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SERVIDÃO POR DESTINAÇÃO DO PAI DE FAMÍLIA
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
ÓNUS DA PROVA
Sumário
I - Para o cumprimento do ónus de especificação do art. 640.º, n.º 1, do CPC, os concretos pontos de facto impugnados devem ser feitos nas respetivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão. II - A constituição da servidão por destinação do pai de família pressupõe o concurso dos seguintes requisitos essenciais: i) que os dois prédios ou as duas frações do mesmo prédio tenham pertencido ao mesmo dono; ii) relação estável de serventia de um prédio a outro ou de uma fração a outra, correspondente a uma servidão aparente, revelada por sinais visíveis e permanentes (destinação); iii) separação dos prédios ou frações em relação ao domínio, (separação jurídica), e iv) inexistência de qualquer declaração, no respetivo documento, contrária à destinação. III - A servidão formada por destinação de pai de família tem de pré-existir em relação, ou à divisão dos terrenos, ou à separação dos proprietários, consoante os casos. IV - A prova dessa pré-existência constitui ónus do autor, por se tratar de facto constitutivo do direito a que o mesmo se arroga, nos termos do disposto no artigo 342º, nº 1, do Código Civil. (Sumário elaborado pelo relator)
Texto Integral
Proc. nº 1109/21.2T8ENT-E1
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO AA e mulher BB, instauraram a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC e mulher DD, pedindo que os réus sejam condenados:
a) a reconhecer que os autores são donos e legítimos possuidores do prédio urbano sito na Rua ..., em Local 1, inscrito sob o artigo cadastral nº 4363, da freguesia de ..., concelho ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha nº ...06 da freguesia ....
b) a reconhecer que se constituiu por usucapião e destino do pai de família uma servidão legal de escoamento de águas imposta sob o seu prédio inscrito na matriz cadastral nº 6 da secção L, da freguesia ..., concelho ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha nº ...55-... e a favor do prédio dos AA. identificado em a).
c) a desobstruir a conduta de água referida no artigo 22.º da petição inicial e a limpar as manilhas em toda a sua extensão.
Alegaram, em síntese, que:
- são donos e legítimos possuidores do prédio urbano sito na Rua 1, que adquiram por escritura de compra e venda outorgada em 25.10.2013, e os réus são proprietários do prédio rústico, n.º ..., da secção L, sendo que os prédios dos autores e dos réus pertenceram a EE e fizeram parte do Alvará de Loteamento n.º ...1;
- no terreno dos autores, no seu lado sul existe uma conduta em manilha para escoamento das águas pluviais, que atravessa a via pública em toda a sua extensão e termina no terreno dos réus, sendo que a partir daí as águas corriam através de um rego;
- no terreno dos réus foi alterado o seu relevo, tendo sido aterrado com terra e restos de obras, ficando mais alto do que a rua e a conduta existente foi tapada, tendo a água deixado de escoar, como acontecia anteriormente, sendo que o terreno dos autores fica inundado quando chove e o muro de vedação ameaça ruir;
- foi constituída uma servidão legal de escoamento de águas pelo antigo proprietário EE, que existe há mais de 50 anos, à vista e com conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém.
Os réus contestaram, contrapondo, em síntese, que os prédios dos autores estiveram sem qualquer ocupação e utilização humana durante mais de 30 anos antes dos autores o adquirirem, sendo falso que no terreno dos réus existam ou tenham existido quaisquer manilhas, condutas ou regos, referindo ainda que a via pública que separa os prédios dos autores e dos réus é mais elevada nalguns pontos que o prédio destes, inexistindo qualquer ação dos réus em terreno público e não alteraram o seu prédio.
Mais alegaram que apenas têm procedido ao pagamento de impostos e à limpeza do terreno e que nunca tiveram qualquer servidão ou ónus registado no seu prédio para além da respetiva hipoteca, pelo que os vendedores do prédio dos réus, EE e mulher, não transmitiram aos réus qualquer ónus ou encargo sobre o seu prédio.
Na sequência de convite do Tribunal, os autores apresentaram nova petição aperfeiçoada com subsequente contraditório.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Instruído o processo, seguiram os autos para julgamento e, a final, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu os réus do pedido.
Inconformados, os autores interpuseram o presente recurso, tendo finalizado a respetiva alegação com a formulação das conclusões que se transcrevem:
«a) Os AA e seus ante possuidores estão na posse do imóvel (lote ...4 – do Alvará de Loteamento n.º ...1) desde há mais de 40 anos;
b) O Réu, desde o ano de 1983 que está na posse dos lote ...3 e ...4 do mesmo loteamento;
c) Quando o Réu adquiriu os seus lotes, já a conduta em causa na presente ação existia;
d) Tal conduta, tem entrada bem visível, pelo menos desde o ano de 1983, data em que os Réus compraram o seu terreno tem início no prédio dos AA.;
e) A conduta está tapada na sua saída no interior do terreno dos RR., a dois metros da via pública;
f) No terrenos dos RR. foram colocadas carradas de entulho das obras;
g) Por ordem dos Réus, e o entulho foi espalhado no terreno;
h) Pela perícia feita ao local da conduta, verifica-se que os materiais espalhados no terreno, estão a tapar a conduta;
i) Logo, está demonstrado que, desde há mais de 40 anos, que as águas escorrem através da conduta;
j) Como a mesma está tapada, as águas não correm, como foi pretendido pelo anterior proprietário do terreno, mas escorrem lentamente, pois, caso contrário, o lago continuaria no local por muito tempo;
k) Logo, o Tribunal ao decidir como decidiu, abre a porta a que os Réus edifiquem uma parede junto da via pública e cortem mesmo a conduta no seu terreno e depois ficamos com uma piscina no local e a própria rua ficará intransitável.
Motivo pelo qual, o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, violou o disposto nos artigos 1563º nº1 al. b), 1547º nº1, 1549º e 342º nº 3, do Código Civil e 615º nº 1 al. b) do CP Civil, devendo ser revogada a douta sentença e procedente a ação.»
Os réus contra-alegaram, defendendo a manutenção da sentença recorrida.
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial decidenda consubstancia-se em saber se se mostra constituída a favor dos autores/recorrentes uma servidão de escoamento por usucapião ou destinação de pai de família.
Como questão prévia, importa ainda apreciar se a impugnação da matéria de facto pelos recorrentes observou os ónus impostos pelo art. 640º do CPC.
III – FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. Encontra-se registada a favor de AA, casado com BB no regime de comunhão de adquiridos, pela Ap ...68, de 2013/10/25, a aquisição do prédio urbano sito na Rua 1, na freguesia ..., concelho ..., composto por terreno para construção, que confronta a norte, sul, nascente e poente com EE, inscrito sob o artigo matricial nº ...63, da referida freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...06.
2. O prédio referido em 1) proveio dos artigos matriciais nº ...87 e ...60, da extinta freguesia ....
3. Os autores adquiriram o prédio referido em 1), por escritura de compra e venda outorgada aos 25/10/2013.
4. O prédio referido em 1) está todo vedado com um muro em alvenaria, com cerca de um metro de altura e com rede.
5. E o terreno é plano, junto à Rua 1,
6. Mas tem um declive acentuado nas suas traseiras.
7. E tem uma via pública em todo o seu perímetro.
8. Após aquisição do prédio referido em 1), os autores fizeram obras de demolição e posterior construção, tornando o mesmo a sua habitação própria e permanente,
9. Limpando o terreno,
10. Pagando os impostos devidos ao Estado.
11. Recebendo aí, visitas de familiares e amigos.
12. Encontra-se registada a favor dos réus, pelas Ap ... de 1983/05/04 e ... de 1983/05/04, a aquisição do prédio rústico, sito em Local 2, composto por cultura arvense, que confronta a norte com FF, a Sul com GG, a Nascente com ... e a Poente com Estrada, inscrito sobre o artigo matricial nº ..., da secção L, e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...55.
13. O prédio referido em 1) e o prédio referido em 12) pertenceram a EE,
14. E fizeram parte do Alvará de Loteamento n.º ...1.
15. Sendo o terreno referido em 1), o lote ...4, e o terreno referido em 12), os lotes ...3 e ...4.
16. No terreno dos AA. no seu lado sul existe uma conduta em manilha para escoamento das águas pluviais.
17. Conduta esta que atravessa a via pública em toda a sua extensão e
18. Termina no terreno dos RR.
19. A conduta referida em 16) mostra-se tapada.
20. Os autores demoliram as construções existentes no prédio referido em 1) para nelas construírem a sua casa de habitação após a sua compra em 25.10.2013.
21. A via pública que separa os prédios dos AA. e dos RR. é mais elevada nalguns pontos que o próprio prédio destes.
22. O prédio referido em 12) foi adquirido pelos réus a EE e mulher, por outorga de escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca, onde foi declarado, pelos primeiros outorgantes, entre o mais: “Que, pela presente escritura, vendem ao segundo outorgante CC, livre de ónus ou encargos”.
E foram considerados não provados os seguintes factos:
A. Desde há mais de 50 anos que os autores e ante possuidores ocupam e habitam o prédio referido em 1), à vista e com o conhecimento de toda a gente e de forma continuada.
B. A conduta referida em 16), servia para evitar a inundação do terreno e que o muro de vedação se partisse.
C. A partir da extremidade da conduta situada no terreno dos RR as águas corriam através de um rego, que atravessa a propriedade dos réus.
D. No terreno dos Réus foi alterado o seu relevo.
E. Pois o mesmo foi aterrado com terra e restos de obras.
F. Ficando mais alto do que a rua.
G. A água deixou de escoar como acontecia anteriormente.
H. O terreno dos autores quando chove fica inundado e o muro de vedação ameaça ruir.
I. A conduta foi constituída por EE, a favor de toda a sua propriedade, por volta do ano de 1981, e consistia na construção de um aqueduto com manilhas em cimento que canaliza a água que corre no prédio dos autores e atravessa a propriedade dos réus no sentido Norte,
J. A qual existe há mais de 50 anos.
K. À vista e com conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém.
L. No terreno dos autores existiram umas construções de um antigo lagar de uma cooperativa oleícola com um tanque na parte de baixo do prédio na zona do declive.
Questão prévia: do (in)cumprimento dos ónus a cargo do recorrente que pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto
Dispõe o art.640 nº1 CPC:
“Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
“a) - Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
“b) - Os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.”
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de factos impugnadas”.
Os concretos pontos de facto impugnados devem ser feitos nas respetivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão. Já quanto à especificação dos meios probatórios, a lei não impõe que seja feita nas conclusões, podendo sê-lo no corpo da motivação, e o mesmo sucede quanto à exigência da decisão alternativa, conforme fixação de jurisprudência, através do AUJ nº 12/2023 de 17.10.2023, publicado no DR 1ª Série de 14.11.2023.
Para além deste ónus primário, a lei impõe ainda um ónus secundário [art.640 nº2 a) CPC], pois quando os meios de prova tenham sido gravados «incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes».
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem afirmando que «[n]a verificação do cumprimento do ónus de alegação previsto no art. 640º do CPC, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade»[1], ou que «a apreciação da satisfação das exigências estabelecidas no artº 640º do CPC deve consistir na aferição se da leitura concertada da alegação e das conclusões, segundo critérios de proporcionalidade e razoabilidade, resulta que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto se encontra formulada num adequado nível de precisão e seriedade, independentemente do seu mérito intrínseco»[2].
Porém, como refere Abrantes Geraldes[3], «em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões» e acrescenta «são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, segundo a regra geral que se extrai do art. 635º, de modo que a indicação dos pontos de facto cuja modificação é pretendida pelo recorrente não poderá deixar de ser enunciada nas conclusões» e reafirma na nota 274[4] que «ainda que não tenha utilizado no art. 640º uma enunciação paralela à que consta do nº 2 do art. 639 sobre o recurso da matéria de direito, a especificação nas conclusões dos pontos de facto a que respeita a impugnação serve para delimitar o objeto do recurso» (sublinhados nossos).
De igual modo, pode ler-se no sumário do acórdão do STJ de 27.02.2024[5]:
«I - Para o cumprimento do ónus de especificação do art. 640.º, n.º 1, do CPC, os concretos pontos de facto impugnados devem ser feitos nas respectivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão. Já quanto à especificação dos meios probatórios e à exigência da decisão alternativa, a lei não impõe que seja feita nas conclusões, podendo sê-lo no corpo da motivação» (sublinhado nosso).
Ora, se é certo que no corpo das alegações os recorrentes manifestam o seu inconformismo quanto à decisão sobre a matéria de facto, indicando os pontos da matéria de facto dados como não provados que entendem dever ser considerados provados, não é menos verdade que as conclusões são totalmente omissas quanto à impugnação da matéria de facto, não tendo os recorrentes identificados nestas os concretos pontos da matéria de facto que pretendem ver alterados, identificação que, como se viu, não pode deixar de figurar nas conclusões, visto estas delimitarem o âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão, o que vale por dizer que os recorrentes não cumpriram o aludido ónus primário.
Omitindo os recorrentes o cumprimento daquele ónus processual fixado na al. a) do nº 1 do art. 640º do CPC, impõe-se a imediata rejeição do recurso, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento[6].
Em suma, a inobservância, por parte dos recorrentes, do aludido ónus primário, determina a imediata rejeição do recurso no tocante à impugnação da matéria de facto, pelo que nenhuma alteração será feita à decisão sobre tal matéria proferida pela 1ª instância.
Da servidão de escoamento
Quanto à existência de uma servidão de escoamento por usucapião, após judiciosas considerações sobre a posse, entendeu-se na sentença recorrida que os autores não provaram, como lhes competia, os factos constitutivos do direito que invocaram, pois «não ficou sequer demonstrado que os autores e os seus antecessores tenham praticado actos materiais reveladores do direito de escoamento de águas através da conduta existente».
E entendeu-se corretamente, adiantamos desde já.
Sustentam os autores/recorrentes ter-se constituído uma servidão de escoamento de água em benefício do prédio de que são proprietários onerando o prédio da propriedade dos réus/recorridos.
Dispõe o art. 1287º do Código Civil[7] que «[a] posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação; é o que se chama usucapião».
Por sua vez, o art. 1251º do mesmo Código define posse como «[o] poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real].
Decorre deste preceito que nele o legislador adotou uma conceção subjetiva de posse, pelo que para que exista uma situação de posse é necessário que se encontrem preenchidos dois elementos: um elemento material - corpus -, traduzido na necessidade do agente ter de exercer atos materiais efetivos sobre a coisa ou ter a possibilidade de os exercer sobre aquela; e um elemento psicológico - animus -, que consiste na intenção do agente de exercer esses atos materiais ou de os poder exercer sobre a coisa como beneficiário de um direito real sobre a mesma.
E do art. 1287º do CC decorre que a posse exercida por um certo lapso de tempo, variável em função das suas características, permite adquirir, por via originária, mediante o funcionamento do instituto da usucapião, o direito real correspondente à intenção com que o agente pratica aqueles atos materiais sobre a coisa ou tem a possibilidade de sobre ela os exercer.
Contudo, tratando-se de aquisição, por usucapião, de uma servidão predial, na medida em que o legislador nacional não permite a constituição de servidões prediais não aparentes mediante o funcionamento do instituto da usucapião, aos identificados requisitos constitutivos da posse (corpus e animus possessórios) e aos relativos ao período de tempo em que a posse tem de ser exercida sobre a coisa para que se dê a aquisição do direito real por usucapião, acresce o requisito de os identificados atos possessórios exercidos pelo agente sobre a coisa terem de ser acompanhados por sinais visíveis e permanentes que os revelem (art. 1548º do CC)[8].
Assim, sempre que a água de um prédio superior nele nasça ou se projete em consequência de obra humana e essa água escorra naturalmente, sem obra do homem, para prédio inferior, ou sempre que a água que nasça ou se projete naturalmente, sem obra humana, no prédio superior, mas escorra para o inferior por via de obra humana, ou seja, nos casos em que o surgimento da água no prédio superior ou o modo como esta é encaminhada para o prédio inferior ocorra fora dos condicionalismos legais previstos no art. 1351º do CC[9], essas condutas do proprietário do prédio superior poderão levar à constituição de uma servidão de escoamento sobre o prédio inferior (serviente) em benefício do superior (dominante), através do instituto da usucapião.
Revertendo ao caso concreto, do acervo factual dado como provado, não resulta a existência de quaisquer atos de posse que permitam concluir pela existência de uma posse com as características assinaladas, resultando apena provado que no terreno dos autores no seu lado sul existe uma conduta em manilha para escoamento das águas pluviais, a qual atravessa a via pública em toda a sua extensão e termina no terreno dos réus (pontos 16, 17 e 18 dos factos provados), sendo que não se provou que essa conduta tenha sido constituída por EE, a favor de toda a sua propriedade, por volta do ano de 1981, e que a mesma consistia na construção de um aqueduto com manilhas em cimento que canaliza a água que corre no prédio dos autores e atravessa a propriedade dos réus no sentido Norte, há mais de 50 anos, à vista e com conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém (alíneas I), J) e K dos factos não provados).
Pressupondo a usucapião necessariamente a posse, não se tendo provado factos que sustentem a sua existência, bem andou o Tribunal a quo ao considerar a inexistência de uma servidão de escoamento por usucapião.
E poderá considerar-se a existência de uma servidão de escoamento por destinação do pai de família?
Sobre a constituição de servidão predial por destinação do pai de família, dispõe o artigo 1549º do CC que «[s]e em dois prédios do mesmo dono, ou em duas frações de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas frações do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respetivo documento».
A constituição da servidão por destinação do pai de família pressupõe, assim, o concurso dos seguintes requisitos essenciais: i) que os dois prédios ou as duas frações do mesmo prédio tenham pertencido ao mesmo dono; ii) relação estável de serventia de um prédio a outro ou de uma fração a outra, correspondente a uma servidão aparente, revelada por sinais visíveis e permanentes (destinação); iii) separação dos prédios ou frações em relação ao domínio, (separação jurídica), e iv) inexistência de qualquer declaração, no respetivo documento, contrária à destinação[10].
Como se pode ler no acórdão do STJ de 15.03.2005[11], «[o] acto constitutivo é, pois, o da respectiva separação jurídica de dois prédios do mesmo proprietário (destinação do anterior proprietário) ou da separação jurídica de duas fracções do mesmo prédio (destinação do pai de família propriamente dita), sendo que o «sinal ou sinais visíveis e permanentes» a que se reporta o art.º 1549º do Cód. Civil têm que preexistir a tal separação, colocados pelo anterior proprietário ou por algum dos seus antecessores. (…)
Seja como for, sempre que se verifiquem os pressupostos do art.º 1549º do C. Civil, a servidão por destinação do pai de família (por destinação do anterior proprietário) constitui- se, não por acto negocial, mas sim por força da lei, independentemente de saber se o alienante e o adquirente quiseram que assim acontecesse.
O alienante não pode vir alegar que não teve a vontade de que a servidão se constituísse, porque a sua vontade é pura e simplesmente irrelevante.
(…)
O único facto voluntário que a lei exige para a constituição de uma servidão por destinação do pai de família é a colocação pelo homem de sinais visíveis e permanentes reveladores de uma relação de serventia entre dois prédios pertencentes ao mesmo dono.
Sempre que ocorra esta situação material e os prédios se separarem quanto à titularidade do domínio, a servidão constitui-se, independentemente de saber se foi essa a vontade de quem interveio no acto de separação, salvo se outra coisa se declarar no respectivo documento».
Escreveu-se na sentença recorrida:
«No caso dos autos, analisada a factualidade que resultou provada, mostram-se verificados dois dos pressupostos (o primeiro e o terceiro), posto que, por um lado ficou provado que os dois prédios pertenceram, efectivamente, a dada altura, ao mesmo dono, e que os mesmos se separaram (quer através das operações de loteamento levadas a cabo, quer através da sua posterior alienação a diferentes proprietários). No entanto, não ficou demonstrada qualquer factualidade que preenchesse o segundo pressuposto, que exige a existência de sinais visíveis e permanentes, que revelem a serventia de um prédio para com o outro. Ora, a servidão formada por destinação de pai de família tem de pré-existir em relação, ou à divisão dos terrenos, ou à separação dos proprietários, consoante os casos. A prova dessa pré-existência constitui ónus do autor, por se tratar de facto constitutivo do direito a que o mesmo se arroga, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil. In casu, os autores não provaram a pré-existência da conduta em relação à divisão de terrenos, nem à separação de proprietários, dado que apenas provaram a existência da conduta, não tendo logrado provar quando é que a mesma foi constituída, nem por quem. Do exposto resulta, de igual modo, que não podem os autores ver reconhecida a existência de uma servidão constituída por destinação de pai de família.»
Mostra-se totalmente correta esta análise, que subscrevemos por inteiro, pelo que se mostram desnecessárias outras considerações para demonstrar o acerto da sentença recorrida, que nenhuma censura merece.
Por conseguinte, o recurso improcede.
Vencidos no recurso, suportarão os autores/recorrentes as respetivas custas – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.
*
Évora, 10 de outubro de 2024
Manuel Bargado (Relator)
Filipe Aveiro Marques
Susana da Costa Cabral
(documento com assinaturas eletrónicas)
__________________________________________________
[1] Cfr., inter alia, os acórdãos do STJ de 28.04.2016, proc. 1006/12.2TBPRD.P1.S1 e de 21.03.2019, proc. 3683/16.6T8CBR.C1.S2, disponíveis, como os demais adiante citados sem outra indicação, in www.dgsi.pt.
[2] Acórdão do STJ de 09.12.2021, proc. 9296/18.0T8SNT.L1.S1.
[3] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., p. 165
[4] Página 168.
[5] Proc. 2351/21.1T8PDL.L1.S1.
[6] Cfr., inter alia, o acórdão do STJ de 09.02.2021, proc. 16926/04.0YYLSB-B.L1.S1.
[7] Doravante abreviadamente designado CC.
[8] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 2ª edição, Coimbra Editora, p. 629, defendem que: «[a]dmitir a usucapião como título aquisitivo deste tipo de servidões, não obstante a equivocidade congénito dos atos reveladores do seu exercício, teria o grave inconveniente de dificultar, em vez de estimular, as boas relações de vizinhança, pelo fundado receio que assaltaria as pessoas de verem convertidas em situações jurídicas de caráter irremovível situações de facto, assentes sobre atos de mera condescendência ou obsequiosidade. Preferível julgou a lei cortar o mal pela raiz, presumindo-se juris et de jure o título precário e mantendo a eliminação das servidões não aparentes, a fim de facilitar as relações de boa vizinhança entre os donos de prédios contíguos ou próximos. No mesmo sentido milita ainda a circunstância de, não havendo sinais visíveis e permanentes reveladores da servidão, sendo esta porventura exercida só clandestinamente, a atitude passiva do proprietário poder ser apenas devida à ignorância da prática dos atos constitutivos da servidão”.
[9] Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 5ª edição, Coimbra Editora, 1993, pp. 505 a 507, onde a propósito da servidão de escoamento escreve: «[a] garantia do escoamento das águas que se encontram em quantidade excessiva em determinado prédio constitui uma instante necessidade, equiparável às que justificam as servidões anteriores. Por isso a lei não se contentou em deixar à autonomia das partes a disciplina dos seus interesses: estabeleceu mesmo, em certos casos, uma servidão coativa de escoamento. (…). Apesar de uma mais cuidada apresentação das hipóteses em que se pode verificar servidão de escoamento, elas continuam a poder reconduzir-se às duas que eram já conhecidas na legislação anterior: - quando num prédio existam águas em quantidade excessiva; - quando para um prédio sejam, por ação do homem, conduzidas águas].
[10] Vide, por todos, o acórdão do STJ de 14.05.2019, proc. 09A0661.
[11] Proc. 05B287.