LIVRANÇA EM BRANCO
DIREITO DE REGRESSO
Sumário


Não obstante a LULL admitir a livrança em branco, o direito de regresso de um coavalista que suportou o pagamento da dívida avalizada, sobre o outro coavalista que nada pagou, pressupõe que o título de crédito produza efeitos enquanto título cambiário, o que exige que, previamente ao pagamento pelo coavalista, a livrança se encontre preenchida relativamente aos elementos essenciais.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral


Processo n.º 2227/22.5T8STR.E1 (Apelação)
Tribunal recorrido: TJ C..., Juízo Central Cível ... – J...
Apelante: AA
Apelado: BB

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de ÉVORA

I – RELATÓRIO[1]
Ação
Declarativa de condenação, sob a forma de processo comum.
Autor
CC
Réu
AA
Pedido
Condenação do Réu a pagar ao Autor a quantia de €74.738,70, acrescida de juros vencidos, à taxa legal, no montante de €2.409,27, e dos juros vincendos, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento.
Causa de pedir
O Autor, na qualidade de avalista da sociedade EMP01..., Ld.ª e da qual é sócio juntamente com o Réu, procedeu ao pagamento de duas dívidas que a sociedade tinha para com a Caixa Geral de Depósitos, tendo dessa forma evitado que esta instaurasse processo para a sua cobrança judicial.
Apesar do Réu também ser avalista das mesmas dívidas, sendo, por isso, solidariamente responsável, e respondendo segundo a sua quota na sociedade no valor peticionado, e não obstante ter sido para tal interpelado para pagar, não efetuou o pagamento.
Contestação
O Ré contestou por exceção e por impugnação.
Por exceção invocou que não foi constituída qualquer relação cartular; a ilegitimidade substantiva; que o Autor agiu com abuso de direito e com violação do princípio da boa fé.
Por impugnação, admitiu a sua qualidade de avalista, mas impugnou os factos em que o Autor se baseia para sustentar o pedido de condenação.
Contraditório quanto às exceções
O Autor foi convidado a pronunciar-se, o que fez, defendendo a improcedência das exceções.
Audiência Prévia
No que ora releva, foi identificado o objeto da causa e enunciado o tema da prova («apurar a que título e porque razão o autor procedeu à entrega daquelas quantias»).
Em relação ao objeto do litígio foi decidido que não relevava para justa composição do litígio os factos alegados nos artigos 3.º a 35.º, 89.º a 102.º da contestação, bem como a resposta às exceções.
Reclamação
No que ora releva para este recurso, por requerimento apresentado posteriormente à realização da Audiência Prévia, o Réu reclamou, nos termos do n.º 2 do artigo 596.º do CPC, na parte em que o tribunal a quo identificou um único tema da prova.
Defendeu que devia ter sido proferida de imediato decisão de mérito.
Subsidiariamente, defendeu que deve a discussão estender-se à legitimidade e correção do exercício do direito do Autor, aditando-se ao tema da prova a matéria dos artigos 3.º a 35.º e 89.º a 102.º da contestação.
E caso tal pretensão subsidiária não seja atendida, o princípio da igualdade de armas exige que também sejam excluídos os factos alegados pelo Autor nos artigos 31.º, 32.º e 34.º da p.i. e que se inscrevem no tema de prova enunciado.
Contraditório
O Autor contrapôs com o pedido de improcedência da Reclamação.
Despacho
Foi proferido despacho (ref.ª 93646384) que conheceu da Reclamação julgando-a improcedente.
Sentença
Julgou a ação procedente e condenou o Réu a pagar ao Autor a quantia de €74.738,70, acrescida de juros moratórios vencidos desde o dia 04-12-2021 e vincendos até integral pagamento, calculados à taxa legal aplicável às obrigações civis.
Recurso
Inconformado, apelou o Autor, concluindo no final das suas Conclusões do seguinte modo:
«Deve o presente ser julgado procedente e em consequência:
a) Ser a douta sentença julgada inexistente, proferida contra caso julgado formal e com violação do esgotamento do poder jurisdicional com referência ao facto provado c) constante do despacho proferido nos termos do n.º1 do art. 596º e à extensão restritiva do facto provado 34.
b) Ser a douta sentença revogada e o réu absolvido do pedido por procedência da excepção peremptória inominada correspondente à não constituição de qualquer relação cartular.
c) Subsidiariamente, para o caso da anterior excepção não proceder, deve a sentença ser julgada nula ao encontro do expendido nas precedente conclusões 9ª e 10ª.
d) Ainda subsidiariamente, para o caso da excepção a que se refere a precedente al. b) não proceder, deve o recurso em matéria de facto ser julgado procedente, ampliando-se a resposta dada ao facto provado 17, ao encontro do expendido nas precedente conclusões 11ª a 13ª.
e) Continuando subsidiariamente, para o caso da excepção a que se refere a precedente al. b) não proceder, total ou parcialmente, deve julgar-se procedente a excepção da ilegitimidade substantiva do réu, com a sua consequente absolvição.
f) Final e subsidiariamente, para o caso das anteriores pretensões não procederem, deve o douto despacho proferido nos termos do n.º3, do art. 596ºº CPC ser revogado e ordenando-se a repetição do julgamento, ser o objecto do litígio e os temas da prova ampliados de modo a poder ser apurado se o autor agiu em abuso de direito, ao encontro do alegado pelo réu nos arts. 3º a 35º e 89º a 102º da contestação.»

Resposta ao recurso
O Autor respondeu ao recuso pugnado pela improcedência do mesmo com a consequente confirmação da sentença recorrida.

Admissão do Recurso
Foi admitido por despacho proferido em 08-04-2024 (ref.ª 96094325), que também ordenou a retificação do teor do ponto 34 dos factos provados.

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do Recurso
O objeto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), consubstancia-se nas seguintes questões:
- Recurso interposto do despacho intercalar proferido na Audiência Prévia;
- Recurso da sentença:
- Nulidade da sentença;
- Impugnação da decisão de facto;
- Do mérito da sentença.

B- De Facto
A 1.ª instância fundamentou a sentença com base na seguinte matéria de facto:
FACTOS PROVADOS
« 1. O autor e o réu são sócios da sociedade por quotas EMP01..., Lda., com sede na Avenida ..., Local 1, com o NIPC ...65.
2. A sociedade tem o capital social de € 100.000,00 e tem como objecto o comércio a retalho de veículos automóveis, peças e acessórios e oficina de reparação de veículos e desenvolvimento de actividade de intermediação de crédito.
3. O autor detém três quotas, nos valores de € 50.000,00, € 8.313,71 e € 8.313,71, num total de capital social de € 66.666,67.
4. O réu detém uma quota no valor de € 33.333,33.
5. São, actualmente, gerentes dessa sociedade o autor e DD, este último desde 30 de Março de 2021.
6. Antes dessa data, eram sócios e gerentes o autor e o réu.
7. A sociedade EMP01... obriga-se com a assinatura de dois gerentes.
8. Para o exercício das actividades societárias foi outorgado, em 2 de Junho de 2015, com a Caixa Geral de Depósitos um contrato de abertura de crédito em conta corrente (de utilização simples) até ao máximo de € 150.000,00.
9. Em 12 de Março de 2018, a sociedade EMP01... celebrou com a Caixa Geral de Depósitos outro de contrato de abertura de crédito em conta corrente (de utilização simples) até ao máximo de € 75.000,00.
10. O prazo do primeiro contrato foi, inicialmente, de seis meses, tendo sido prorrogado por iguais e sucessivos períodos.
11. O segundo contrato foi celebrado pelo prazo de três anos.
12. Os créditos em causa destinavam-se exclusivamente ao financiamento da tesouraria da firma EMP01....
13. O autor e o réu subscreveram os mencionados contratos na qualidade de sócios e legais representantes da mesma sociedade.
14. Para titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades perante a Caixa Geral de Depósitos, a sociedade EMP01... subscreveu uma livrança com montante e vencimento em branco, que entregou àquela.
15. No verso da livrança o autor e o réu apuseram as respectivas assinaturas após os dizeres “Dou o meu aval à firma subscritora”.
16. A sociedade EMP01..., na qualidade de subscritora, e o autor e o réu, na qualidade de avalistas, autorizaram a Caixa Geral de Depósitos a preencher a livrança nos termos da cláusula 23.ª dos contratos.
17. Em 18 de Março de 2021, o autor transferiu a quantia de € 75.000,00 da conta bancária aberta na CGD com o n.º ...30 para a conta bancária com o IBAN ...38.
18. Em relação ao que o réu foi previamente informado, não tendo manifestado disponibilidade para pagar qualquer quantia a esse respeito.
19. O primeiro contrato foi denunciado pela Caixa Geral de Depósitos, por carta remetida à EMP01..., datada de 10 de Maio de 2021 e com o seguinte teor:
“Assunto: Contrato de Abertura de Crédito em conta-corrente n° ...97 celebrado em ../../2015.
Exmos. Senhores
Ao abrigo no disposto na cláusula 6.2, vimos por este meio denunciar o contrato identificado em epígrafe, produzindo-se os efeitos desta denúncia a partir 18/06/2021, data em que cessará definitivamente o direito de utilização do crédito concedido, devendo V. Exas., até essa data, liquidar a dívida da V/responsabilidade - relativo a capital, juros remuneratórios (e moratórios), comissões e, ainda, despesas e encargos, incluindo fiscais -, que venha a ser apurada e comunicada pela Caixa Geral de Depósitos, S.A.
Mais informamos que nesta data demos conhecimento da presente carta aos garantes pessoais da operação.”
20. Na mesma data a Caixa Geral de Depósitos remeteu uma carta ao autor com o seguinte teor:
“Assunto: Contrato de Abertura de Crédito em conta-corrente n° ...92 até ao valor de € 150.000,00 celebrado em ../../2015.
Exmo. Senhor
Vimos pela presente dar conhecimento a V. Exa., enquanto garante pessoal da operação acima identificada, de que procedemos à denúncia do respetivo contrato, nos termos da carta que aqui anexamos.
Assim, e como da mesma resulta, tal denúncia produzirá efeitos a partir do dia 18/06/2021, devendo até lá ser liquidadas todas as responsabilidades decorrentes de tal financiamento, que, para o efeito, venham a ser apuradas e comunicadas por esta instituição.”
21. O réu foi notificado, nos mesmos termos, pela Caixa Geral de Depósitos.
22. A denúncia produziu os seus efeitos após 18 de Junho de 2021.
23. No dia 18 de Junho de 2021, o autor entregou, em mão, uma carta junto da Caixa Geral de Depósitos com o seguinte teor:
“Na sequência do pedido de pagamento do contrato de abertura de crédito em conta corrente n° ...97, em nome da EMP01... Lda, e com o aval pessoal dos sócios BB e AA, venho informar V. Exas, que a minha cota pessoal perfaz o total de 66,666% do capital social, sendo os restantes 33.333% pertencentes ao outro sócio.
A responsabilidade da EMP01..., junto da Caixa a 18 de Março de 2021 era de 75.000€ + 150.000€, no total de 225.000€. O empréstimo de 75.000€, foi liquidado no dia do vencimento com transferência da minha conta pessoal para a conta da EMP01.... Os restantes 150.000€ com vencimento em 18/06/2021deverão ser pagos por ambos os sócios em partes iguais, já que a empresa EMP01... não se encontra com fundos monetários para o fazer, venho por este meio informar V. Exas. que me responsabilizo pelo pagamento de 75.000€, mediante condições a combinar.
Com este pagamento de 75.000€ e o já efectuado em 18/03 do mesmo montante, perfaz pela minha parte o montante de 150.000€ ou seja 2/3 do total de 225.000€.
Esse valor por mim pago corresponde à responsabilidade da minha cota na empresa EMP01... e portanto da minha responsabilidade na mesma.”
24. A Caixa Geral de Depósitos não aceitou a proposta apresentada pelo autor, exigindo o pagamento da dívida pela totalidade.
25. Por carta de 15 de Julho de 2021, a sociedade EMP01... foi informada da situação de incumprimento e da remessa do processo para o Pólo Negocial de Empresas de Coimbra.
26. Com a data de 20 de Julho de 2021, a sociedade EMP01... recebeu um segundo aviso de incumprimento, no qual se dava nota de que o capital vencido e comissões ascendia a € 149.554,85 e que já se encontrava com 32 dias de incumprimento.
27. Com data de 15 de Julho de 2021, e sujeito ao assunto “Situação de Incumprimento”, a Caixa Geral de Depósitos enviou ao autor uma carta com a referência DAP UAP – PNE Coimbra ...44/21 e com o seguinte teor:
“Exmo. Senhor
Informamos que os processos relativos a responsabilidades de crédito da empresa EMP01..., Lda, junto da Caixa Geral de Depósitos, face aos atrasos verificados, com valor global em dívida nesta data de 149.939,06 €, foram afetos à DAP – Polo Negocial de Empresas de Coimbra.
Por este facto e na qualidade de fiador/avalista nas referidas operações, informamos que a partir de agora deverão tratar todos os assuntos com EE, colocado nesta Direção, através do tel. ...96; ..........@.....
Caso não se mostre liquidada a situação de atraso nos próximos 8 dias, e até lá não se perspetive uma solução com vista à sua total regularização, ver-nos-emos forçados ao envio dos processos para cobrança coerciva.
Ficamos, contudo, a aguardar a posição de V. Exa. de modo a evitar a solução descrita.”
28. Igual carta foi remetida ao réu.
29. Com a data de 24 de Agosto de 2021, a Caixa Geral de Depósitos remeteu à sociedade EMP01... uma carta com o seguinte teor:
“Assunto: cobrança de crédito por via judicial
Conta Corrente n° ...92— Incumprimento: 150.773,07€ D. O. n° ...30— Incumprimento: 14,63 € Montante Total em incumprimento: 150.787,63 €
Total responsabilidades: 150.787,63€
Ex. mos. Senhores
Atendendo a todas as ações anteriormente desenvolvidas, no sentido de se recuperar a dívida extra judicialmente, se mostraram infrutíferas, informamos V. Exas. que a Caixa Geral de Depósitos irá proceder à cobrança, através de ação judiciai das importâncias que lhe são devidas por essa empresa, que se encontram vencidas por incumprimento de cláusulas contratuais, correspondente a capital, juros remuneratórios, juros compensatórios, impostos e outros encargos vencidos, a que acresce a respetiva mora diária.
Neste sentido, e de forma a podermos evitar a situação descrita, poderão V. Exas., num prazo máximo de 08 (oito) dias, pagar a dívida em qualquer Agência da CGD, depositando o montante acima indicado na conta de depósito à ordem n° ...30, associada às operações em assunto.
Terminado o prazo referido, o crédito transitará para cobrança coerciva.”
30. Com a data de 14 de Setembro de 2021, foi recebida pela EMP01... Lda uma carta da Mandatária da CGD concedendo um prazo de quinze dias para saldar a dívida, sob pena de recurso à via judicial.
31. Em 30 de Agosto de 2021, já com o incumprimento declarado por parte da Caixa Geral de Depósitos, o autor remeteu ao réu um e-mail, em resposta a um outro enviado por este, tendo o réu respondido por e-mail de 1 de Setembro de 2021, que constam dos documentos n.ºs 28 e 29 juntos com a petição inicial e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
32. O autor realizou três transferências bancárias da sua conta pessoal no Banco Santander Totta com o IBAN ...79 para a conta da Caixa Geral de Depósitos com o IBAN ...65, nas seguintes datas e valores:
- Em 4 de Novembro de 2021, € 100.000,00;
- Em 15 de Novembro de 2021, € 25.000,00;
- Em 17 de Novembro de 2021, € 24.216,10.
33. A Caixa Geral de Depósitos emitiu a declaração constante do documento n.º 27 junto com a petição inicial, datada de 22 de Novembro 2021, na qual se pode ler, além do mais, o seguinte:
“A Caixa Geral de Depósitos (…) declara, para os devidos e legais efeitos, que recebeu do Sr. FF (…) a importância global de 149.216,10€ (...). Mais declara que o correspondente pagamento foi efetuado na qualidade de avalista e principal pagador do Emp°. n° ...92, mutuado por EMP01... Lda (…) e em resultado de tal pagamento a operação resultou liquidada.”
34. A Caixa Geral de Depósitos não preencheu as livranças assinadas em branco pelo autor e pelo réu[2]
35. O autor realizou as transferências referidas nos n.ºs 17 e 32 na qualidade de avalista da sociedade EMP01... e com a intenção de evitar a instauração contra si, por parte da Caixa Geral de Depósitos, de processos de cobrança dos créditos.
36. O autor procurou obter do réu a parte que cabia a este na qualidade de avalista, tendo-o abordado por diversas vezes, pessoal e telefonicamente, sobre esta questão.
37. O réu recusou suportar a sua parte invocando não ter condições económicas para o fazer.
38. Por email de 26 de Novembro de 2021, o autor, aí representado pelo seu Advogado, interpelou o réu para proceder ao pagamento da quantia de € 74.738,703 até ao dia 3 de Dezembro de 2021.
39. A sociedade EMP01... encontrava-se sem oficinas a funcionar desde 31 de Dezembro de 2020.
40. Em dia não concretamente apurado do mês de Outubro de 2020, no âmbito de um processo de despedimento colectivo, foram entregues aos trabalhadores da sociedade EMP01... comunicações com a intenção da sociedade em proceder à resolução e cessação dos contratos de trabalho.
41. Tais cartas foram subscritas pelos então gerentes da sociedade, o autor e o réu, acabando a oficina por ser encerrada no final do ano de 2020.»

FACTOS NÃO PROVADOS
«Inexistem.»

C- De Direito
1. Recurso interposto do despacho intercalar proferido na Audiência Prévia
O Recorrente vem, ao abrigo do artigo 596.º, n.º 3, do CPC, interpor recurso da decisão proferida sobre a Reclamação apresentada quanto à extensão dos temas da prova, concretamente quanto à não inclusão da matéria alegada nos artigos 3.º a 35.º e 89.º a 102.º da contestação.
O despacho que indeferiu a Reclamação oportunamente apresentada fundamentou o indeferimento do seguinte modo:
«Como inequivocamente decorre dos arts. 3.º a 35.º e 89.º a 102.º da contestação, a invocação do instituto do abuso do direito e do princípio da boa fé surgiu a propósito, não do exercício do direito de regresso entre co-avalistas (que, recorde-se, constitui o objecto do processo), mas do encerramento da empresa denominada EMP01... Lda, da qual o autor e o réu foram sócios. Ora, não integrando esta matéria o objecto da causa, mais não restava ao tribunal do que expurgá-la dos autos, como efectivamente expurgou.
Refira-se, por último, que não existe qualquer violação do princípio da igualdade de armas
Com efeito, o que está em causa é o mero exercício de um poder atribuído ao tribunal, qual seja: o de fixar em despacho o objecto da causa e os temas da prova a ele atinentes (art. 591.º, n.º 1, al f), do CPC). É claro que, ao fazê-lo, o tribunal necessariamente afastará os factos e/ou o direito que não tenham qualquer conexão com o thema decidendum, mas tal não implica qualquer ilegítima postergação daquele princípio, mas a mera aplicação da proibição do non liquet (art. 8.º do CC).»
Concorda-se em absoluto com o decidido, sendo que o Recorrente, na verdade, nas Conclusões do recurso (4.ª a 8.ª) nem sequer contradiz diretamente a fundamentação que indeferiu a Reclamação, limitando-se a justificar o pedido de revogação do decidido aduzindo razões de direito direcionadas à (in)existência de direito de regresso entre os avalistas quando a livrança em branco não chegou a ser preenchida pelo credor, matéria de direito que deve ser analisada e decidida no âmbito do conhecimento do recurso interposto da sentença.
De qualquer modo, sempre convém sublinhar que a enunciação dos temas da prova não preclude a possibilidade da instrução e discussão da causa ser mais ampla mesmo na ausência de causas supervenientes (como já era entendido no âmbito do anterior CPC após a reforma de 1985 – cfr. Assento n.º 14/94), entendimento suportado pelos atuais artigos 5.º e 547.º do CPC.
Ora, o Recorrente não vem alegar em sede de recurso que a enunciação do único tema de prova determinou qualquer restrição ao âmbito das instâncias ou à produção dos meios de prova em sede de julgamento, pelo que também nesta perspetiva, nenhuma razão existe para se revogar o despacho que jugou improcedente a Reclamação.
Nestes termos, improcedem as Conclusões do recurso sobre esta questão, mantendo-se o despacho intercalar recorrido que julgou improcedente a Reclamação.

2. Recurso interposto da Sentença
A questão suscitada nas Conclusões do recurso 1.ª a 3.ª encontra-se prejudicada na sua análise pela retificação introduzida ao ponto 34.º dos factos provados, pelo nada há decidir sobre a mesma, passando-se, então, a apreciar as restantes questões.

2.1. Nulidade da sentença
Alega o Apelante nas Conclusões 9.º a 10.º que a sentença é nula por omissão de pronúncia nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, por não ter apreciado a exceção de ilegitimidade substantiva do Réu com referência às dívidas reclamadas, como alegado no artigos 74.º a 88.º da contestação, tendo esta matéria sido apenas mencionada na Ata da Audiência Prévia.
Analisada a questão, não assiste qualquer razão ao Recorrente.
Como é sabido, as nulidades da sentneça encontram-se taxativamente elencadas nas várias alíneas do n.º 1 do referido artigo 615.º, do CPC e correspondem a vícios formais que afetam a decisão em si mesma, mas não se confundem com erros de julgamento de facto ou de direito, suscetíveis de determinar a alteração total ou parcial da decisão proferida.
A omissão de pronúncia está diretamente relacionada com o comando do artigo 608.º, n.º 2, do mesmo Código, reportando-se ao não conhecimento das questões (que não meros argumentos ou razões[3]) alegadas relativas à consubstanciação da causa de pedir e do pedido formulado pelo autor e da reconvenção e/ou das exceções invocadas na defesa[4].
No caso, o Réu alegou nos artigos 74.º a 88.º da contestação que o pagamento das dívidas correspondem a um suprimento do Autor à sociedade EMP01... e que, por essa razão, a devedora é a sociedade e não o Réu.
Ora, este tipo de alegação, materialmente de natureza excetiva, visa colocar em crise o direito que o Autor se arroga contra o Réu. Não tem cariz processual, mas material. Daí estas situações serem juridicamente reconduzidas à denominada ilegitimidade substantiva, que não processual, e têm de ser decididas aquando da apreciação do mérito da causa. O que, aliás, foi explicitado no despacho saneador quando o tribunal julgou as partes legítimas, observando que «a exceção de ilegitimidade deduzida pelo réu foi de cariz substantivo e não processual».
Na sentença o tribunal a quo apreciou e decidiu a questão subjacente à defesa do Réu, ou seja, se o mesmo é devedor do Autor por este ter suportado na íntegra o valor da dívida avalizada, tendo concluído em sentido positivo, o que afasta a tese da devedora ser a sociedade avalizada e não o coavalista que nada pagou.
Pelo que inexiste qualquer omissão de pronúncia, não se verificando a arguida nulidade da sentença.

2.2. Impugnação da decisão de facto
Nas Conclusões 11.ª a 13.ª, que estende em considerações de teor jurídico à Conclusões 14.ª a 20.º, vem o Recorrente defender que deve ser alterada a redação do facto provado no ponto 17, com base no documento 15 junto com a p.i. por nesse documento estar identificada a identidade do titular da conta como sendo a EMP01..., Ld.ª, ou seja, a transferência ocorreu de uma conta do Autor para aquela sociedade, o que vai de encontro ao que alegou nos artigos 75.º e 76.º da contestação, concluindo que o pagamento da dívida foi feito através de um suprimento do Autor à dita sociedade.
Este ponto tem a seguinte redação:
«17. Em 18 de Março de 2021, o autor transferiu a quantia de € 75.000,00 da conta bancária aberta na CGD com o n.º ...30 para a conta bancária com o IBAN ...38.»
A redação proposta pelo Recorrente é a seguinte (assinala-se em itálico o segmento pretendido aditar):
«17. Em 18 de Março de 2021, o autor transferiu a quantia de € 75.000,00 da conta bancária aberta na CGD com o n.º ...30 para a conta bancária com o IBAN ...38, de que é titular a EMP01..., Ld.ª, tendo esta pago à CGD, o crédito de que era devedora e se encontra identificado no precedente factos provado 9.»
Na fundamentação da decisão de facto consta que este facto (a par de outros) foi dado como provado com base nos documentos juntos aos autos, entre eles, o documento 15.
Analisado o referido doc. verifica-se que se trata de um print de consulta de saldos e movimentos à ordem de uma conta da empresa EMP01... Ld.ª, aberta na CGD com o n.º ...30, correspondendo a um movimento a crédito tendo como ordenante do Autor, para a conta bancária com o IBAN ...38.
Deste documento não se pode extrair probatoriamente que o valor transferido proveio de um suprimento do Autor à EMP01... Ld.ª (como alegado nos artigos da contestação invocados pelo Apelante), ainda que o titular da conta seja esta sociedade, o que aliás, já resultava do teor dos docs. juntos com a p.i. referentes aos contratos de abertura de crédito em conta-corrente, e que o teor do facto provado não exclui ao mencionar o número da conta ordenante.
Por conseguinte, improcede a impugnação da decisão de facto em relação este ponto de facto.

3. Do mérito da sentença
3.1. Direito de regresso dos avalistas
Nas Conclusões 5.ª a 8.º, o Apelante alega que a sentença recorrida desconsiderou a jurisprudência do STJ que tem decidido exatamente no sentido oposto ao acolhido pelo tribunal de 1.ª instância, ou seja, que não existe direito de regresso entre o avalista que suporta a dívida avalizada em relação ao coavalista que não o fez, nas situações em que o credor, perante o vencimento e incumprimento da dívida subjacente, interpela também os avalistas para o pagamento, obtendo o mesmo de um dos avalistas, sem que antes tenha procedimento ao preenchimento da livrança em branco.
Efetivamente, consta da sentença que, nessas circunstâncias, se verifica o alegado direito de regresso entre coavalistas, lendo-se na mesma em termos de resumo da fundamentação ali explanada e da procedência do pedido do Autor:
«- A aquisição da qualidade de avalista adquire-se por um dos modos previstos no art. 31.º da LULL;
- Tal qualidade é logo adquirida mesmo em caso de aval prestado em título cambiário em branco;
- Em face da inexistência na LULL de qualquer regime para regular o exercício do direito de regresso entre coavalistas, deve entender-se, na esteira do Ac. do STJ de Uniformização de Jurisprudência n.°7/2012, que há direito de regresso entre os avalistas do mesmo avalizado numa livrança, o qual segue o regime previsto para as obrigações solidárias, sem prejuízo de convenção em contrário (cfr. Carolina Cunha, Manual de Letras e Livranças, 2.ª ed., p. 139 e ss.);
- O exercício do direito de regresso pelo coavalista não está condicionado ao preenchimento do título de crédito, que seria um “requisito impossível” nos casos de extinção, pelo cumprimento, da relação jurídica subjacente e que oneraria de forma injusta o avalista que cumpriu o seu dever, nomeadamente nos casos em que, como o presente, foi directamente interpelado pela Caixa Geral de Depósitos na qualidade de credora da sociedade avalizada;
- Tendo o autor e o réu quotas sociais distintas na sociedade avalizada e não havendo notícia de acordo entre as partes quanto à repartição da responsabilidade, a comunhão na dívida deve ser feita em idêntica proporção, tal como consta da petição inicial;».
Analisemos, então, a questão.
A EMP01..., Ld.ª subscreveu livranças em branco para garantia do pagamento de dívida titulada por dois contratos de abertura de crédito em conta corrente, destinados exclusivamente ao financiamento da tesouraria da sociedade, tendo o Autor e o Réu, ambos sócios daquela sociedade e na qualidade de avalistas, assinado as livranças após os dizeres «Dou o meu aval á firma subscritora», tendo a referida sociedade, bem como o Autor e o Réu, na referida qualidade de avalistas, autorizado a credora CGD a preencher as livranças nos termos que constam da respetiva contratualização.
Vencida a dívida, e perante o incumprimento da devedora, a credora interpelou aquela, bem como os avalista, para pagarem.
Apenas o Autor, na qualidade de avalista procedeu ao pagamento da totalidade da quantia em dívida avalizada para evitar que a credora recorresse à via judicial, como tencionava fazer e disso já tinha informado a devedora e os avalistas.
A credora, nessa circunstância, já não preencheu as livranças e emitiu a declaração que consta do ponto 33 dos factos provados.
Não resulta dos factos provados que os avalistas tenham entre si celebrado qualquer convenção extracartular prevenindo a possibilidade de direito de regresso ente eles.
Sabendo-se que foi precisamente esse o aspeto – isto é a necessidade, ou não, de uma convenção extracartular concernente ao exercício do direito de regresso entre coavalista, uma vez que a LULL é omissa neste aspeto – que deu origem a jurisprudência díspar, tendo a controvérsia sido dirimida pelo AUJ n.º 7/2012, de 05-06-2012[5] nos seguintes termos: «Sem embargo de convenção em contrário, há direito de regresso entre os avalistas do mesmo avalizado numa livrança, o qual segue o regime previsto para as obrigações solidárias».
Assim, de acordo com a jurisprudência uniformizadora, a não ser que tenha sido firmado convenção extracartular no sentido da exclusão do direito de regresso entre os coavalista, nas relações internas entre os coavalistas do mesmo avalizado, aplicam-se as normas de direito comum, sendo aplicável o regime das obrigações solidárias previstos nos artigos 512.º e 516.º do CC.
De referir que na situação fático-jurídica que esteva na base da prolação da jurisprudência uniformizadora, não estava uma livrança em branco, mas antes uma livrança completamente preenchida logo aquando da subscrição e prestação dos avales, tendo a mesmo inclusivamente sido apresentada a pagamento em sede executiva e, nesse processo, paga a dívida apenas por alguns dos avalistas, posteriormente, em sede declarativa, demandaram os demais coavalistas invocando o direito de regresso.
Situação diversa daquela que estes autos apresentam, porquanto as livranças aqui em causa são livranças em branco e nunca chegaram a ser preenchidas pela credora, nem tão pouco apresentadas à execução.
Ora, esta diferença não foi atendida na sentença recorrida como impeditiva da aplicação da jurisprudência uniformizadora tendo, antes, sido argumentado no sentido da sua aplicação por o Acórdão uniformizador não ter como requisito «que o título cambiário se encontre preenchido.»
Todavia, não tem sido esse o entendimento da jurisprudência que tem vindo a ser proferida, mormente pelo STJ, em vários arestos e que cremos, salvo melhor opinião, que se encontra largamente consensualizada, não se descortinando razão para, ao invés, acolher a interpretação adotada na sentença recorrida.
Vejamos.
Não está em causa a admissibilidade da subscrição e da prestação de aval numa livrança em branco atento o disposto no artigo 10.º da LULL, nem a relação cambiária que se estabelece quando a livrança é preenchida de acordo com o pacto de preenchimento.
Também é inquestionável que decorre dos artigos 32.º, § III e 49.º da LULL que se encontra previsto um direito cambiário de regresso contra o avalizado.
Também é consensual que a LULL não prevê a existência de direito de regresso entre os avalistas, ou seja, nas relações internas entre os coavalistas não se aplica aquele regime específico, mas antes as normas de direito comum.
Também é comumente aceite, mormente após a prolação do AUJ n.º 7/2012, que não existe fundamento válido, salvo se houver convenção extracartular em sentido oposto, que negue o direito de regresso extracambiário entre os coavalistas, nos termos gerais em que é admitido (artigos 524.º e 516.º do Código Civil).
Como também tem sido afirmado de forma consistente o afastamento das regras da fiança, em cujo regime se encontra legalmente prevista a solidariedade entre fiadores (artigo 650.º do CC), porquanto as garantias em causa (aval e fiança) são distintas, sendo que o aval goza das caraterísticas da autonomia, abstração e literalidade e a responsabilidade de cada um dos intervenientes definida unicamente em função do teor da livrança.
Consequentemente, como se refere no Acórdão do STJ de 30-04-2015:
«Assim por via do direito comum, ao avalista ou avalistas que tenham suportado o pagamento da quantia inscrita em livrança é legítimo o exercício do direito de regresso sobre os demais avalistas com vista ao reembolso da parte que, de acordo com a convenção extracartular ou, na sua falta, de acordo com as regras da fiança plural e das obrigações solidárias, tenha superado a sua responsabilidade, depois de demonstrada a excussão do património da subscritora.»
Todavia esta interpretação jurídica tem como pressuposto que a livrança se encontre preenchida com os seus elementos essenciais, conexionando-se, assim, o disposto no artigo 10.º com o disposto nos artigos 76.º e 75.º, n.º 2, todos da LULL.
Ou seja, apenas com o preenchimento dos elementos essenciais da livrança, previstos na lei e dos quais a lei não prescinde para a constituição da eficácia do título cambiário, a livrança produz efeitos enquanto título dessa natureza.
Entendendo-se, em consequência, que a falta desses elementos, mormente o montante titulado, a data da emissão e de vencimento (embora quanto a este último elemento, será pagável à vista, nos termos do artigo 76.º da LULL), o documento em causa não é suscetível de produzir efeitos enquanto livrança.
Consequentemente, a jurisprudência do STJ segue o entendimento que o direito de regresso entre os coavalistas é «sempre no pressuposto de se tratar de avales validamente declarados. Na falta desse pressuposto, o direito de regresso entre garantes de uma obrigação não cartular dependerá do que tiver sido concretamente convencionado entre as partes e, supletivamente, estabelecido nas normas de direito comum.»[7]
Esta interpretação encontra-se reiteradamente adotada em vários arestos do STJ.
Veja-se, assim:

Ac. STJ, de 31-03-2022, que foi proferido numa situação de facto em tudo semelhante à dos presentes autos. Também aqui se discutia o pedido de reembolso por parte do Autor, avalista, do Réu, avalista, tendo aquele pago a totalidade do crédito e sido subscrita uma livrança em branco pela devedora, ocorrendo o pagamento sem que tenha sido preenchida a livrança.

O Colendo Tribunal pronunciou-se negando razão ao Autor, absolvendo o Réu do pedido, confirmando o Acórdão proferido na Relação de Lisboa, que, por sua vez, já tinha revogado a sentença da 1.ª instância que tinha julgado a ação parcialmente procedente.

A fundamentação do Acórdão do STJ assenta precisamente no facto da livrança nunca ter chegado a ser preenchida.

Lendo-se no mesmo:
«(…) e é certo resultar claro do disposto nos arts. 10º e 31º, aplicáveis à livrança, por força do disposto no art. 77º, todos da LULL, inexistir qualquer impedimento quanto à admissibilidade da aposição do aval numa livrança em branco, com pacto de preenchimento, certo é também, como decorre do art. 76º, em conexão com o art. 75º, nº 2, ambos da LULL, que na falta de elementos essenciais como aquele que respeita ao montante titulado, a livrança não pode produzir efeitos enquanto título de natureza cambiária» (…)

«Ora, tendo, no caso dos autos, a livrança em causa sido subscrita pela sociedade E..., S.A. e sido assinada pelos correspetivos avalistas, totalmente em branco, sem que lhe tenha sido aposto o valor em dívida, evidente se torna, face ao disposto no art. 76º, com referência ao nº 2 do citado art. 75º, que esta livrança não pode produzir efeito como tal, ou seja, como título de natureza cambiária, o que, no dizer do citado Acórdão do STJ, de 30.04.2015, não pode deixar de se repercutir «em todas as relações cambiárias que em abstracto da mesma pode emergir, com inclusão da relação de aval ou e co-aval»..

E a verdade é que, tendo o autor invocado o direito de regresso contra o réu precisamente com base nos avales por eles prestados, era a ele que incumbia provar a existência ou, ao menos, a eficácia do título de crédito que sustenta a relação de aval ou de co-aval, como factos constitutivos que são desse direito, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do C. Civil.

Só que, como se acabou de demonstrar o autor não logrou fazer a prova da eficácia da livrança que sustenta a relação de coavalistas e, deste modo, a sua pretensão de regresso contra o réu carece de qualquer sustentação legal, pois que, na esteira do afirmado no supra citado Acórdão do STJ, de 30.04.2015, era imprescindível que se pudesse considerar eficazmente assumida alguma obrigação cambiária por parte dele e do réu, sendo certo que o facto de o autor ter efetuado o pagamento das quantias contra-garantidas pela referida livrança logo que confrontada com a solicitação da CEMG não supera a necessidade do seu preenchimento para efeitos de ser exercido o direito de regresso relativamente ao réu co-avalista.

E nem mesmo o facto de o invocado direito de regresso se inscrever no domínio das relações imediatas entre os coavalistas é de molde a dispensar a prova da validade e/ou eficácia desses avales, mormente para efeitos de lhe estender o regime das obrigações civis solidárias em conformidade com a orientação jurisprudencial fixada no AUJ do STJ n.º 7/2012, posto que esta jurisprudência assenta precisamente no pressuposto de que tais avales existem, são válidos e eficazes.»

E, já no final destes aresto e em jeito de conclusão, ficou escrito:

«Por tudo isto e porque o facto de o autor ter efetuado o pagamento da quantia garantida por esta livrança não supera a necessidade do seu preenchimento para efeitos de ser exercido o direito de regresso relativamente ao réu coavalista, evidente se torna não se poder ter por verificado o pressuposto do direito de regresso entre eles com base na orientação jurisprudencial firmada no AUJ do STJ n.º 7/2012, nem nos termos gerais do direito comum, pelo que nenhuma censura merece o acórdão recorrido que, por isso, deve ser mantido.»

Esta interpretação jurisprudencial já tinha sido dotada no Acórdão do STJ, de 30-04-2015 (já supra citado), lendo-se no seu sumário:

«1. Na falta de convenção extracartular, o direito de regresso entre os avalistas é exercido de acordo com as regras previstas para as obrigações solidárias.

2. O exercício do direito de regresso entre os avalistas que apuseram o seu aval numa livrança em branco não prescinde do seu preenchimento quanto aos elementos essenciais em falta, em que se inscrevem a indicação do montante e a data da emissão da livrança.»

Bem como no Acórdão do STJ de 25-05-2017, com o seguinte sumário:

«V - Os arts. 75.º, 77.º e 10.º da LULL reconhecem a figura da livrança em branco, a qual, desde que preenchida antes do vencimento por quem tenha legitimidade para o fazer, produz todos os efeitos próprios desse título de crédito.

VI - O título cambiário pode ser entregue ao seu tomador contendo apenas a assinatura do subscritor ou contendo, além daquela, também as assinaturas dos respectivos avalistas, sem que estejam na altura presentes os demais requisitos de forma exigidos pelo art. 75.º da LULL.

VII - A obrigação cambiária torna-se perfeita desde que as assinaturas apostas no título de crédito exprimam a intenção de os signatários se obrigarem cambiariamente e o mesmo se mostre preenchido de forma a conter os requisitos essenciais exigidos no art. 75.º da LULL, sob pena de, faltando algum deles, o escrito não poder valer como livrança e produzir os efeitos deste título cambiário.

VIII - Não tendo a obrigação cambiária chegado a constituir-se – no caso, por não ter sido preenchida pelo tomador – ainda que os autores e outros avalistas, que não os réus, tenham efectuado o pagamento de determinada quantia ao tomador, não se provando que desse pagamento tenha resultado o correlativo enriquecimento dos réus, não pode a acção proceder com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa (art. 473.º do CC).»

E no mesmo sentido no Acórdão do STJ de 24-05-2018, lendo na parte do sumário sobre a questão em apreciação:

«III - A livrança em branco desprovida do quantitativo a que respeita – a quantia determinada – não pode produzir efeitos como tal, i.e., como título de natureza cambiária (arts. 75.º, n.º 2 e 76.º da LULL).

IV - Não podendo a livrança – rectius, o documento que a titula – ser considerado um título de crédito, um escrito corporizando uma qualquer obrigação validamente constituída, tal vício não pode deixar de se repercutir em todas as relações cambiárias que desse aludido escrito possam emergir, sem excepção, pois, para o aval ou/e co-aval.

V - Como tal, não obstante o pagamento pelos autores, na qualidade de respectivos avalistas, do valor que justificaria a ajuizada livrança titular, não havendo ocorrido essa titulação, inviável se apresenta aos mesmos vitoriosamente exigir dos seus co-avalistas, incompletamente vinculados, a importância que, nesse pagamento, excedeu a quota-parte da sua repartida responsabilidade.»

Na Relação de Lisboa, no Acórdão de 30-11-2017, também se seguiu o mesmo entendimento, lendo-se no respetivo sumário:

«– Sem embargo de convenção em contrário, há direito de regresso entre os avalistas do mesmo avalizado numa livrança, a qual segue o regime previsto para as obrigações solidárias.

– O direito de regresso do avalista sobre os co-avalistas pressupõe que o título de crédito seja válido, contenha todos os elementos essenciais que a lei não prescinde.

– Admitindo a lei a livrança em branco para que esta seja eficaz e constitua título de crédito necessário é o seu posterior preenchimento relativamente aos elementos essenciais.

– A verificação desses requisitos formais revela-se tanto mais necessária quanto é certo que qualquer dessas relações cambiárias (com destaque para o aval) é pautada pela autonomia, abstracção e literalidade, sendo a responsabilidade de cada um dos intervenientes definida unicamente pela livrança.»

No mesmo sentido, vejam-se, ainda, Acs. RL, de 02-02-2021, proc. n.º 7852/17.3T8LSB.L2-7 (Conceição Saavedra) e Ac. RP, de 07-06-2021, proc. n.º 541/16.8T8PVZ.P1 (Miguel Baldaia de Morais).

Em suma, e em face da jurisprudência que vimos citando, a que aderimos sem reserva, podemos concluir do seguinte modo:

O aval é o ato pelo qual um terceiro ou signatário da letra ou livrança garante o pagamento da mesma por parte de um dos subscritores (artigos 30.º e 77.º da LULL).

Constitui, por isso, um verdadeiro ato cambiário, uma garantia cambial de natureza comercial, em que o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele avalizada.

Destina-se a garantir obrigações assumidas em títulos de crédito, tendo como função específica garantir ou caucionar a obrigação de certo obrigado cambiário, dando origem a uma obrigação materialmente autónoma, pelo que o dador de aval não se limita a responsabilizar-se pela pessoa garantida, antes assumindo a responsabilidade abstrata e objetiva pelo pagamento da obrigação correspondente.

A livrança em branco, isto é, sem que tenha sido totalmente preenchida aquando da sua subscrição e prestação do aval, será válida enquanto tal, mas não eficaz. Essa eficácia depende, nas relações imediatas, do credor a apresentar preenchida de harmonia com o acordo de preenchimento, quando pretender exercer os direitos dela emergentes.

Ou seja, a livrança não pode produzir efeitos enquanto título de natureza cambiária sem que nela constem os elementos essenciais previstos no artigo 75.º , n.ºs 1 a 7, da LULL (sem prejuízo do disposto no artigo 76.º da LULL).

No caso, o Autor e o Réu apenas se constituiriam como coobrigados perante a credora bancária mediante o preenchimento das livrança em branco, em caso de incumprimento da sociedade EMP01..., Ld.ª, e por força do aval ali prestado.

Não tendo sido apresentadas as livranças devidamente assinadas e completada nos termos acordados, tem de entender-se que o credor bancário não chegou, em rigor, a acionar a garantia, não obstante as interpelações que fez à sociedade devedora e ao Autor e Réu invocando a qualidade de avalistas dos mesmos.

Consequentemente, apesar do pagamento pelo Autor, e ainda que o tenha feito na qualidade de avalista, não tendo as livranças sido preenchidas com os elementos essenciais previstos na lei, o Autor não tem direito de regresso contra o coavalista.

Donde não se pode manter o decidido na sentença recorrida, improcedendo o pedido formulado pelo Autor, ficando, assim, prejudicada a apreciação da questão do abuso de direito e da violação do princípio da boa fé suscitada nas Conclusões do recurso (artigo 609.º, n.º 2, do CPC).

4. Dado o decaimento, as custas nas duas instâncias ficam a cargo do Apelado (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida e, consequentemente, absolvem o Réu do pedido.

Custas nos termos sobreditos.
Évora, 10-10-2024
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Manuel Bargado (1.º Adjunto)
Maria João Sousa e Faro (2.ª Adjunta)
__________________________________________________
[1] Mencionando-se apenas o processado estritamente necessário para apreciação do objeto do recurso.
[2] Em itálico encontra-se o segmento cuja redação foi alterada – cfr. despacho proferido em 08-04-2024 (ref.ª 96094325).
[3] Cfr., entre outros, AC. STJ, de 06/05/2004, proc. 04B1409 e AC. STJ, de 27/10/2009, proc. 93/1999.C1.S2, em www.dgsi.pt
[4] Cfr, entre outros, Ac. STJ, de 16/09/2008, proc. 08S321, em www.dgsi.pt.
[5] Publicado no Diário da República, 1ª Série, de 17-07-2012, pp. 379-305.
[6] Proferido no proc. n.º 2430/11.3TVLSB. L1. S1 (Abrantes Geraldes), em www.dgsi.pt.
[7] Cfr. Acórdão do STJ de 31-03-2022, proferido no proc. 1345/19.1T8ALM.L1.S1 (Rosa Tching), em www.dgsi.pt.
[8] Cfr. nota antecedente.
[9] Proferido no proc. n.º 3958/97.5TVLSB.L2.S1 (Fernanda Isabel Pereira), em www.dgsi.pt.
[10] Proferido no proc. n.º 4175/16.9T8PRT.P1.S1 (Hélder Almeida), em www.dgsi.pt.
[11] Proferido no proc. n.º 29949/15.4T8LSB.L1-8 (Carla Mendes), em www.dgsi.pt.