ALIENAÇÃO DA HERANÇA
DIREITO DE PREFERÊNCIA
QUINHÃO
MEAÇÃO
ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA
DEFESA DA POSSE
Sumário


1. O direito de preferência do co-herdeiro, previsto no art. 2130.º n.º 1 do Código Civil, também abrange a venda do direito à meação, e não apenas do direito ao quinhão hereditário stricto sensu.
2. Numa escritura de cessão de meação e quinhões hereditários apenas se transmitem direitos ao património conjugal dissolvido e à herança, não se transmitem direitos de propriedade sobre os seus concretos bens.
3. O adquirente desses direitos de meação e quinhões hereditários não pode, assim, tomar a atitude de se apoderar dos concretos bens da herança.
4. Se o fizer, o cabeça-de-casal pode exercer a defesa da posse dos bens da herança sujeitos à sua administração, inclusive recorrer à providência cautelar não especificada se for esbulhado ou perturbado no exercício dessa posse.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral


Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo Central Cível de Santarém, AA instaurou procedimento cautelar comum contra BB, Lda., pedindo a sua condenação a abster-se da prática de qualquer obra, inovação, vedação, corte de árvores, actividade comercial ou de outra natureza no prédio da herança de EE; entregar o prédio à Requerente para sua administração, daí retirando todo e qualquer seu pertence e mantendo-o livre e desocupado; permitir à Requerente o livre acesso ao prédio e abster-se de facultar o seu acesso a qualquer estranho à herança; a pagar uma sanção pecuniária compulsória de 300,00 euros/dia por cada dia de incumprimento dos pedidos anteriores.
Alegou que é herdeira da referida herança e que as outras herdeiras venderam a sua meação e as suas quotas hereditárias à Requerida, sem lhe conceder o direito de preferência. Para obter o reconhecimento desse direito, propôs a competente acção e depositou o preço devido e as despesas respectivas. No entanto, a Requerida apoderou-se de um dos prédios da herança e não lhe permite a administração do mesmo.
Contestando, a Requerida alegou a caducidade do direito de preferência e afirmou que nunca impediu a Requerente de aceder ao prédio nem tomou quaisquer condutas atentatórias dos direitos desta ou dos arrendatários.
Após produção da prova oferecida pelas partes, incluindo declarações de ambas as partes e inquirição de testemunhas, a sentença julgou procedente o procedimento e determinou que a Requerida:
a) “Se abstenha da prática de qualquer obra, inovação, vedação, corte de árvores, actividade comercial ou de outra natureza no prédio da herança de EE;
b) Entregue de imediato o prédio à requerente para sua administração, daí retirando todo e qualquer seu pertence e mantendo-o livre e desocupado;
c) Permita à requerente o imediato livre acesso ao prédio e abster-se de facultar o seu acesso a qualquer estranho aos bens integrantes da herança;
d) A pagar à requerente a sanção pecuniária compulsória de 100,00 euros/dia por cada dia de incumprimento do determinado nas alíneas a) a c).”

A Requerida recorre e conclui: (…)

A resposta sustenta a manutenção do julgado.
No despacho de admissão do recurso, foi fixado valor à causa – € 117.889,00.
Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.

Os factos julgados provados na sentença recorrida são os seguintes:
1. No dia … de Novembro de 2004 faleceu EE, no estado de casado no regime da comunhão geral de bens com FF, sem testamento ou outra disposição de última vontade.
2. EE deixou como seus únicos herdeiros e sem terem quem com eles concorra à sucessão, a sua viúva, FF, e suas duas filhas, AA, ora requerente, e GG.
3. FF, AA, ora requerente e GG aceitaram a herança deixada por EE, que permanece ilíquida e indivisa.
4. Por escritura de “cessão de meação e de quinhões hereditários”, de 16 de Maio de 2023, no Cartório Notarial …, FF e GG declararam ceder à requerida, pelo preço global de cinquenta mil euros, os seguintes direitos:
i. FF, pelo preço global de quarenta mil euros, que recebeu, livre de ónus e encargos, a meação no património conjugal que é titular no casamento que contraiu com EE, falecido no dia … de Novembro de 2004, bem como o quinhão hereditário de que é titular nessa herança ilíquida e indivisa; e
ii. GG, pelo preço de dez mil euros, que recebeu, livre de ónus ou encargos, o quinhão hereditário de que é titular na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu referido pai, EE.
5. CC é sócio único e gerente da sociedade requerida.
6. DD, pai de CC, arroga-se na gerência da sociedade.
7. Não foi oferecida à Requerente a preferência na aquisição dos quinhões hereditários cedidos, nem lhe foi dado prévio conhecimento do projecto de venda, do preço, condições e intervenientes.
8. A requerida só teve conhecimento do acordo celebrado entre FF, GG e a requerida no final de Julho de 2023.
9. Em 11 de Agosto de 2023 a requerente intentou contra sua mãe FF, sua irmã GG e contra a ora requerida, a acção de preferência que corre termos no Juiz 4 do Juízo Central Cível de Santarém sob o nº 2396/23.7T8STR, peticionando seja:
i. “a) Declarado e reconhecido à A. o direito de preferência na cessão dos direitos da meação no património conjugal que a R. FF é titular no casamento que contraiu com EE, falecido a … de Novembro de 2004, e do quinhão hereditário de que é titular nessa herança ilíquida e indivisa, e do quinhão hereditário de que GG é titular nessa mesma herança, formalizada através de escritura lavrada no dia 16.05.2023 no Cartório Notarial … exarada de fls. 116 a 117 vº do Livro de Notas para Escrituras Diversas número … daquele cartório, substituindo-se à BB, Lda. na aquisição daqueles direitos e condenando-se os RR. a reconhecê-lo; e consequentemente,
ii. b) Substituindo-se a A. à R. BB, Lda., na aquisição daqueles direitos levada a registo predial no prédio identificado em 15º da presente através da Ap. … de 2023/05/23, e/ou cancelado aquele registo de transmissão de posição a favor da 2ª R. e ordenado esse registo a favor da aqui A.; e
iii. c) Determinado que o preço a depositar deverá ser apenas a respectiva contraprestação, reconhecendo-se à A. o direito ao reembolso das importâncias relativas às despesas da escritura e impostos, e que por mera cautela se depositaram.”
10. Da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de EE faz parte o prédio misto sito na freguesia de Santarém (São Nicolau), concelho de Santarém, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém com o nº …1 daquela freguesia e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo … da secção … (…) e na matriz predial urbana sob os artigos … e ….
11. Consta registada a favor da requerida, através da Ap. … de 2023/05/23, a transmissão de posição na aquisição dos direitos sobre o prédio referido em 10 e a pendência do registo da acção de preferência.
12. A requerente depositou à ordem dos autos principais o valor correspondente ao do preço do negócio (50.000,00 euros), ao custo da sua realização (410,35€), IMT (5.657,82€), imposto de selo (697,45€) e registo de aquisição (225,00€).
13. Do prédio misto referido em 10 faz parte, além do mais, um pavilhão com a área de 178,40 m2, destinado a armazém, comércio e serviços, que integra o artigo matricial … e um pavilhão destinado a armazém, comércio e serviços, o qual integra o artigo matricial ….
14. Por contrato de 1 de Julho de 2016, pela FF, GG e AA, o pavilhão com a área de 178,40 m2 foi dado de arrendamento a HH, para o comércio de móveis e antiguidades e mediante a contrapartida da renda mensal de 600,00 euros (seiscentos euros), a pagar em casa da contratante AA.
15. O arrendamento manteve-se em vigor até final de Agosto de 2023, e através do qual aquele arrendatário aí manteve a sua actividade sob a designação de “…” e venda de “antiguidades e velharias”,
16. Por contrato de 1 de Julho de 2016, pela FF, GG e AA foi dado de arrendamento a II, o pavilhão destinado a armazém, comércio e serviços, que integra o artigo matricial …, para o exercício de indústria vidreira e respectivo comércio e mediante a contrapartida da renda mensal de 300,00 euros (trezentos euros), a pagar em casa da contratante AA, o qual ainda se mantém, e publicitando a arrendatária a sua actividade como “Vidreira …”, e “vidros e espelhos”.
17. Desde data não concretamente apurada, mas posterior à cessão de meação e de quinhões hereditários e anterior a Agosto de 2023, que CC e o seu pai, DD, ambos em nome da requerida, contactaram, mais do que uma vez, aqueles arrendatários dizendo-lhes ser a sociedade a nova senhoria e a solicitarem uma alteração nos contratos de arrendamento vigentes, de forma a ser a requerida a passar a constar como senhoria e a passar a receber as respectivas rendas.
18. A requerida também anunciou ter ela propósitos próprios para os armazéns, dizendo ir implantar a sua actividade de exposição e venda de veículos.
19. A requerida aparcou automóveis nos parques e pátios de acesso aos pavilhões.
20. Com a sua conduta, a requerida levou a que o arrendatário HH, no final de Agosto de 2023, desse por cessado o seu arrendamento e entregado o locado e chaves à requerente.
21. Após a saída do arrendatário HH, a requerida ocupou aquele pavilhão e aí estabeleceu a sua actividade de oficina auto e comércio de automóveis.
22. A requerida mudou os cadeados e substituiu fechaduras, apoderando-se do referido armazém como dos pátios de acesso a ambos os pavilhões.
23. A Requerida levou a efeito obras de adaptação no pavilhão para o dotar de condições para o funcionamento da oficina e stand de automóveis, nomeadamente, nas instalações eléctricas, nos canos de água e pintura.
24. A requerida passou a aparcar veículos no respectivo pátio de acesso ao armazém.
25. E publicita a sua actividade no local com os dizeres “…, Oficina Auto, Chapa e Pintura, Lavagens e Limpezas”.
26. A requerida mudou os cadeados dos portões de acesso aos logradouros do prédio misto.
27. Só a requerida tem o acesso a outra parte integrante do artigo de matriz …, composto por fracção de “andar ou utilização independente: Café”, designado de “Café …”.
28. A requerida aparca e expõe veículos automóveis no parque de acesso aos pavilhões, integrante do prédio.
29. A requerida vedou o acesso ao parque/logradouro em frente à Vidreira, com a colocação de portão.
30. A requerida, no seu exclusivo interesse e no seu próprio horário de expediente, faculta acesso livre ao público, aos seus clientes, potenciais interessados, amigos e familiares, ao parque/logradouro.
31. Fora desse horário, os portões de acesso ao parque/logradouro estão fechados.
32. A requerente não tem a chave dos cadeados de acesso ao logradouro.
33. Antes de instalar a sua actividade no pavilhão, a requerida enviou uma carta registada com aviso de recepção à requerente informando que uma vez que o locado havia sido desocupado pelo anterior arrendatário iria então ocupá-lo, mediante o pagamento do mesmo valor de renda (600,00€), solicitando o IBAN da requerente para depósito da sua quota parte do valor da renda e, informando ainda, que uma vez que a requerente não quis entregar a chave do pavilhão em causa, a requerida alterou a fechadura do mesmo.
34. A requerente não levantou a carta mencionada em 33, sendo a mesma devolvida.
35. A requerida de imediato entregou as chaves dos cadeados do portão da frente do pavilhão à inquilina II para que esta possa entrar nos pátios de acesso aos pavilhões.
36. A requerida também tentou entregar as chaves dos novos cadeados à requerente, sendo que a mesma não aceitou.
37. Noutra área de terreno mais recuada, existem 63 árvores adultas, nomeadamente, figueira da índia, nogueira, amendoeiras, nespereiras, tamareira, videiras, bananeira, laranjeiras, oliveiras centenárias, medronheiros, alperceiro, damasqueiro, aveleira, romãzeiras, oliveiras novas, figueira, ameixoeira, pereira, azinheira, loureiro, macieiras, pitangueira, goiabeira, abacateiro, quivi, ginjeiras, limoeiro, amoreira, pinheiro manso, pessegueiros, macieiras e cerejeiras.
38. Da porta da sua casa, a requerente tem acesso ao logradouro através de um portão, que dá acesso aos pátios onde se encontram os pavilhões.
39. A requerida utiliza o café como bem entende.
40. A requerida cortou, pelo menos, uma árvore.
41. A requerente não autorizou à requerida nenhuma das acções da requerida nem o uso que esteja a dar no prédio.
42. A requerente não consentiu nem concordou com qualquer alteração ou obra nos imóveis.
43. A requerente não consentiu que a requerida exerça nos edifícios ou nos logradouros qualquer actividade.
44. A requerida não concordou nem deu autorização para que terceiros acedam ou permanecerem no prédio.
45. A requerente mora ao lado do prédio dos autos.
46. A requerente é titular de crédito a “benfeitorias realizadas no prédio pertencente à herança aberta por óbito de EE e que consta na edificação de um armazém com a área de 106 m2, edificação feita no prédio descrito na C.R.P. de Santarém com o nº …, actualmente …, e inscrito na matriz predial urbana com o artigo … da freguesia de S. Nicolau, actualmente …, fracção de utilização independente A (parte)”, que arrematou, lhe foi adjudicado e passado o respectivo título de transmissão.
47. Em 06 de Setembro de 2023, a requerida remeteu carta registada com aviso de recepção à arrendatária II, informando que havia adquirido através de escritura pública de cessão de meação e de quinhões hereditários, os direitos de FF e GG relativos ao património conjugal e à herança aberta por óbito de EE, e bem assim, nessa qualidade de nova senhoria, informava a arrendatária que deveria passar a efectuar o pagamento da renda para o IBAN titulado pela requerida.
48. A referida arrendatária II respondeu à requerida através da carta registada com aviso de recepção, mencionando que iria continuar a pagar a renda à requerente até que os comproprietários informassem as porções de renda a pagar a cada um dos comproprietários.
49. A requerida anuiu ao referido em 48, continuando a arrendatária a pagar a renda à requerente.
50. A requerida prepara-se para fazer mais obras no prédio e vedar tudo e no café.

Aplicando o Direito.
Da arguição de nulidade da sentença
Argumenta a Requerida que a sentença incorreu em nulidade, por falta de fundamentação do critério utilizado para fixar o valor da sanção pecuniária compulsória, e por omissão de pronúncia quanto à fixação do valor da causa.
No que respeita à falta de fundamentação – art. 615.º n.º 1 al. b) do Código de Processo Civil – diremos que apenas ocorre quando houver falta absoluta dos fundamentos de facto ou de direito, e já não quando essa fundamentação ou motivação for deficiente, incompleta, não convincente, medíocre ou até errada, porquanto essa situação determinará a sua revogação ou alteração por via de recurso, mas não a respectiva nulidade.
Citando Alberto dos Reis[1], “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.”
Também Teixeira de Sousa[2] afirma que “esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (…). O dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (...) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (...); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível.”
Não sendo exigível que a fundamentação seja longa nem exaustiva, bastando que o Tribunal justifique a sua posição, ainda que se forma concisa ou pouco persuasiva, faz-se notar, de todo o modo, que a sentença recorrida especificou os fundamentos de facto e de direito que justificaram a decisão quanto ao valor da sanção pecuniária compulsória, o que fez no seguinte parágrafo: “Afigura-se que a requerida deve ficar adstrita à obrigação acessória de pagar a quantia fixada a título de sanção pecuniária compulsória, enquanto não cumprirem a obrigação principal e até à cessação dos efeitos da providência, que se entende adequado fixar em € 100,00 diários.”
O que se passa é que a Requerida discorda do valor fixado na sentença, mas certo é que existe fundamentação, embora concisa, relativa a critérios de adequação para garantia do cumprimento da obrigação principal.
Se esse valor é excessivo, tal poderá tão só traduzir-se em erro de direito e determinar a alteração da decisão recorrida, mas dessa análise iremos ocupar-nos mais adiante.
Quanto à questão do valor da causa, que seria apenas uma irregularidade processual, já foi sanada. O tribunal recorrido fixou esse valor, em despacho não impugnado por qualquer das partes e que assim transitou em julgado.
Julga-se, pois, improcedente a arguição de nulidade invocada pela Requerida.

Da impugnação da matéria de facto
A Requerida afirma que a Requerente teve conhecimento da intenção da venda antes da outorga da escritura de cessão de meação e de quinhões hereditários, pois a sua mãe e a sua irmã comunicaram-lhe que iriam vender os seus direitos, comunicando também o preço, os termos e as condições do negócio, factos que teriam sido confirmados por duas testemunhas.
Mais afirma que o direito invocado pela Requerente já caducou, pois decorreram mais de dois meses entre a data em que foi informada da escritura (celebrada a 16.05.2023) e a data de interposição da acção de preferência (11.08.2023).
Na opinião da Requerida, a sentença recorrida não teria procedido a uma análise criteriosa da prova, pois se o tivesse feito atentaria que as testemunhas afirmaram que muito antes do mês de Agosto começaram todos (inquilinos e Requerente) a ser contactados por ela.
Finalmente, também afirma que não ficou provado que a Requerida se prepara para fazer nova obra ou para vedar o acesso aos pátios, pavilhões e logradouros, ou que vai tomar conta do café.
Ora, está provado, para além do mais, que:
“7. Não foi oferecida à Requerente a preferência na aquisição dos quinhões hereditários cedidos, nem lhe foi dado prévio conhecimento do projecto de venda, do preço, condições e intervenientes.
8. A Requerida só teve conhecimento do acordo celebrado entre FF, GG e a requerida no final de Julho de 2023.
(…)
50. A requerida prepara-se para fazer mais obras no prédio e vedar tudo e no café.”
Estes pontos da matéria de facto foram julgados provados com base em depoimentos prestados em audiência de julgamento, como se pode constatar na motivação fáctica contida na sentença. Logo, tratando-se de factos conhecidos com fundamento em prova gravada, a Requerida deveria ter dado cumprimento ao disposto no art. 640.º n.º 1 al. b) e n.º 2 do Código de Processo Civil, sob pena de rejeição da impugnação – e como não cumpriu esse requisito, a impugnação fáctica não pode ser admitida.
Logo, rejeita-se a impugnação da matéria de facto.

Dos requisitos do procedimento cautelar comum
De acordo com o art. 362.º n.º 1 do Código de Processo Civil, «sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência, conservatória ou antecipatória, concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado.»
Está em causa, pois, a adopção de uma providência conservatória ou antecipatória, concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado. Ou seja, o objectivo do procedimento cautelar não se confunde com o fim último da acção judicial comum. Naquele apenas se pretende a adopção de providências adequadas a assegurar a efectividade do direito ameaçado – não a declaração definitiva e a imposição do direito lesado. Nesta, o objectivo passa pelo conhecimento total do direito lesado, impondo a solução definitiva.
Como nota Abrantes Geraldes[3], «dada a natureza instrumental do procedimento cautelar e a sua dependência do resultado a alcançar através da acção principal, é óbvio que o efeito definitivo derivado do exercício do direito potestativo não pode ser obtido imediatamente através do procedimento cautelar.»
Por seu turno, o art. 368.º n.º 1 do Código de Processo Civil prescreve que a providência será decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão.
A sentença recorrida considerou que estavam reunidos os requisitos necessários ao decretamento da providência, o que a Requerida impugna, afirmando que não existe a aparência do direito, que não existe risco de dano irreparável e que o decretamento da providência causa maiores danos que aqueles que pretenderia evitar.
Quanto ao primeiro argumento, a Requerida argumenta que não existe direito de preferência no que concerne à alienação da meação da viúva, e que o direito da Requerente da providência teria caducado pelo decurso do prazo de dois meses após comunicação para a preferência (art. 2130.º n.º 2 do Código Civil).
Se o segundo argumento perde logo o seu sustento face à matéria de facto provada nos pontos 7 e 8 – a Requerente da providência não teve prévio conhecimento do projecto de venda, do preço, condições e intervenientes, e só teve conhecimento do acordo consubstanciado na escritura de cessão de meação e quinhões hereditários no final de Julho de 2023 – o primeiro argumento merece maior desenvolvimento.
Se bem que a Requerida não conteste que existe a possibilidade de exercício do direito de preferência quanto à alienação dos quinhões hereditários, afirma que a norma do art. 2130.º n.º 1 do Código Civil não se aplica à alienação da meação detida pela viúva.
Sobre esta questão, diremos que a jurisprudência vem afirmando que o direito de preferência de um co-herdeiro abrange a venda do direito à meação, e não apenas do direito ao quinhão hereditário stricto sensu – neste sentido se pronunciaram os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16.07.1971 (Proc. 063577) e de 24.07.1984 (Proc. 071737), da Relação do Porto de 26.06.2001 (Proc. 0120657), da Relação de Coimbra de 13.02.2007 (Proc. 367/2000.C1) e da Relação de Lisboa de 20.06.2024 (Proc. 169/23.6T8RGR.L1-2), todos publicados na página da DGSI.
Mesmo o Acórdão da Relação de Coimbra de 23.10.2012 (Proc. 150/1998.C1), que a Requerida invoca nas suas alegações, não suporta a sua tese, pois nem sequer se pronuncia sobre esta questão específica.
In casu, o autor da sucessão EE estava casado sob o regime da comunhão geral de bens com a FF, pelo que o seu património era único e comum. Com o óbito do primeiro, ocorreu a extinção da sociedade conjugal e o surgimento do direito da segunda à partilha dos bens desse património comum, na sua dupla qualidade de herdeira e cônjuge meeira.
Visto que os direitos da viúva incidem sobre a integralidade desse património único e comum, independentemente da vocação sucessória ou da vocação matrimonial, pode-se concluir que o direito de preferência previsto no art. 2130.º n.º 1 do Código Civil também abrange a venda do direito à meação.
A propósito desta questão cita-se a seguinte passagem do citado Acórdão da Relação de Coimbra de 13.02.2007, pelo brilhantismo como aborda esta questão: “Com a dissolução da sociedade conjugal, os bens que a integravam (independentemente da designação ou caracterização que se atribua quanto ao regime em que se encontravam, vg. propriedade colectiva, comunhão de mão comum, vulgarmente conhecida por Gemeinschaft zur gesamten hand, etc.), constitui hoje entendimento dominante que, enquanto não se procede à sua partilha, entram no domínio da chamada comunhão hereditária ou comunhão de direitos. (…). Ora, sendo assim, cai-se na alçada ou previsão do art. 1404.º que manda aplicar, com as devidas adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos as regras da compropriedade. E entre essas regras encontra-se a prevista no art. 1409.º, onde se estipula, desde logo no seu n.º 1, que “o comproprietário goza do direito de preferência e tem o seu primeiro lugar entre os preferentes legais no caso de venda, ou dação em cumprimento, a estranhos da quota dos seus consortes”. É para nós, assim, inolvidável que também o direito à meação do cônjuge sobrevivo (…) se encontra sujeito ao direito de preferência dos co-herdeiros da herança que foi aberta (por morte daquele que foi seu cônjuge), mas que ainda se encontra no estado de ilíquida e indivisa. Ou seja, e por outras palavras, o direito de preferência dos co-herdeiros estende-se também à alienação que o cônjuge sobrevivo faça (a estranhos) do seu direito à meação. Aliás, não se vislumbram motivos para que assim não seja, dado as razões acima aludidas que estão subjacentes à concessão das preferências legais, existindo mesma em ambas as situações uma identidade de função.”
Assente esta questão, também temos a anotar que à Requerida, através da escritura de cessão de meação e quinhões hereditários, apenas se transmitiram direitos ao património conjugal dissolvido e à herança, não se transmitiram direitos de propriedade sobre os seus concretos bens, pelo que esta não podia tomar a atitude de se apoderar dos mesmos, como fez.
Para além da administração da herança caber agora à Requerente, como única herdeira legal que agora subsiste (art. 2080.º n.º 1 al. c) do Código Civil), esta tem o direito de “pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de acções possessórias a fim de ser mantido(a) na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído(a)” – art. 2088.º n.º 1.
Acresce, ainda, que “o herdeiro pode pedir judicialmente o reconhecimento da sua qualidade sucessória, e a consequente restituição de todos os bens da herança ou de parte deles, contra quem os possua como herdeiro, ou por outro título, ou mesmo sem título” – art. 2075.º n.º 1 – e “sendo vários os herdeiros, qualquer deles tem legitimidade para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que este possa opor-lhe que tais bens lhe não pertencem por inteiro” – art. 2078.º n.º 1.
O direito que a Requerente pretende exercer é precisamente este: a defesa da posse dos bens da herança sujeitos à sua administração, sendo que a citação da Requerida para a acção de exercício do direito de preferência fez cessar a sua boa-fé – art. 564.º al. a) do Código de Processo Civil.
A sentença recorrida bem anota o seguinte: “(…) até à partilha, os co-herdeiros de um património comum, adquirido por sucessão mortis-causa e, no caso, mediante a aquisição dos quinhões hereditários sem especificação de bens, não são donos dos bens que integram o acervo hereditário, nem mesmo em regime de compropriedade, pois apenas são titulares de um direito sobre a herança (acervo de direitos e obrigações) que incide sobre uma quota ou fracção da mesma para cada herdeiro, mas sem que se conheça quais os bens concretos que preenchem tal quota. Apenas pela partilha é que serão adjudicados os bens dessa universalidade que é herança e que preencherão aquelas quotas. A posse de bens integrantes da herança não é, nem pode ser, exercida em nome próprio, mas, sim, em nome da herança.” Para mais adiante concluir: “Não é, assim, lícito o recurso por qualquer dos herdeiros, ou, no caso, titulares de quinhões hereditários, à acção directa, nomeadamente, sem avisar previamente a herdeira, a instalar o seu estabelecimento no imóvel, fazer obras, ocupar uma fracção do prédio, entregar outra a terceiros para que nele habitem, mudar cadeados, instalar portões, tudo sem o seu consentimento ou tolerância, passando a agir como se o prédio fosse de sua exclusiva propriedade.”
Este é o direito que a Requerente está a exercer, a defesa da posse dos bens da herança sujeitos à sua administração, conjugado com a séria probabilidade de ser reconhecida como a única herdeira, face ao exercício do direito de preferência nas cessões efectuadas pela escritura de 16.05.2023. Direitos estes que podem ser protegidos através do recurso ao procedimento cautelar comum, nos termos gerais previstos nos arts. 379.º e 368.º n.º 1 do Código de Processo Civil, tanto mais que a Requerente foi esbulhada ou perturbada no exercício dessa posse.
Sobre o receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito que a Requerente pretende exercer, está demonstrada a alteração de partes do prédio com obras, a colocação de cadeados e fechaduras, o despejo de arrendatários, o encerramento após o horário de expediente, o corte de uma árvore, sempre contra a vontade da Requerente. Mais, está demonstrado que a Requerida se prepara para fazer mais obras no prédio e vedar tudo e no café (que já utiliza como bem entende).
Concordamos com a sentença recorrida, ao afirmar que “a manutenção da situação em causa é susceptível de traduzir um acréscimo ou agravamento dos danos ou prejuízos sofridos em consequência daquela ocupação”, e que “(…) não são apenas interesses materiais que estão em causa. Está também em causa o direito à administração da herança, que, sendo violado não pode ser reparado, o direito da requerente a aceder a todos os espaços integrantes da herança, que também não pode ser reparado, e bem assim, que não sejam praticados actos de difícil reparação, como seja o corte de árvores adultas. É manifesto que a perdurar esta situação no tempo, acarretará um agravamento da situação, que é grave e de difícil reparação.”
Finalmente, a Requerida alega que o decretamento da providência lhe trará maiores prejuízos que o dano que se pretende evitar, pois não tem outro local onde instalar a sua oficina – mas este facto não está provado, para além que não pode invocar como defesa o seu próprio comportamento lesivo dos direitos de outrem.
Motivos pelos quais a bem fundamentada sentença recorrida deve ser mantida.

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a sentença recorrida.
Custas pela Requerida.

Évora, 10 de Outubro de 2024

Mário Branco Coelho (relator)
Maria Adelaide Domingos
Maria João Sousa e Faro
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[1] In Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 140.
[2] In Estudos sobre o Processo Civil, pág. 221.
[3] In Temas da Reforma do Processo Civil, vol. III, Coimbra, 1998, pág. 77.