor consistência, vir dizer que o seu representante estava em erro (e logo uma advogada – o que, dada a competência técnica inerente, seria muito difícil de compreender) e pretender anular essas declarações para as impugnar.
A necessidade de o autor ter de exercer actividade probatória relativamente a factos que deveriam estar assentes por acordo (cf. artigos 112.º, n.º 1 e 131.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo do Trabalho, sendo que tais factos só não ficaram logo assentes no despacho saneador pois, como então se alertou, a seguradora ré veio pretender anular a tentativa de conciliação) é uma atitude de desprezo pelas mais elementares regras que devem pautar o exercício dos direitos de defesa.
E pretender, agora em sede de pronúncia sobre esta questão, introduzir um documento em violação das mais elementares regras deontológicas (ver artigo 92.º, n.º 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados, por referência à alínea a), do n.º 1, do mesmo artigo) não pode deixar de se entender como uso reprovável dos meios ao seu alcance.
Por tudo o exposto, como não podia deixar de ser, considera-se ter a ré seguradora litigado com evidente má fé.
Tendo em conta o disposto no artigo 27.º do Regulamento das Custas Judiciais e a natureza e grau de violação dos deveres impostos à parte (que se deve aferir, como não pode deixar de ser, pelo valor do pedido em causa), deve ser de fixar a multa em 8 (oito) Unidades de conta».

Inconformada com a referida parte decisória da sentença, a ré dela veio a interpor recurso para este tribunal, tendo nas alegações de recurso apresentado as seguintes conclusões:
1. Não se conformando com o teor da decisão proferida pelo Tribunal a quo, vem a Recorrente, por via do presente recurso, contestar tal decisão.
2. Concretizando, não pode nem deve a Recorrente conceber que o Tribunal a quo a tenha condenado enquanto litigante de má fé, nos termos do artigo 542.º/2 alínea c) e d) do CPC e, bem assim, que tenha considerado que a junção aos autos do documento n.º1, em sede de requerimento por si apresentado a 27 de Maio de 2024, se consubstancia numa violação do segredo profissional, ao abrigo do disposto no artigo 92.º/1 alínea a) e n.º 5 do EOA.
3. Razão pela qual, deve a Sentença ora em crise ser revogada, quanto à condenação da Recorrente enquanto litigante de má fé, e consequentemente, ser aquela absolvida do montante em que foi condenada.
4. Sem prescindir, e apenas por mero dever e cautela de patrocínio, a multa atribuída à Recorrente, em face da sua condenação por litigância de má, sempre deveria ter sido fixada pelo montante mínimo legalmente admitido.
5. Ora, considerou o Tribunal a quo que a Recorrente, com o propósito de protelar o andamento dos autos, adoptou, em sede contestação, uma posição contraditória à posição previamente assumida em sede de Tentativa de Conciliação, bem sabendo que não o podia fazer, em clara violação do dever de cooperação.
6. Não obstante, tal não sucedeu in casu, pelo que não pode a Recorrente conformar-se com tal entendimento.
7. Efectivamente, em sede da Tentativa de Conciliação realizada nos presentes autos, existiu um erro na transmissão da declaração por parte da sua representante, do qual resultou a aceitação de que, do acidente de trabalho participado terá resultado para o Sinistrado, ora Recorrido, uma traumatismo do joelho direito.
8. Sendo certo que, a Recorrente nunca aceitou a existência de tal lesão, nem, tão pouco, instruiu qualquer representante a actuar nesse sentido.
9. Na verdade, a Recorrente está convicta que a divergência entre a sua vontade declarada (existência de traumatismo no joelho direito do Recorrido) e a sua vontade real (inexistência de traumatismo no joelho direito do Recorrido) se deveu a uma errónea interpretação das suas instruções, aquando da realização da sobredita diligência, por parte da mandatária, que por seu turno, apenas procedeu à junção de substabelecimento no próprio acto.
10. Pelo que, e contrariamente ao que decorre da Sentença em apreço, independentemente da representante da Recorrente ser uma Mandatária munida de uma competência técnica, inerente ao exercício da sua profissão, não deixa de estar isenta a possíveis erros de interpretação, que por sua vez, são perfeitamente concebíveis de acontecer.
11. Em consequência, é mais do que plausível que tenha ocorrido um erro na transmissão da declaração, em sede da aludida tentativa de conciliação, por parte da representante da Recorrente - tanto é que foi, justamente, isso que sucedeu.
12. A par desta questão, afirmou, ainda, o Tribunal a quo que alertou a Recorrente, em sede de Despacho Saneador, para o facto da postura por si assumida na contestação previamente apresentada poder consubstanciar-se como litigância de má fé.
13. Efectivamente, após a Recorrente tomar consciência de que existia uma divergência entre a sua vontade declarada e a sua vontade real, no que diz respeito à (in)existência de lesão no joelho Direito do Recorrido, aquela requereu, em sede própria, a anulação parcial do auto de tentativa de conciliação nos termos do artigo 287.º/2 do CC, fundada no aludido erro na transmissão de declaração.
14. Não obstante, após analisados os respectivos articulados apresentados pelas Partes (inclusive a contestação), o Tribunal a quo proferiu douto Despacho Saneador, tendo sido fixado como um dos temas da prova a existência de lesão durante a prestação de trabalho por parte do Recorrido.
15. Razão pela qual, sempre foi do entendimento da Recorrente que a posição por si adoptada, em sede de Contestação, que, por sua vez, implicaria a anulação parcial do auto de tentativa de conciliação, foi considerada, pelo Tribunal a quo, como relevante para a decisão da causa.
16. Pelo que, o Recorrido teve que produzir prova quanto à existência de um traumatismo no seu joelho direito porquanto tal se revelou se indispensável à descoberta da verdade material e justa composição do litigio.
17. Caso contrário, a verificação de tal lesão sempre teria sido dada como matéria de facto assente o que, por sua vez, não sucedeu.
18. Por outro lado, não é possível para a Recorrente, descortinar os motivos pelos quais o Tribunal a quo vem invocar, em sede da Sentença em apreço, que já a teria alertado, para uma suposta actuação de má fé da sua parte, porquanto, em trecho algum do aludido Despacho Saneador é feita alusão, ou até qualquer referência indirecta a tal postura.
19. Razão pela qual, a condenação da Recorrente, em sede de sentença proferida pelo Tribunal a quo, revela-se evidentemente incompatível com todo o processado nos presentes autos.
20. Em acréscimo, e salvo o devido respeito, não pode nem deve a Recorrente conformar-se com o facto do Tribunal a quo ter considerado que a junção aos autos do documento n.º1, em sede de requerimento por si apresentado a 27 de Maio de 2024 se reflectiu como um uso reprovável dos meios ao seu alcance, correspondendo tal actuação a uma violação do segredo profissional.
21. Ora, no seguimento do Despacho proferido em audiência de julgamento, veio a Recorrente, em sede do sobredito requerimento, exercer o seu direito o contraditório, alegando, para o efeito, que a sua actuação nestes autos jamais poderia ser enquadrada no âmbito de litigância de má fé.
22. Para tanto, fundamentou a sua pretensão perante a junção aos autos de tal documento n.º1, que, corresponde a um e-mail, no qual constam as instruções respeitantes à realização da aludida Tentativa de Conciliação, remetido pela Recorrente ao Mandatário que, por sua vez, a deveria ter representado em tal diligência.
23. Na verdade, a junção deste documento teve como propósito demonstrar nos presentes autos que, efectivamente, aquela nunca aceitou a existência de um traumatismo no joelho direito do Recorrido.
24. Ou seja, no seguimento o despacho proferido pelo Tribunal a quo em sede de audiência de julgamento, era inteiramente necessário para a defesa dos legítimos interesses da Recorrente demonstrar que aquela não actuou em litigância de má fé, porquanto existiu, efectivamente, uma divergência entre a sua vontade declarada e a sua vontade real, que, se deveu, exclusivamente, a uma incorrecta interpretação das suas instruções, por parte da mandatária substabelecida.
25. Além disso, e pese embora o aludido documento contenha a menção de que “é confidencial, não podendo ser exibido ou entregue a terceiros”, cumpre salientar que o Mandatário subscritor tem a expressa autorização da Recorrente para utilizar toda e qualquer documentação que lhe se seja remetida por esta.
26. Assim, dúvidas não subsistem que a junção de tal documento jamais consubstancia uma violação da relação de confiança estabelecida entre ora Signatário e a Recorrente .
27. Em bom rigor, e com o devido respeito, não consegue a Recorrente descortinar como é que a junção de um documento, com a sua expressa autorização, que tem como único propósito a defesa dos seus legítimos interesses possa consubstanciar-se como um meio reprovável dos meios ao seu alcance e, bem assim, uma violação do Segredo Profissional
28. Revelando-se, manifestamente desnecessária a extracção de certidões da Sentença ora em crise e do Requerimento apresentado pela Recorrente a 27.05.2024.
29. Por conseguinte, e perante todo antedito, jamais a postura assumida pela Recorrente no âmbito dos presentes autos pode ser enquadrada no âmbito de litigância de má fé.
30. Efectivamente, assim que teve percepção do erro na transmissão da declaração por parte da sua Representante, em sede da aludida tentativa de conciliação, a Recorrente arguiu por excepção, no momento processualmente adequado e com a toda a legitimidade, a anulabilidade parcial do auto de tal diligência.
31. Sendo certo que, não se deve confundir a amplitude do direito de acção ou de defesa com uma actuação processual dolosa ou gravemente negligente.
32. Pelo que, e considerando que a postura da Recorrente jamais se poderá considerar subsumível no preceituado no artigo 542.º do CPC, deverá a Sentença sub judice ser revogada, na parte em que a condena enquanto litigante de má-fé, e, consequentemente, deverá ser aquela absolvida da multa em que foi condenada.
33. Sem prescindir, e atendendo ao legalmente estabelecido no artigo 27.º/3 e 4 do CPC, e bem assim, ao entendimento maioritário da jurisprudência, a ser a Recorrente condenada em multa fundada em actuação por litigância de má, o que apenas se concebe por mero dever e cautela de patrocínio, tal montante sempre deveria ter sido fixado pelo valor mínimo legal, entenda-se, em duas UC´S.
NESTE TERMOS, E NOS QUE V. EXAS. MUITO DOUTAMENTE
Deve a Sentença sub judice ser revogada, quanto à condenação da Recorrente enquanto litigante de má fé, absolvendo-se aquela do montante em que foi condenada.
Sem prescindir, e apenas por mero dever e cautela e patrocínio,
Sempre deverá o montante a que a Recorrente foi condenada, a título de multa nos termos do artigo 542.º1 do CPC, ser revisto, porquanto se revela manifestamente excessivo e, consequentemente, ser fixado pelo valor mínimo legal, entenda-se, duas UC´S».

Contra-alegou o recorrido, ainda com o patrocínio do Ministério Público, a pugnar pela improcedência do recurso.

O recurso foi admitido na 1.ª instância, como de apelação, com subida imediata, em separado, e com efeito suspensivo.
Todavia, por despacho liminar do relator considerou-se que o recurso, por ser da decisão que pôs termo à causa, devia ter subido nos próprios autos, pese embora, por uma razão de economia processual, se entendeu não se justificar, ao menos por ora, a requisição desses autos em suporte físico ao tribunal recorrido (cfr. artigo 653.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), tendo em conta que os mesmos constam no suporte digital à atividade dos tribunais, Citius.

Elaborado projeto de acórdão, colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso e factos
Sabido como é que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações (cfr. artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho), no caso a única questão a decidir centra-se em saber se a ré/recorrente litigou de má fé e, em caso afirmativo, se deve alterar-se o valor da multa em que foi condenada.
A matéria a atender é a que consta do relato supra, que aqui se tem por reproduzida.

III. Valorando e decidindo
Como resulta da matéria de facto, na tentativa de conciliação a entidade responsável, aqui recorrente, reconheceu «a existência do evento a que os autos se reportam (…) do qual terá resultado para o sinistrado, traumatismo do joelho direito».
Porém, considerou que «(…) esse evento se encontra descaraterizado como acidente de trabalho, porque nem todo o evento que ocorre no local e tempo de trabalho é, para efeitos legais, um acidente de trabalho (…)».
Relacionado com esta matéria, importa ter presente que, como estatui o n.º 1 do artigo 112.º, do Código de Processo do Trabalho, na falta de acordo na tentativa de conciliação deve constar do respetivo auto «os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída»; (n.º 1 do artigo 112.); caso o interessado/parte se recuse a tomar posição sobre cada um dos factos, estando habilitado a fazê-lo, é, a final, condenado como litigante de má fé (n.º 2 do mesmo artigo).
Deste n.º 1 do preceito decorre que na falta de acordo, consignam-se no respetivo auto:
a) os factos sobre os quais tenha havido acordo;
b) os factos sobre os quais não tenha havido acordo.
Nos factos a consignar sobre se houve ou não acordo encontram-se (i) a existência e caracterização do acidente, (ii) o nexo causal entre a lesão e o acidente, (iii) a retribuição do sinistrado, (iv) a entidade responsável e (v) a natureza e grau de incapacidade atribuída.
As partes ao tomarem posição concreta e definida sobre cada um destes factos circunscrevem o litígio na fase contenciosa às questões acerca das quais não foi possível obter acordo, o mesmo é dizer que é essa posição assumida sobre cada um dos factos que delimita o princípio da vinculação temática.
E isto porque a tentativa de conciliação realizada perante o Ministério Público na ação emergente de acidente de trabalho destina-se, em primeira linha, a obter um acordo das partes que ponha termo ao processo; não sendo possível esse acordo total, destina-se, numa segunda linha, a circunscrever o litígio por forma a que na fase contenciosa só se discutam as questões acerca das quais não houve acordo na fase conciliatória.
Mas, como resulta expressamente da lei e tem sido afirmado pela jurisprudência, o acordo ou desacordo dos interessados que deve constar do auto na tentativa de conciliação realizada pelo Ministério Público na fase conciliatória do processo é o que incide sobre factos, e não sobre juízos de valor, conclusões ou qualificações jurídicas (cfr. artigos 111.º e 112.º do CPT e, por todos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14-12-2006 e de 02-07-2008, Recursos n.º 2880/07 e n.º 1327/08, respetivamente, encontrando-se aquele publicado em www.dgsi.pt).

Ora, no caso que nos ocupa o facto relevante para a presente decisão, que consta do auto de não conciliação, e que foi aceite pela responsável/seguradora, é que do evento resultou para o sinistrado um traumatismo do joelho direito.
Mas já quanto às consequências jurídicas desse evento, (a responsável/seguradora) entendeu estar descaracterizado como acidente de trabalho, porque nem todo o evento que ocorre no local e tempo de trabalho é, para efeitos legais, um acidente de trabalho.
Ou seja, e dito de modo direto: pese embora na tentativa de conciliação a responsável/ré tenha reconhecido a existência do traumatismo do joelho, entendeu que tal não era suficiente, ou caracterizador, do evento como acidente de trabalho.

Já em sede de contestação, e porventura apercebendo-se que do reconhecimento do facto da existência traumatismo do joelho podia resultar consequência jurídica diversa da que referiu no auto (não qualificação do evento como acidente de trabalho), veio pretender anular aquele reconhecimento fáctico.
Refira-se que face às regras processuais que se deixaram referidas, entende-se inócuo vir pretender anular a declaração com base na participação do acidente e até numa comunicação ao tribunal: por um lado, porque quem faz essa comunicação não tem necessariamente que possuir os conhecimentos técnicos necessários para saber, identificar e descrever todos os elementos relevantes para os fins em vista; por outro lado, independentemente do que se possa ter verificado anteriormente, o momento decisivo (na fase conciliatória do processo) para a seguradora tomar posição sobre os factos e, com eles, a existência ou não de acidente de trabalho, é a tentativa de conciliação.
Mas, mais tarde, em resposta à notificação que lhe foi efetuada – para, querendo, se pronunciar quanto a uma eventual litigância de má fé –, veio reafirmar que o declarado (que o evento causou traumatismo do joelho direito ao sinistro) não correspondeu à vontade real, concluindo, mais uma vez, pela anulação de tal declaração.
Para tanto ancorou-se numa declaração que terá emitido, tendo em vista a sua representação na tentativa de conciliação.
E lida tal declaração, constata-se que dela consta:
«Analisámos o processo e concluímos que o evento participado não pode ser considerado um acidente de trabalho.
Nem todo o evento que ocorre no local e durante o tempo de trabalho é para efeitos legais um acidente de trabalho: Com efeito, um acidente pressupõe, antes de mais, a ocorrência de um acidente, ou seja, um acontecimento naturalístico ou factual, de verificação súbita e imprevista, de origem externa à constituição da vítima e causador de uma lesão.
Assim, a situação descrita não preenche os requisitos de um acidente de trabalho, nos termos dispostos no artigo 8º da Lei nº 98/2009, de 4 de setembro, não podendo, por conseguinte, esta Seguradora assumir a responsabilidade pela reparação.
O processo deve seguir para a ação judicial».

Refira-se, em muito breve parêntesis, que, ao contrário do sustentado na sentença recorrida, não se deteta que o documento em causa não possa ser apresentado em tribunal: trata-se de um documento que contém “instruções” da ré para quem a represente no auto de conciliação, independentemente de se tratar de advogado ou não.
E sendo a própria parte que terá emitido o documento, que autoriza o respetivo mandatário a juntá-lo aos autos na fase contenciosa, não se vislumbra qualquer obstáculo legal a tal junção.

Fechado o parêntesis, avancemos.
O constante do referido documento, que terá sido emitido pela aqui recorrente corresponde, grosso modo, ao seguinte, que, por sua vez, consta do auto de não conciliação:
«considera que esse evento se encontra descaraterizado como acidente de trabalho, porque nem todo o evento que ocorre no local e tempo de trabalho é, para efeitos legais, um acidente de trabalho, pois, com efeito, um acidente de trabalho pressupõe, antes de mais, a ocorrência de um acidente, ou seja, um acontecimento naturalístico ou factual, de verificação súbita e imprevista, de origem externa à constituição da vítima e causador de uma lesão, pelo que a situação descrita não preenche os requisitos de um acidente de trabalho, nos termos dispostos no artigo 8.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, não podendo, por conseguinte, a entidade seguradora assumir a responsabilidade pela reparação do evento».
Isto significa que não existe qualquer divergência entre o que consta do auto de não conciliação e as “instruções” emitidas pela aqui recorrente para a diligência de conciliação: o que está nas “instruções” é tão só matéria de natureza jurídica, maxime inerente à existência e caraterização do acidente e isso também consta, claramente, da transcrita passagem do auto de não conciliação.
Contudo, quanto à factualidade tendo em vista a subsunção ou caracterização jurídica – ao fim e ao resto, que em consequência do evento o sinistrado sofreu traumatismo do joelho direito – não se extrai do documento em causa, apresentado pela ré/recorrente, qualquer indicação/instrução para não ser aceite o resultado fáctico do evento.
E, como se disse, e se reafirma, o acordo ou desacordo dos interessados que deve constar do auto na tentativa de conciliação realizada pelo Ministério Público na fase conciliatória do processo é o que incide sobre factos, e não sobre juízos de valor, conclusões ou qualificações jurídicas: e é esse acordo que delimita o princípio da vinculação temática.
Por isso, a aceitação nessa fase de determinada matéria de facto não obsta a que se discuta a qualificação do acidente na fase contenciosa do processo.

No caso em apreço, como se viu, não existe qualquer divergência entre a vontade real da ré/recorrente, emitida no documento, e a que foi declarada no auto de não conciliação: o que existe, sim, é que no auto de não conciliação aceitou matéria de facto que lhe era (é) desfavorável, tando em vista a caracterização ou não do evento como acidente de trabalho.
Por isso, só pode concluir-se que a invocação de erro na declaração mais não representa do que uma via oblíqua para evitar as consequências jurídicas do facto (relevante) que aceitou.

Pergunta-se, então: a conduta da ré configura litigância de má fé?
A nossa resposta só pode ser afirmativa.
Expliquemos porquê.
De acordo com o disposto no artigo 542.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, «[d]iz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
(…)
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o transido em julgado da decisão».
A redação da lei corresponde ao artigo 456.º do anterior Código de Processo Civil, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12-12, e como consta do respetivo preâmbulo, «[c]omo reflexo e corolário do princípio da cooperação, consagram-se expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas como dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos (…)».
Nesta conformidade, acentuou-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-03-2014 (proc. n.º 1063/11.9TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt), que no atual Código de Processo Civil, «(…) a condenação como litigante de má fé pode ser imposta tanto na lide dolosa como na lide temerária, constituindo lide temerária aquela em que o litigante deduz pretensão ou oposição " cuja falta de fundamento não devia ignorar", ou seja, não é agora necessário, para ser sancionada a parte como litigante de má fé, demonstrar-se que o litigante tinha consciência de não ter razão", pois é suficiente a demonstração de que lhe era exigível essa consciencialização».
Estabelece o n.º 1 do artigo 7.º do Código de Processo Civil que na intervenção no processo as partes devem cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio; nessa cooperação devem as partes agir de boa fé (artigo 8.º do mesmo compêndio legal).
Como se assinalou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-05-2024 (proc. n.º 4140/21.4T8ALM.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt), «[a] litigância processual exige inteira responsabilidade, probidade, rectidão e prudência, não sendo aceitável ou admissível a utilização de estratagemas ou expedientes censuráveis tendentes à prossecução e obtenção dos fins que a possam injustamente favorecer».

Regressando ao caso em apreço, a ré/recorrente veio na ação requerer a anulação parcial de um facto por si aceite na tentativa de conciliação: e, como se concluiu, fê-lo sem qualquer fundamento, o que sabia, ou tinha obrigação de saber, tendo em conta não só que na tentativa de conciliação se fez representar por advogada (o que pressupõe que esta, pelos conhecimentos técnicos, interpretou devidamente a vontade daquela) , como também face à tramitação processual que não podia ignorar (face aos inúmeros processuais judiciais emergentes de acidente de trabalho em que intervém como parte).
Por isso, fez uso manifestamente reprovável do processo e, por essa via, litigou de má fé (cfr. as alíneas c) e d) do n.º 2 do artigo 542.º), o que justifica a condenação a tal título.

A questão que ora se coloca consiste em saber se o valor da condenação em multa (8 UC) se mostra ajustado, ou se, como sustenta a recorrente, deve ser reduzido.
De acordo com o artigo 27.º, n.º 3 do Regulamento das Custas Processuais, nos casos de condenação por litigância de má fé a multa é fixada entre 2 UC e 100 UC; essa fixação é feita tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão na condenação no património deste (n.º 4 do mesmo artigo).
No caso, o pedido de anulação parcial do auto de não conciliação embora tenha causado um acréscimo de atividade probatória à parte contrária, assim como de trabalho ao tribunal, ele não interferiu significativamente na tramitação da fase contenciosa do processo, até porque havia outras matérias/questões a resolver.
Porém, como resulta do já afirmado, não pode deixar também de ponderar-se que, face aos inúmeros processuais judiciais emergentes de acidente de trabalho em que intervém como parte, a recorrente conhecia bem, ou tinha obrigação de conhecer, as regras processuais e, assim, que ao agir como agiu estava a omitir o dever de cooperação e a prosseguir uma conduta manifestamente reprovável.
Acresce que a sua situação económica é boa, como é do conhecimento geral (cfr. artigo 412.º do Código de Processo Civil).
Ponderados estes elementos, entende-se que o valor da multa fixado na 1.ª instância – de 8 UC – se mostra ajustado ao caso, sendo, pois, de manter.
Nesta sequência, só nos resta concluir pela improcedência das conclusões das alegações de recurso.

2. Porque vencida no recurso, a recorrente deverá suportar o pagamento das custas respetivas (artigo 527.º do Código de Processo Civil).

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pela ré/recorrente.

Évora, 10 de outubro de 2024
João Luís Nunes (relator)
Paula do Paço
Mário Branco Coelho
__________________________________________________
[1] Relator: João Nunes; Adjuntos: (1) Paula do Paço, (2) Mário Branco Coelho.