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MATÉRIA DE FACTO
DECISÃO
SANEADOR
SENTENÇA
Sumário
Na seleção da matéria de facto o juiz deve ter em atenção as várias questões plausíveis em direito, pois que nos termos do art. 5º nº 3 do CPC, “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”.
Texto Integral
Apelação nº 2677/22.7T8PNF.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
A A. veio invocar, em suma, que foi vítima de burla informática, recebendo um e-mail ‘fraudulento’ (posteriormente objecto de queixa crime contra terceiros), tendo realizado uma transferência através de homebanking para um IBAN que não correspondia ao do destinatário que pretendia, o que os RR. (Bancos) deveriam ter verificado, fazendo a devida correspondência. Peticiona a final a procedência da acção e a condenação dos RR. a pagarem solidariamente à aqui A. uma indemnização pelos prejuízos sofridos – € 74.427,02 –, nos termos do disposto nos arts. 113.º e 114.º do RJSPME, acrescido dos juros de mora calculados à taxa legal, fixada nos termos do Código Civil (4%/ano), acrescida de 10 pontos percentuais, tudo nos termos do n.º 10 daquele último artigo. Os RR., devidamente citados, apresentaram contestação, onde invocam, em síntese, o 1º R. que cumpriu todas as normas, não tendo obrigação de fazer a correspondência do IBAN com o beneficiário; e o 2º R. de igual forma (além da excepção de incompetência internacional), invocando que não teve qualquer acto ilícito (não estando preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual), antes havendo culpa do lesado que não diligenciou pela verificação do e-mail e sendo certo que diligenciou pela tentativa de recuperação dos montantes e que as normas de prevenção de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo não são sequer destinadas a proteger interesses privados da A., pelo que nunca poderia ser responsabilizado. Terminam a peticionar a improcedência da acção.
A sentença recorrida considerou que as partes já se pronunciaram sobre as matérias em causa nos autos e o seu enquadramento jurídico e que o processo contém todos os elementos para decidir de mérito e proferiu saneador sentença julgando a a ação totalmente improcedente absolvendo as rés do pedido.
Desta sentença apelou a autora concluindo nas suas alegações:
I. No exercício da sua actividade, a recorrente celebrou com o recorrido “Banco 1..., S.A.” um contrato de abertura de conta, onde balizaram a relação jurídica bancária, nomeadamente, quanto a depósitos bancários, movimentação de fundos depositados na conta em causa, emissão de ordem de pagamentos e outros serviços associados, designadamente de homebanking, podendo a recorrente ordenar uma transferência de fundos para um destinatário através da sua conta à ordem n.º ... e IBAN ....
II. Também no âmbito da sua actividade, a recorrente, comprou bens à sociedade “A..., S.R.L.”, tendo tal entidade, no passado dia 20-01-2022, enviado um e-mail à recorrente, que o recepcionou na sua caixa de correio electrónico, de onde constava a Factura “Pro-Forma” e A solicitação de pagamento adiantado da mercadoria para que a mesma fosse expedida para a recorrente.
III. Posteriormente, no dia 21-01-2022, a recorrente recebeu um novo e-mail, aparentemente proveniente da “A..., S.R.L.”, onde se alertou para uma revisão da Factura Proforma anteriormente enviada e, negrito, era solicitado o pagamento para a conta bancária que constava da mesma comunicação, conta essa que encontrava-se e encontra-se domiciliada no recorrente “Banco 1... S.A.”.
IV. Seguindo as instruções providenciadas no e-mail em causa, no dia 31-01-2022, a recorrente efectuou uma transferência bancária no valor de EUR. 77 427,02 (valor da Factura “Pró-forma”) da conta por si titulada com IBAN ... e domiciliada no recorrido “Banco 1..., S.A.”, sendo destinatária das verbas conta com IBAN ... (indicado no e-mail de 21-01-2022), domiciliada no recorrido “Banco 1... S.A.”
V. Foi dada ordem de pagamento por parte d recorrente e, por meio do sistema de Homebanking fornecido pelo RECORRIDO “Banco 1..., S.A.”, materializando o dito movimento, no quadro de uma transferência tradicional (i.e., não imediata).
VI. A recorrente, aquando da materialização de tal transferência, preencheu o campo do IBAN da conta do destino que constava do e-mail fraudulento de 21-01-2022 tendo, no entanto, indicado no campo “beneficiário” entidade “A..., S.R.L.” (Doc. n.º 7 junto com apetição inicial).
VII. Posteriormente, a recorrente teve conhecimento que a conta destinatária da transferência – IBAN ... – não é titulada pela “A..., S.R.L.”, nem pela mesma directa ou indirectamente controlada, tendo sido percepcionado que um ou vários Responsabilidade Limitada hackers, por meio não concretamente apurado tivera acesso à caixa de e-mail da recorrente ou da “A..., S.R.L.” e forjaram o e-mail e documentos enviados a 21-01-2022.
VIII. Por emprego de meios elevadamente astuciosos e com requintado grau de sofisticação, planeamento e sofisticação, foi a recorrente vítima de fraude, na medida em que, por via do esquema que se deixou exposto, efectuou uma transferência bancária para a conta em causa, sendo que a mesma não era a conta bancária para a qual a recorrente pretendia fazer a transferência, tudo conforme decorre da maior evidência.
IX. Percebido o esquema em que havia caído, a recorrente contactou imediatamente o recorrido “Banco 1..., S.A.”, tendo explicado que tinha sido vítima de uma fraude e solicitou àquela entidade que pugnasse pela reversão da transferência realizada, cumprindo, portanto, as obrigações na qualidade de ordenante que para si lhe incumbiam nos termos do RJSPME.
X. A 31-01-2022, o recorrido “Banco 1..., S.A.” informou a recorrente do recorrido “Banco 1..., S.A.” que a conta ... já não possuía quaisquer fundos, pelo que fo negada a reversão da transferência efectuada (facto provad 7.), o que se encontra em manifesta contradição com o alegado no art. 106.º da contestação do próprio recorrido “Banco 1..., S.A.”
XI. Ao contrário do que o recorrido “Banco 1..., S.A.” alega no art. 106.º da sua contestação, a recorrente nunca recebeu qualquer quantia daquele e/ou do recorrido “Banco 1...”.
XII. Sobre concretas diligências encetadas pelo recorrido “Banco 1..., S.A.” e/ou pelo recorrido “Banco 1...”, no sentido de tais instituições diligenciarem pelo bloqueio da conta bancária para onde foi, fraudulentamente, transferida a verba em causa e, bem assim, se foi lograda a recuperação de parte/integralidade da quantia em causa, nenhuma pronúncia houve por parte do Tribunal a quo, nem no sentido de fixar factualidade provada ou não provada, nem sequer se tendo produzido qualquer prova, não obstante tal factualidade configurar matéria controvertida.
XIII. Da mesma sorte, também nenhuma matéria probatória ou factualidade foi apurada relativamente às quantias que alegadamente foram alvo de bloqueio pelo recorrido “Banco 1..., S.A.” e que este alega ter devolvido à recorrente, alegação essa, como se disse, que não corresponde de todo à verdade dado que a recorrente nada recebeu.
XIV. O Tribunal a quo não poderia proferir decisão de mérito, julgando a ação totalmente improcedente, sem que, previamente, desse cumprimento ao disposto no art. 591.º, n. 1, al. b) do CPC, ou seja, agendasse e realizasse audiência prévia nos presentes autos, o configura a nulidade da decisão e do processado, nos termos do art. 195.º, n.º 1 do CPC, por omissão de acto que a lei processual prescreve como obrigatório– realização de audiência prévia e que teve influência na decisão da causa.
XV. Sem prejuízo do que vai dito, a decisão proferida pelo Tribunal a quo está igualmente ferida de nulidade por violação do disposto no art. 3.º, n.º 3 do CPC, na medida em que configura uma decisão surpresa, dado que não foi facultado às partes a prévia pronúncia sobre as questões em que, posteriormente, se sedimentou a decisão proferida, nulidade essa que desde já se argui, devendo ser revogada a decisão proferida e ordenar este Tribunal ad quem que os autos baixem
Ao Tribunal a quo a fim de prosseguir os seus ulteriores e legais termos, designadamente com a realização da audiência de discussão e julgamento e produção da prova requerida pela recorrente.
XVI. Sem prejuízo, acresce que nos termos do art. 607.º, n.º 4 deve o juiz concretizar quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, cominando o art. 615.º, n.º 1, al. b) do CPC tal omissão como nulidade da decisão.
XVII. Na decisão que ora se escalpeliza, o Tribunal a quo limitou-se a dar como provados singelos 8 pontos da matéria de facto, nada decidindo quanto aos factos que entendeu como não violação do disposto nos arts. 607.º, n.º 4 e 615.º, n.º 1, als. c) e d) do CPC.
XVIII. O Tribunal a quo, na pág. 35 da sentença, faz referência às “diligências efetuadas pelos RR., no sentido da tentativa de recuperação dos valores que a A. Invocou que foram desviados” (sic).
No entanto, tal questão é debatida configurando matéria controvertida e sobre a qual, calcorreados os factos provados pelo Douto Tribunal, nada se encontra decidido, provado ou concretizado na decisão.
XIX. A inexistência de decisão quanto às “diligências efetuadas pelos RR., no sentido da tentativa de recuperação dos valores que a A. invocou que foram desviados” alastra-se aos factos não provados dado a decisão recorrida é totalmente omissa quanto a esta parte, além de que não concretiza quais as provas produzida e respetiva análise crítica que levou o Tribunal a quo a entender que tais “diligências” efetivamente foram materializadas pelos recorridos, pelo que, deverá a nulidade ora arguida ser julgada procedente, por provada, atento o disposto art. 615.º, n.º 1, als. b) e c) do CPC.
XX. A isto tudo, acresce a circunstância do Tribunal a quo entender, na pág. 46 da sentença, QUE a indemnização peticionada pela recorrente “poderia/deveria ser excluída ou pelo menos reduzida nos termos do art. 570º do CC”. No entanto, nenhuma prova se produziu, nenhum facto se apurou
Quando à hipotética questão da redução ou exclusão da culpa a que aludo Tribunal a quo no citado segmento decisório.
XXI. Igualmente, sobre esta matéria nenhum facto foi dado como provado ou não provado que permitisse ao Tribunal a quo apurar a questão da repartição de culpas entre o(s) lesante(s)– recorridos – e os lesados. Ora, admitindo o Tribunal a quo admite que a culpa dos lesados poderia “ser reduzida” [citação directa], sempre haveria lugar à condenação dos mesmos, na proporção justamente da culpa determinada e apurada em sede de audiência de discussão e julgamento.
XXII. Pelo que, o Tribunal a quo perspectiva, ele próprio, que pode haver lugar à condenação dos recorridos. No entanto, em manifesta contradição, acaba por absolvê-los integral e prontamente dos pedidos formulados, o que configura, de forma ostensiva, contradição da decisão com a própria fundamentação e, portanto, nulidade da mesma nos termos do disposto no art. 615.º, n.º 1, b) do CPC.
XXIII. Nos termos do alegado no art. 104.º, n.º 2 do RJSPME, do art. 5.º, n.º 1, als. a) e c) do REGULAMENTO DELEGADO (UE) 2018/ 389 DA COMISSÃO, da al.c) do, n.º1, do art.5.º do REGULAMENTO DELEGADO (UE) 2018/ 389 DA OMISSÃO Articulo 38, n.º 3,al.d) do Real Decreto-ley 19/2018 e no Decreto-ley 19/2018, de 23 e noviembre previu o legislador a obrigação das entidades financeira promoverem uma contínua melhoria e apertados critérios de segurança, certeza e fiabilidade das plataformas de Homebankin qu disponibilizam aos seus clientes, designadamente através da implementação obrigatória de um sistema fail safe de conferência entre o IBAN da conta destinatária dos fundo e o teor do campo “beneficiário” da operação aquando da realização de uma transferência bancária por parte dos respectivos ordenantes.
XXIV. Encontra-se factualmente assente – facto provado 8. – que o sistema de pagamentos on-line dos recorridos, aquando uma ordem de transferência, não procede à conferência entre o IBAN da da conta destinatária dos fundos e o teor do campo operação.
XXV. A operação de pagamento objecto dos presentes autos entronca precisamente no previsto no art. 113.º, n.º 1 do RJSPME, dado que o recorrente não autorizou que a mesma fosse realizada para a conta em causa – sendo sua intenção que a mesma fosse realizada para a conta da “A..., S.R.L.” e, por outra via, terá a operação em causa que ser catalogada como incorrectamente efectuada.
XXVI. Nos termos do RJSPME e do Articulo 44 do Real Decreto-ley 19/2018, de 23 de noviembre, de servicios de pago y otras medidas urgentes en materia financiera o ónus de provar que a transferência de fundos de que ora se cuidanão fo afectad po qualquer erro ou deficiência do serviço corre por conta dos recorridos.
XXVII. As deficiências ilícitas de que padece as plataformas de pagamentos dos recorridos – falta de implementação de sistema fail safe que faça conferência entre o IBAN da conta destinatária dos fundos e “Destinatário” –foram conditio sine qua non para o sucesso do logro de que a recorrente foi vítima.
XXVIII. Os aludidos diplomas e obrigações legais não foram cumpridos, de igual medida, pelo recorrido “Banco 1..., S.A.” na medida em que as obrigações de compliance e controlo e humanas– falharam em toda a linha, ao nem sequer ter suscitado o menor alerta o facto de ser recebida uma transf rência da ordem de grandeza de que se cuida nos presentes autos, se qualque operação anterior prévia entre as mesmas contas e/o beneficiários.
XXIX. Fica demonstrado, desde já, nos presentes autos a manifesta desorganização interna do recorrido “Banco 1..., S.A.” na medida em que, após a recorrente ter denunciado a burla de que foi vítima ao “Banco 1...”, aquela entidade financeira comunicou a esta, num primeiro momento que a conta bancária para onde e foram transferidas as verba já não possuía qualquer valor ali depositado – cfr. Fact provado 7. No entanto, na sua contestação, o mesmo recorrido alegou que recuperou e reembolsou à recorrente EUR. 3 207,02 (alegação essa, ainda assim, falsa pois que a recorrente nenhuma
XXX. Com efeito, o recorrido “Banco 1..., S.A.” recebeu, na sua plataforma, a informação de que o beneficiário da transferência era a “A..., S.R.L.” e, não obstante, possuía os meios (informáticos e humanos) e o dever legal de pugnar pela correspondência entre o beneficiári o titular da conta destino nos fundos.
No entanto, nã aplicou nem cuidou de apurar que, efectivamente, transferência encontrava-se enfermada de uma desconformidade patente e óbvia entre os dados do campo “Beneficiário” e o IBA da conta de destino.
XXXI. Ao contrário do que alega o Tribunal, o RJSPME não se destina, unicamente, ao combate ao branqueamento de capitais, pelo que recorrente é igualmente protegida pelas disposições legais
que constam de tal diploma. Só este entendimento satisfaz o sentido de justiça, dever-ser e demais valores implicados nas referidas normas, correspondentes às voluntas legislatoris e voluntas legis, em toda a linha convergentes.
XXXII. Importa notar que a Directiva (UE) 2015/849 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015 – que foi transposta para o ordenamento jurídico nacional pelo RJSPME e para o ordenamento jurídico espanhol pelo Decreto-ley 19/2018, de 23 de noviembre – não limita o escopo de criminalidade que é ali tratada e objecto de tal diploma, devendo ser tratadas e considerada todas as operações não habituais ou suspeitas e que a mesma se destina a combater prevenir a “manipulação de fundos provenientes de crimes graves” (cfr. Considerandos 5. E 43. e art. 15.º, n.º 3).
XXXIII. As omissões dos recorridos, as deficiências informáticas de que padecem as suas plataformas de pagamento e, bem assim, as insuficiências das diligências por estes empreendidos após a denúncia por banda da recorrente da fraude de que foi vítima, conjunta e isoladamente, configuraram uma circunstância factual que se revela como conditio sine qua non para o prejuízo patrimonial sofrido pela recorrente, que importa aquilatar em sede de responsabilidade civil.
XXXIV.O recorrido de “Banco 1...” foi já multado no Reino Unido em EUR. 125.000.000,00 por Autoridade para a Conduta Financeira (FCA, sigla inglesa) ter identificado depósitos de origem duvidosa no montante de 298 milhões de libras (mais de 345 milhões de euros, ao câmbi actual), antes de as contas serem encerradas (https://www.publico.pt/2022/12/09/economia/noticia/Banco 1...-multado-125-milhoesreino-unido-2030789), exactamente como ocorreu nos presentes autos.
XXXV. Foram violadas, entre outras normas e princípios legais, o princípio do contraditório, a proibição das decisões surpresa, arts. 3.º, n.º 3, 195.º, n.º 1, 591.º, n.º 1, b), 607.º, n.º 4, 615.º, n.º 1, als. b), c) e d) todos do CPC, arts. 87.º, al. a), 104.º, n.º 2 e 113.º e 114.º do RJSPME, art. 5.º, n.º 1, als. a) e c)
do REGULAMENTO DELEGADO (UE) 2018/ 389 DA COMISSÃO, 15.º, n.º 3 Directiva 2015/849, articulo 44 do Real Decreto-ley 19/2018, de 23 de noviembre, de servicios de pago y otras medidas urgentes en materia financiera, articulo 38, n.º 3, al. d) do Real Decreto-ley 19/2018, devendo tais normas e princípios jurídicos devem ser interpretados com o sentido e alcance que se deixaram expostos, o que resulta, além do mais, da doutrina e da jurisprudência a que se fez referência.
NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DO DIREITO DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO TOTALMENTE PROCEDENTE, POR PROVADO, E, EM CONSEQUÊNCIA SER REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA E SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE ORDENE O PROSSEGUIMENTO DOS PRESENTES AUTOS, NOS TERMOS DA LEI ADJECTIVA, DESIGNADAMENTE COM A REALIZAÇÃO DA AUDIÊNCIA PRÉVIA PARA DEFINIÇÃO DO OBJECTO DO LITÍGIO E TEMAS DA PROVA, SUBSEQUENTE REALIZAÇÃO DA AUDIÊNCIA FINA COM A PRODUÇÃO DE PROVA REQUERIDA PELA RECORRENTE; SUBSIDIARIAMENTE, E ATENTAS AS DIVERSAS NULIDADES ARGUÍDAS, DEVERÁ A DECISÃO SER JULGADA NULA, COM TODAS AS DEVIDAS E LEGAIS CONSEQUÊNCIAS, NOMEADAMENTE DEVENDO ORDENAR ESTE TRIBUNAL AD QUEM QUE OS AUTOS BAIXEM AO TRIBUNAL A QUO A FIM DE PROSSEGUIREM OS AUTOS OS SEUS ULTERIORES E LEGAIS TERMOS, DESIGNADAMENTE A REALIZAÇÃO DA AUDIÊNCIA PRÉVIA PARA DEFINIÇÃO DO OBJECTO DO LITÍGIO E TEMAS DA PROVA, SUBSEQUENTE REALIZAÇÃO DA AUDIÊNCIA FINAL COM A PRODUÇÃO DE PROVA REQUERIDA RECORRENTE.
Contra-alegou o Banco 1..., S.A. concluindo:
1. O despacho saneador-sentença recorrido deve manter-se, por adequadamente proferido e fundamentado.
2. Os factos considerados provados e que decorrem da documentação junta aos autos e alegada pelas partes, designadamente pela Autora na petição inicial são suficientes para se concluir pela total improcedência do pedido.
3. Releva-se essencialmente o seguinte:
- No exercício da sua actividade, a Autora celebrou com o Réu aqui recorrido um contrato de abertura de conta, onde balizaram a relação jurídica bancária, nomeadamente, quanto a depósitos bancários, movimentação de fundos
depositados conta em causa, emissão de ordem de pagamentos e outrosserviços associados, designadamente de homebanking, podendo a A. ordenar uma transferência de fundos para um destinatário através da sua conta à ordem.
- A Autora recebeu a dada altura um e-mail com a indicação de um IBAN (...), domiciliado no 2º Réu, para onde realizou a transferência da quantia de € 77.427,02, através do sistema Homebanking;
- a Autora pretende com a presente acção a devolução desse valor porque diz não corresponder a transferência que fez ao seu destinatário.
4. A propósito do despacho saneador proferido, a Autora invoca a nulidade da decisão proferida por não ter sido convocada a audiência prévia, sendo certo que esta não se realizou por, entretanto, o tribunal ter concluído que estava em condições de tomar uma decisão, não ocorrendo, portanto, qualquer nulidade processual e, se por hipótese se admitir que ocorreu, a mesma está sanada perla intervenção da Autora posterior àquele despacho.
5. Seguidamente, a Autora invoca a nulidade da decisão por força do princípio da proibição de decisões surpresa, argumento que não colhe tendo em conta que, no caso, quer a Autora, quer as Rés, tiveram a oportunidade de se pronunciar, por diversas vezes, ao longo do processo, exercendo o contraditório, sendo certo que o princípio em causa não pode pôr em questão outros princípios igualmente relevantes, como é o caso do princípio da celeridade processual, o princípio da proibição de praticar actos inúteis ou ainda os demais aspectos de direito substantivo.
6. A Autora vem ainda invocar a nulidade da decisão por o Tribunal não ter identificado os factos que considerou não provados, mas apenas os factos provados, sendo certo que, no caso concreto, foi proferido saneador-sentença, tendo o Tribunal considerado estar habilitado, face aos factos já provados, a decidir do mérito da causa e tendo considerado suficiente para o efeito a matéria provada.
7. Apesar de haver matéria que, por assim dizer, poderia considerar-se controvertida, o certo é que o resultado final das diligências de prova que se pudessem realizar quanto a esta, seria irrelevante.
8. Como se diz na decisão proferida, a matéria de facto teve em consideração a matéria admitida pelas partes (e indicada pela própria Autora), pelo que a decisão proferida enquadra juridicamente a questão, sendo irrelevante, para o caso concreto, face à
Nos termos do artigo 104º do Estatuto da Ordem dos Advogados, a responsabilidade é limitada ao montante do seguro. solução jurídica expressamente encontrada na lei para o caso, identificar quais os factos considerados não provados (ou que permanecessem controvertidos), porquanto, os factos provados sempre seriam suficiente para a tomada de decisão por parte do tribunal.
9. A Autora Recorrente sustenta ainda que há “intangibilidade ou obscuridade da decisão” por o Tribunal não ter relevado, na matéria controvertida, as diligências efectuadas pelo Banco Réu com vista a recuperar as quantias transferidas pela Autora, nem identificar que diligências foram essas.
10. Sucede que, quaisquer que tenham sido essas diligências, o certo é que sempre as mesmas seriam irrelevantes, à luz do quadro legal e factual do caso.
11. Pelo que a este respeito, a sentença é perfeitamente clara no sentido de o Banco Réu “nada podia/devia fazer”, pelo que não faria sentido identificar diligências que, para o caso, sempre seriam irrelevantes.
12. Não há também qualquer contradição entre a decisão e a sua fundamentação porquanto, como a própria Autora reconhece na petição inicial e decorre da documentação junta aos autos, foi a Autora que recebeu um email com o IBAN errado e foi a Autora que, fazendo fé nesse email, procedeu à transferência, por sua iniciativa.
13. Não seria, em caso algum, necessário fazer qualquer diligência probatória para concluir que, neste ponto, a conduta da Autora não está isenta de responsabilidade, pelo que não se vislumbra como se possa sustentar haver aqui qualquer contradição.
14. Por fim, nas suas alegações, a Autora sustenta que houve uma errada aplicação e interpretação do Direito. Sustenta a Autora que o objectivo da legislação mencionada na sentença é proteger os utilizadores do homebanking, o que é verdade.
15. O regime dos serviços de pagamento constante do DecretoLei n.º 91/2018 (RJSPME) é, aplicável às operações de pagamento efectuadas em Portugal, caso um dos prestadores de serviços de pagamento esteja situado em Portugal e outro prestador de serviço esteja situado fora da união (art.º 3.º, n.º 3, b)).
16. E entre as normas aplicáveis conta-se a reguladora da responsabilidade do prestador do serviço de pagamento por identificador único (IBAN) incorrecto, que considera aquele irresponsável pela não execução ou pela execução incorrecta da operação de pagamento, no caso de incorrecção do identificador fornecido pelo utilizador do serviço de pagamento, sem prejuízo da sua vinculação ao dever de colaborar, como prestador
Nos termos do artigo 104º do Estatuto da Ordem dos Advogados, a responsabilidade é limitada ao montante do seguro. de serviços de pagamento do ordenante, nos esforços razoáveis orientados para a recuperação dos fundos envolvidos na operação de pagamento (art.º 129.º, nºs 1 a 3).
17. As regras relativas aos serviços de pagamento obrigam, pois, a indicar o IBAN, sendo que a indicação do beneficiário é para efeitos de controlo do branqueamento de capitais, não se obrigando o Banco a confirmar se o IBAN pertence à entidade indicada como “beneficiário”.
18. De acordo com o referido artigo 129.º do Decreto-lei n.º 91/2018, estabelece-se uma regra da irresponsabilidade do prestador de serviço de pagamento que executada a ordem de pagamento de harmonia com o identificador único que lhe foi fornecido.
19. A responsabilidade do prestador de serviços (banco) de pagamento circunscreve-se à execução correcta da operação de pagamento, de harmonia com o identificador único fornecido pelo utilizador.
20. O Banco deve usar da diligência devida para verificar a coerência intrínseca do identificador único (IBAN) e só no caso de este se revelar intrinsecamente te incoerente (designadamente por i IBAN em causa não existir de todo ou o código de verificação que corresponde aos últimos dois dígitos não estar correcto) é que deve recusar a execução da ordem de pagamento.
21. Considerado o meio utilizado para a execução do serviço de pagamento – meios electrónicos automatizados assentes estruturalmente num identificador único que deve ser fornecido pelo utilizador de serviços de pagamento para identificar inequivocamente outro utilizador desse serviço ou a respetiva conta de pagamento - não é exigível ao banco que proceda à verificação manual da ordem de pagamento, único meio adequado à detecção da discrepância da identidade do beneficiário da transferência e da identidade do titular da conta de destino.
22. Por outras palavras, o Banco interveniente não está vinculado a outros deveres de diligência que não o da verificação da indicação do identificador único – no caso, do IBAN - o que explica que tanto o banco do ordenador como o banco intermediário não se possam aperceber da discrepância entre o IBAN e o beneficiário.
23. A tutela do interesse privado dos utilizadores do sistema internacional de pagamentos não figura entre os fins das normas do REGULAMENTO (UE) 2015/847 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, da Lei n.º83/2017, e do Aviso do Banco de Portugal n.º 2/2018, que visam a proteção do sistema financeiro através da prevenção, detecção e investigação do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, pelo que não se pode extrair da mesma a obrigação de o Banco ordenante confirmar se o beneficiário coincidia com o titular do IBAN.
24. Não sendo, portanto, aplicáveis ao caso, no que respeita à identificação do beneficiário, a norma do n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil, os artigos 4.º, 7.º do REGULAMENTO (UE) 2015/847 do PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 20 de maio de 2015, os artigos 11.º, n.º1, al. b), 23.º n.º 1, 24.º n.º 1 b), 26.º n.º1 da Lei n.º 83/2017, e o artigo 4.º do Aviso Bando de Portugal n.º 2/2018.
25. A Autora vem sustentar que não é verdade que tenha autorizado a transferência para a conta em causa invocando o artigo 113.º do diploma, uma vez que a ordem era no sentido de transferir para uma conta titulada pela A... S.R.L.
26. Sucede que o que se passou na verdade foi um erro na formação da vontade da Autora totalmente alheio ao Banco Réu: a Autora expressou correctamente a sua vontade de transferir aquele valor para aquele IBAN, não sendo possível ao Banco aferir que tal vontade foi determinada por uma fraude/burla.
27. As normas citadas pela Autora não se destinam a obrigar o Banco ordenante a confirmar a correspondência do beneficiário com o IBAN.
28. Portanto, nenhuma das normas que a Autora invoca são aplicáveis ao caso, não estando preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil, para que o Banco Réu possa responder pelo pedido em causa, desde logo o pressuposto da ilicitude.
29. A Autora reconhece que executou a operação e que a fez através da identificação do IBAN que estava convencida corresponder à referida sociedade com quem tinha relações comerciais.
30. Dos factos que a Autora alega pode concluir-se que a mesma, contrariando o que deva ser tido por elementares regras de procedimento de segurança, no acesso ao homebanking, e em particular o dever de verificar a origem do email que recebeu.
31. Dúvidas não restam, portanto, de que são totalmente infundadas as pretensões da Autora, não podendo ser merecedoras de procedência no âmbito dos presentes autos, não havendo comportamento ilícito por parte do Banco Réu: não decorre que a transferência tenha ocorrido por falha no sistema informático deste ou outro comportamento incorrecto ou negligente.
Termos em que deve o presente recurso ser julgamento improcedente, mantendo-se a decisão recorrida e assim se fazer inteira e sã
JUSTIÇA!
Contra-alegou também o Banco 1..., SA, concluindo:
I – Salvo o devido respeito que nos merecem a opinião e a ciência jurídica da Recorrente, afigura-se à Recorrida que o douto despacho saneador-sentença recorrido se deverá necessariamente manter, na íntegra, na medida em que não violou qualquer princípio jurídico ou preceito legal, antes se afigurando justa e rigorosa.
II – Em primeiro lugar, não assiste razão à Recorrente quando alega que a decisão recorrida padece de nulidade porquanto o Tribunal a quo proferiu, imediatamente a seguir aos articulados, decisão de mérito, julgando pela total improcedência da ação, sem convocação da necessária audiência prévia e sem facultar às partes a prévia pronúncia sobre as questões em que fundou a sua decisão, em violação do disposto no artº. 591.º, n.º 1, al. b) do CPC.
III – Ora, é que a própria lei processual admite que a audiência prévia se possa não realizar, desde logo nos casos em que não é permitida, mas também nos casos em que possa ser dispensada.
IV – Possibilidade esta última que, como se sabe, é inspirada pelo sentido dos princípios da gestão processual e da adequação formal, sendo por isso fundamental que, ao dispensar a realização de audiência prévia, o juiz assegure quer a realização daquelas finalidades a que tal momento processual se dirige, quer a concretização material dos interesses que norteiam estes princípios jurídico-processuais.
V – Ora, no caso, e ao contrário do quer indiciar a Recorrente, o Tribunal cumpriu com ambas as exigências, ao ter proferido despacho a 2023.03.14 pelo qual convidou as partes a, no prazo de 20 dias, se pronunciarem quanto a exceções, com isso dando cumprimento ao disposto nos artºs. 3.º, n.º 3, 6.º e 547.º do CPC.
VI – No caso concreto, o Tribunal a quo, através do despacho de 2023.03.14 (ref.ª 91511504), não só propôs às Partes a adequação formal da tramitação processual – à qual nenhuma das Partes se opôs –, como concedeu às Partes oportunidade processual para se pronunciarem sobre a matéria de exceção, contraditório esse que a Recorrente amplamente exerceu no seu requerimento a 2023.04.17 (ref.ª 8717905), em que tomou posição sobre os pontos endereçados pelo despacho.
VII – Sublinha-se também que o Tribunal a quo fundou a decisão de improcedência total da ação na não verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, desde logo, o facto ilícito, matéria amplamente discutida por todas as Partes nos respetivos articulados e requerimentos.
VIII – Mais acresce que a nulidade em apreço, tal como arguida pela Recorrente, configura nulidade processual (cfr. artº. 195.º do CPC), e não nulidade da decisão (cfr. artº. 617.º do CPC), pelo que a sua arguição se rege pelo disposto no artº. 199.º do CPC.
IX – Apenas as nulidades da sentença previstas no artº. 615.º, do CPC, são arguidas em recurso, sendo este admissível, e no prazo legal para interposição do mesmo, sendo que a nulidade processual invocada pela Recorrente enquadra-se na situação prevista no artº. 195.º, n.º 1, do do CPC– omissão de atos ou formalidades que a lei prescreva – e rege-se pelo disposto no artº. 199.º, n.º 1, do CPC, pelo que deveria ter sido arguida no prazo de 10 dias a contar da data em que a Recorrente foi notificada da sentença recorrida – data que a Recorrente tomou conhecimento da nulidade que invoca ou dela podia ter tomado conhecimento caso tivesse agido com a diligência devida – e perante o Tribunal a quo, o que não sucedeu.
X – Assim, a nulidade invocada pela Recorrente sempre teria ficado sanada por decorrido o prazo para a respetiva arguição, estando, por conseguinte, vedado à Recorrente vir agora, como pretende, em sede de recurso da decisão recorrida arguir tal nulidade e pretender vê-la aqui apreciada.
XI – Tudo o que obsta inequivocamente à procedência do recurso quanto a tal ponto.
XII – Em segundo lugar, também não tem razão a Recorrente quando sustenta que a decisão recorrida viola também o disposto no artº. 3.º, n.º 3, do CPC, consubstanciando uma decisão-surpresa.
XIII – Sucede, porém, que, o douto Tribunal a quo, e bem, de facto concedeu às partes a oportunidade de se pronunciarem cabalmente quanto à matéria que veio considerar suficiente para decidir do mérito da causa, e especificamente a Recorrente tomou posição sobre todas as questões de facto e de direito com base nas
quais a sentença recorrida julgou totalmente improcedente a ação.
XIV – A proibição das decisões-surpresa surge como corolário fundamental do princípio do contraditório – assegurando que as partes tenham a possibilidade de, a bem da boa decisão da causa, se pronunciarem e tomarem posição quanto à matéria que a fundamenta – e não existe isolado ou acima do confronto com outras normas ou princípios processualmente relevantes, como o princípio da celeridade processual.
XV – Com efeito, a concordância prática que se deve procurar alcançar diversos princípios processuais apenas nos pode levar a concluir que bem andou o Tribunal a quo ao proferir a decisão recorrida, depois de auscultadas as partes nos termos em que entendeu convidá-las a pronunciar-se.
XVI – Pois que resulta claro da decisão que, antes de proferida a decisão, as Partes haviam tomado posição em relação a todos os elementos factuais e jurídicos fundamentais tidos em conta pela sentença recorrida, designadamente ótica das várias soluções de direito equacionáveis, o que, aliás, vem afirmado na própria decisão, sublinhando a sentença que, quanto à prova, aquela que pudesse ainda vir a ser produzida, mesmo que permitindo dar como provados toda a demais matéria alegada pela Autora e aqui Recorrente, não prejudicaria o sentido da decisão que veio a ser tomada, considerando assim desnecessárias outras diligências de tal natureza, ou qualquer oportunidade – sempre complementar – de as partes se pronunciarem quanto à mesma.
XVII – Em face do debate exaustivo de todas as questões de facto e de direito relevantes para a decisão da causa pelas Partes em momento prévio à decisão recorrida, mostrando-se intocado o direito ao contraditório das Partes, por um lado, e atendendo ao não menos princípio de celeridade processual, bem andou o Tribunal a quo, pelo que sempre haveria de se concluir pela inexistência da invocada nulidade.
XVIII – De todo em todo, dá-se também aqui por reproduzido tudo quanto foi dito supra a propósito da nulidade pela Recorrente com fundamento na violação do disposto no artº. 591.º, n.º 1, al. b), do CPC, agora relativamente à extemporaneidade da arguição da nulidade da sentença recorrida com fundamento na proibição de decisões surpresa, bem como à circunstância de não ser o recurso de apelação o meio próprio para a sua arguição.
XIX – Em terceiro lugar, não colhe a alegada violação pela sentença recorrida do disposto no artº. 607.º, n.º 4, do CPC, que vem invocada pela Recorrente pelo facto de o Tribunal a quo não ter identificado os factos que considerou não provados, mas tão só os que deu como provados.
XX – Com efeito, o Tribunal a quo entendeu, de modo inteiramente correto e suficientemente fundado, que face aos factos provados, e independentemente de se vir a dar como provada a restante matéria alegada pela Autora e aqui Recorrente, que estava munido de suficientes elementos para decidir do mérito da causa.
XXI – Os factos assim apreciados, tal como bem considerou o douto Tribunal a quo, são na verdade absolutamente suficientes para decidir do mérito da causa, à luz das disposições normativas aplicadas – mormente, as do Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Eletrónica (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 91/2018, de 12 de novembro), bem como da Lei do Combate ao Branqueamento de Capitais e Financiamento do Terrorismo (Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto), o disposto no Aviso n.º 2/2028, de 2018.09.26 do Banco de Portugal, e ainda no Regulamento (UE) 2015/847 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015).
XXII – Tendo, no que à aqui Recorrida diz respeito, o Tribunal a quo corretamente apreciado, com base naqueles factos e nestas disposições normativas, que nada podia ou devia a mesma fazer relativamente à concretização da transferência bancária, que de resto opera automaticamente.
XXIII – Tais considerações, como se vê, sustentam-se inequivocamente nos factos considerados provados, e a alcançada pelo Tribunal recorrido nunca poderia ser, em qualquer cenário, contrariada pela prova de outros factos.
XXIV – Assim sendo, bem esteve o Tribunal a quo, homenageando o interesse na eficiência processual e na boa decisão da causa, bem como cumprindo os demais princípios jurídico-processuais e normas pertinentes, ao decidir com base na suficiência dos factos que considerou provados, irrelevando os demais, por não poderem comportar qualquer conclusão diversa daquela a que o Tribunal chegou.
XXV – O Tribunal, com efeito, ponderou corretamente que, à luz dos referidos factos e mesmo que outros fossem dados como provados, a solução jurídica do caso era – como cremos que é – unívoca, no sentido de não ser a aqui Recorrida responsável, a qualquer título, pelos factos que a Recorrente lhe imputa.
XXVI – Deste modo, a alegada persistência de controvérsia quanto aos factos a que alude a Recorrente não prejudicaria que a solução plausível sempre se manteria única, pelo que, provada a matéria de facto relevante por confissão e/ou documento, como bem destacou o Tribunal a quo, nenhuma nulidade decisória se pode identificar no caso.
XXVII – Acresce que, como resulta do disposto no artº. 607.º, do CPC, ao contrário do que a Recorrente defende, o Juiz não está obrigado a especificar, na sentença, nomeadamente aqueles que não têm o mínimo interesse para a discussão da causa por não serem essenciais para a decisão a proferir sobre o pedido, a causa de pedir ou exceção invocada pelas partes.
XXVIII – Ora, como acima se disse e a sentença recorrida expressamente refere, concluindo, e bem, o Tribunal a quo que os Recorridos não estavam obrigados a atuar de forma diferente, nenhum outro facto carecia de ser apurado para a prolação da decisão.
XXIX – Em quarto lugar, a Recorrente argui que a decisão em causa é nula por violação do disposto no artº. 617.º, n.º 1, alíneas b) e c), do CPC, atenta a sua intangibilidade e obscuridade, especificamente quanto à matéria de fundamentação (a seu ver insuficiente) relativa às concretas diligências expendidas pelas Rés para recuperação do valor que alega ter sido transferido.
XXX – Todavia, nenhuma razão lhe assiste quanto a tal argumento, posto que, a decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes, o que não é o caso.
XXXI – Na verdade, a decisão recorrida tem o particular mérito de mostrar, com total clareza, a irrelevância da demais factualidade alegada para além dos factos que foram dados como provados na sentença para o sentido da decisão, tendo em conta o sentido inequívoco do regime aplicável ao caso.
XXXII – Mais é possível, sem qualquer dificuldade de interpretação ou raciocínio, perceber como e por que motivos o Tribunal a quo conclui que a Recorrida nunca poderia ser condenada com base na violação das normas jurídicas convocadas (especificamente, os seus índole e escopo), porquanto, nos termos em que a Autora e aqui Recorrente peticiona, seria de todo em todo impossível preencher os pressupostos de que depende a responsabilização da Recorrida – designadamente o pressuposto atinente ao facto ilícito –, independentemente de quaisquer diligências que tenham ou não tenham sido expendidas pelas Rés, o que por si basta para aferir da inconsequência da prova da referida matéria!
XXXIII – Em quinto lugar, e ainda por referência ao mesmo artº. 615.º, n.º 1, al. c) do CPC, a Recorrente defende que se verifica oposição entre a decisão e a sua fundamentação, porquanto, na sentença recorrida, o Tribunal a quo refere que a responsabilidade em jogo sempre resultaria excluída ou diminuída por virtude da culpa daquela, mas, mais uma vez, sem razão.
XXXIV – A Recorrente manifestamente distorce o raciocínio lógico-dedutivo trilhado pelo Tribunal a quo e que não merece qualquer censura.
XXXV – É inequívoco que na sentença recorrida o Tribunal a quo sempre ressalva inexistir, em todo o caso, qualquer responsabilidade, à luz dos factos provados, assim se devendo ter presente que não formula este raciocínio a título subsidiário.
XXXVI – O Tribunal a quo nada apurou, nem tinha de apurar, quanto à hipotética questão da redução ou exclusão da culpa simplesmente porque essa questão ficou prejudicada pela conclusão pela não verificação do primeiro dos pressupostos de que dependeria a obrigação de indemnização das Rés: o facto ilícito.
XXXVII – É manifestamente falso que o Tribunal a quo tenha perspetivado a existência de culpa ou obrigação de indemnizar das Rés, pois que se não há facto ilícito – como concluiu, e bem, o Tribunal recorrido –, não há que apurar a culpa ou a medidas das culpas.
XXXVIII – Finalmente, a Recorrente defende que o Tribunal a quo terá procedido a uma errada interpretação das várias normas de direito nacional, espanhol e comunitário aplicáveis, ao delas ter extraído a conclusão de que não poderiam as Recorridas ser objetiva ou subjetivamente responsabilizadas pelo prejuízo que alega.
XXXIX – Centra-se a Recorrente, nesse esforço, no facto de os diplomas em apreço – mormente, o RJSPME e a Diretiva comunitária que transpôs (Diretiva (UE) 2015/2366 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015), bem como, especificamente, o Decreto-Ley 19/2018, de 23 de noviembre, diploma espanhol que a transpôs para o respetivo ordenamento jurídico – terem como objetivo o de, “além do mais, proteger os utilizadores das plataformas de “Homebanking” no que respeita ao cada vez maior risco de ocorrência de fraude informática em tais plataformas”.
XL – Sucede que, no caso concreto, de acordo com os factos alegados pela Recorrente na petição inicial, não está sequer em causa a ocorrência de qualquer fraude informática na plataforma de “Homebanking” utilizada para a realização da transferência em causa, a qual a ter acontecido, se verificou mediante a ingerência de terceiros nas comunicações eletrónicas trocadas entre a Recorrente e o seu fornecedor, situação à qual as Recorridas são totalmente alheias e que cai fora do âmbito dos diplomas legais que a Recorrente invoca.
XLI – Por outro lado, não tem qualquer acolhimento nessa legislação a pretensão da Recorrente de ver na referida tutela um mecanismo de responsabilização das Recorridas.
XLII – A interpretação feita pelo Tribunal a quo dos preceitos pertinentes, no que à Recorrida diz respeito, é inteiramente acertada e válida, porquanto endereça, destacando e reproduzindo tais preceitos na íntegra, duas evidências fundamentais: a correta execução da transferência, atenta a inexistência (e impossibilidade de observância) de qualquer obrigação de verificação de coincidência entre a identificação do titular da conta do beneficiário e a identidade do beneficiário indicada pelo ordenante, bem como a irrevogabilidade e irreversibilidade da transferência corretamente realizada; e, mais importante, a inexistência de qualquer direito indemnizatório fundado na violação de normas atinentes ao sistema de pagamentos eletrónicos e/ou à prevenção de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo.
XLIII – Com efeito, a transferência em discussão foi ordenada com os dados IBAN indicados pela Recorrente, após a verificação relevante da existência e plausibilidade do identificador único estabelecido, observando o disposto no artº. 59.º do já aludido Decreto-Ley 19/2018, de 23 de noviembre.
XLIV – Mais releva que, em geral, as transferências constituem ordens de pagamento irreversíveis e irrevogáveis, pondo-se que, uma vez executadas, e atento o interesse da segurança das transações, não podem ser revertidas sem o consentimento do beneficiário, para o que o artº. 52.º, n.º 1 do Decreto-Ley 19/2018, prevê um utilizador de serviços de pagamento não pode revogar uma ordem de pagamento assim seja esta recebida pelo prestador de serviços de pagamento, pelo que a irrevogabilidade da ordem de pagamento é princípio fundamental em matéria de serviços de pagamento no ordenamento espanhol.
XLV – Por sua vez, a interpretação que a Recorrente forçadamente tenta extrair dos regimes jurídicos consagrados no RJSPME e do Regulamento Delegado (UE) 2018/389 da Comissão, respetivamente dos artºs. 104.º, n.º 2, e 5.º, n.º 1, alíneas a) e c), é manifestamente errada e sem a mínima correspondência com o texto e a ratio que lhes está subjacente.
XLVI – Com efeito, o que dali resulta é tão-só a necessidade de a autenticação forte do cliente para a realização de uma operação de pagamento conter a informação sobre o montante e o beneficiário da operação para que o cliente esteja consciente da concreta operação de pagamento que está a autorizar – dados esses que, no caso, foram introduzidos pela própria Recorrente –, e já não qualquer obrigação de as entidades bancárias controlarem a correspondência entre o IBAN e o beneficiário indicados pelo cliente na operação de pagamento.
XLVII – O que resulta à saciedade quer do facto de a autenticação forte do cliente se destinar a garantir que a ordem de pagamento é feita pelo titular da conta ordenante ou pessoa autorizada, quer do facto de a própria lei excluir expressamente qualquer responsabilidade das entidades bancárias pela eventual não correspondência entre o beneficiário inscrito pelo cliente e o beneficiário efetivo da transferência, titular da conta indicada na ordem de pagamento, sendo que, no caso concreto, como bem salienta a sentença recorrida, não está em causa a violação dos mecanismos de autenticação forte da Recorrente.
XLVIII – De tudo quanto se expôs tendo suficientemente ficado claro que a Recorrida, à luz dessas disposições e dentro da delimitação normativa a que estava sujeita e pela qual guiava – como guia ainda – a sua conduta, cumpriu escrupulosamente com as obrigações e deveres legais inerentes ao seu estatuto, aos quais se encontra adstrita.
XLIX – Por outro lado, o Tribunal a quo, e muito bem, decidiu pela improcedência da argumentação da Recorrente quanto à violação das normas de prevenção em apreço, porquanto aferiu da sua observância e concluiu pela inconsequência do seu cumprimento para a responsabilização da Recorrida, isto porque, como bem notou, o escopo político-legislativo das normas em questão é incompatível com o reconhecimento de qualquer direito indemnizatório da Recorrente, pelo que nunca poderia a Recorrida ser responsabilizada pelos prejuízos alegados.
L – Pois que, a existir, a alegada violação de normas relativas à prevenção de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo às quais a Recorrida estaria sujeita (por força da Ley 10/2010, de 28 de abril, de prevención del blanqueo de capitales y de la financiación del terrorismo, e bem assim da legislação em matéria de serviços de pagamento, nomeadamente aplicáveis por força do referido Decreto-Ley 19/2018), não consagra qualquer direito subjetivo nem constitui norma de proteção, pressupostos absolutamente indispensáveis à afirmação da responsabilidade civil que a Recorrente pretendia efetivar com a ação (cfr. artº. 483.º do Código Civil).
LI – Donde, a Recorrente nunca poderia sustentar o seu alegado direito indemnizatório na violação das ditas normas.
LII – Com efeito, sendo os direitos subjetivos cuja violação gera a obrigação de indemnizar direitos subjetivos proprio sensu, que tipicamente correspondem a direitos absolutos, facilmente se conclui inexistir a previsão de um tal direito na esfera jurídica da Recorrente.
LIII – Porém, mais relevantemente, mesmo hipotetizando a violação das referidas normas, não teria sido violada qualquer norma de proteção, assim indispensável à imputação objetiva de responsabilidade à Recorrida.
LIV – Com efeito, configura uma norma de proteção a que, embora protegendo interesses particulares, não confere aos respetivos titulares um direito subjetivo a essa tutela, ou que, tendo também em vista a proteção de interesses coletivos, atende ainda a interesses particulares subjacentes.
LV – Ora, as normas invocadas pela Recorrente, previstas, no ordenamento jurídico espanhol na Ley 10/2010 e, homonimamente, no ordenamento português através da Lei n.º 83/2017, em ambos os casos em transposição das diretivas comunitárias promulgadas em matéria de prevenção do branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, visam a prevenção da utilização do sistema financeiro e de determinadas atividades e profissões para a prática desses crimes.
LVI – O que se pretende com tais normas é, nessa medida, a tutela de interesses coletivos (i.e., no caso, a proteção do sistema financeiro e a prevenção da prática daqueles crimes), e não por qualquer forma a tutela de interesses particulares, designadamente dos utilizadores do sistema bancário.
LVII – De facto, não basta que a tutela de eventuais interesses privados seja um mero reflexo da proteção dos interesses coletivos, exigindo-se de igual modo que a norma vise, também, a tutela, em concreto, desses interesses privados.
LVIII – O que claramente não sucede quanto às normas em apreço, o que o Tribunal a quo, de modo inteiramente válido, plausível, sustentado e claro ofereceu na decisão em crise, com apoio na significativa e recente jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores.
LIX – Donde, outra interpretação e, a final, decisão não poderiam ter sido adotadas pelo Tribunal recorrido, quando corretamente perfilha um entendimento doutrinalmente suportado e jurisprudencialmente consolidado no nosso ordenamento jurídico, e dirigindo-se a conceitos de que o ordenamento espanhol, ao qual se sujeita e onde decorre a atividade da Recorrente, comunga em absoluto.
LX – A decisão recorrida é, por tudo isto, totalmente acertada e oportuna, não merecendo qualquer censura a interpretação e aplicação do direito ao caso a que procede, como não merece, aliás, crítica em qualquer outra dimensão.
LXI – Razões pelas quais se haverá de necessariamente concluir que a decisão do douto Tribunal a quo não violou qualquer norma ou princípio jurídico aplicável, designadamente os invocados pela Recorrente nas suas alegações de recurso, cumprindo inevitavelmente improceder o recurso, e manter-se a decisão recorrida.
Assim decidindo, V. Exas. farão, como sempre, inteira e sã
JUSTIÇA!
*
Os factos provados fixados na sentença recorrida.
1. A A. é uma sociedade unipessoal por quotas cujo objecto é o “Comércio e indústria por grosso e a retalho de embalagens e mobiliário.
Transformação e fabrico de embalagens. Comércio por grosso de máquinas, equipamento industrial e ferramentas. Comércio a retalho por correspondência ou via internet. Comércio a retalho de vestuário para adultos, em estabelecimentos especializados. Comércio a retalho de calçado, em estabelecimentos especializados. Comércio a retalho de outros produtos novos, em estabelecimentos especializados”, conforme Doc. 1 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
2. O R. “Banco 1..., S.A.” é uma sociedade de direito espanhol dedicada à prática bancária e autorizada a operar na União, conforme Docs. 2 e 3 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, prestando serviços inerentes à actividade bancária, designadamente, de abertura de conta, movimentação, ordenação e recepção de transferências bancárias nas ditas contas abertas e tituladas pelos respectivos clientes, detendo ainda uma participação no R. “Banco 1..., S.A.”.
3. O R. “Banco 1..., S.A.” é uma sociedade anónima constituída e regida à luz do Direito português cujo objecto é “1.-Exercício da actividade bancária, recebendo depósitos ou outros fundos reembolsáveis, concedendo crédito por sua própria conta e praticando toda a universalidade das operações e actos de prestação de serviços permitidos por lei aos Bancos; 2.-No âmbito da sua actividade de crédito predial, a sociedade exerce funções de intervenção especializada no fomento à construção civil e obras públicas, no crédito à habitação e restantes operações imobiliárias”, conforme documento 4 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
4. No exercício da sua actividade, a A. celebrou com o R. Banco 1..., S.A.” um contrato de abertura de conta, onde balizaram a relação jurídica bancária, nomeadamente, quanto a depósitos bancários, movimentação de fundos depositados na conta em causa, emissão de ordem de pagamentos e outros serviços associados, designadamente de homebanking, podendo a A. ordenar uma transferência de fundos para um destinatário através da sua conta à ordem n.º ... e IBAN ..., conforme documentos juntos a 27/11/2022 (contrato de abertura de conta, ficha de assinaturas e contrato de subscrição de serviço de netbanco), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
5. A A. recebeu um e-mail com a indicação de um IBAN (...), domiciliado no 2º R. Banco 1..., SA., para onde realizou a transferência da quantia de € 77.427,02, através do sistema Homebanking, conforme documentos 7, 8, 9 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
6. A A. apresentou queixa-crime em relação ao dito e-mail, por suspeitas de crime, com indicação de IBAN que não correspondia ao cliente da A., A..., SRL, conforme documento 10 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
7. Após comunicação com o 1º R. e informação do sucedido, com averiguações subsequentes dos RR., a 31/01/2022 o 1º R. informou a A. que tinha recebido informações do 2º R. de que a aludida conta já não possuía quaisquer fundos, não sendo possível a reversão da transferência, conforme documento 11 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
8. O sistema bancário electrónico usado pelos RR. não faz a correspondência entre o IBAN da conta destinatária e o teor do campo do beneficiário da operação.
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O recurso.
O recurso delimita-se pelas conclusões das alegações (artigos 635.º, n.º 3 e 640º n.ºs 1 e 3 do CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608º, nº 2, in fine), em tudo o mais transitando em julgado.
Delimitado o objeto de recurso pelas conclusões das alegações a autora apelante coloca as seguintes questões:
1.Nulidade processual por omissão de audiência prévia;
2.Violação do princípio da decisão surpresa previsto no artº 3º, nº 3 do CPC.
3. Saber se as Rés devem ser condenadas a pagar à Autora as quantias peticionadas.
Perante um contrato de abertura de crédito celebrado entre as Rés e a Autora, no âmbito das respetivas atividades comerciais, e inerente contrato de homebacking (pagamentos por meios eletrónicos), a autora realizou um pagamento por transferência eletrónica para sociedade diversa da sua cliente em consequência de email que recebeu com IBAN convencida que era do Banco 1..., quando não tinha esta proveniência, ou seja, induzida fraudulentamente em erro.
A autora entende que se verificam os requisitos da responsabilidade civil, porquanto entende que o banco tem o dever de controlar as transferências, sendo certo que não existia correspondência entre o IBAM com a sua cliente, atuando com negligência, materializado no dever de cuidado que lhe é imposto, e que o processo devia prosseguir uma vez que existe matéria controvertida.
Estamos perante uma operação fraudulenta/burla informática.
Comecemos por este último ponto.
Como introdução vamos citar o STJ sobre esta matéria no acórdão proferido no dia 23/01/2024, in dgsi.pt.
“Entramos aqui no chamado home banking (Banco internético, e-banking, banco online, online banking, às vezes também banco virtual, banco eletrónico), concretizado pela possibilidade conferida pela entidade bancária aos seus clientes, mediante a aceitação de determinados condicionalismos, a utilizar toda uma panóplia de operações bancárias, on line, relativamente às contas de que sejam titulares, utilizando para o efeito canais telemáticos que conjugam os meios informáticos com os meios de comunicação à distância (canais de telecomunicação), por meio de uma página segura do banco, que se reveste de grande utilidade, especialmente para utilizar os serviços do banco fora do horário de atendimento ou de qualquer lugar onde haja acesso à Internet.
Através deste serviço que os bancos põem à disposição dos seus clientes, estes podem efetuar, além do mais, consultas de saldos, pagamentos de serviços/compras, carregamentos de telemóveis, transferências de valores depositados para contas próprias ou de terceiros, para a mesma ou para diversa instituição de crédito.
O progresso tecnológico dos últimos anos, veio revolucionar todo o comércio jurídico, nomeadamente a nível das relações bancárias, pois começamos com a emissão de cartões, de crédito e de débito, sendo que com estes se podem realizar uma infinidade de operações utilizando-se para o efeito os terminais de caixa automática, vulgo ATM e podemos agora, através dos sistemas de homebanking, aceder a uma variedade de operações bancárias, on line, utilizando para o efeito um computador pessoal.
Para o efeito os bancos fornecem aos seus clientes senhas de acesso pessoais, bem como cartões matriz constituídos por uma infinidade de composições numéricas, que normalmente são solicitadas no final de cada operação efetuada por meios telemáticos e por forma a autenticá-la, já que esse cartão matriz deverá apenas ser do conhecimento do cliente, único a poder utilizá-lo, não lhe sendo permitido fornecer nenhum dos dados nele insertos a terceiros, uma vez que, quer o protocolo da página bancária, quer o tráfego de toda a informação nela processada, o que inclui as sobreditas senhas de acesso, são encriptadas, tornando quase impossível um terceiro obter ou alterar a informação depois de enviada.
Apenas o prestador do serviço pode assegurar a operacionalidade do complexo sistema informático utilizado e a regularidade do seu funcionamento, garantindo, também, a confidencialidade dos dispositivos de segurança que permitem aceder ao instrumento de pagamento.
Por esta razão, recai sobre o banco prestador do serviço o risco das falhas e do deficiente funcionamento do sistema, impendendo ainda sobre o mesmo o ónus da prova de que a operação de pagamento não foi afetada por avaria técnica ou qualquer outra deficiência.”
O homebanking está regulamentado no Dec. Lei 91/2018, de 21/11 que consagra o RJSPME
O “homebanking” mais não é do que o contrato celebrado entre uma pessoa e um banco em que o cliente adere a um serviço prestado por, e, em que este mantém relações via internet, como meio de aceder a informações sobre produtos e serviços do banco; obter informações e realizar operações bancárias sobre contas de que o cliente é titular e, realizar pagamentos, cobranças e operações de compra, venda, subscrição ou resgate sobre produtos ou serviços disponibilizados pelo banco (ver acórdão supra citado).
O banco, prestador do serviço de pagamento, assume a operacionalidade do complexo sistema informático utilizado e a regularidade do seu funcionamento, avalizando, a confidencialidade dos dispositivos de segurança que permitem aceder a este instrumento de pagamento.
Assim sendo, incide sobre o banco prestador do serviço o risco das falhas e do deficiente fundamento do sistema competindo-lhe ainda o ónus da prova de que a operação de pagamento não foi afetada por avaria técnica ou qualquer outra deficiência.
O cliente utilizador do serviço de pagamento tem ao seu dispor um conjunto de dispositivos de segurança, como o código de acesso, cartão matriz, entre outros, que lhe permitem aceder ao serviço em causa.
Estes elementos têm a função de autenticação e identificação, e, por isso, o utilizador deve tomar as devidas cautelas para preservar a eficácia desses dispositivos.
A sentença recorrida sustentou que perante os factos provados, a operação fraudulenta não é imputável ao banco por inexistir qualquer facto ilícito, visto que, a autora ordenante da transferência em causa indicou o IBAN (International Bank Account Number) (induzido por fraude por alegada burla informática), e o pagamento foi feito na conta correspondente a esse IBAN, embora pertencente a pessoa diferente do beneficiário. Ou seja, a autora autorizou a transferência, tendo a mesma sido realizada para o IBAN correspondente. Segundo a sentença recorrida, o banco não tem de realizar qualquer outro controle, sendo antes um cuidado da autora ordenante da transferência.
A conduta da qual resultou um dano é imputável a terceiros e não ao banco.
Entende que não se encontra violado o disposto nos artigos 87º,3º, 104º, 113º,114º, 129º, 104º do referido Dec. Lei.
Vejamos.
Para a execução do serviço de pagamento são utilizados meios electrónicos automatizados assentes estruturalmente num identificador único que é fornecido pelo utilizador de serviços de pagamento para identificar inequivocamente outro utilizador desse serviço ou a respetiva conta de pagamento, não são exigíveis às instituições bancárias intervenientes na transferência de fundos, outros deveres de diligência de cuidado que não os referidos à verificação da coerência intrínseca do identificador único indicado pelo ordenador, não lhes sendo exigível designadamente que procedam à verificação manual da regularidade da ordem de pagamento, único modo de detectar a discrepância entre a identidade do detentor da conta de destino e a do beneficiário da transferência, resultante do identificador único;
Se o erro na indicação da conta de pagamento foi dolosamente causado por terceiros desconhecidos que acederam, ilicitamente aos sistemas informáticos, da ordenante da transferência ou de beneficiária, deve considerar-se que foram esses terceiros que criaram o perigo que se concretizou no resultado danoso e, portanto, que este resultado é objectivamente imputável à conduta daqueles, e não à das instituições bancárias intervenientes na operação de pagamento, que, de harmonia com o princípio da confiança, não tinham que contar com aquele erro, antes podiam confiar na correcção do identificador único e que este tinha sido o efectivamente indicado pelo ordenador – citamos o acórdão da Rel. Coimbra de 12-07-2022 in www.dgsi.pt, aliás citado também na decisão recorrida.
A apelante autora sustenta, além do mais, que existem factos controvertidos, em oposição com os factos que foram dados como assentes. Na contestação as Rés dizem que conseguiram recuperar parte da quantia transferida indevidamente – artigo 106º da contestação do Banco 1..., SA. Este facto por si só determina a produção de prova.
O juiz deve ter em atenção as várias questões plausíveis em direito, sendo que nos termos do art. 5º nº 3 do CPC, “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”.
A matéria de facto fixada é exígua existindo matéria controvertida a ter em consideração, pelo que assiste razão à apelante. O saneadora sentença é prematuro, o processo deve prosseguir, ficando desta forma prejudicado o conhecimento das nulidades invocadas.
Na procedência das alegações de recurso revoga-se a decisão recorrida, devendo o processo prosseguir com fixação da matéria de facto selecionando-se os assentes e os controvertidos, desde logo o artigo 106º da contestação do Banco 1..., SA, que está em contradição com o facto nº 7 da matéria assente.
Custas pela parte vencida a final- artº 527º do CPC
Sumário:
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Porto, 24/9/2024
Maria Eiró
Alberto Taveira
Lina Baptista