COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
DIREITOS SOCIAIS
Sumário

I - A competência em razão da matéria afere-se pelo pedido e causa de pedir apresentados pelo autor, segundo a versão deste.
II - A competência em razão da matéria tem razões de ordem publica na medida em que visa garantir que através da especialização do tribunal se efective uma melhor tutela dos interesses dos cidadãos e empresa, por forma a entregar cada causa ao tribunal com a “vocação natural” para essas matérias.
III - Direitos sociais no CSC, são o conjunto unitário de direitos atuais e potenciais do sócio.
IV - Numa acção intentada pela sociedade, em que se pretender obter uma indemnização pela conduta culposa e ilícita de gerentes no decurso do exercício dessas suas funções (de facto ou direito) estamos perante o exercício de direitos sociais e por isso, o tribunal competente, em razão da matéria, é o de comércio.

Texto Integral

Processo: 1094/23.6T8PVZ.P1


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Sumário:

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1. Relatório

“A... LDA.” intenta a presente acção declarativa de condenação contra AA, NIF ... e BB, e ainda CC e DD, pedindo que: devem os RR. ser solidariamente condenados a pagar à A., o montante de € 913.895,60 (novecentos e treze mil, oitocentos e noventa e cinco euros e sessenta cêntimos), decomposto nas seguintes parcelas: (i) Os danos provocados pelos desvios de faturação através da B...: 55.959,80 (cinquenta e cinco mil, novecentos e cinquenta e nove euros e oitenta cêntimos); (ii) Os danos decorrentes de cheques abusivamente emitidos a favor do 1. Réu: € 23.184,70 (vinte e três mil, cento e oitenta e quatro euros e setenta cêntimos); (iii). Os danos decorrentes de pagamento de horas extraordinárias: € 16.760,00 (dezasseis mil, setecentos e sessenta euros); (iv). Os danos decorrentes empréstimos não autorizados e o esquema do “IVA extra”: € 53.613,68 (cinquenta e três mil, seiscentos e treze euros e sessenta e oito cêntimos).

Na sua contestação os RR invocaram, além do mais a excepção dilatória de incompetência absoluta deste tribunal, defendendo que tal competência cabe aos Juízos de Comércio, posto que, visando a autora responsabilizá-los por danos causados no exercício de funções enquanto gerentes da Atora, está em causa o exercício de direitos sociais cuja competência material incumbe exclusivamente ao tribunais de comércio.

Foi proferido despacho que julgou verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria, e, em consequência, absolveu os réus da instância, porquanto se considerou que com a instauração dos presentes autos a aqui recorrente visou exercer um direito social (alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário).

Inconformada veio a ré recorrer, recurso esse que foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.


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2.1. A apelante apresentou uma peça com 41 páginas foi sintetizada/reproduzida nas seguintes conclusões:

A. O presente recurso vem interposto do despacho saneador-sentença proferido no dia 23 de fevereiro de 2024 (referência 457322557) que julgou verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, por falta de competência em razão da matéria, e, em consequência, absolveu os réus da instância.

B. Ao considerar que para julgar a ação social de responsabilidade, seja ela intentada pela sociedade, seja pelos sócios, a competência em razão da matéria cabe aos juízos de comércio, o tribunal recorrido violou, desde logo, o disposto nos artigos 64.º do Código de Processo Civil, 40.º, n.º 1 e 128.º, n.º 1, alínea c), da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

C. Contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo, o pedido deduzido pela autora, aqui recorrente, não visou o exercício de qualquer direito social, nem se subsume em qualquer das situações elencadas no n.º 1 e no n.º 2 do artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, que prevê taxativamente as matérias cujo julgamento está atribuído aos juízos de comércio, preceitos que, julgando como julgou, o tribunal a quo violou.

D. Os direitos sociais são os direitos exercidos pelos sócios, que se enquadram na relação entre a sociedade e os sócios e que visam assegurar os interesses destes, encontrando-se previstos nos artigos 21.º (“direitos dos sócios”) e 24.º (“direitos especiais”), ambos do Código das Sociedades Comerciais.

E. Bem analisada a letra da lei, a alínea c), do n.º do 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário induz ou impõe uma interpretação que na mesma congregue que todos os direitos dos sócios e da sociedade são direitos corporativos.

F. Não podemos classificar qualquer matéria como social.

G. O Colendo Supremo Tribunal de Justiça já decidiu – acertadamente – que, no que toca a ações de suspensão e anulação de deliberações sociais, a circunstância de o litígio ser uma ação que versa sobre aquela temática não basta, só por si, para decidir a competência a favor do tribunal de comércio, a qual é desencadeada apenas se o sujeito que tomou a deliberação é um comerciante ou, mais especificamente, uma sociedade comercial: como o Supremo Tribunal de Justiça considerou, só as deliberações tomadas por esses sujeitos, e não as de outras pessoas coletivas que não forem sociedades comerciais, desencadeiam a aplicação de preceitos mercantis (consagrando essa orientação, já na lei actual, cf. o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-01-2019, que, a propósito de uma suspensão de deliberações sociais, considerou que o tribunal de competência genérica apenas é competente se a sociedade for comercial (www.dgsi.pt, proc. 16694/18.8T8LSB.L1-2).

H. Como defende o Professor Doutor Filipe Cassiano dos Santos, “a circunstância de a decisão a proferir vir a produzir efeitos (também) na esfera da sociedade não é o critério da lei. Nem tão-pouco é, como veremos adiante com detalhe, critério para qualificar direitos como sociais - seria absurdo qualificar como social todo o direito que produz efeitos na esfera de uma sociedade. O critério legal é de indole objectiva, e não subjectiva ou merceológica”.

I. Ademais, é da letra da própria da lei que deflui um elemento adicional para a boa interpretação do artigo 128.º, n.º 1, alínea c), da Lei da Organização do Sistema Judiciário: a competência há de ser determinada pelo tipo de direito em causa (“social”), pelo que o critério não passa pelo litígio suscitar, ou não, a aplicação do direito societário.

J. O argumento não é despiciendo na medida em que, bem lido o preceito legal em questão, somos levados a concluir que os direitos sociais que a norma visa convocar são todos aqueles que, para o seu julgamento e decisão, convocam um quadro normativo específico de direito das sociedades comerciais (e já não do direito em geral, como é o caso do direito civil, mais concretamente o instituto da responsabilidade civil).

K. No caso dos autos, no qual três rés/recorridas são não sócias, somos forçados a concluir que a Decisão em crise foi para além do que aquilo que autorizava a letra da Lei

L. Ora, se a letra da Lei refere expressamente que tais direitos são “direitos de sócios”, não podem estes deixar de ser direitos que surgem da circunstância ou qualidade de se ser sócio, e não direitos que estão desligados dessa qualidade e da titularidade de qualquer participação social.

M. Por outro lado, entendemos, com apoio em relevante doutrina, que a expressão “exercício de direitos sociais” deve ser interpretada num sentido restritivo, segundo o qual os direitos exercidos são os chamados direitos sociais ou corporativos, e nesse sentido tratar-se-ão dos direitos sociais abstratos ou gerais (v.g. o direito ao lucro, o direito geral ou abstrato ao lucro, ou o direito de voto), os quais pertencem a todos o sócios e integram a participação social e que se caracterizam por, em regra, dependerem de uma atuação da sociedade (sendo que esse direito ao lucro não se traduz sequer num direito a receber).

N. E como se sabe há nas sociedades anónimas categorias de ações que não correspondem votos.

O. Ora, para além de os direitos sociais poderem ser concretos ou abstratos, vinca-se que estes direitos podem ter fonte legal ou contratual, pelo que a expressão “direitos sociais”, no sentido em que a alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário a toma, abrange sem dúvida estes direitos (é esse o sentido imediato da letra da lei).

P. É de rejeitar uma interpretação da alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário que reconduza a competência conferida por este preceito aos Tribunais de Comércio apenas aos atos societários, afigurando-se evidente que este critério subjetivo não tem correspondência no preceito legal.

Q. O sentido hermenêutico da expressão direitos dos sócios é um dos sentidos possíveis da letra da lei.

R. O objetivo da lei é reservar para os tribunais de comércio os litígios em que se mobilizam os preceitos mais radicalmente especiais do direito societário, sem que se descortine razão para distinguir em função do sujeito que é titular do direito.

S. Como tal, o legislador optou, na alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, pelo critério do direito exercido, com a consequência de, assim, ficar abrangido na competência dos tribunais de comércio apenas o contencioso societário que é delimitado em função do critério objetivo da natureza social do direito exercido (do mesmo modo, as demais alíneas do preceito que se aplicam especificamente a sociedades estão também longe de abarcar nessa competência todos os litígios em torno das sociedades).

T. A não se entender como propugna a recorrente, ampliar-se-ia, sem uma fronteira explícita, a noção de direitos sociais, alongando, com isso, a competência dos tribunais e juízos de comércio de modo desmesurado e contrário à lei.

U. Como se lê no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-06-2017: "revelar-se-ia contraproducente, ao menos na perspetiva da celeridade, a atribuição de uma competência que abarcasse todo e qualquer litígio que tivesse alguma relação com essas entidades comerciais".

V. Por fim, mas não menos importante, acolher o critério das “fronteiras fluídas” da decisão de mérito sempre seria um fator intolerável de introdução de incerteza e insegurança jurídica no nosso ordenamento jurídico e na perceção das partes quanto à determinação do Tribunal materialmente competente.

W. Aliás, como vem dito no já supra referenciado Aresto do Supremo Tribunal de Justiça de citado de 1-06-2017, "as normas adjectivas e as que respeitam à organização judiciária devem pautar-se pela clareza, de modo a evitar discussões em torno da simples identificação da secção do tribunal com competência especializada para a apreciação dos litígios" assim "para que esse objectivo não seja postergado, é necessário também que na interpretação das normas sobre a distribuição de competências não se extraiam delas soluções que não foram inequivocamente assumidas pelo legislador. É o legislador e não propriamente o intérprete ou o julgador que deve velar pela correcta distribuição das competências, devendo evitar-se interpretações de que resultem soluções que não foram inequivocamente assumidas".

X. Conceder demasiada amplitude à alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário acaba por esvaziar – quiçá colidir – com as demais alíneas do referido preceito legal, já que, se bem atentarmos, toda a vida societária mais não é do que o agir de direitos sociais da mais diversificada sorte.

Y. Tal como tem vindo a ser sufragado pelo Supremo Tribunal de Justiça, uma conexão indireta da lide com uma sociedade comercial não é bastante para se afirmar o “exercício de um direito social” na aceção do n.º 1 do artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, nem pela circunstância de o caso versar sobre um conflito entre um dos sócios-gerentes e outros sócios-gerentes de uma determinada sociedade comercial.

Z. Com a instauração da ação a recorrente pediu que aqui recorridos fossem solidariamente condenados no pagamento da quantia de € 913.895,60 (novecentos e treze mil, oitocentos e noventa e cinco euros e sessenta cêntimos) por prejuízos sofridos em razão da prática de factos ilícitos praticados pelos recorridos durante o período em que o primeiro recorrido, com a coadjuvação das terceira e quarta recorridas, foi gerente de facto da recorrente.

AA. Assim, o pedido subjacente ao caso sub iudice é a titularidade do direito a uma indemnização recorrente perante um anterior gerente de facto (primeiro recorrido) e as suas subordinadas à data dos factos (terceira e quarta recorridas) e não o direito de qualquer sócio.

BB. Pese embora apenas tenha sido formalmente afastado da atividade da recorrente no dia 14 de janeiro de 2021, por decisão proferida pela 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do processo n.º 5843/19.9T8VNG-A, que confirmou a prática de diversos comportamentos desleais e desonestos, o primeiro réu cessou as funções de gerente de direito da recorrente em 2015 (há oito anos), data a partir da qual, e até 5 de novembro de 2020, a gerência de direito foi atribuída às mulheres dos sócios (a aqui segunda recorrida e as senhoras EE e FF).

CC. Resulta da petição inicial, de forma cristalina, que o que está em causa é o direito da recorrente a haver uma prestação pecuniária de um gerente (e das suas coadjuvantes), no âmbito duma relação jurídica de indemnização.

DD. À luz do pedido formulado e atenta a interpretação predominantemente acolhida pelos nossos tribunais superiores da expressão "exercício de direitos sociais", in casu a competência é do tribunal de competência genérica, radicada na impossibilidade de subsumir os direitos que realmente estão configurados pela recorrente à previsão de qualquer das alíneas do n.º 1 do artigo 128." da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

EE. O Legislador, ao introduzir os tribunais de comércio, fê-lo com o inultrapassável objetivo de especialização, atendendo a critérios de eficácia e melhor aplicação do Direito no julgamento de determinadas matérias com verdadeiras especificidades não compatíveis com a competência residual.

FF. Neste conspecto colocam-se as especificidades, no que tange o direito comercial, de termos no nosso ordenamento jurídico, ainda hoje, um Código Comercial que remonta ao século XIX, mas essencialmente pela verdadeira dificuldade que suscitava o Direito das Sociedades Comerciais, com um corpo normativo diferenciado em face do direito civil, o que convocava a necessidade de especialização.

GG. Nesta esteira importa ter presente que o primeiro dos elementos pertinentes para a determinação do sentido da alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário e, mais precisamente, para o mais concreto entendimento do alcance da expressão "direitos sociais", consiste na ponderação do sentido geral que é dado à introdução de “tribunais de competência especializada” e, sobretudo, à sua reintrodução e ao alargamento de juízos ou tribunais de comércio, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFT), aprovada em 1999, para a Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), de 2013.

HH.Neste ponto socorrer-nos-emos do avisado entendimento do Colendo Supremo Tribunal de Justiça que, no seu Aresto datado de 05-07-201812, veio clarificar a interpretação do tema, o que fez no seguinte sentido: "a atual LOSJ foi orientada pelo obietivo de melhorar a administração da justiça quando os conflitos emergem de aspetos específicos do direito comercial ou do direito das sociedades comerciais”.

II. O legislador estabeleceu, pois, uma relação direta entre a delimitação da competência dos tribunais especializados e o sector da regulamentação cuja aplicação é suscitada pelo litígio.

JJ. O objetivo genérico da introdução de tribunais de comércio é o de os conflitos que suscitam a aplicação dos aspetos mais específicos do direito comercial, mas essencialmente do direito das sociedades, serem tramitados e julgados por tribunais especializados num determinado campo normativo, deveras específico.

KK. Não há nenhum diploma legal do qual se possa extrair a competência dos tribunais de comércio com base na prática de atos de comércio, quer do ponto de vista objetivo, quer subjetivo.

LL. Também neste mesmo sentido já decidiu esta Veneranda Relação do Porto, através de Acórdão datado de 14-07-2020: "não se estende a todas as questões que objectiva ou subiectivamente tenham natureza comercial, sendo restrita àquelas que, no prudente critério do legislador, mais justificavam a separação da esfera de competência residual atribuída aos Juízos (Locais) Cíveis”.

MM. A mens legislatoris foi atribuir aos tribunais de comércio as questões que, de forma mais direta, estejam relacionadas com a vida das sociedades comerciais, designadamente todas aquelas matérias que estão especialmente reguladas no Código das Sociedades Comerciais ou em diplomas especiais de cariz mercantil, o que vale por dizer, matérias que suscitam a aplicação de algumas das normas especiais do direito societário.

81) Não estão abrangidos todos os litígios relativos a sociedades comerciais, nem, sequer, todos os litígios em torno do direito societário (outrossim, apenas aquelas questões a dirimir que convoquem a aplicação das normas do direito societário mais radical ou patentemente especiais, de tal sorte que se afastam do direito comum, rectius, o direito civil).

NN. O pedido da recorrente jamais pode ser confundido com o exercício de um direito social, sendo totalmente alheio à condição de sócio do primeiro recorrido tratando-se, ao invés, de uma ação que tem como causa de pedir a prática de factos consubstanciadores de responsabilidade civil extracontratual, configurando-se como uma típica ação de indemnização com suporte legal nos artigos 483.º e 483.º e 562.° a 572.°, todos do Código Civil.

OO. O direito que a instauração dos presentes autos visou exercer assume a natureza de direito de crédito, não emergindo da qualidade de sócio do primeiro recorrido, nem de qualquer disposição do pacto social da recorrente.

PP. O artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, que tem caráter taxativo e não admite interpretação extensiva, não atribui aos juízos de comércio a competência para julgar todas as ações relacionadas com as sociedades comerciais.

QQ. Se tivesse sido intenção do legislador atribuir a competência aos juízos de comércio para julgar qualquer causa que versasse sobre direito das sociedades, nomeadamente em que fosse de aplicar o Código das Sociedades Comerciais, o legislador tê-lo-ia dito expressamente, o que não fez.

RR. Assim, alargando a competência dos juízos de comércio, em contravenção ao disposto no artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, o tribunal a quo violou o disposto nos números 2 e 3 do artigo 9.º do Código Civil, de acordo com os quais o intérprete não pode considerar o pensamento legislativo que não tenha na lei um mínimo de correspondência verbal, devendo presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

SS. O julgamento dos presentes autos, versando sobre factualidade preenchedora dos pressupostos de responsabilidade civil dos réus e do consequente direito de indemnização da autora, não requer conhecimentos especializados sobre direito comercial e societário em específico que justifiquem a atribuição da competência ao juízo de comércio.

TT. A competência para conhecer da ação de responsabilidade contra o gerente de facto da recorrente e de duas colaboradoras que trabalhavam sob sua dependência hierárquica, não é do tribunal de comércio, mas sim do tribunal de competência genérica que, in casu, em razão do valor da causa, é o juízo central cível recorrido.

UU. Em consequência, considerando-se incompetente, em razão da matéria, para julgar os presentes autos, o tribunal recorrido violou o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 117.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

2.2. As partes contrárias não apresentaram alegações

3. Questão a decidir: saber qual é o tribunal materialmente competente para a presente demanda.

4. Motivação de facto

1. A autora instaurou a presente acção, conforme petição inicial cujo restante teor se dá por integral reproduzido, na qual formula os seguintes pedidos:

Devem os RR. ser solidariamente condenados a pagar à A., o montante de € 913.895,60 (novecentos e treze mil, oitocentos e noventa e cinco euros e sessenta cêntimos), decomposto nas seguintes parcelas: (i) Os danos provocados pelos desvios de faturação através da B...: 55.959,80 (cinquenta e cinco mil, novecentos e cinquenta e nove euros e oitenta cêntimos); (ii) Os danos decorrentes de cheques abusivamente emitidos a favor do 1. Réu: € 23.184,70 (vinte e três mil, cento e oitenta e quatro euros e setenta cêntimos); (iii). Os danos decorrentes de pagamento de horas extraordinárias: € 16.760,00 (dezasseis mil, setecentos e sessenta euros); (iv). Os danos decorrentes empréstimos não autorizados e o esquema do “IVA extra”: € 53.613,68 (cinquenta e três mil, seiscentos e treze euros e sessenta e oito cêntimos).

2 Para tal alegou que

a) “ Para além do facto de a mesma 1.ª R., à data dos factos, atuar enquanto gerente, até 05.11.2020, em conluio com o 1.º R., utilizando a sua posição favorável de gerente e nessa qualidade, à revelia dos demais sócios e gerentes, praticando atos de gerência que beneficiavam o 1.ª R. e a própria, em detrimento da A., sendo que era o 1.º R. quem confiava às demais RR. funções típicas de gestão.

b) O 1.º R. enquanto sócio e gerente nomeado até 2015 e, depois dessa data, como gerente de facto, assumiu a gestão plena e efetiva da A. até 14 de janeiro de 2021.

c) O 1.º R. AA fez pagamentos a si próprio que originaram aquele saldo credor, descapitalizando a aqui A; as vendas efetuadas à B... implicaram um prejuízo direto para a A... de € 18.761,35;

d) emitiu e sacou vários cheques sem justificação;

e) procedeu ao pagamento a si próprio de “horas extraordinárias”

f) subtraíu documentação mercantil

g) realizou empréstimos não autorizados e “forgou” um esquema do “IVA extra”

h) realizou pagamentos e liberalidades sem suporte contabilístico.

3. Na parte denominada direito foram mencionadas as seguintes normas:

1. os administradores (ou gestores no caso concreto) serão responsáveis para com a sociedade sempre que no exercício das suas funções, incumpram os seus deveres legais e contratuais e prejudiquem a sociedade com as suas omissões ou atos praticados, pelo que são responsáveis perante a sociedade, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 72.º e 80.º do Código das Sociedades Comerciais (que também designaremos por CSC).

2. A responsabilidade dos administradores para com a sociedade, patente no artigo 72.º, do Código das Sociedades Comerciais, que doravante também designaremos por CSC, é subjetiva,

3. Na falta de prova da sua não culpabilidade, esta presume-se, segundo o disposto no artigo 72.º, n. º1, do CSC, o mesmo regime sendo aplicado por força da remissão ínsita no artigo 80.º do mesmo diploma legal.

4. Os deveres legais de conteúdo genérico dos gerentes ou dos administradores são aqueles que se encontram fixados no artigo 64º, n.º 1 do CSC, onde se conta o dever geral de cuidado (al. a)), e o dever de lealdade (al. b)).

5. são, com efeito, deveres de conduta, indeterminados e fiduciários, a que os gerentes e os administradores (ou as pessoas a que alude o artigo 80.º do CSC)


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5. Motivação jurídica

O art. 40º, nº1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto) determina que: «Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.».

O artigo 81.º do mesmo diploma prevê no seu n.º 1 o desdobramento da comarca em instâncias centrais que integram secções de competência especializada [alínea a)] e instâncias locais que integram secções de competência genérica e secções de proximidade, prescrevendo o n.º 2, que nas instâncias centrais podem ser criadas secções de competência especializada, nomeadamente de comércio [alínea f)].

Finalmente, o artigo 128.º, do mesmo diploma, define a competência das secções de comércio, nos seguintes termos:

«1 - Compete às secções de comércio preparar e julgar:

a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;

b) As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;

c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais;[1]

d) As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais;

e) As ações de liquidação judicial de sociedades;

f) As ações de dissolução de sociedade anónima europeia;

g) As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;

h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial;

i) As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras.

2 - Compete ainda às secções de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais.

3 - A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.».

Ora, é pacífico entre nós que a competência em razão da matéria deve ser aferida pelo concreto pedido formulado[2], utilizando a causa de pedir, se necessário, para delimitar o objecto da acção sob o prisma da versão alegada pelo autor.

In casu o pedido formulado diz respeito à responsabilidade pelos actos alegadamente culposos e ilícitos praticados no exercício das funções de gerência de uma sociedade comercial e que a causa de pedir foi juridicamente enquadrada em normas do Código das Sociedades Comerciais (arts. 64, 72 e 80, do CSC).

Estamos, pois perante uma acção cujo objecto é a responsabilidade civil pelo exercício da administração da sociedade perante esta, a qual depende, além do mais do requisito constante do art. 75º, do CSC.

Sendo que, neste caso, a causa de pedir incluiu ainda a condenação do 1º Réu a título, parcial, enquanto gerente na sombra/de facto durante determinado período de tempo.

Ora, se é certo que os administradores devem responder perante a sociedade e terceiros pelo incumprimento das regras da correcta administração, também parece seguro que esta sua responsabilidade se baseia na violação do exercício de direitos sociais.

Porque, os direitos sociais podem ser qualificados como o conjunto unitário de direitos atuais e potenciais do sócio, que emergem do contrato da sociedade e da regulamentação legal, que visa regular ou proteger a sua interacção societária[3].

Esta concepção ampla, funcional e teleológica é a que tem vindo a ser adoptada entre nós de forma consensual.

Nesta medida o Ac do STJ de 7.06.2011 n.º 2740/11.0TJPRT.P1 considerou que “são direitos que nascem na esfera jurídica do sócio, enquanto tal, por força do contrato de sociedade, baseados nessa particular titularidade”.

O Ac do STJ de 11.10.22, nº 669/21.4T8VNF-C.G1.S1 (José Rainho) reitera esta posição esclarecendo que assume essa natureza quando “isso relaciona-se inseparavelmente com o nuclear direito daqueles sócios (direito social, corporativo), subjacente ou imanente à lei societária e ao contrato de sociedade, qual seja, o direito à preservação da sociedade, á devida prossecução do seu objeto social e ao lucro”.

Neste tribunal, num caso inteiramente análogo, o Ac da RP de 18.4.2016, nº 84362/15.3YIPRT.P1 (Carlos Querido), considerou também que os «direitos sociais» são os que sendo inerentes à qualidade e estatuto de sócio visam a proteção dos seus interesses sociais”[4].

Ora, in casu é claro que a autora pretende responsabilizar os gerentes da sociedade por um conjunto de actos ilícitos e culposos que terão causado um dano no valor peticionado.

Logo é inequívoco que a sua pretensão depende dessa especial relação societária e que se baseia única e exclusivamente em normas de direito societário, em especial o art. 72º, do CSC.

É certo que, poderíamos sempre aplicar normas gerais decorrentes da responsabilidade civil.

Mas note-se que, a concreta pretensão da parte está numa relação de especialidade face ao instituto geral do art. 483º, do CC. Seja porque existe uma limitação quanto aos sujeitos que podem demandar a acção social de responsabilidade, seja porque os seus requisitos e fundamentos são distintos, mais restritos e específicos, neste caso, (como art. 75º, do CSC) em que a demandante é a própria sociedade.

Logo, teremos de concluir que nesta acção a autora pretende exercer um direito social, e que, sendo essa a questão única, central e nuclear da acção a sua competência material cabe ao tribunal de comércio.

Diga-se, por fim, que as normas de repartição da competência destinam-se também a melhor tutelar os direitos e interesses fundamentais dos cidadãos, entregando cada causa a cada tribunal de acordo com a sua “vocação natural”[5] para apreciar determinadas matérias. Precisamente por se entender que essa especialização irá permitir uma decisão mais adequada e por isso satisfatória para todos os interesses em jogo. Não faz, pois, qualquer sentido a distinção que a autora pretende fazer entre acções intentadas pela sociedade face às dos seus sócios, quando a factualidade e normas aplicáveis são idênticas.

É, pois, manifesto que a apreciação e decisão do litígio em apreço cabe à secção de Comércio e não ao tribunal recorrido.


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6. Deliberação

Pelo exposto este tribunal, em coletivo, julga o presente recurso de apelação não provido e, por via disso, mantém integralmente o despacho recorrido.


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Custas a cargo do apelante

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Porto, 10.10.2024
Paulo Duarte Teixeira
Ana Vieira
Isabel Peixoto Pereira
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[1] Nosso sublinhado.
[2] V.g. Acs desta secção Ac da RP de 26.4.2001, nº 0130480 (Leonel Serôdio); Ac da RP de 25.1.24, º 1196/23.9T8MTS.P1 (Judite Pires) e Ac do STJ de 25.9.24, nº 440/21.1PGCSC.S1 (Lopes da Mota).
[3] Jorge Coutinho de Abreu e Elizabete Ramos, Responsabilidade Civil de Administradores (…), IDET; nº3, Almedina, pág. 11 e segs.
[4] Nos mesmos termos, apesar de no caso concreto ter chegado a conclusão distinta Ac da RP de 22.3.21 17258/19.4T8PRT.P1 (Ana Paula Amorim).
[5] Ac do TC N.º 199/2024 de 12.3.24, n.º 1045/2023 in www.tribunalconstitucional.pt