INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE ACTIVA
CRÉDITO LITIGIOSO
FACTOS-INDICES
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Sumário

I- Atento o disposto no artº 20º, nº1, do CIRE, a demonstração da qualidade de credor constitui condição da procedência do pedido de insolvência, atinente com a legitimidade material do requerente para a dedução do pedido.
II- Se o carácter litigioso do crédito não afasta a legitimidade do credor para requerer a declaração de insolvência, tal não significa que a insolvência possa vir a ter lugar sem que se mostre provada a existência do crédito por parte do requerente.
III- Para efeitos de declaração da insolvência, é necessário que os factos indiciadores previstos na lei revelem a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente as suas obrigações.
IV- Incumbe ao credor que requeira a declaração de insolvência o ónus de alegação e prova de algum ou alguns dos factos-índice previstos nas alíneas do nº 1 do art. 20º do CIRE.
V- O preenchimento do facto-índice previsto na alínea a) do nº 1 do aludido art. 20º - suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas - pressupõe a incapacidade para fazer face a todas as obrigações vencidas do devedor.
VI– O facto-índice previsto na alínea b) do nº 1 do mesmo artigo 20º - falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações – apenas se pode ter por verificado quando a falta de pagamento, ainda que apenas de algumas obrigações ou mesmo de uma só, tenha lugar em circunstâncias ou seja acompanhada de actos que permitam inferir a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas.
VII- Se o credor não provar qualquer dos factos-índice, não tem sequer o devedor que provar que é solvente.
VIII- Litiga de má fé o requerente que instaura acção de insolvência contra a requerida sem fundamento e tendo como objectivo a apreensão de imóvel de que ambos são comproprietários e assim impedir o prosseguimento de acção de divisão de coisa comum instaurada por aquela com vista à divisão do imóvel em causa.

Texto Integral

Acordam as Juízas da Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
C…, residente em …, intentou acção declarativa com processo especial, requerendo a insolvência de S…, com domicílio fiscal em …, alegando, em síntese, que:
Adquiriu o imóvel que identifica em compropriedade com a Requerida. A partir de Outubro de 2015 esta deixou de viver no imóvel e de pagar os encargos respectivos, passando o Requerente a suportar integralmente as prestações do empréstimo contraído para aquisição do mesmo, condomínio e IMI. Em consequência, é credor da Requerida, do montante de € 87.757,19.
A Requerida aufere salário mensal que estima em € 900,00, não tem outro património, além do direito correspondente a metade do imóvel.
Pediu ainda a nomeação de Administrador(a) Judicial Provisório(a) e a apreensão preventiva do imóvel, antes da citação, alegando que o mesmo foi adjudicado em processo judicial que identificou pelo número, por valor inferior ao seu valor real.
Foi ordenada a citação da Requerida.
Por despacho proferido em 07.12.2023 foi indeferido o pedido de nomeação prévia de Administrador(a) Judicial Provisório(a) e de apreensão do imóvel.
Citada, a Requerida apresentou contestação, na qual impugnou a qualidade de credor por parte do Requerente, alegando ainda que é a própria que é credora do mesmo, por rendas devidas pela utilização do imóvel em causa e por custas de parte em processos judiciais que instaurou contra o Requerente, que o processo a que o Requerente aludiu corresponde a acção de divisão de coisa comum instaurada pela mesma para partilha do imóvel e na qual este foi arrematado por € 346.724,07, o que, descontando o valor em dívida do empréstimo, deixa € 250.801,07 para dividir entre os dois. Pediu a condenação do Requerente como litigante de má-fé, em multa e indemnização de valor não inferior a € 2.500,00 mais IVA, correspondentes aos honorários pagos ao seu mandatário pelo pleito e demais despesas em que incorra.
Notificada do despacho que indeferiu o pedido de nomeação de Administrador(a) Judicial Provisório(a), a Requerida esclareceu que o processo a que o Requerente aludiu não é um processo de execução, mas sim a acção de divisão de coisa comum referenciada na contestação e juntou cópia de despacho aí proferido.
Foi designada data para audiência final.
As partes apresentaram, entretanto, requerimentos.
No decurso da audiência foram admitidos o articulado do Requerente a título de resposta ao pedido de condenação como litigante de má-fé e dois documentos apresentados pela Requerida. Não foram admitidos os demais requerimentos e articulados apresentados.
Foi fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a requerida do pedido e o Requerente foi condenado como litigante de má-fé, em multa, que se fixou em 10 (dez) UC e em indemnização a favor da Requerida, no valor de € 2.500,00, acrescidos de IVA à taxa devida, de honorários e despesas do seu mandatário.
Foi ainda determinada a extracção, após trânsito em julgado da sentença, de certidão da presente mesma e a sua remessa à Ordem dos Advogados, para efeitos do disposto no art.º 545º do CPC. 
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Inconformado o requerente interpôs recurso, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
a) Sem conceder, aceitar, confessar ou reconhecer que assim seja, a sentença objecto do presente recurso sintetiza os presentes autos da seguinte forma:
• o Requerente não prova o seu crédito
• daí decorre que não tem legitimidade para formular o pedido que faz
• os presentes autos têm natureza meramente instrumental
• O Requerente e o seu mandatário litigam de má-fé.
b) Com o devido respeito, nada disto decorre dos autos em causa como se demonstra no presente recurso, senão vejamos.
c) Começando pela questão da prova do crédito reclamado, as questões que se colocam são as que se reportam à sua natureza, exigibilidade e quantitativo e ainda reflexamente, a sua relevância para a questão da legitimidade e subsequente declaração da insolvência.
d) No que respeita à natureza do crédito, ou melhor dos créditos para se ser mais rigoroso importa distinguir entre o crédito reclamado pelo Requerente sobre a Requerida e aquele que a Caixa … tem sobre as partes da instância.
e) Sendo que relativamente a este, a Requerida junta um documento do qual decorre o valor da dívida e o da prestação, à data de 31 de Outubro de 2023 - Cf Doc 11 da contestação
f) Em simultâneo, a Requerida confessa no artº 41º da sua contestação que desde 2015 é o Requerente que paga sozinho e na sua totalidade as prestações e o Condomínio.
g) A requerida confessa também e no mesmo artigo da sua contestação que a única forma de pagar esta dívida é a venda a terceiros do imóvel.
h) Possibilidade que a própria inviabiliza ao licitar o imóvel no leilão electrónico promovido no processo de divisão de coisa comum, cuja sentença declarou que a fracção é indivisível.
i) Assim, as conclusões a retirar é que este crédito é líquido e a Requerida não tem como pagá-lo, apesar de ser esta a única dívida que assume.
j) Se dúvidas houvesse, bastaria ver os pontos 6 e 7 dos factos provados.
k) Daqui decorre que se preenche a previsão da alínea b) do artº 20º do CIRE relativamente ao crédito perante a CAIXA …
l) Relativamente aos créditos do Requerente perante a Requerida, esta e o tribunal recorrido entendem que aqueles têm a natureza de crédito litigioso e daí decorre a suposta perda de legitimidade. Salvo melhor opinião, nem uma nem outra sucedem.
m) O crédito neste processo não é litigioso, apesar de a Requerida o contestar no contexto de outros processos, porque neste ela confessa que é o Requerente que paga sozinho desde 2015 a prestação do banco e o condomínio.
n) O que consta dos factos provados (itens 6 e 7, respectivamente).
o) Quando muito, o que se pode discutir é o valor do crédito detido pelo Recorrente sobre a Requerida.
p) Mas sobre isso já sabemos em função do mapa de responsabilidade do BdP que o valor mínimo daquele crédito era, com base nos valores de Outubro de 2023, é € 52.146,075.
q) O diferencial entre este montante e os € 87.757,19, mais juros, reclamados ab initio pelo Recorrente, dependerá da valoração da prova produzida sobre estes.
r) Tal prova são as declarações de parte, o depoimento da testemunha … transcritos com o artº 30 das alegações e os próprios estratos bancários que juntam novamente e devidamente certificados a fim de responder às dúvidas da sentença sobre a sua autenticidade o que justifica a sua junção ao abrigo do artº 651, nº 1, parte final do NCPC.
s) Sem embargo, ainda que o crédito peticionado sobre a Recorrida fosse litigioso, o que não se concede, aceita, confessa ou reconhece, isso em nada retiraria a legitimidade do Requerente para interpor a presente instância se tivermos em devida conta a latitude do artº 20, nº1 do CIRE, cuja redacção se transcreve para melhor facilidade de explicação:
“1 - A declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito”
t) Em face disto, e com o devido respeito, discutir a natureza do crédito para em função disso, avaliar se há legitimidade, é uma discussão ociosa, conforme a jurisprudência citada acima.
u) Igualmente ocioso é avaliar se o Requerente é o não obrigado a pagar as dívidas da Requerida, pois é esta que confessa que não paga; Vd de novo os pontos 6 e 7 dos factos provados.
v) E o artº 1405 do CC, nº1, segunda parte, determina a sua obrigação de pagar na proporção do seu direito, que é metade. Recordando-se aqui que se trata de uma obrigação propter rem.
w) Pelo que se impõe a conclusão de que o Requerente tem legitimidade tanto processual, como substancial, para pedir a declaração da insolvência da Requerida.
x) Da conjugação da legitimidade, tanto processual, como substantiva, com o reconhecimento de que o Requerente é credor da Requerida e da confissão desta no sentido de ser incapaz de pagar a única dívida que confessa ter, são razões mais do que suficientes para que seja declarada a insolvência daquela.
y) Por fim a questão da suposta litigância de má-fé nas pessoas do Requerente e do seu mandatário.
z) Ao que se entende e com manifesto esforço de hermenêutica, a suposta litigância de má-fé decorreria do uso dos presentes autos com propósitos entre o instrumental e o dilatório, o não se aceita, confessa ou reconhece.
aa) Pela singela razão de que, no seguimento do acórdão do STJ citado acima, o que Requerente e seu mandatário têm feito é usar todos os mecanismos que a Lei lhes confere para desmascarar a verdadeira intoxicação processual e vitimização feitas pela aqui Recorrida em todos os processos em que ela intervém.
bb) Nem mais nem menos. Inclusive, a campanha muito bem urdida para se apresentar perante o tribunal recorrido como a suposta vítima que desde 2018 luta estoicamente para resolver as questões com o Recorrente e este, perfidamente, não deixa, o que não se confessa, aceita ou reconhece, é um perfeito exemplo dessa prática.
cc) Olhando apenas aos presentes autos, basta lembrar que a Recorrida pede uma compensação porque o Recorrente usa sozinho a casa em exclusivo sem direito próprio.
dd) Quando, como se viu, esse direito foi atribuído em sede de processo de divórcio e a Requerida sabe há seis anos que não tem qualquer direito a compensação que aqui pede, singelamente, como se esquecesse que perdeu o processo em que isso foi pedido.
ee) Ao mesmo tempo o mandatário daquela refere-se ao do Recorrente de uma forma nunca vista e completamente desapropriada sem qualquer reparo do tribunal.
ff) Mas é o Recorrente e o seu mandatário que supostamente litigam de má-fé!
gg) Pelo exposto e no demais do Direito que V Exas doutamente suprirão, deve o presente recurso ser procedente como provado.
hh) Em conformidade, devem V Exas reconhecer que
ii) o Recorrente é parte legítima na lide,
jj) os créditos reclamados são exigíveis e devidos
kk) a Recorrida confessa tanto ser devedora daquelas dívidas como que não tem como pagá-las
ll) Devendo portando ser declarada a insolvência da Requerida
mm) Para a eventualidade de doutamente assim o não entenderem, pede-se que se declarado que a sentença objecto do presente recurso padece dos vícios de erro na matéria de facto prova e de nulidade por omissão de pronúncia.
nn) Devendo por tanto determinar que o que respeita à matéria de facto ser reformulada, no sentido defendido atrás, e no que tange à omissão de pronuncia, que seja declarada nula e que se determine que conheça da questão da insolvibilidade da Recorrida.
oo) Isto sem prejuízo da renovação da prova se V Exas doutamente assim o entenderem.
pp) Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!
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A recorrida CONTRA-ALEGOU, CONCLUINDO:
a) Alega o recorrente que deverá ser atribuído efeito suspensivo ao presente recurso quando os recursos de decisões de processos regidos pelo CIRE apenas têm efeito devolutivo – artigo 14.º n.º 5.
b) Alega o recorrente que deveria ter ficado provada a data de aquisição do imóvel e que deveria ter ficado provado ser solteiro.
c) Porém, olvida o recorrente as regras sobre a prova tarifada, livre apreciação da prova e ónus da prova;
d) Alega igualmente que deveria ter ficado provada a falta de pagamento do IMI por parte da recorrida, alegando uma confissão desta;
e) Referir-se que o recorrente paga as despesas de fruição, não é referir-se que a recorrente não paga os encargos com impostos, pois estes não advêm da fruição.
f) Esquecendo-se novamente o recorrente do ónus da prova, quer para prova deste facto, quer para prova da existência do seu crédito.
g) Acresce ainda que, tal crédito, a existir, não estaria vencido por força do artigo 1697.º n.º 1 do CC., não sendo, portanto, exigível, nem líquido, sem que a partilha seja realizada, tendo a recorrida junto com a contestação certidão da pendência do processo de partilhas.
h) De acordo com o artigo 425.º do CPC, após o encerramento da discussão apenas podem ser juntos os documentos que não tenha sido possível a sua junção em momento anterior, e de acordo com o artigo 651.º do CPC, pode-se se juntar documentos se os mesmos se revelarem necessários em virtude do julgamento da 1ª instância.
i) Ora cristalino nos parece que os documentos agora juntos, certidões e extratos, poderiam e deveriam ter sido juntos com a petição inicial, bem como cristalino nos parece que não foi por causa do julgamento que os mesmos se tornaram necessários.
j) O que o recorrente vem agora tentar fazer, em clara litigância de má-fé e abuso de direito, é colmatar a falha que apenas a si e aos seus mandatários é imputável.
k) Alega o recorrente, no seu ponto 48, que a recorrida confessa que só pode pagar à CEMG a dívida (e não divida) para com este caso o imóvel seja vendido a terceiros, quando a recorrida referiu no seu artigo 41.º da oposição:
41º
“A requerida apenas é devedora ao banco Caixa … do valor do empréstimo para aquisição da habitação, que se encontra em dia, no valor de € 95.923,00, que será liquidado devido à arrematação judicial, crédito reclamado no processo de divisão de coisa comum.”
l) A recorrida disse que será liquidado a dívida com a arrematação judicial, pois até foi ela que arrematou.
m) Não poderia ficar provada a arrematação judicial do imóvel, pois os poderes de cognição do Tribunal estão limitados às alegações das partes, não tendo nunca sido alegado a venda do imóvel, pois este apenas aconteceu depois da petição inicial e contestação.
n) Vem também o recorrente alegar que a recorrente não terá direito a uma compensação pelo facto de o recorrente usar a casa.
o) Porém, o indeferimento do pedido da recorrida de alteração do acordo de atribuição de casa de morada de família nada refere quanto ao direito da aqui recorrida, mas sim sobre a existência ou não de circunstâncias supervenientes e do facto de não se pretender a alteração do uso, mas sim o pagamento de compensação.
p) Vem por fim, o recorrente, invocar a nulidade da sentença por si colocada em crise, por omissão de pronúncia.
q) A sentença considerou logo à partida que falece um pressuposto do peticionado pelo requerente a sua legitimidade, por não ter logrado provar a existência do seu crédito.
r) Mas a sentença ora em crise até verifica que, apesar de não ter legitimidade para requerer a insolvência da recorrida, o recorrente também não logrou provar – quando o ónus da prova sobre si recaía – a verificação de algum dos factos elencados nas alíneas do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE.
s) Sem querer ser repetitivo, por tudo o acima exposto, facilmente se conclui que o recorrente litiga de má-fé, apresentando o presente recurso bem sabendo da sua falta de fundamento, fazendo um uso manifestamente reprovável do processo a fim de conseguir um objectivo ilegal, requerendo a junção de documentos que bem sabe, ou deveria saber, não ser possível nesta fase, deve o recorrente ser condenado como litigante de má-fé, nos termos do n.º 2, alíneas a), e d) do artigo 542.º do CPC
t) Devendo ser condenado como litigante de má-fé me multa a fixar doutamente por Vªs Ex.ªs e indemnização nunca inferior a € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) acrescidos de IVA a pagar à recorrida.
Terminou peticionando que o recurso seja julgado improcedente, a sentença mantida e o recorrente condenado como litigante de má fé em multa e indemnização a favor da recorrida não inferior a € 1.500,00.
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A Mmª Juíza a quo proferiu despacho admitindo o recurso, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Aquando da prolação do despacho que admitiu o recurso, a Mmª Juíza pronunciou-se no sentido que a sentença não enferma de nulidade por omissão de pronúncia.
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Foram colhidos os vistos das Exmªs Adjuntas.
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II- Objecto do Recurso
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações do recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo Código). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, são as seguintes as questões que importa analisar e decidir:
1) como questão prévia - da admissibilidade dos documentos apresentados pelo apelante nesta fase de recurso;
2) da nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
3) da modificabilidade da decisão de facto;  
4) da ilegitimidade ‘substantiva’ do recorrente e se verificavam, ou não, os pressupostos para a declaração de insolvência da requerida e
5) da verificação dos pressupostos para condenação do requerente como litigante de má fé.
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III - Fundamentação
A- Questão Prévia: Da (in)admissibilidade dos documentos cuja junção foi requerida pelo apelante
Com as alegações, o recorrente requereu a junção de documentos:
- doc. nº 1 – certidão da petição inicial e do despacho de indeferimento liminar desta proferido em 28/01/2019, no processo de alteração da atribuição da casa de morada de família instaurado pela requerida contra o requerente;
- doc. nº 2 – certidão de requerimento apresentado pela requerida no dia 20/01/2024 na acção de divisão de coisa comum instaurada pela requerida contra o requerente, requerendo “o prosseguimento da adjudicação pelo AE à requerente, de modo a que a esta finalmente veja um fim a este processo”;
- doc. nº 3 – certidão da sentença proferida em 22/01/2018, que decretou o divórcio entre o requerente e a requerida, nos autos de divórcio nº … do Juízo de Família e Menores de … e
- docs nºs 4 a 9 – extractos dos movimentos da conta de depósitos à ordem do requerido junto da Caixa… no período que decorreu entre 27/05/2005 e 17/03/2022;
- extracto integrado da mesma conta datado de 31/03/2022 e
- “declaração” e documentos emitidos pelo Banco …, onde se referem transferências efectuadas entre 31/01/2023 e 27/06/2023, da conta titulada pelo requerente para pagamento de encargos dos contratos de crédito à habitação nº … e …
Diz que junta tais documentos “ao abrigo do disposto pelo artº 651º, nº 1, parte final do NCPC”.
Relativamente à junção de documentos na fase de recurso, resulta do disposto no artº 651º do C.P.Civil, aplicável ex vi do artº 17º do CIRE, que as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância. Por sua vez, prevê o referido artigo 425º do CPC que: “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.”
Conforme se decidiu no Ac. Relação de Coimbra de 08.11.2014 (processo nº 628/13.9TBGRD.C1, relator: Teles Pereira), o qual pode ser consultado in www.dgsi.pt:
“I – Da articulação lógica entre o artigo 651º, nº 1 do CPC e os artigos 425º e 423º do mesmo Código resulta que a junção de documentos na fase de recurso, sendo admitida a título excepcional, depende da alegação e da prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: (1) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso; (2) ter o julgamento de primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional.
II - Quanto ao primeiro elemento, a impossibilidade refere-se à superveniência do documento, referida ao momento do julgamento em primeira instância, e pode ser caracterizada como superveniência objectiva ou superveniência subjectiva.
III - Objectivamente, só é superveniente o que historicamente ocorreu depois do momento considerado, não abrangendo incidências situadas, relativamente a esse momento, no passado. Subjectivamente, é superveniente o que só foi conhecido posteriormente ao mesmo momento considerado.
(…)
VI – Quanto ao segundo elemento referido em I deste sumário, o caso indicado no trecho final do artigo 651º, nº 1 do CPC (a junção do documento ter-se tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância), pressupõe a novidade da questão decisória justificativa da junção do documento com o recurso, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão recorrida, o que exclui que essa decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum.”.
No que concerne aos documentos que supra ficaram referidos como docs nºs 1 e 3 a 9, não está demonstrado que não pudessem ter sido juntos em momento anterior – atentas as datas a que respeitam e seguramente também podemos afastar a possibilidade de a junção estar a ser requerida por tal se mostrar necessário em virtude do julgamento proferido: nem a parte produz qualquer alegação concreta nesse sentido, nem tal resulta dos documentos juntos. Não se está perante uma decisão surpresa, mas em face de uma decisão que se limitou a apreciar e a julgar o thema decidendum e onde as questões a que os documentos se referem já se encontravam suscitadas. Nesta fase, não é admissível a junção de documentos destinados à prova de factos que já se encontravam em discussão anteriormente e que já podiam ter sido juntos em data anterior e não o foram.
No que respeita ao documento referido sob o nº 2, trata-se de documento superveniente e que poderá ter relevância para a decisão, pelo que se admite a sua junção.
Pelo exposto:
- não se admite a junção aos autos dos documentos supra referidos como documentos nºs 1 e 3 a 9 e
- admite-se a junção do documento nº 2. 
Custas do incidente pelo apelante na proporção de 2/3, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC.       
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B) Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia
Principiamos por apreciar a invocada nulidade da sentença (pois que, ainda que não sendo essa a primeira das questões suscitadas pelo recorrente, se nos afigura processualmente mais correcto) por, na apreciação do recorrente, o tribunal a quo não ter conhecido da questão da solvabilidade ou insolvabilidade da requerida. Diz que, por essa razão, a sentença é nula por omissão de pronúncia.
Seguidamente invocou ainda que são três as questões que o tribunal deveria ter apreciado e não apreciou: - “se a suposta ilegitimidade do requerente é processual e ou substantiva; - a existência do crédito reclamado ou apenas o seu valor; a condição    económica da requerida”. 
Estabelece o nº 1 do artº 615º do C.P que a sentença é nula quando:
“(…)
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
(…)”
A omissão de pronúncia está directamente relacionada com o comando fixado nº 2 do art. 608º do CPC – segundo o qual «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras».
As questões aqui referidas são as relacionadas com o mérito da causa, balizadas pela pretensão deduzida, pela respectiva causa de pedir e pelas excepções peremptórias invocadas.
As questões a resolver não se confundem com os argumentos aduzidos, sendo constante a jurisprudência dos nossos tribunais no sentido que aquele preceito apenas impõe que o tribunal resolva todas as questões que as partes hajam submetido a julgamento – cfr, entre muitos outros, Ac. STJ, de 16/02/1995, Cons. Ferreira da Silva, BMJ 444, págs 595 e ss.       
O mesmo é defendido pela doutrina – cfr, entre outros, Lopes do Rego, Comentários ao CPC, vol. I, pág. 551, Lebre de Freitas e outros, CPC Anotado, 2ª vol., pág. 646 e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, pág. 54.
A nulidade da sentença, ou do despacho, com fundamento na omissão de pronúncia só ocorre quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não teve aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão (e cuja resolução não foi prejudicada pela solução dada a outras).
No caso sub judice, consta da sentença sob recurso que “… o facto de suportar integralmente as prestações da casa não permite concluir, pelo menos de forma automática, como pretende o recorrente, pela constituição de qualquer direito de crédito sobre a requerida.
Acresce referir que a factualidade apurada, ainda que se admitisse a existência de um qualquer valor que conferisse legitimidade ao Requerente, não permite o preenchimento de qualquer dos factos índice invocados”.
Seguidamente referem-se as razões pelas quais o Mmº Juiz a quo entendeu que não se apuraram factos que determinem o preenchimento dos factos índice invocados pelo requerente e que, assim, era de concluir pela improcedência da acção.
Atento o referido, é evidente que a sentença não enferma de nulidade por omissão de pronúncia – constam da mesma as razões pelas quais o tribunal conclui pela ilegitimidade do requerente e ainda que assim não fosse, pelo não preenchimento dos factos índice previstos nas alíneas do artº 20º, nº1, do CIRE – alíneas a), b) e g) do CIRE.
Com estes fundamentos, a acção foi julgada improcedente e a requerida absolvida do pedido. Não houve lugar a qualquer absolvição da instância, pelo que é óbvio que o tribunal não concluiu por uma situação de ilegitimidade processual, a qual, conforme resulta do disposto nos artsº 577.º, al. e), 576.º, n.º 2, e 278.º, n.º 1, al. d), do CPC), trata-se de uma excepção dilatória que dá lugar à absolvição da instância.
O tribunal concluiu pela ilegitimidade substantiva do requerente em virtude da inexistência do crédito invocado pelo mesmo e, ainda que assim não fosse, pelo não preenchimento dos factos-índice referidos e, deste modo, pela improcedência da acção, justificando a decisão.
Nestes termos, entende-se que a sentença não enferma de nulidade por omissão de pronúncia.
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C) Matéria de Facto decidida na 1ª Instância
O tribunal a quo considerou provados os seguintes Factos:
Do requerimento inicial e documentos juntos com o mesmo
1. Requerente e Requerida adquiriram, em 2005, o imóvel sito em …  
2. Essa aquisição foi feita mediante o recurso a mútuo bancário celebrado com o …
3. Em 2005 a Requerida era solteira.
4. Requerente e Requerida casaram entre si em 8 de Dezembro de 2007, sem convenção antenupcial.
5. Esse casamento dissolvido por divórcio decretado em 22 de Fevereiro de 2018.
6. A Requerida deixou de viver naquele imóvel em Outubro de 2015 e desde então também deixou de comparticipar nas prestações ao banco mutuário e condomínio.
7. Tendo sido o Requerente quem tem suportado esses pagamentos.
8. A Requerida aufere o salário mensal que se estima em pelo menos 900 Euros brutos.
9. Não tem outro património conhecido além da metade do imóvel referido no ponto 1.
Da oposição e documentos juntos com a mesma
10. O Requerente é, desde a separação, o único utilizador do imóvel.
11. A Requerida instaurou contra o Requerente, como preliminar do processo de divórcio, procedimento cautelar de arrolamento, no âmbito do qual, por decisão de 07.09.2016, foi decretado o arrolamento de bens próprios da Requerida e de bens comuns do casal.
12. Os bens pessoais da Requerida foram retirados da casa depois de instaurado o referido procedimento cautelar.
13. A Requerida instaurou, por apenso ao processo de divórcio, acção de inventário, que se encontra na fase inicial, no âmbito da qual, em 29.12.2023, não havia ainda sido proferido qualquer despacho.
14. A Requerida instaurou, contra o Requerente, acção de divisão de coisa comum, que corre termos sob o n.º …, tendo por objecto o imóvel referido no ponto 1 dos factos provados.
15. Nesse processo, na sequência de conclusão de 18.02.2020, foi proferida sentença que julgou indivisível o referido imóvel.
16. O imóvel foi objecto de arrematação, em 06.12.2023, no mesmo processo, pelo valor de € 346.724,07.
17. A Requerida instaurou, contra o Requerido, acção executiva para pagamento da quantia de € 1.856,41 de custas de parte, juros até 21.07.2021 e encargos, fundada em sentença proferida em 18.02.2020 no processo n.º …
18. A Requerida emitiu nota discriminativa de custas de parte no valor de € 1.428,00, relativa a reclamação de créditos no processo especial de divisão de coisa comum, que corre termos sob o n.º …, em que o Requerente é o Reclamante.
19. Em Outubro de 2023, o registo de responsabilidades de crédito do Banco de Portugal, continha, relativamente à Requerida, unicamente o registo de dívida no valor de € 95.923,03, de crédito à habitação concedido por Caixa …, em litígio judicial, sem incumprimento.
20. Por decisão proferida em 11.07.2023 no processo n.º …, o Requerente foi condenado em multa processual por obstaculizar o regular andamento do processo e, por falta de colaboração do mesmo, autorizado o auxílio das autoridades policiais com vista à realização pelo A.E. das diligências necessárias para a promoção e venda do imóvel.
Da resposta ao incidente de litigância de má-fé
21. O valor em dívida ao banco Caixa …, emergente do empréstimo contraído pelo Requerente e pela Requerida, totaliza € 95.923,00.
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Em termos de Factos Não Provados, ficou a constar o seguinte:
Do requerimento inicial
a) O imóvel sito em … foi adquirido no dia 16.09.2005.
b) Em 16.09.2005 o Requerente era solteiro.
c) A partir de Outubro de 2015, a Requerida deixou de pagar a parte que lhe competia do IMI do imóvel em causa.
d) O Requerente é credor da Requerida S… da quantia € 87 757,19, de despesas que suportou e valores de que foi espoliado, a que acrescem juros vincendos.
e) Só da prestação da casa, caberia à Requerida pagar € 450,00 por mês
f) A concretização da venda no processo n.º … agravará a situação patrimonial da Requerida.
Da oposição
g) O veículo bem comum do casal foi alienado pelo Requerente sem a autorização da Requerida.
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D) Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto
Nos termos do artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil:
«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
No que toca à especificação dos meios probatórios: «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).
Citando o Sr. Conselheiro Abrantes Geraldes, «Estabelecendo o paralelismo com a petição inicial, tal como esta está ferida de ineptidão quando falta a indicação do pedido, também as alegações destituídas em absoluto de conclusões são “ineptas”, determinando a rejeição de recurso (art. 641º, nº 2, al. b), sem que se justifique a prolação de qualquer despacho de convite à sua apresentação.(…) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.(…)» – cfr Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª ed., p. 122 e 132.
Como consequência, segundo o mesmo autor, impõe-se a rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto nas seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam alguns dos elementos referidos - Ob. cit, pág. 135.
Existe divergência jurisprudencial no que concerne a saber se os requisitos do ónus impugnatório previstos no artigo 640º, nº1, devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também devem ser levados às conclusões sob pena da rejeição do recurso (cf. Artigos 635º, nº2 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil). O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se nos seguintes termos: No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.2.2015, Cons. Tomé Gomes, 299/05, afirma-se que «(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.»
No Acórdão de 11.4.2016, relatora Cons. Ana Luísa Geraldes, 449/410, defendeu-se que servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, deverão nelas ser identificados com precisão os pontos de factos que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos do ónus impugnatório, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso. As conclusões do recurso não têm de reproduzir todos os elementos do corpo da alegação – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.1.2015, Cons. Clara Sottomayor, 1060/07.
O AUJ n.º 12/2023, relatora Cons. Ana Resende, Processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1, publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I de 2023-11-14, páginas 44 – 65, disponível também em www.dgsi.pt, pronunciou-se expressamente no sentido que: «Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações».
No nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da livre apreciação da prova, plasmado no art.º 607º, n.º 5 do Código de Processo Civil, segundo o qual: “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.”
Assim, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (v.g. força probatória plena dos documentos autênticos - cfr. art.º 371º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação (cfr a este respeito Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, IV vol., Coimbra Editora, 1987, pág. 566 e seg. e Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág.660 e seg.).
In casu, o apelante cumpriu os ónus estabelecidos na lei para efeitos de impugnação da decisão de facto, começando por alegar que a factualidade considerada não provada sob a alínea a) se encontra demonstrada face ao teor do mapa de responsabilidades do Banco de Portugal junto pelo requerente, do qual resulta que os mútuos celebrados entre a Caixa … e as partes tiveram início em 2005-08-01. Invocou que é um facto notório que a data do começo do mútuo se fixa com a emissão da carta da respectiva aprovação, a qual, segundo as regras da experiência, antecede a celebração da escritura de compra e venda. Diz que, tendo os mútuos tido início em 2005-08-01, o Requerente alegado que a compra foi feita em 16-09-2005 e não tendo a requerida impugnado este ponto, tem que se ter como provado que a compra do imóvel foi feita a 16 de Setembro de 2009.
Foi considerado não provado sob a alínea a) que o imóvel sito em …, tenha sido adquirido no dia 16.09.2005.
O contrato de compra e venda de imóvel é formal – formalidade ad substantiam, sendo o respectivo documento exigido como condição de validade do contrato – cfr arts 875º e 220º do Código Civil. Assim, a data da celebração do contrato só podia ter provada através da junção da respectiva escritura pública de compra e venda – a data invocada é anterior ao Dec. Lei nº 116/2008, de 04/07, pelo que não era ainda admissível a celebração do contrato de compra e venda de imóvel por documento particular autenticado. Não se encontrando junta a escritura, não pode a referida factualidade ser considerada provada.
Invocou também o recorrente que, face ao que consta da certidão de nascimento da requerida, onde se encontra averbado o casamento entre ambos e ao facto de não ter sido alegado por esta que o requerente tivesse qualquer outro estado civil, deve ser dado como provado o que consta da alínea b) dos Factos Não Provados, ou seja, que em 16.09.2005 o mesmo era solteiro.
Por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não dever reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for insusceptível, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente» (cfr o Acórdão da Relação de Coimbra de 27.05.2014, relator: Moreira do Carmo, in www.dgsi.pt). Não se vislumbra, considerando a matéria em discussão nos autos, que a factualidade em apreço possa assumir relevância para a decisão. Acresce que não tendo sido junta a certidão do casamento do requerente com a requerida ou a de nascimento do requerente com o casamento averbado, também não se pode considerar provada a factualidade em apreço.
Pelo exposto, não há fundamento para considerar demonstrada a factualidade imediatamente supra referida.
Sustentou igualmente o requerente que se encontra provado que, a partir de Outubro de 2015, a Requerida deixou de pagar a parte que lhe competia do IMI do imóvel em causa, uma vez que tal resulta do confessado pela mesma no artº 12º da contestação e, que não obstante esta alegar que sempre tem pago a sua parte do IMI, não juntou qualquer comprovativo desse facto.
Alegou o requerente no artigo 4º da petição inicial que, a partir de Outubro de 2015, a requerente deixou de pagar o IMI do imóvel que identifica.
Esta, por sua vez, sustentou no artº 28º da oposição que o IMI sempre foi pago por si, “antes, durante e após o divórcio” e no artº 12º limita-se a afirmar que, uma vez que é o requerente que habita a casa, lhe compete “o pagamento das despesas com empréstimos seguros e despesas com fruição de imóvel, o que sempre fez”.  Destas afirmações, não resulta qualquer confissão de que seja o requerente quem, desde a separação, paga a totalidade do IMI relativo do imóvel, pelo que não tendo sido junto documentos comprovativos que a totalidade deste imposto devido em cada um dos anos tenha sido pago pelo requerente ou que se encontre em dívida qualquer quantia às Finanças a este título, não se encontra provada a factualidade em apreço. Não há, assim, fundamento para considerar demonstrada a factualidade plasmada na alínea c) dos Factos Não Provados.
No que respeita aos factos referidos como não provados sob a alínea d), sustentou o apelante/requerente que, da conjugação do teor do mapa de responsabilidades da requerida junto com a oposição com o depoimento da testemunha A…, a qual explicou de forma detalhada a forma como o valor foi calculado, contrariamente ao que entendeu o tribunal a quo, encontra-se demostrado que o requerente é credor da requerida pela quantia de € 87.757,19, a título de despesas que suportou.
Do documento emitido pela Central de Responsabilidades de Crédito referentes às responsabilidades da requerida relativamente a 31 de Outubro de 2023 resulta que a mesma é devedora de dois créditos à habitação nos valores ali referidos, sendo as prestações mensais de € 608,74 e 101,76, respectivamente.
Desse documento nada se pode concluir quanto ao valor que o requerido suportou desde Outubro de 2015 com as prestações ao banco mutuário.
Por outro lado, a testemunha A…, que vive em união de facto com o requerente desde 2018, declarou que tem conhecimento que está em dívida pela requerida ao mesmo, a título de despesas com o imóvel, “à volta” de € 89.000,00. Disse que sabe deste montante por que já acompanhou o requerente ao Banco para pagar a prestação mensal e conversaram ambos sobre esta questão. Disse que viu extractos bancários e que neste valor estão incluídos juros de mora. Disse ainda que, para apurar este montante, consideraram a data da compra da casa e os pagamentos que desde o início foram efectuados também pela requerida.
Resulta do ora alegado pelo apelante que no valor que invoca estão incluídos juros de mora, não estando de todo justificado o critério que o mesmo diz que foi utilizado para o cálculo do que invoca ser devido a esse título. São contabilizados juros logo a partir de 2005, sendo certo que só em Outubro de 2015 teve lugar a separação e o divórcio apenas teve lugar em 2018. 
Refira-se ainda que, para que se pudesse vir a dizer que o requerente é credor da requerida pelo referido montante, era necessário conhecer concretamente os valores parcelares que poderão estar em causa, os quais não resultaram minimamente demonstrados. Do documento junto com a petição inicial, denominado “Resumo Acerto de Contas”, sob a rubrica “Dívidas de S… a C… das obrigações legais do imóvel + Juros Mora”, constam valores anuais desde o ano de 2005 a Outubro de 2023, perfazendo o valor total a este título “com juros de mora” a quantia de € 85,077,39. Constam ainda rubricas e valores identificados como “Total retirado indevidamente por S… a C…” e também o valor de € 1.316,31 à frente da inscrição “Dívida de S… a C… Despesas IUC quando esteve a usufruir da viatura adquirida e paga exclusivamente por C…”.
Tratam-se de valores que não estão minimamente justificados e o depoimento da testemunha, nos termos que ficaram referidos e os extractos bancários juntos não permitem a respectiva prova.
Assim, contrariamente ao que o mesmo invocou, o plasmado na alínea d) dos factos não provados não pode integrar a factualidade provada.
Sustentou ainda o apelante que, contrariamente ao que entendeu o tribunal a quo, face ao teor do aludido mapa de responsabilidade junto pela requerida, no qual está referido que à data de 31 de Outubro de 2023 a prestação mensal de um dos empréstimos era de € 608,74 e do outro era de € 101,76, sendo facto notório que os juros aumentaram desde então e considerando o teor dos extractos bancários juntos aos autos, bem como ao declarado pela sua companheira e ainda pelo próprio, a matéria da alínea e) dos Factos Não Provados se encontra demonstrada.
Consta ali como não provado que “só de prestação da casa, caberia à requerida pagar € 450,00 por mês”.
Saber o que caberia, ou não, à requerida suportar, trata-se de matéria conclusiva, de um juízo que poderá, ou não, ser efectuado por referência aos factos que resultaram demostrados. Como resulta do artº 607º, nº4, do C.P.Civil, o julgamento da decisão de facto há-de incidir sobre a realidade dos factos concretos e individualizáveis trazidos aos autos. São estes que têm que ser declarados provados e não provados, o que significa que deve ser suprimida toda a matéria deles constante susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, juízos de valor ou conclusivos.
Por outro lado, face ao teor do mapa de responsabilidades junto pela requerida com a oposição, está demonstrado o valor das prestações mensais devidas para amortização dos mútuos bancários contraídos por esta e pelo requerente para aquisição da habitação à data de 31 de Outubro de 2023, devendo esta factualidade constar dos factos provados. Pelos fundamentos que se referiram supra, só esta factualidade se encontra demonstrada.
Assim, há que determinar, dada a sua natureza conclusiva, a eliminação da alínea e) dos Factos Não Provados e o aditamento aos factos provados da seguinte factualidade:
22. Em 31 de Dezembro de 2023 o valor total das prestações mensais relativas aos empréstimos contraídos para aquisição do imóvel identificado em 1. era de € 710,50.
O recorrente invocou ainda que a factualidade constante da alínea f) dos Factos Não Provados está em contradição com os factos considerados provados sob o ponto 9. e que, além disso, a requerida confessa no artº 41º da contestação que só pode pagar a dívida à Caixa … se o imóvel for vendido a terceiros, não sendo de atender ao depoimento da testemunha L…, que vive em união de facto com a requerida, quando diz que ambos têm dinheiro para pagar ao banco …
Requereu que a matéria da alínea f) seja considerada provada e sustentou também, ainda que de forma algo confusa, que o que consta do ponto 16- dos Factos Provados “é completamente falso”, uma vez que, na acção de divisão de coisa comum, o imóvel ainda não foi adjudicado à requerida.
Entendeu o tribunal a quo que não ficou demonstrado que a concretização da venda no processo n.º … irá agravar a situação patrimonial da Requerida e que se encontra provado que o imóvel foi objecto de arrematação, em 06.12.2023, pelo valor de € 346.724,07 – ponto 16- dos Factos Provados.
Aqui apenas se deu como provado que, nos aludidos autos, foi apresentada uma proposta para aquisição do imóvel pelo preço de € 346.724,07, proposta esta que foi apresentada pela requerida conforme consta da certidão judicial junta aos autos pela mesma em 29/12/2023.
No ponto 9., com base no acordo das partes, foi dado como provado que a requerida não tem outro património conhecido além do direito a metade do imóvel referido no ponto 1.
A mesma é comproprietária do imóvel e do facto de esta ter apresentado uma proposta para aquisição pelo referido valor, por si só, não permite concluir que a concretização da venda agravará a sua situação patrimonial. Para que se pudesse concluir nesse sentido, era necessário que tivesse ficado demonstrado, por exemplo, que a mesma já se encontra em situação financeira difícil e que a aquisição irá implicar a contração de novas dívidas, prova esta que não foi efectuada.
Assim, improcede, nesta parte, a impugnação, mantendo-se o que consta da alínea f) dos Factos Não Provados e do ponto 16- dos Factos Provados, não se verificando a invocada contradição. 
Sustentou ainda, no capítulo das alegações que denominou “Dos Factos”, que “são feitas na sentença objecto do presente recurso considerações que não correspondem à verdade”, transcrevendo a seguir um excerto da motivação da decisão de facto e outro relativo à fundamentação de direito.
Como se disse supra, a impugnação da decisão de facto terá que respeitar a factos que a parte considere incorrectamente julgados e, assim, terá que os indicar, bem como os meios probatórios e as exactas passagens dos depoimentos que os integrem que determinariam decisão diversa da tomada em primeira instância - para cada um dos factos que a parte pretende impugnar - e a decisão que deverá ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (art.º 640.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC).
Este segmento não corresponde a impugnação da decisão de facto nos termos previstos na lei e, como tal, o invocado apenas será considerado em termos da discussão da questão jurídica.
Deste modo e considerando o que ficou referido, julga-se a impugnação da matéria de facto parcialmente procedente e, em consequência, determina-se a eliminação da alínea e) dos Factos Não Provados e o aditamento aos factos provados da seguinte factualidade:
22. Em 31 de Dezembro de 2023 o valor total das prestações mensais relativas aos empréstimos contraídos para aquisição do imóvel identificado em 1. era de € 710,50.
No mais, como se disse supra, improcede a impugnação da matéria de facto.
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E) Da (i)legitimidade do requerente/apelante e da verificação dos pressupostos para declaração da insolvência
Como se referiu supra, são as conclusões que delimitam o objecto do recurso.
Começou o apelante por sustentar que, contrariamente ao que entendeu o Mmº Juiz a quo, tendo ficado demonstrado que a requerida “não paga desde há nove anos o serviço da dívida perante o único credor que ela reconhece”, bem como não tem como pagar, salvo se o imóvel fosse vendido a terceiro, o mesmo tem legitimidade para instaurar a acção e a insolvência não pode deixar de ser declarada, dado encontrarem-se preenchidos os factos-índice das alíneas a) e b) do artº 20º, nº1, do CIRE.
Estabelece o artº 3º do CIRE:
“1- É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
2- As pessoas colectivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, são também considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis”.
O que essencialmente releva na caracterização da insolvência é a impossibilidade de cumprimento pontual das dívidas que surgem na actividade do devedor por falta de liquidez e/ou de crédito para cumprimento pontual do passivo vencido, impossibilidade essa que é apreciada objectivamente, independentemente da causa ou do conjunto das causas que determinaram essa situação. A lei consagrou assim o critério do fluxo de caixa para avaliação da incapacidade/impossibilidade de cumprimento com que define a insolvência: em insolvência estão as entidades com fundo de maneio negativo e tesouraria negativa, mesmo que possuam activos valiosos mas não geradores de fluxos de caixa para honrar as obrigações contraídas.
Como refere Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2009, p. 77: “De acordo com o critério do fluxo de caixa, o devedor é insolvente logo que se torne incapaz, por ausência de liquidez suficiente, de pagar as suas dívidas no momento em que estas se vencem. Para esse critério, o facto de o seu activo ser superior ao passivo é irrelevante, já que a insolvência ocorre logo que se verifica a impossibilidade de pagar as dívidas que surgem regularmente na sua actividade.”
Ainda que no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas o legislador tenha omitido a referência à pontualidade como característica essencial do cumprimento das obrigações vencidas, é evidente que só através da realização atempada das obrigações assumidas se satisfaz integralmente o interesse do credor e se pode considerar cumprida a obrigação a que o devedor se encontrar adstrito.
A lei não exige que o montante em dívida ou as circunstâncias do incumprimento revelem a impossibilidade definitiva e em absoluto de o devedor satisfazer a totalidade da suas obrigações, mas tão só que os factos indiciadores revelem a impossibilidade de o devedor satisfazer tais obrigações pontualmente, bastando assim uma situação de mora/atraso no cumprimento desde que, pelo seu montante, no conjunto do passivo vencido do devedor e/ou de outras circunstâncias, tal evidencie a impossibilidade de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.
Um credor, relativamente a devedor que considere em situação de insolvência, pode requerer em tribunal que o mesmo seja declarado insolvente desde que se verifique algum dos factos indícios de insolvência previstos pelo art. 20º, nº 1, do CIRE.
Dispõe o aludido artigo 20º, nº1, sob a epígrafe “Outros legitimados”:
“1 - A declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados, verificando--se algum dos seguintes factos:
 a) Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;
b) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações;
c) Fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor ou abandono do local em que a empresa tem a sede ou exerce a sua principal actividade, relacionados com a falta de solvabilidade do devedor e sem designação de substituto idóneo;
d) Dissipação, abandono, liquidação apressada ou ruinosa de bens e constituição fictícia de créditos;
e) Insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor;
f) Incumprimento de obrigações previstas em plano de insolvência ou em plano de pagamentos, nas condições previstas na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 218.º;
g) Incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas de algum dos seguintes tipos:
i) Tributárias;
ii) De contribuições e quotizações para a segurança social;
iii) Dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato;
iv) Rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respectiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência;
h) Sendo o devedor uma das entidades referidas no n.º 2 do artigo 3.º, manifesta superioridade do passivo sobre o activo segundo o último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas, se a tanto estiver legalmente obrigado.”
Ao devedor cabe provar a sua solvência, demonstrando que não se verificam quaisquer dos invocados “factos índice” ou que, não obstante a verificação de tais factos, não se verifica, no caso concreto, a situação de insolvência – artº 30º, nº3, do CIRE.
Mais prevê o art. 25º, nº 1, do CIRE que: “Quando o pedido não provenha do próprio devedor, o requerente da declaração de insolvência deve justificar na petição a origem, natureza e montante do seu crédito, ou a sua responsabilidade pelos créditos sobre a insolvência, consoante o caso, e oferecer com ela os elementos que possua relativamente ao activo e passivo do devedor”.
Conforme se refere no Ac. desta Relação de 06/09/2022, acórdão esse proferido no Proc. nº 7673-21-9T8SNT-L1, relatora: Amélia Sofia Rebelo e subscrito pela ora relatora enquanto 1ª adjunta e ao que sabemos não publicado:  
«Da conjugação dos arts. 20º, nº 1 e 25º, nº 1 resulta que, sendo a qualidade de credor um dos requisitos da legitimidade para o pedido de declaração de insolvência, a lei exige que na petição o requerente a justifique com a alegação da causa constitutiva, natureza e montante do seu crédito (legitimação ad causam); sendo o objeto imediato do processo especial de insolvência a obtenção de uma sentença judicial que declare a situação de insolvência - no que se consubstancia o pedido que por ela é deduzido, que ao tribunal cumpre apreciar e decidir e que, cfr. arts. 64º e 65º do CPC e art. 128º, nº 1, al. a) da LOSJ, determina a competência do juízo de comércio em razão da matéria[1] -, a qualidade de credor do requerente constitui tão só pressuposto do prosseguimento da ação e, a final, condição da procedência do pedido de insolvência, atinente, respetivamente, com a legitimidade processual e com a legitimidade material do requerente para o pedido que, de acordo com o princípio da auto suficiência do processo de insolvência, cumpre apreciar e verificar, mas já não decidir. Com efeito, apurando-se no julgamento da causa que os pressupostos dos créditos do requerente não se verificam ou não comprovam, falece também o requisito primeiro para a decretação da insolvência, com a consequente absolvição do devedor do pedido[2] (e já não da instância). Mas, na situação inversa, concluindo-se pela existência de parte ou da totalidade do crédito invocado, nesta fase do processo não cumpre declarar judicialmente a sua existência[3], mas apenas prosseguir com a apreciação dos pressupostos da situação de insolvência, posto que é esse o único objeto do processo de insolvência na sua fase declarativa inicial e que, conforme já referido, determina a competência material do juízo de comércio para a sua tramitação, que não é afetada ou prejudicada pela natureza, origem ou causa constitutiva do crédito, nem pela juízo que se faça quanto à viabilidade do mesmo.
(…)
Conforme resulta do proémio do art. 20º nº 1 do CIRE, a legitimidade ativa (ad substantium) do credor é condicionada pela verificação de certas situações - o credor tem legitimidade para requerer em juízo que o devedor seja declarado insolvente desde que, para além da justificação da qualidade de credor, invoque como fundamento da situação de insolvência algum dos factos previstos pelo art. 20º, nº 1 do CIRE que, conforme se referiu, para além da natureza de factos-índice e condição suficiente da declaração de insolvência (pelo valor de presunção de situação de insolvência que a lei lhes reconhece)[4], surgem como factos legitimadores do pedido de declaração de insolvência apresentado por credor[5]. Conforme refere Soveral Martins[6], O art. 20.º, 1, do CIRE enumera um conjunto de factos cuja verificação deve ter lugar para que os sujeitos ali referidos possam requerer a declaração de insolvência do devedor. Não se trata, na verdade, de outras tantas situações de insolvência que devam ser somadas às previstas no art. 3.º, mas sim de meros requisitos de legitimidade e de «factos-índices» ou presuntivos da insolvência (…). O que bem se compreende pois, conforme refere Catarina Serra, “existem casos de incumprimento sem impossibilidade de cumprimento (o devedor não cumpre porque não quer ou porque discorda da exigibilidade da dívida).[7] O que equivale a dizer que o (facto) incumprimento não se confunde com a (situação de) insolvência, e que nem sequer é indício da sua verificação[8].”
(…)
Com efeito, na discussão jurisprudencial sobre a questão ganhou terreno e consenso a posição que reconhece legitimidade ao credor titular de crédito que, no processo, se revele controvertido/litigioso. Nesse sentido, acórdão do STJ de 29.03.2012 que, conforme resumido por Soveral Martins[9], assentou essencialmente nos seguintes fundamentos: “o art. 20º, 1, não faz qualquer distinção; a legitimidade em causa é de natureza processual e o CPC, aplicável subsidiariamente, não exige, para se ter [essa] legitimidade, que se seja titular do direito; não há motivo para discriminar o titular de crédito litigioso em relação ao titular de crédito condicional; o juiz do processo não é passivo; pode afirmar-se um princípio da autossuficiência do processo de insolvência; o reconhecimento de legitimidade nos casos referidos evitará o benefício para o devedor que apresenta a sua contestação no processo declarativo só para ganhar tempo[10]; a legitimidade é processual e por isso não haverá necessariamente julgados contraditórios[11]; o requerente pode ser responsabilizado pela dedução de pedido infundado.
(…)»
Se temos como certo que o facto de o crédito invocado pelo requerente da insolvência ser litigioso não é impeditivo da declaração de insolvência, tal não significa que tal declaração possa vir a ter lugar sem que se mostre provada a existência do crédito por parte do requerente.
Com efeito, se da prova que vier a ser produzida não resultar que o mesmo é, efectivamente, credor, a insolvência improcederá por ilegitimidade substantiva daquele.
O requerente invocou que o crédito que se arroga deter sobre a requerida, no valor de € 87.757,19 tem origem na falta de pagamento, ao longo dos anos - que o mesmo faz recuar ao ano de 2005 -, por esta, da parte das prestações relativas ao empréstimo contraído para a aquisição do imóvel, adquirido por ambos em compropriedade, bem como ao respectivo IMI e despesas de condomínio.
Ficou demonstrado que o requerente e a requerida adquiriram, em 2005, o imóvel sito em …, mediante o recurso a mútuo bancário celebrado com o banco.
Os mesmos vieram a casar entre si no dia 8 de Dezembro de 2007, sem convenção antenupcial.
Este casamento foi dissolvido por divórcio decretado em 22 de Fevereiro de 2018.
A requerida deixou de viver no aludido imóvel em Outubro de 2015 e desde a data da separação tem sido o requerente o único utilizador do mesmo. Desde esta mesma data, a requerida deixou de comparticipar nas prestações ao banco mutuário e condomínio, tendo sido o requerente quem tem suportado esses pagamentos.
Aqui chegados e no que concerne a estas prestações, cumpre referir o seguinte:
O empréstimo celebrado entre o requerente e a requerida com o banco… criou para aqueles uma obrigação plural solidária, cujas especiais características, nos termos do artigo 512.º do Código Civil, passam, para efeitos do seu credor:
- pelo dever de prestação integral, que recai sobre qualquer dos devedores (cfr., artigos 512.º e 519.º, n.º 1, do Código Civil);
- pelo “efeito extintivo recíproco da satisfação dada por qualquer deles ao direito do credor” – cfr Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 8.ª edição, Almedina, 1994, página 765.
O artigo 524.º do Código Civil vem dispor que o devedor que satisfizer o direito do credor além da parte que lhe competir tem direito de regresso contra cada um dos condevedores, na parte que a estes compete.
Todavia, o empréstimo que deu origem à obrigação solidária serviu para aquisição do que veio a ser a casa de morada de família, o que faz corresponder o pagamento das suas amortizações e prestações enquanto se manteve a vida em comum a um “encargo da vida familiar”, nos termos do artigo 1676.º, n.º 1, do Código Civil, segundo o qual O dever de contribuir para os encargos da vida familiar incumbe a ambos os cônjuges, de harmonia com as possibilidades de cada um, e pode ser cumprido, por qualquer deles, pela afectação dos seus recursos àqueles encargos e pelo trabalho despendido no lar ou na manutenção e educação dos filhos”. Este normativo prescinde de qualquer contribuição igualitária, pelo que os valores pagos e entregues pelo requerente para liquidação do empréstimo estão aí incluídos, só podendo haver algum “ressarcimento” ou existir “crédito compensatório”, se “a contribuição de um dos cônjuges para os encargos da vida familiar for consideravelmente superior ao previsto no número anterior, porque renunciou de forma excessiva à satisfação dos seus interesses em favor da vida em comum, designadamente à sua vida profissional, com prejuízos patrimoniais importantes” (n.º 2 do referido artigo 1676.º do Código Civil).
Deste modo, o cônjuge que se considere prejudicado e que pretenda exigir do outro a correspondente compensação, tem o ónus de provar os factos constitutivos da sua pretensão, de acordo com as regras gerais do ónus da prova. É este sacrifício, esta renúncia excessiva à satisfação dos seus interesses, que vai ser objecto de compensação. Um dos cônjuges sacrificou-se mais: pelo outro, pelos filhos, pela família que construíram juntos, e esse sacrifício  que não se confunde com a contribuição quantitativa de cada um dos cônjuges para os encargos da vida familiar, porque um dos cônjuges pode ter contribuído mais, financeiramente, e ainda assim se considerar que o outro foi o mais sacrificado em prol da vida em comum–, que consubstancia uma renúncia excessiva à satisfação dos seus interesses em favor da vida em comum, é que gera a necessidade de uma compensação que venha repor o equilíbrio das contribuições – cfr Sandra Passinhas, in O Crédito compensatório previsto no artigo 1676, n. 2, do Código Civil Português: o que o legislador disse e o que realmente quis dizer, in Actualidad Jurídica Iberoamericana, ISSN 2386-4567, IDIBE, núm. 6, feb. 2017, páginas 70 a 89, disponível na internet em https://www.fd.uc.pt/~sandrap/pdfs/Sandra_Passinhas_pp_70-89.pdf [consultado em 07-10-2024].
Conforme resulta do documento elaborado pelo requerente e intitulado “Resumo Acerto de Contas”, documento esse junto com a petição inicial, o mesmo invocou montantes em dívida pela requerida desde 2005 a título de “obrigações legais do imóvel”, desconhecendo-se desde logo como foram apurados tais montantes. No que respeita ao período em que se manteve a vida em comum e a verificar-se o pagamento pelo requerente das quantias que invocou, cabia ao mesmo a alegação e prova dos factos que permitissem demonstrar o seu sacrifício excessivo, cabia-lhe alegar e provar o funcionamento da sua vida em comum, de modo a que se pudesse vir a concluir pelo seu sacrifício excessivo em prol da vida em comum, relativamente à requerida.
Nada disto foi alegado.
Cessada a plena comunhão de vida (referida no artigo 1577.º do Código Civil) e os encargos familiares que justificavam o regime aplicado à situação anterior, caímos no regime das obrigações solidárias tout court, existindo uma presunção de que as quotas de requerente e requerida são iguais. Todavia, nem mesmo no que concerne a este período, existem factos que permitam considerar desde já o requerente credor da requerida.
Além daquele não ter alegado discriminadamente os montantes que foram por si pagos a título de amortização de empréstimo e despesas de condomínio e de apenas se ter apurado que em 31 de Dezembro de 2023 o valor total das prestações mensais relativas aos empréstimos contraídos para aquisição do imóvel identificado em 1. era de € 710,50, há que considerar o seguinte:
A separação ocorreu em 2015, data em que a requerida deixou de viver no imóvel, no qual se manteve o requerente e o divórcio foi decretado 22 de Fevereiro de 2018. Logo nesse ano foi instaurada pela requerente acção de divisão de coisa comum, tendo por objecto o imóvel em causa, processo no âmbito do qual o requerente foi condenado em multa processual por obstaculizar ao regular andamento do processo e, por falta de colaboração. Foi ainda autorizado o auxílio das autoridades policiais com vista à realização pelo A.E. das diligências necessárias para a promoção e venda do imóvel. O requerente obstaculizou à cessação da compropriedade desde logo pretendida pela requerida, continuando a residir na fracção. O reconhecimento do invocado crédito não pode ser efectuado com base num simples cálculo aritmético como pretende o requerente, não se podendo também concluir desde já pelo incumprimento por parte da requerida no respectivo pagamento.
Face a esta factualidade, não é possível, sem mais, concluir que o requerente seja desde já credor da requerida nos termos em que invoca e se temos como certo que o facto de o crédito invocado pelo requerente da insolvência ser litigioso não é impeditivo da declaração de insolvência, tal não significa que tal declaração possa vir a ter lugar sem que se mostre provada a existência do crédito por parte do requerente.
Com efeito, se da prova que vier a ser produzida não resultar que o mesmo é, efectivamente, credor, a insolvência improcederá por ilegitimidade substantiva daquele.
Como se diz no Ac. do TRG de 20/05/2021, relatora Conceição Sampaio, citando o acórdão do STJ de 4/7/2002, à luz das disposições do CPEREF, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.:
“Concretizando: qualquer credor constitui sujeito legitimado para requerer a abertura do processo de insolvência, mas sendo a insolvência, necessariamente restringida, na sua parte inicial, a um processo de partes, não poderá prosseguir afim de vir a ser ou não declarada, sem que se demonstre a existência desse crédito, deixando de estar em causa uma simples legitimidade processual para se passar a exigir uma legitimidade substantiva, demonstração que se deverá fazer dentro do respeito pela natureza célere e urgente do processo de insolvência.
Tal significa que, não é o caso de ser indispensável que o crédito esteja judicialmente reconhecido para justificar o requerimento de declaração de insolvência, mas a alegação sobre a titularidade do crédito, a sua proveniência, natureza e montante necessita de ser comprovada, no mínimo, através da prova de primeira aparência. Só através desta demonstração se pode chegar à consideração de que o crédito existe tal como dessa prova resulta, de que é exigível pelo credor requerente, e, por último, que se verifica o respetivo incumprimento, um dos factores índices mencionados no art. 20º, do CIRE”.
Desta feita, conclui-se pela ausência de legitimidade substantiva do apelante/requerente para o pedido, por não estar demonstrado que lhe assista a qualidade de credor da recorrida, o que, conforme já referido, constitui condição de procedência da acção cuja falta importa a absolvição da requerida-recorrida do pedido.
Ainda que assim não fosse e como bem se diz na sentença recorrida, é evidente que os factos provados não permitem concluir pelo preenchimento de qualquer dos factos índice previstos no nº 1 do aludido artº 20º do CIRE, nomeadamente das alíneas a) e b).
O facto-índice previsto na alínea a) do nº 1 do aludido artigo 20º respeita à suspensão da generalidade do pagamento, ou seja, de todas as obrigações vencidas, o que resulta com clareza do confronto com a previsão da alínea b).
Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, pgs. 199 e 200: “A al. a) reporta-se à hipótese tradicional que se reconduz a uma paralisação generalizada do cumprimento das obrigações do devedor de índole pecuniária.
(…).
Assume-se, assim, expressamente, que tal procedimento deve respeitar à generalidade das suas obrigações, o que se compreende visto que se autonomizou, na al. b), como facto-índice próprio, a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelas respetivas circunstâncias, revele a impossibilidade de prover à satisfação pontual da generalidade das suas obrigações.”
Ou seja, a situação presuntiva de insolvência nos termos do previsto nesta alínea forma-se caso se prove que o devedor suspendeu integralmente o pagamento de todas as suas obrigações vencidas.
Nada foi sequer alegado que permita concluir nesse sentido, mas os factos provados também não permitem concluir pela verificação do facto índice previsto na alínea b) do nº 1 do aludido artigo 20º, ou seja, pela falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade da requerida satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações. Este facto índice apenas se pode ter por verificado quando a falta de pagamento, ainda que apenas de algumas obrigações ou mesmo de uma só, tenha lugar em circunstâncias ou seja acompanhada de actos que permitam inferir a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas.
Contrariamente ao que o apelante sustentou, o que a requerida alegou no artigo 41º da oposição por si apesentada foi tão só que “(…) apenas é devedora ao banco Caixa …., do valor do empréstimo para aquisição da habitação, que se encontra em dia, no valor de € 95.923,00, que será liquidado devido à arrematação judicial, crédito reclamado no processo de divisão de coisa comum” e não que esteja de qualquer modo impossibilitada de proceder ao pagamento do aludido montante.
Diga-se também, como já referido, que só no caso de preenchimento de algum dos factos índice previstos no nº1 do art. 20º do CIRE, cumpriria à requerida, nos termos do nº4 do art. 30º, provar a sua solvência. Uma vez que não se formou a presunção nos termos alegados pelo apelante, tem que se concluir que sobre aquela não recai o referido ónus, não tendo sequer o tribunal, contrariamente ao que sustentou o apelante, que se pronunciar sobre a questão da solvabilidade da requerida.
*
Da litigância de má fé
Invocou o apelante que não se verificam os pressupostos para a sua condenação como litigante de má fé, uma vez que apenas tem recorrido a “todos os mecanismos que a lei lhe confere para desmascarar a verdadeira intoxicação processual e vitimização feitas pela recorrida em todos os processos em que ela intervém”
Entendeu o tribunal a quo condenar o requerente como litigante de má-fé, em multa, que fixou em 10 (dez) UC e em indemnização a favor da Requerida, no valor de € 2.500,00, acrescidos de IVA à taxa devida, de honorários e despesas do seu mandatário e ainda determinar a extracção, após trânsito em julgado, da sentença e remessa à Ordem dos Advogados, para efeitos do disposto no art.º 545.º, do CPC.
Diz-se na sentença que o procedimento do requerente se enquadra, a título doloso, na previsão do artº 542º, nº2, al. d), do C.P.Civil – uso manifestamente reprovável do processo, com o fim de conseguir um objectivo ilegal e entorpecer a acção da justiça.
De harmonia com o disposto no referido art. 542º, a parte que tiver litigado com má-fé será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária se esta a pedir.
Estabelece este normativo:
“Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.
Os comportamentos que a lei tipifica como integrando má fé são:
a) dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento, de facto ou de direito, a parte não devia ignorar, ou seja, a parte deve ponderar a razoabilidade da pretensão, evitando-a se não houver fundamento sério para a mesma;
b) alteração da verdade dos factos ou omissão de factos relevantes para a decisão da causa, v.g., mentira da parte, negação de factos pessoais que se provam, apresentação de versão de acidente que a parte sabia ser falsa;
c) omissão grave do dever de cooperação;
d) instrumentalização manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais com vista a impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (Artigo 542º, nº2, do Código de Processo Civil).
Na formulação legal, distinguem-se a má fé substancial - que se verifica quando a actuação da parte se reconduz às práticas aludidas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do art. 542º - e a má fé instrumental (al. c) e d) do mesmo artigo).
O princípio da boa-fé não é exclusivo do direito substantivo, também podendo ser violado numa perspectiva da actuação processual, mormente, pelo recurso a juízo através de acções ou procedimentos cautelares abusivos. Configura-se, nesse caso, a existência do abuso do direito de acção, a culpa in agendo e faz-se apelo à prudência normal (cfr. Ac. STJ, de 4-11-2008 – proc. n.º 08A3127 - rel. Fonseca Ramos). De outra forma, a parte que perde a acção, a menos que a questão fosse exclusivamente de direito, seria invariavelmente condenada enquanto litigante de má fé (o sistema de condenação automática da parte perdedora como litigante de má fé já vigorou no direito português – cfr. Cordeiro, António Menezes, 2006, Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa in Agendo, Coimbra, Almedina, p. 17).
É a violação do dever de boa-fé processual, de forma dolosa ou gravemente negligente, que configura a litigância de má-fé nos termos do artigo 542º. O dever de boa-fé processual surge consagrado como reflexo e corolário do princípio da cooperação, sancionando-se como litigante de má-fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos. Em suma, é a violação do dever geral de probidade, consagrado no artigo 8º do Código de Processo Civil, enquanto conduta ilícita, praticada de forma dolosa (lide dolosa) ou gravemente negligente (lide temerária), que configura a litigância de má-fé.
Para que haja lugar a condenação por litigância de má-fé não basta uma conduta ousada, ou meramente culposa. “A simples formulação de pedidos ilegítimos ou improcedentes, se não provada a intenção de defraudar o sentido da justiça, o princípio da celeridade processual ou os interesses da contraparte, mesmo quando a improcedência seja patente (o que sempre será aferido pelo critério do julgador), não é determinante da quantificação da litigância como de má fé” – cfr Acórdão do STJ de 26/11/2020, Proc. 914/18.1T8EPS.G1.S1, relator: Ilídio Sacarrão Martins, o qual pode ser consultado in www.dgsi.pt.
A presente acção foi instaurada em 13.11.2023 com pedido de apreensão do imóvel do Requerente e da Requerida e de nomeação de Administrador Judicial Provisório previamente à citação.
Para efeito desta pretensão alegou o apelante que estava em curso a venda forçada do imóvel, em processo que identificou pelo número e Tribunal onde corria termos, em processo de leilão e por valor que reputa abaixo do de mercado. Concluiu que a venda, tal como está estruturada, agravará a situação patrimonial da Requerida.
Em 06.12.2023 o Requerente reiterou os referidos pedidos, alegando concretamente que: “(…) o processo de leilão para venda do imóvel pertença das partes também já terminou.
Se o mencionado procedimento de venda seguir a sua tramitação normal, o imóvel será adjudicado a quem tenha apresentado a proposta mais elevada, o que se se consumar preclude o efeito útil dos presentes autos.
Assim requer-se de novo a V Exa que se digne mandar apreender o imóvel à ordem dos presentes autos e nomear administrador de insolvência para administrar provisoriamente os bens da requerida até que seja proferida a douta sentença”.
Na mesma data em que este requerimento foi apresentado, o imóvel foi objecto de arrematação, no aludido processo de divisão de coisa comum, pelo valor de € 346.724,07.
A requerida apreensão a título cautelar foi indeferida por despacho proferido em 07.12.2023.
Consta do despacho proferido nos acção de divisão de coisa comum em 11.07.2023, que condenou o requerente por obstaculizar ao regular andamento do processo e por falta de colaboração com o tribunal, o seguinte:
“Por despacho de 13/04/2023 o Tribunal concedeu o prazo de 10 dias ao requerido para vir indicar datas alternativas para acesso ao imóvel aqui em discussão sob pena de, não o fazendo, vir a ser condenado em multa processual.
Decorrido o prazo o requerido não só não indicou quaisquer datas como vem apresentar um requerimento que, mais uma vez obstaculiza ao regular andamento dos autos, requerendo a suspensão do mesmo sem fundamento legal para o efeito.
Em face do exposto, não tendo o requerido cumprido com o solicitado pelo Tribunal (o que poderia ter feito concomitantemente com o pedido de suspensão realizado), vai o mesmo condenado em multa processual que se fixa em 3 UC.
No que respeita à suspensão requerida, indefere-se a mesma por falta de fundamento legal.
Notifique.
**
Atenta a postura do requerido, o qual mantem a falta de colaboração para acesso ao imóvel em discussão, autoriza-se o auxílio das autoridades policiais com vista à realização pelo Sr. AE das diligências necessárias para a promoção de venda do imóvel (fotografias/colocação de placards de venda ou outras) – arts. 549.º, n.º 2, 757.º, n.º 3 e 4 do CPC.
Caso o requerido mantenha, de futuro, a mesma postura processual o Tribunal ponderará acerca do requerido pelo AE quanto à entrega efectiva do imóvel para realização de visitas”.
Entendendo o requerente que o imóvel se encontrava avaliado em valor inferior ao seu valor comercial era naquele processo que devia recorrer aos meios ao seu dispor, podendo, se assim o entendesse, apresentar proposta para aquisição por valor superior. O que não podia era utilizar, como o fez, os presentes autos para impedir o prosseguimento da acção de divisão de coisa comum instaurada pela requerida. Face à sucessão de factos que ficaram referidos e à total falta de fundamento da presente acção, não há outra conclusão a extrair: com a instauração dos presentes autos e as pretensões formuladas, depois de ter requerido a suspensão da acção de divisão de coisa comum e de tentar impedir o acesso ao imóvel, o recorrente fez do processo um uso manifestamente reprovável, com vista a conseguir um objectivo ilegal: a apreensão, desde logo a título preventivo, do imóvel, com as consequências que daí adviriam para a acção de divisão de coisa comum e a declaração de insolvência da requerida. Esta conduta não pode deixar de ser considerada dolosa.    
Nestes termos, entende-se que deve ser mantida a decisão do tribunal a quo que condenou o requerente, ora apelante, como litigante de má fé.
Considerando que nada foi invocado pelo mesmo com vista a colocar em crise o decidido na sentença no que respeita ao valor da multa e da indemnização à parte contrária, nem do determinado em termos de comunicação da sentença à Ordem dos Advogados, nada há a conhecer no que a tal concerne.
Improcede, assim, o recurso.
*
Invocou a apelada que o recorrente também litiga de má fé ao interpor o presente recurso nos moldes em que o faz, requerendo que o mesmo seja condenado nessa qualidade também nesta fase, em multa e indemnização a seu favor não inferior a € 1.500,00.
A interposição de recurso é um direito processual que a lei confere a quem ficou vencido na decisão e a circunstância de o recorrente ter interposto recurso de uma decisão que lhe foi desfavorável e requerido a junção de documentos com as alegações, por si só, não permite concluir que o mesmo, nesta fase, litigue de má fé. 
Pelo exposto, não se condena o recorrente como litigante de má fé nesta fase de recurso.
*
IV – Decisão
Por todo o exposto, acordam as Juízas deste coletivo em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, mantém-se a sentença recorrida.
*
Não se condena o apelante como litigante de má fé pela sua conduta nesta fase de recurso.
*
Custas pelo recorrente.
Registe e notifique.

Lisboa, 15/10/2024
Manuela Espadaneira Lopes
Fátima Reis Silva
Isabel Fonseca
_______________________________________________________
[1] É consensual que a competência é aferida por referência à pretensão formulada pelo autor e respetivos fundamentos, ou seja, pela relação jurídica controvertida tal como surge configurada na petição inicial, sendo irrelevante para o efeito o juízo de prognose que se faça relativamente à viabilidade da pretensão.
[2] Vd. acórdãos da Relação de Guimarães de 02.11.2017, 19.06.2019 e 18.06.2020, procs. nº 440/17.6T8PTL-A.G1, 1607/19.8T8VRL.G1 e 80/18.2T8TMC.G1, da Relação do Porto de 10.07.2019, proc. nº 4800/18.7T8OAZ-A.P1, da Relação de Lisboa de 12.01.2016, proc. nº 2314/15.6T8VFX.L1-7, da Relação de Coimbra de 29.02.2012, proc. 689/11.5TBLSA.C1, todos disponíveis na pagina da dgsi.
[3] Apreciação que tem o seu lugar próprio na fase da reclamação e verificação de créditos, onde, a par com os demais credores e no exercício do contraditório entre todos, fica sujeito ao escrutínio do administrador da insolvência e às impugnações que o devedor e os credores entendam deduzir.
[4] Nesse sentido, entre outros, Catarina Serra, O Novo Regime Português do Direito da Insolvência, Uma introdução, 4ª ed., p. 104, nota 169.
[5] Afirmação que resulta demonstrada pelo disposto no art. 30º, nº 5 do CIRE, nos termos do qual “Se a audiência do devedor não tiver sido dispensada nos termos do artigo 12.º e o devedor não deduzir oposição, consideram-se confessados os factos alegados na petição inicial, e a insolvência é declarada no dia útil seguinte ao termo do prazo referido no n.º 1, se tais factos preencherem a hipótese de alguma das alíneas do n.º 1 do artigo 20.(subl. nosso), e pelo art. 35º, nº 4, que dispõe em termos semelhantes.
[6] Ob. cit., p. 67.
[7] Licões de Direito da Insolvência, Almedina, p. 56.
[8] Vd. Catarina Serra, ob. cit., p. 56.
[9] Um Curso de Direito da Insolvência, 2015, p. 51 e nota 13.
[10] Ou para evitar que o devedor conteste o crédito para o tornar litigioso e invoque questões suscetíveis de densificar a sua apreciação com o propósito de obstar à apreciação do pedido de insolvência...
[11] Desde logo porque, conforme se referiu, nesta fase do processo não cabe decidir pela verificação ou não verificação do crédito, apenas da verificação ou não da situação de insolvência. Conforme acórdão do STJ de 8/9/2021, “IV. A sentença de improcedência da insolvência, cuja fundamentação não tiver reconhecido o crédito invocado na petição inicial desse processo, não tem força de caso julgado material em relação a este crédito não reconhecido, para vincular a apreciação de mérito de uma acção posterior destinada directamente a reconhecer ou cobrar esse crédito”. (proc. nº 737/17.5T8VNF-A.G1.S1, disponível na página da dgsi).