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ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
PEDIDO RECONVENCIONAL
Sumário
Na ação especial de divisão de coisa comum, não discutindo as partes nem a proporção na titularidade do direito sobre o bem comum nem a indivisibilidade deste em substância, tendo sido formulado pedido reconvencional pelo réu, com fundamento na titularidade de créditos sobre a autora decorrentes das quantias que despendeu com a construção do imóvel que constitui o bem comum, em valor superior ao da sua quota, deve o juiz admitir tal pedido e ordenar que a tramitação processual observe os termos do processo comum subsequentes à contestação (artigo 926º, nº 3, do CPC). (Sumário elaborado pelo relator)
Texto Integral
Proc. nº 7445/23.6T8STB.E1
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO AA instaurou a presente ação especial de divisão de coisa comum contra BB, pedindo que «verificada que seja a indivisibilidade do bem e fixado o seu valor, por peritagem, deverá o Tribunal proceder á sua venda caso o Réu não aceite adquirir a metade da A. Pelo valor que vier a ser apurado, descontado que seja a sua quota parte no empréstimo não titulado pela sociedade de que o R. é titular».
Alegou, em síntese, que autora e réu são comproprietários em partes iguais do lote de terreno para construção urbana no sítio das ..., Local 1, lote ...07, Freguesia ..., Concelho ..., e da construção existente neste lote, que é indivisível, não pretendendo a autora permanecer na indivisão.
O réu contestou, não pondo em causa a existência da compropriedade, discordando, porém, da avaliação do imóvel de € 350.000,00 feita pela autora.
O réu deduziu ainda reconvenção, peticionando que a autora seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 120,073.62, ou outro que se venha a apurar, alegando ter sido ele quem suportou sozinho os custos de construção do prédio.
Foi proferido despacho saneador que julgou ser inadmissível a reconvenção e, conhecendo do mérito da causa, declarou a indivisibilidade do prédio e fixou as quotas da autora e do réu em 1/2 para cada um.
O réu, inconformado com o decidido quanto à não admissão da reconvenção, interpôs o presente recurso, finalizando as suas alegações com a formulação das conclusões que se transcrevem:
«1.º O presente recurso vem interposto da sentença que faz uma interpretação incorrecta do que foi alegado pelo Reconvinte e, bem assim, interpreta e aplica incorrectamente o disposto no artigo 266.º, n.º 2, alínea c), do CPC.
2.º O crédito reclamado existe, é actual, não está sujeito a qualquer condição ou termo, futuro ou incerto.
3.º É manifesto que o crédito reclamado está intimamente relacionado com a coisa a dividir, só existindo por causa dela – a coisa, que em tempos foi um mero lote para construção, é agora uma moradia erigida sobre o lote –, tratando-se dos montantes correspondentes a custos com construção e arrendamento de outro imóvel durante a construção do imóvel que está em causa nestes autos.
4.º Assim, o crédito reclamado pelo Reconvinte consubstancia-se em benfeitorias à coisa a dividir, razão pela qual sempre seria admissível a reconvenção com base na alínea b) do n.º 2 do artigo 266.º, do CPC.
5.º Seguindo a jurisprudência, estando em causa créditos com benfeitorias à coisa comum (construção da moradia) ao admitir-se a invocação de montantes pagos com o reembolso de empréstimos relativos a aquisição e/ou benfeitorias, por maioria de razão, deve também ser admitida a invocação de montantes pagos com recurso a capital próprio ou relativos a mútuos (não bancários) – conforme as alíneas a) e c) do artigo 266.º do CPC.
6.º A circunstância de à acção de divisão de coisa comum e aos pedidos constantes da reconvenção caberem formas de processo diferente não obsta a que a reconvenção possa – e deva – ser apreciada, conforme dispõem os artigos 266.º, n.º 3, e 37.º, n.º 2, do CPC.
7.º As formas de processo em causa são compatibilizáveis, sendo da mais elementar justiça e bom senso a apreciação conjunta das pretensões, em respeito pelos princípios da celeridade e de economia processuais.
8.º Trata-se de um afloramento do poder/dever de gestão processual do Juiz pela obtenção da efectiva composição do litígio, fazendo prevalecer a substância sobre a forma.
9.º Pelo que deve a excepção invocada improceder e os autos prosseguir, nos termos do processo comum ao abrigo dos artigos 37.º, n.os 2 e 3 e 926.º n.º 3 do CPC, antes de ser iniciada a fase executiva da acção de divisão de coisa comum.»
Não foram apresentadas contra-alegações[1].
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a única questão a apreciar é a de saber se na presente ação de divisão de coisa comum, a deduzida reconvenção deve ou não ser admitida.
III – FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS
Os factos alegados e as ocorrências processuais relevantes para a decisão do presente recurso são os acima referidos no relatório.
O DIREITO
Na decisão recorrida, para fundamentar a inadmissibilidade da reconvenção, ponderou-se que o pedido reconvencional formulado pelo réu não se enquadrava em nenhuma das alíneas do nº 2 do art. 266º do CPC, escrevendo-se, no que respeita à alínea c) daquele nº 2, o seguinte:
«… o que o Réu pretende é acautelar um eventual direito de crédito a que se arroga sobre a Autora a ser concretizado num futuro incerto ou eventual, ou seja, aquando da adjudicação ou venda do imóvel, na fase executiva da presente ação de divisão de coisa comum (neste sentido ac. TRP de 26-01-2021, processo n.º 1509/19.8T8GDM.P1, disponível em www.dgsi.pt). Com efeito, o reconhecimento do eventual crédito do Réu apenas tem utilidade quando chegar a altura da repartição do produto da venda do imóvel na fase executiva da presente ação especial de divisão de coisa comum, pois sem a venda do imóvel, nenhum crédito existe a compensar. A Autora não peticionou a condenação do Réu ao pagamento de um crédito, nem se arroga credora de algum crédito sobre o Réu, pelo que, na atualidade, nada existe a compensar. A este propósito refere o no Ac. da Rel. de Lisboa de 25.06.2020, processo n.º 329/18.1T8FNC-A.L1-8, disponível em www.dgsi.pt, o qual se acompanha que “A admissibilidade do pedido reconvencional não pode depender de condição futura e incerta, exigindo-se que os respectivos requisitos se mostrem reunidos aquando da sua dedução, sendo que o funcionamento da compensação, nos termos previstos pelo art.º 847.º do CC, segundo o Prof. Menezes Cordeiro, in Obrigações, 1980, 2.º, 221, depende da verificação dos seguintes requisitos: a existência de dois créditos recíprocos; a exigibilidade do crédito do autor da compensação; que as obrigações sejam fungíveis e da mesma espécie e qualidade; a não exclusão da compensação pela lei; a declaração da vontade de compensar – o que não ocorre”. Em suma, presentemente, não existe nenhum crédito da Autora que possa ser compensado, por um crédito do Réu. Desta feita, não está em causa a alínea c) do n.º 2 do art.º 266 do Código de Processo Civil».
Já o recorrente, como decorre da conclusão 4ª, entende que o crédito reclamado «consubstancia-se em benfeitorias à coisa a dividir, razão pela qual sempre seria admissível a reconvenção com base na alínea b) do n.º 2 do artigo 266.º, do CPC», ainda que, na conclusão 5ª, seguindo a jurisprudência que cita no corpo alegatório, afirme que «estando em causa créditos com benfeitorias à coisa comum (construção da moradia) ao admitir-se a invocação de montantes pagos com o reembolso de empréstimos relativos a aquisição e/ou benfeitorias, por maioria de razão, deve também ser admitida a invocação de montantes pagos com recurso a capital próprio ou relativos a mútuos (não bancários) – conforme as alíneas a) e c) do artigo 266.º do CPC».
Vejamos, pois, de que lado está a razão.
Os pressupostos da admissibilidade da dedução de reconvenção encontram-se previstos no artigo 266º, nºs 2 e 3, do CPC.
Como se escreveu no acórdão desta Relação de 15.09.2022[2] «[a] aplicabilidade da restrição, de natureza processual, estabelecida no nº 3, pressupõe que se verifica um dos pressupostos substanciais previstos nas diversas alíneas do n.º 2. Se nenhum destes pressupostos substanciais se verificar, a questão da compatibilidade processual entre os pedidos do autor e do réu nem sequer se coloca. (…) O n.º 3 não constitui uma via alternativa ao n.º 2 para a admissão da reconvenção».
O Supremo Tribunal de Justiça, secundando jurisprudência das Relações que se tem pronunciado no mesmo sentido, reconheceu já o direito à discussão na própria ação de divisão de coisa comum da existência de créditos emergentes da aquisição da coisa comum, considerando não fazer sentido obrigar as partes a instaurar nova ação declarativa para nela discutir questões diretamente relacionadas com a extinção da compropriedade sobre o bem comum e os conexos e alegados direitos de crédito dos comproprietários[3]
Como se refere no acórdão de 26.01.2021, entre as duas linhas de orientação jurisprudencial ali caracterizadas, adere-se a uma «tendência mais atual, menos formalista e menos restritiva» que admite «a reconvenção para assegurar a justa composição do litígio, quando tenha sido suscitada a compensação de alegado crédito por despesas suportadas para além da quota respetiva, com o crédito de tornas que venha a ser atribuído ao requerente, devendo a ação seguir os termos do processo comum, para que sejam decididas tais questões, só então se entrando na fase executiva do processo com a conferência de interessados, destinada ao preenchimento dos quinhões em espécie ou por equivalente».
Lê-se no mesmo acórdão, que «apenas esta solução permite alcançar a justa composição do litígio quando tenha sido suscitada a compensação de invocado crédito por despesas suportadas para além da quota respetiva, com o crédito de tornas que venha a ser atribuído ao requerente, devendo a ação seguir os termos do processo comum, para que sejam decididas tais questões, só então se entrando na fase executiva do processo com a conferência de interessados.
Se assim não for, na conferência de interessados, no caso de se adjudicar o imóvel a um dos comproprietários, o valor de tornas a entregar ao outro não terá em conta o verdadeiro cerne do litígio, tudo se passando como se ambos tivessem contribuído igualmente na proporção da quota respetiva».
Para concluir que «não existe razão para lançar mão de outro processo judicial com vista à resolução daquilo que, efetivamente, separa as partes: o encontro entre o “deve” e o “haver”, entre a contribuição de cada um para o valor da sua quota».
Já o acórdão desta Relação de Évora de 17.012019[4] se havia pronunciado sobre a admissibilidade do pedido reconvencional num caso semelhante justificando a solução adotada do seguinte modo:
«(…), quando o artigo 2.º, n.º 2, do CPC adverte para a garantia de acesso aos tribunais, mediante todos os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção, salvo se a lei disser o contrário, o que neste caso não diz; e, por via do artigo 6.º da mesma codificação compete ao juiz adoptar mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a almejada justa-composição do litígio em prazo razoável.
Neste sentido, tal poder/dever de gestão processual permite a admissibilidade da reconvenção, em circunstâncias como as da presente lide -, sendo esta a única interpretação que se harmoniza com os princípios que regem a lei processual civil, cada vez mais arredados de visões de pendor marcadamente formalista em detrimento da busca da garantia de uma efectiva composição do litígio que reponha a paz social quebrada com as visões antagónicas que as partes têm do caso que as divide e que são o fundamento da demanda.»
E outros arestos desta Relação de Évora secundaram este entendimento, designadamente os acórdãos de 07.04.2022, 10.11.2022 e 23.04.2024[5].
Não se questiona que na ação de divisão de coisa comum é admissível a formulação de um pedido reconvencional, sabido que o legislador previu a possibilidade de adaptação do processo quando as questões suscitadas pelo pedido de divisão não possam ser decididas sumariamente, passando nesse caso a ação a ser tramitada nos termos do processo comum subsequente à contestação (cfr. art. 926º, nº 3, do CPC).
A questão que se coloca é a de saber se o pedido reconvencional formulado pelo réu se enquadra na previsão normativa do artigo 266º, nº 2, al. c), do CPC, e não, como invocado pelo recorrente, na alínea b), pois não estamos perante despesas ou benfeitorias conexas com o imóvel dos autos.
O preceito em causa admite a formulação de um pedido reconvencional quando o réu pretenda obter o reconhecimento de um crédito «seja para obter a compensação, seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor».
Como se refere no citado acórdão do STJ de 28.03.2023, que aqui seguimos de perto, «[é] certo que a definição, em concreto, do exacto montante que deve integrar o quinhão de cada um dos comproprietários ficará sempre dependente do que suceder na conferência de interessados.
Mas tal não significa - (…) - que não possa nem deva ficar anteriormente definido qual o valor relativamente ao qual a reconvinte pode validamente ver reconhecido o direito à compensação.»
Os requisitos da compensação são os que se encontram descritos no artigo 847.º do Código Civil (reciprocidade de créditos, exigibilidade do crédito a compensar e terem as obrigações coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade), sendo que a iliquidez da dívida não impede a compensação sem que daí resulte para o credor um prejuízo injustificado – o que se afigura patente no caso dos autos.
Como decorre da lição de Pires de Lima e Antunes Varela[6], tornando-se a compensação efetiva mediante declaração de uma das partes à outra através do pedido reconvencional e sendo o crédito e o contra crédito ilíquidos, aquilo que o réu que pretenda obter a compensação deve fazer é requerer judicialmente que se realizam as operações tendentes à sua liquidação ou apuramento.
Ou seja, no caso, alegar os factos de que, no entender do réu/recorrente, resulta o seu direito a ver considerado na determinação do montante que tiver a receber – ou a suportar – em função da sua quota no bem comum, na fase executiva da ação de divisão de coisa comum.
Do que vem de ser dito pode concluir-se que terão de ser previamente apurados, na fase declarativa da ação de divisão de coisa comum, os fundamentos da reconvenção apresentada, nomeadamente se a comparticipação da autora e do réu na construção do imóvel e demais despesas da responsabilidade de ambos referentes ao bem comum indiviso se conteve, ou não como alega o réu, dentro da respetiva quota (metade para a autora e metade para o réu) ou se foi desigual e em que medida a comparticipação do réu nos encargos com a construção do imóvel.
Como se faz notar no citado acórdão do STJ de 28.03.2023, «[o]utra solução, eventualmente possível, não teria em conta princípios cada vez mais presente na regulação do processo, como o princípio da economia processual nem o dever de gestão processual do Juiz do processo do qual resulta – perante dúvida na interpretação das normas a observar – a adopção da solução que, sem postergar o contraditório das partes, se apresente como de maior simplificação e agilização processual garantindo a justa composição do litígio em prazo razoável».
Por conseguinte, procede a apelação interposta pelo réu/reconvinte, sendo anulados os atos processuais subsequentes à decisão que não admitiu o pedido reconvencional formulado pelo réu e admitida a reconvenção, devendo os autos prosseguir a sua tramitação nos termos consignados no artigo 926º, nº 3, do CPC.
Vencida no recurso, suportará a autora/recorrida as respetivas custas - art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida, e em consequência admitindo a reconvenção, mais determinando que os autos prossigam em primeira instância os seus termos para apreciação do pedido reconvencional.
Custas pela autora/recorrida.
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Évora, 10 de outubro de 2024
Manuel Bargado (Relator)
Susana da Costa Cabral
Ricardo Miranda Peixoto
(documento com assinaturas eletrónicas)
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[1] A ré apresentou requerimento do seguinte teor: «Não assiste qualquer razão ao Requerido já que a douta decisão está em conformidade com a melhor doutrina e mais recente jurisprudência dos Tribunais superiores razão pela qual dispensa-se a Requerente de contra-alegar já que é sua convicção absoluta que a decisão proferida não vai merecer qualquer censura».
[2] Proc. 249/21.2T8VVC.E1, in www.dgsi.pt.
[3] Cfr. acórdãos de 26.01.2021, proc. 1923/19.9T8GDM-A.P1.S1, 25.05.2021, proc. 1761/19.9T8PBL-A.C1.S1 e 28.03.2023, proc. 249/21.2T8VVC.E1.S1,disponíveis in www.dgsi.pt.
[4] Proc. 764/18.5T8STB.E1, in www.dgsi.pt.
[5] Respetivamente, processos nºs 176/20.0T8TVR-A.E1, 469/21.0T8ABF.E1 e 283/23.8T8CTX-A.E1 (neste o relator interveio como adjunto), disponíveis in www.dgsi.pt.
[6] Anotação ao artigo 848º do seu Código Civil Anotado, Vol. II, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, p. 121.