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INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
CONVOCAÇÃO JUDICIAL
ASSEMBLEIA GERAL
NOMEAÇÃO JUDICIAL DE ORGÃOS SOCIAIS
REMUNERAÇÃO
Sumário
I. A inutilidade e a impossibilidade superveniente da lide, ocorre quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, ou se encontra fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar II. Nos termos do art.º 375º do CSC, a convocação judicial da assembleia geral de acionistas prevista no n.º 4, depende da verificação dos seguintes requisitos: a) ter o interessado na convocação dirigido um requerimento (escrito) ao presidente da mesa da assembleia geral, solicitando a convocação de uma assembleia geral; b) ter indicado com precisão, nesse requerimento, os assuntos a incluir na ordem do dia; c) ter justificado a necessidade da reunião da assembleia; e d) não ter o presidente da mesa da assembleia geral promovido a publicação da convocatória da assembleia geral nos 15 dias seguintes à receção do requerimento ou ter indeferido, sem justificação pertinente, a convocatória. III. O objeto desta ação esgota-se na promoção das diligências indispensáveis à realização e funcionamento da assembleia que se agenda, que competirão ao Presidente da Assembleia da Mesa Geral indicado, situando-se para lá desse objeto, extravasando do seu âmbito, as vicissitudes da sua convocatória e as vicissitudes e ocorrências de tal assembleia que eventualmente possam determinar a nulidade ou anulabilidade das deliberações tomadas por vícios de procedimento ou de conteúdo e, por consequência, o poder cognitivo e decisório do tribunal. IV. Apenas não é lícito aos sócios deixar de deliberar quanto à remuneração dos órgãos de administração quando ocorra a presunção de que são remunerados; ii) nestes casos os órgãos da administração podem exigir judicialmente a fixação de remuneração; iii) não pode a remuneração dos sócios ser estabelecida por outra via que não seja a deliberação em Assembleia Geral de sócios. V. Consistindo o objeto da presente ação a convocação de Assembleia Geral da Ré, sociedade anónima, com vista à nomeação dos seus órgãos de gestão – Conselho de Administração, sendo pressuposto da justificação da necessidade de convocação, o facto de nos termos da lei e dos estatutos da Sociedade, dever proceder-se à eleição dos membros dos órgãos para o mandato em curso, a questão da remuneração dos membros dos órgãos de administração e de prestação de caução por estes, são acessórias ao fundamento e causa de pedir da presente ação.
Texto Integral
Acordam os Juízes da 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I. Relatório:
“AA”, S.A. , pessoa coletiva n.º …, com sede …, veio intentar a presente ação especial, ao abrigo do disposto no art.º 1057.º do Código de Processo Civil, requerendo a convocação judicial de assembleia de sócios da “BB”, S.A., pessoa coletiva n.º …, com sede …, com vista à deliberação dos seguintes pontos:
i) eleição dos órgãos sociais da sociedade para o mandato correspondente ao triénio de 2023-2025;
ii) remuneração e prestação de caução dos e pelos membros dos órgãos sociais da sociedade, eleitos ao abrigo do ponto antecedente;
iii) outros assuntos de interesse.
Para o efeito alegou, em síntese, que é uma sociedade anónima de direito luxemburguês, constituída em 2005; que é acionista da requerida porquanto em 2007, adquiriu 49,90% (quarenta e nove vírgula noventa por cento) do capital da requerida; que as restantes participações sociais da requerida, que correspondem a 50,10% do respetivo capital, são detidas pela sociedade “CC”, S.A.”, totalmente detida por “DD”; que no passado dia 31 de maio de 2023, foi enviada uma carta registada com aviso de receção enviada para a sede dirigida ao presidente da mesa da assembleia geral da requerida a requerer a convocação de uma assembleia geral de acionistas com vista à deliberação dos suprarreferidos pontos de discussão, sem que a assembleia tenha sido convocada ou tenha sido indeferido o pedido no prazo legal; que o Presidente da Mesa da Assembleia Geral não promoveu a publicação da convocatória da assembleia geral nos 15 (quinze) dias seguintes à receção do requerimento, nem tão pouco a indeferiu.
Por requerimento de 28/08/2023 (ref. citius n.º…), na sequência do despacho de 12.07.2023 (ref. citius…) juntou a requerente aos autos comprovativo da titularidade das ações e do pacto social da sociedade.
Foram citados os administradores em funções tendo sido foi apresentada oposição, com fundamento: na ilegitimidade da autora por já não ser acionista da requerida; na falta de poderes de representação dos administradores da requerente para requerer a convocação da assembleia. Terminam pedindo, que seja julgada procedente a exceção de ilegitimidade da Autora, e em consequência, ser a Ré absolvida da instância; caso assim não se entenda, deverá ser decretada a suspensão da presente instância em virtude da pendência da ação arbitral que corre termos na CCI, nos termos e ao abrigo dos artigos 269.º, n.º c), 272.º, n.º 1, e 276.º, n.º 1, alínea c), todos do CPC; e finalmente, caso assim não se entenda, deverá a presente ação ser julgada improcedente, por não provada e, em consequência, ser a Ré absolvida do pedido.
Após outras vicissitudes processuais que para o caso não relevam, por requerimento de 11/01/2024 (ref. citius n.º …) veio a requerida “BB”, SA, dizer que no passado dia 02/11/2023, o Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Requerida convocou uma Assembleia Geral da requerida para, entre outros, deliberar exatamente sobre o tema objeto dos autos, constando do ponto 7 da Ordem de Trabalhos da convocatória o seguinte: Proceder a eleição dos órgãos sociais da Sociedade para o mandato correspondente ao triénio 2023/2025; que a assembleia geral veio a realizar-se na segunda data mencionada na convocatória, ou seja, no dia 21/12/2023, pelas 9h30; que nesta reunião da assembleia geral foi deliberado, entre outros, a eleição dos órgãos sociais da requerida para o mandato correspondente ao triénio de 2023-2025; a assembleia geral que a requerente pretende que o Tribunal convoque já foi convocada no passado dia 02.11.2023 e já ocorreu, no dia 21.12.2023, conclui alegando existir inutilidade superveniente da lide quando o resultado ou efeito jurídico visado com a ação foi atingido e, por consequência, a extinção por inutilidade superveniente da lide, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 277.º, alínea e), do CPC.
Notificada, pronunciou-se a requerente por requerimento de 30/01/2024 (ref. n.º …) opondo-se à extinção da lide, alegando que não foi convocada para a assembleia em causa porquanto a requerida procedeu unicamente à convocação da sociedade “CC”, pretendendo-a sua única acionista; que a assembleia não deliberou sobre os pontos 2 e 3 da ordem de trabalhos proposta; que sustentar uma inutilidade superveniente da lide constitui, em face do caso em apreço, para além de um claríssimo abuso de direito, uma pretensão processualmente inadmissível posto que a convocatória ora dada a conhecer pela requerida não retira qualquer efeito útil na decisão por ainda ser possível acolher o pedido da requerente, e, finalmente, porque, verdadeira e efetivamente, o fim visado com a ação não foi atingido.
Em 21/02/2024 (ref. citius …) foi proferida sentença que julgando improcedente a exceção de ilegitimidade da requerente, porquanto a questão da legitimidade suscitada na oposição prende-se com a legitimidade ad substantiam e não processual, que se verifica, decidiu julgar verificada a inutilidade da lide quanto ao ponto i) e ii) do pedido e, consequentemente, declarar extinta a instância, nos termos do art.º 277.º do C.P.C., julgando, ainda, manifestamente improcedente o pedido quanto ao ponto iii).
Não se conformando com o assim decidido, dele interpôs recurso a requerente “AA”, S.A. , juntando alegações e formulando as seguintes conclusões, que se reproduzem (as quais ainda que não se revelem inteligíveis ou complexas, porque prolixas, não se mostram elaboradas de acordo com aquela que se julga ser a melhor técnica jurídica, atenta a sua função de delimitação do objeto de recurso e por forma a permitir que o Tribunal superior melhor apreenda a questão):
1.º - O presente recurso é interposto da douta Sentença que julgou verificada a inutilidade da lide quanto ao ponto i) e ii) do pedido e, consequentemente, declarou extinta a instância, julgando, ainda, improcedente o pedido contido no ponto iii) do petitório.
2.º - Para determinar a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, a Sentença a quo considerou que «da ata da assembleia de sócios da Silcoge realizada em 21.12.2023, junta como documento n.º 2, com o requerimento de 11.01.2024, resulta que foi deliberado a nomeação para o mandato correspondente ao triénio 2023/2025, para o conselho de administração dos seguintes membros: (…)».
3.º - O pedido para convocação judicial de assembleia-geral da “BB” deu entrada em Juízo no dia 21 de junho de 2023 e em 28 de setembro de 2023, a ora Recorrida apresentou em Juízo a sua Contestação.
4.º - Só em 11 de janeiro de 2024, através de requerimento sob a referência citius …, e depois de apresentar nos autos, para além da Contestação já antes referida, 6 (seis) requerimentos distintos, procedendo à junção de vários documentos, é que a ora Recorrida veio afirmar nos autos: «Sucede que, no passado dia 02.11.2023, o Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Requerida convocou uma assembleia geral da Requerida».
5.º - Com o sobredito requerimento de 11 de janeiro de 2024, a ora Recorrida juntou, não só, a antes referida convocatória, mas também a Ata da, entretanto, realizada assembleia-geral da Requerida, em 21 de dezembro de 2023.
6.º - Sabendo a Recorrida de forma absolutamente cristalina que a ora Recorrente – sua acionista – tinha recorrido à via judicial para pedir a convocação de assembleia-geral da Recorrida, depois de a isso se ter negado o respetivo presidente da mesa, que, conforme se refere no artigo 9.º do requerimento inicial, recebeu da ora Recorrente, no dia 31 de maio de 2023, uma carta registada onde se requeria, precisamente, a convocação de uma assembleia geral de acionistas.
7.º Sabendo desde o pretérito mês de setembro de 2023 que corria um pedido para convocação judicial de assembleia-geral da ora Recorrida, esta optou por omitir totalmente da ora Recorrente – e do Tribunal! – a sobredita convocatória de 2 novembro de 2023, apenas o dando a conhecer depois de a respetiva assembleia-geral se ter realizado na segunda data marcada.
8.º Omissão que era, naturalmente, intenção óbvia da ora Recorrida, como claramente o demonstra quer o conteúdo do já referido aviso convocatório, dirigido, unicamente, a uma suposta acionista única da ora Recorrente, quer o conteúdo da própria Ata de assembleia- geral (cf. ambos os documentos juntos com o sobredito requerimento apresentado pela ora Recorrida sob a referência citius …), onde de forma expressa se exclui a ora Recorrente de acionista da Silcoge, não obstante se reconhecer, na própria Ata, que essa decisão se discute no âmbito de processo arbitral.
9.º Refere a Sentença recorrida que «a inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida».
10.º - Refere a decisão em crise, dirigindo-se unicamente ao primeiro dos três pontos do petitório da ora Recorrente, que «em face da deliberação tomada na assembleia de 21.12.2023, a ré passou a ter os seus órgãos nomeados, mostrando-se alcançado o primeiro dos desideratos da convocação requerida, não podendo, assim, prosseguir a ação com vista a alcançar finalidade já satisfeita.».
11.º - Já quanto ao segundo pedido (convocação de assembleia-geral para deliberar sobre a remuneração e prestação de caução dos e pelos membros dos órgãos sociais da Sociedade), este ponto, como facilmente se pode alcançar do documento n.º 1 junto pela ora Recorrida com requerimento sob a referência citius …, este ponto não consta da convocatória.
12.º - Sobre este ponto omisso, decidiu a Sentença a quo: «Da referida deliberação, em face da omissão de qualquer referência à remuneração do cargo, temos que concluir necessariamente que a assembleia de sócios não quis remunerar as pessoas nomeadas, pois caso contrário tê-lo-ia feito no ato da nomeação».
13.º - E quanto à prestação de caução – conforme igualmente resulta do pedido de convocatória judicial de assembleia-geral da ora Recorrida –, decidiu a Sentença em crise: «estamos em crer que também quanto a este ponto verifica-se a inutilidade do prosseguimento da presente lide, pois que caso tivesse sido intenção da sociedade de dispensar os administradores nomeados da prestação de caução, tê-lo-ia feito da assembleia de designação, pois trata-se, à semelhança da remuneração, de prestações acessórias inerentes ao cargo».
14.º - A Sentença recorrida incorreu num incorreto julgamento dos documentos juntos pela ora Recorrida, em 11 de janeiro de 2024, com o requerimento sob a referência citius ….
15.º - A Sentença recorrida incorreu na incorreta interpretação dos artigos 396, n.ºs 1, 3 e 5, e 399.º, n.º 1, do CSC.
16.º - Sustentou tempestivamente a Recorrente, em resposta ao requerimento apresentado pela ora Recorrida requerendo a inutilidade superveniente da lide, que esta alegação constituía uma afronta aos mais elementares princípios da boa-fé, materializado numa atuação contra factum proprium, considerando a respetiva defesa (ponto C. da Contestação), em que a própria Recorrida confessa a existência de um procedimento arbitral através do qual, designadamente, pretende arredar a ora Recorrente da qualidade de sua acionista.
17.º - Até à eventual prolação de sentença definitiva arbitral, a Recorrente é acionista da Recorrida.
18.º - A Recorrente, enquanto acionista da Recorrida, não foi por esta convocada para a respetiva assembleia-geral, nem tão pouco a Recorrida trouxe esse facto ao conhecimento dos autos, onde, como é do seu cabal conhecimento, a ora Recorrente peticionou a convocação judicial de assembleia-geral da Silcoge.
19.º - Do aviso convocatório não consta, designadamente, o ponto que integra o segundo pedido de convocação judicial de assembleia-geral, concretamente, deliberar sobre a remuneração e prestação de caução dos e pelos membros dos órgãos sociais da ora Recorrida que viessem a ser eleitos em assembleia-geral de acionistas.
20.º - Apesar de facto ocorrido na pendência desta ação, a pretensão da Recorrente mantém-se em face da permanência do objeto processual, sendo ainda possível acolher o pedido, e, finalmente, o fim visado com a ação não foi atingido (cf. o acórdão referido no artigo 27.º das motivações).
21.º - Como documentado nos autos (cf. documento n.º 1, junto pela ora Recorrente através do seu requerimento de 29 de janeiro de 2024, sob a referência Citius …), num outro veículo de investimento constituído em Portugal, no caso a sociedade “PP”, S.A.”, com a mesmíssima participação acionista daquela da ora Recorrida, igualmente requerida no âmbito de uma outra ação para convocação judicial de assembleia-geral – e igualmente sujeita à mesmíssima instância arbitral a apreciação daquela participação acionista – a ora Recorrida teve o cuidado de informar a ora Recorrente antes de proceder à sua convocação, não se alcançando por que razão não o fez na presente situação.
22.º - Decidir, como se decide na Sentença sob recurso, a existência, in casu, de uma inutilidade superveniente da lide, constitui a guarida perfeita para uma atuação contra o Direito, quando no caso sub iudice o fim visado com a ação não foi atingido.
23.º - Ao decidir sobre o segundo ponto do petitório, a saber, convocação de assembleia-geral da Recorrida para deliberar sobre a remuneração e prestação de caução dos e pelos membros dos órgãos sociais da Sociedade, eleitos ao abrigo do ponto antecedente [sendo este ponto o primeiro do petitório, ou seja, a eleição dos órgãos sociais da sociedade para o mandato correspondente ao triénio de 2023-2025], declarando a inutilidade superveniente da presente lide, o Tribunal a quo incorreu num incorreto julgamento dos documentos juntos pela ora Recorrida, em 11 de janeiro de 2024 (cf. requerimento sob a referência citius …) e numa incorreta interpretação dos artigos 396, n.ºs 1, 3 e 5, e 399.º, n.º 1, do CSC.
24.º - Se o Tribunal a quo tivesse preconizado uma correta valoração dos documentos acima referidos, teria concluído, relativamente ao documento n.º 1 (junto com o requerimento sob a referência citius…), que um aviso destinado a convocar unicamente uma sociedade, que não a ora Recorrente, alegadamente acionista única da Recorrida, bem sabendo esta que, considerando o processo arbitral em curso, não podia deixar de convocar a Recorrente, nunca poderia constituir – em face até do objeto do presente processo judicial – convocatória idónea a fazer intervir a ora Recorrente na assembleia-geral da Recorrida realizada em dezembro de 2023.
25º - Ao entender o contrário, a Sentença recorrida apenas deu conforto a uma decisão de exclusão abusiva da ora Recorrente enquanto acionista da Recorrida, protegendo mesmo a forma que a Recorrida encontrou para tornear a presente ação judicial, não informando nem a Recorrente – nem o Tribunal –, de que iria convocar a assembleia-geral objeto da presente ação.
26.º - O mesmo sucede com o incorreto julgamento do segundo documento junto pela Recorrida, a Ata da sua assembleia-geral de dezembro de 2023, através do qual o Tribunal a quo, considerando o expresso teor do mesmo – de afastamento propositado e pretendido da ora Recorrente enquanto acionista da Recorrida –, sempre deveria ter entendido que o ato societário em questão nunca seria idóneo para a justa composição do presente procedimento judicial, considerando que o pedido formulado pela ora Recorrente de deliberar sobre a remuneração e prestação de caução dos e pelos membros dos órgãos sociais da Sociedade, se tratou de ponto totalmente excluído do aviso convocatório e da assembleia-geral.
27.º - A Sentença recorrida padece de idêntico erro na apreciação dos Estatutos da ora Recorrida – cf. documento n.º 2, junto pela ora Recorrente em requerimento de 28-8-2023, sob a referência Citius …, em especial, do artigo 23.º, número três, dos referidos Estatutos, que impõe a deliberação em assembleia-geral no que respeita a eleição dos órgãos sociais e respetiva remuneração.
28.º - Erróneo julgamento sedimentado, ainda, por uma incorreta aplicação do Direito aos factos, respeitando, materializada numa incorreta interpretação dos artigos 396º, n.ºs 1, 3 e 5, e 399.º, n.º 1, do CSC.
29.º - A decisão em crise, ao dirigir-se, unicamente, ao primeiro dos três pontos do petitório da ora Recorrente, afirmando que «em face da deliberação tomada na assembleia de 21.12.2023, a ré passou a ter os seus órgãos nomeados, mostrando-se alcançado o primeiro dos desideratos da convocação requerida, não podendo, assim, prosseguir a ação com vista a alcançar finalidade já satisfeita», está, desde logo, a sustentar, pela via judicial, já se referiu, uma postura cristalina e inelutavelmente abusiva por parte da Recorrida.
30.º - Quanto ao segundo pedido – convocação de assembleia-geral para deliberar sobre a remuneração e prestação de caução dos e pelos membros dos órgãos sociais da Sociedade, este ponto, como facilmente se pode alcançar do documento n.º 1 junto pela ora Recorrida, com o seu já antes referido requerimento sob a referência citius …, nem sequer consta do aviso convocatório.
31.º - No entanto, a Sentença a quo apreciou assim este ponto do petitório da ora Recorrente: «Da referida deliberação, em face da omissão de qualquer referência à remuneração do cargo, temos que concluir necessariamente que a assembleia de sócios não quis remunerar as pessoas nomeadas, pois caso contrário tê-lo-ia feito no ato da nomeação».
32.º - Na mesma esteira, agora quanto à prestação de caução, decidiu a Sentença em crise: «estamos em crer que também quanto a este ponto verifica-se a inutilidade do prosseguimento da presente lide, pois que caso tivesse sido intenção da sociedade de dispensar os administradores nomeados da prestação de caução, tê-lo-ia feito da assembleia de designação».
33º - Ora, pela simples leitura dos Estatutos da Recorrida, em especial, do respetivo artigo 23.º, número três, é imposta a deliberação em assembleia-geral no que respeita a eleição dos órgãos sociais da Recorrida, e respetiva remuneração, pelo que, a decidir como decidiu, a Sentença recorrida aparenta ter feito absoluta tábua-rasa desta disposição estatutária.
34.º - À luz do disposto no número 1, do artigo 399.º, do CSC – norma jurídica que a Sentença a quo convocou para a respetiva fundamentação – compete, designadamente, à assembleia-geral de acionistas fixar as remunerações de cada um dos administradores, dispositivo que vai, assim, ao encontro da norma estatutária antes referida.
35.º Como refere J. M. COUTINHO DE ABREU, «no silêncio do estatuto [o que, como vimos, nem sucede in casu], a remuneração é devida, os administradores têm direito a ela. Devem, pois, os sócios deliberá-la. Não é lícito que deixem de deliberar (…)».
36.º Ora, não sendo sequer lícito que os sócios deixem de deliberar sobre a matéria em questão, não se alcança a interpretação que o Tribunal recorrido faz da norma jurídica convocada – e do disposto nos Estatutos da Recorrida – ao referir que «temos que concluir necessariamente que a assembleia de sócios não quis remunerar as pessoas nomeadas, pois caso contrário tê-lo-ia feito no ato da nomeação».
37º - «Esta disciplina é imperativa – não é lícita a fixação de remunerações por outras vias que não as indicadas nesse preceito» – conclui o autor acabado de citar, o que adensa a incredulidade da ora Recorrente perante a fundamentação (interpretação) preconizada pela Sentença recorrida no que respeita ao preceito em apreço.
38.º - Igual caminho percorre neste recurso a interpretação que Tribunal a quo faz das normas contidas no artigo 396.º, n.ºs 1, 3 e 5, do CSC, a respeito da prestação de caução pelos administradores.
39.º - Nos termos do disposto no n.º 3, a caução pode, de facto, ser dispensada, mas por deliberação da assembleia geral que eleja o conselho de administração, estatuindo, por seu turno, o n.º 5, que é dispensada a prestação de caução aos administradores não executivos e não remunerados – o que não sucede in casu, pois administradores, por força dos Estatutos da Recorrida, são remunerados.
40.º - A este respeito, no silêncio dos Estatutos, a eventual dispensa de prestação de caução pelos administradores carece de deliberação das assembleia-geral, sendo que esta possível decisão «deve ser contemporânea da eleição / designação».
41.º - Ou seja, através de uma errada interpretação das normas jurídicas convocadas para a decisão de julgar extinta a presente instância por inutilidade superveniente da lide, o Tribunal a quo permitiu o errado julgamento, como inúteis, de questões fundamentais que se suscitam no âmbito do objeto dos presentes autos, a saber, a convocação de assembleia geral da ora Recorrida para eleição dos respetivos corpos sociais e para deliberar sobre a remuneração e prestação de caução dos e pelos membros dos órgãos sociais da Sociedade.
42.º - O que nunca poderia ter sido decidido in casu já que, apesar de facto ocorrido na respetiva pendência – a realização de assembleia-geral da ora Recorrida em dezembro do ano passado –, a pretensão da ora Recorrente sempre se manteria em face da permanência do objeto processual, sobrevivendo, assim, a utilidade da decisão por ainda ser possível acolher o pedido, justamente porque o fim visado com a ação não foi, como antes demonstrado, atingido.
43.º - Por isto, não se afirme, como o faz a Sentença recorrida, que «alega[ndo] a autora que não foi convocada para a assembleia em causa, tendo a mesma sito tomada à sua revelia (…), tal circunstância, independentemente de poder eventualmente constituir um vício conducente à nulidade ou anulabilidade das deliberações tomadas na assembleia em causa, não obsta a que se considere inútil a convocação da assembleia para nomeação dos órgãos sociais».
44.º - Nem tão pouco se respalde o que se continua a referir na Sentença em crise, ou seja, «que, tendo sido tomada a deliberação, como resulta da ata junta ao processo, e não tendo sido requerida cautelarmente a suspensão da sua execução (circunstância que, a verificar-se, deveria ter sido alegada e demostrada pela parte na resposta dada), a deliberação produz efeito jurídico enquanto se mantiver em vigor e a sociedade “BB” encontra-se atualmente representada pelos membros do conselho de administração nomeados.».
45.º - Primeiro, porque a possibilidade (que não se discute, sequer, in casu, até porque a subjacente questão da legitimidade ativa, ou falta dela, num procedimento dessa natureza está arredada de qualquer tipo de apreciação na presente instância) de ser intentada medida cautelar destinada à suspensão da execução da deliberação de nomeação dos órgãos sociais da ora Recorrida, sempre se dirigiria, tão só, a isso mesmo, à eleição dos órgãos sociais, e não a qualquer das outras deliberações, não tomadas, e, essas sim, com respaldo na decisão a proferir nos presentes autos.
46.º - Depois, porque mesmo que assim não fosse, à ora Recorrente assistem outros direitos de ação que não apenas os limitados na providência nominada destinada a suspensão ou mesmo à anulação de deliberações sociais, situação que, por isso mesmo, acresce para a conclusão anterior no sentido de a esta instância isso dever ser totalmente indiferente.
47.º - Mas o que nunca lhe podia ser indiferente foi a evidência que resulta cristalina dos autos de que a convocatória pretendida não se dirigiu à ora Recorrente enquanto acionista da Recorrida, quer pelo teor do respetivo aviso, quer da Ata da entretanto realizada assembleia-geral.
48.º - E essa exclusão da ora Recorrente é propositada: justamente, porque nos termos previstos nos Estatutos da ora Recorrida, mais concretamente, no respetivo, artigo 23.º, número dois, a), e número três, c), a deliberação de eleição dos órgãos sociais da sociedade, bem como da respetiva remuneração, estão sujeitas a votação por maioria qualificada correspondente a 75% da totalidade do capital social da Recorrida com direito de voto – ou seja, porque sempre seria necessário o voto favorável da ora Recorrente para aprovar as matérias contidas nos pontos antes referidos.
49.º - Nunca tendo sido intenção da Recorrida convocar a Recorrente – mantendo-se, assim, atual o objeto do processo, bem como a utilidade de decisão a proferir por ainda ser possível acolher o pedido –, o fim visado com a ação não foi atingido: não só a Recorrente não foi regular e propositadamente convocada para a sobredita assembleia-geral, como nesta reunião não foram sujeitos a deliberação dos acionistas, como o deveriam ter sido porque assim peticionado pela Recorrente, pontos que, legal e estatutariamente, deveriam ter sido integrados na ordem de trabalhos da convocatória, e, bem assim, objeto de deliberação em assembleia-geral de acionistas da sociedade Recorrida, sujeitos, finalmente, a votação pela maioria qualificada referida no ponto precedente.
Termina pedindo que seja revogada a sentença recorrida, substituindo-a por outra que determine:
a) A regular convocação da ora Recorrente na qualidade de acionista da ora Recorrida, devendo essa qualidade constar do respetivo aviso convocatório, para a assembleia-geral de acionistas a convocar pelo respetivo Presidente da Mesa;
b) Do respetivo aviso convocatório deverão constar os seguintes pontos da ordem de trabalhos, a deliberar em assembleia-geral:
(i.) A eleição dos órgãos sociais da sociedade para o mandato correspondente ao triénio de 2023-2025;
(ii.) A remuneração e prestação de caução dos e pelos membros dos órgãos sociais da Sociedade, eleitos ao abrigo do ponto antecedente,
A requerida/recorrida apresentou contra-alegações, concluindo por pedir que seja negado provimento ao recurso, mantendo-se inalterada a sentença recorrida, para o que formula as seguintes conclusões:
A - Por Deliberação de 21.12.2023, a Assembleia Geral da Recorrida elegeu os órgãos sociais para o triénio de 2023-2025, pelo que resultado ou efeito jurídico visado com a presente ação já foi atingido, pois já foi realizada a assembleia geral cuja convocação foi requerida pela Recorrente nos presentes autos.
B. - Por conseguinte, a decisão do Tribunal a quo de extinguir a instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e), do CPC, não merece qualquer reparo, devendo ser mantida.
C. - Os argumentos do Recorrente para impugnar a Sentença Recorrida e tentar obstar à extinção da presente instância por inutilidade superveniente da lide são totalmente improcedentes.
D. - Em primeiro lugar, a validade (ou invalidade) da Deliberação de 21.12.2023 apenas pode ser sindicada através da instauração da correspondente ação de anulação de deliberações sociais, proposta no prazo de 30 dias contados da data de encerramento da assembleia geral em causa, conforme estabelecido no artigo 59.º, n.º 2, alínea a), do CSC, e não no âmbito da presente ação para convocação judicial de assembleia geral.
E. - Em segundo lugar, o prazo suprarreferido para impugnar a Deliberação de 21.12.2023 já terminou, sem que o Recorrente tenha intentado a correspondente ação de impugnação de deliberações sociais. Consequentemente, qualquer putativo vício que pudesse ser assacado à Deliberação de 21.12.2023 já se encontra sanado, por caducidade do direito de impugnação, sendo inútil a convocação de uma assembleia geral com vista a deliberar sobre um tema que já foi deliberado e sobre o qual, para todos os efeitos, existe uma deliberação social em vigor.
F. Em terceiro lugar, a Deliberação de 21.12.2023 não padece do vício que a Recorrente parece assacar-lhe — a invalidade da convocatória —, uma vez que a convocatória para a assembleia geral em causa foi devidamente publicada no sítio da internet do Portal do Ministério da Justiça e cumpre todos os requisitos e formalidades previstos no 377.º, n.º 5, do CSC.
G. - Mas mesmo que se considerasse que a referência à “acionista única” na convocatória poderia constituir um vício — o que não se concede —, este sempre seria um vício procedimental irrelevante para efeitos da validade ou invalidade da Deliberação de 21.12.2023, devendo ser totalmente desconsiderado – cf. teoria da relevância dos vícios de procedimento explicada pelo Prof. Coutinho de Abreu.
H. - Em quarto e último lugar, a remuneração dos administradores e prestação de caução pelos órgãos sociais é uma deliberação acessória à deliberação de eleição dos órgãos sociais, pelo que deliberada e aprovada a eleição dos órgãos sociais da Recorrida, o fim visado com a ação encontra-se atingido, revelando-se inútil a convocação de uma assembleia geral para deliberar especificamente sobre estas questões acessórias
I. - Concluindo, e como antecipado, andou bem o Tribunal a quo ao extinguir a presente instância por inutilidade superveniente da lide, devendo o Tribunal ad quem julgar o recurso de apelação interposto pelo Recorrente totalmente improcedente e confirmar a Sentença Recorrida.
Da inadmissibilidade da ampliação do pedido em sede de recurso
J. - No petitório constante das Alegações de Recurso a Recorrente veio ampliar o pedido que deduziu na sua Petição Inicial e que foi apreciado pelo Tribunal a quo na Sentença Recorrida, peticionando, além da convocação de uma assembleia geral da Recorrida (o pedido inicial), que o Tribunal ad quem reconheça expressamente a (suposta) qualidade da Recorrente de acionista da Recorrida (o novo pedido).
K. - Não só este novo pedido extravasa o objeto do presente litígio, como também a questão é da exclusiva competência dos tribunais arbitrais, já estando a correr termos uma ação arbitral entre as partes relevantes a seu propósito (cf. capítulo C. da Contestação e Cláusula 19.8 do Acordo Parassocial). Acresce que a ampliação do pedido é extemporânea (artigo 265.º, n.º 2, do CPC).
Nestes termos, deve a ampliação do pedido formulada pela Recorrente em sede de recurso ser rejeitada, por ser inadmissível.
Nestes termos e nos mais de direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deve ser negado provimento ao presente recurso de apelação interposto pela Recorrente, mantendo-se na íntegra a Sentença Recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II. Do Objeto do recurso:
Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente —artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão que se coloca à apreciação deste Tribunal consiste em saber:
- da extinção da instância ao abrigo do disposto no art.º 277º, al. e) do CPC em consequência de facto ocorrido na pendência desta ação - convocatória e realização da Assembleia Geral.
- saber se o fim visado com a ação não foi atingido porquanto:
- a recorrente não foi regular e propositadamente convocada para a assembleia-geral;
- nesta reunião não foram sujeitos a deliberação dos acionistas, pontos que, legal e estatutariamente, deveriam ter sido integrados na ordem de trabalhos da convocatória, e objeto de deliberação em assembleia-geral de acionistas da sociedade recorrida, sujeitos a votação pela maioria qualificada consagrada nos respetivos estatutos;
- se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento por errada interpretação dos artigos 396.º, n.ºs 1, 3 e 5, e 399.º, n.º 1, do CSC.
III. Fundamentação
A factualidade a considerar na motivação de direito é a que consta do relatório deste acórdão que aqui se dá por integralmente reproduzida, relevando assim os documentos juntos aos autos e que se afiguram relevantes para a decisão da causa nos seguintes termos:
- Em 31 de maio de 2023 a recorrente/requerente enviou uma carta registada com aviso de receção enviada para a sede da recorrida/requerida dirigida ao presidente da mesa da assembleia geral da requerida a requerer a convocação de uma assembleia geral de acionistas com vista à deliberação dos seguintes pontos de discussão: i) eleição dos órgãos sociais da sociedade para o mandato correspondente ao triénio de 2023-2025; ii) remuneração e prestação de caução dos e pelos membros dos órgãos sociais da sociedade, eleitos ao abrigo do ponto antecedente; iii) outros assuntos de interesse. Mais consta da referida missiva o seguinte: “a necessidade de realização da Assembleia Geral Extraordinária cuja convocatória ora se requer pretende-se com a circunstância de que, nos termos da lei e dos estatutos da Sociedade, deve proceder-se à eleição dos membros dos órgãos para o mandato em curso. Sem prejuízo do disposto no n.º5 do art. 391º do CSC, e uma vez que o normativo referido é uma disposição transitória destinada a assegurar a gestão corrente de uma sociedade considerando que não foram eleitos órgão sociais para nenhum período posterior a 2016, cabe proceder com urgência às aplicáveis nomeações. Adicionalmente, mais e faz notar que o órgão de administração deve ser composto por um número de membros entre 5 (cinco) e 9 (membros), pelo que, além da irregularidade do mandato, o numero mínimo de membros do órgão de administração também não se encontra cumprido.”
- O Presidente da Mesa da Assembleia Geral não promoveu a publicação da convocatória da assembleia geral nos 15 (quinze) dias seguintes à receção do requerimento.
- No dia 02/11/2023, o Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Requerida convocou uma Assembleia Geral da requerida constando do ponto 7 da Ordem de Trabalhos da convocatória o seguinte: Proceder a eleição dos órgãos sociais da Sociedade para o mandato correspondente ao triénio 2023/2025.
- A assembleia geral veio a realizar-se na segunda data mencionada na convocatória, no dia 21/12/2023, pelas 9h30.
- Nesta reunião da assembleia geral foi deliberado, entre outros, a eleição dos órgãos sociais da requerida para o mandato correspondente ao triénio de 2023-2025.
- Em 11 de janeiro de 2024 a requerida deu a conhecer nos presentes autos a convocatória para a Assembleia Geral realizada no dia 02/11/2023 e a realização assembleia geral na segunda data mencionada na convocatória, no dia 21/12/2023, pelas 9h30.
- Do ponto um do artigo 24 do Estatutos da requerida consta que a administração da Sociedade é exercida por um Conselho de Administração composto por um mínimo de cinco e um máximo de nove membros e, do ponto dois consta que os membros do Conselho de Administração serão eleitos pela Assembleia Geral pelo período de três anos e poderão sempre ser reeleitos.
- Do ponto 23, 2, al. a) e 3, als. c) e d) dos Estatutos da requerida consta que sobre a matéria relativa a eleição de órgãos sociais e sua remuneração e prestações acessórias é exigida 75% da totalidade do capital com direito de voto, caso os acionistas deliberem em primeiro ou segunda convocatória e estejam presentes ou representados acionistas titulares de, pelo menos, setenta e cinco por cento da totalidade do capital social com direito de voto.
- Dispõem o ponto 33 dos Estatutos da requerida que os membros dos órgãos sociais serão remunerados ou não conforme deliberado em Assembleia Geral.
Fundamentação de Direito
Não se conformando a apelante com a sentença que julgou extinta, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do disposto no art.º 277º, al. e) do CPC a presente ação quanto ao ponto i) e ii) do pedido e, consequentemente, declarou extinta a instância, julgando, ainda, improcedente o pedido contido no ponto iii) do petitório, dela interpôs recurso.
A requerente interpôs a presente ação formulando o seguinte pedido: “NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO QUE SE SUPRIRÃO, requer-se a V. Exa. que se digne ordenar: 1. A convocação judicial da assembleia geral, nos termos do disposto nos artigo 1057.º, do CPC, e 375.º, números 5 e 6, do CSC; 2. A convocação deve incluir a seguinte ordem do dia: i) Deliberar sobre a eleição dos órgãos sociais da Sociedade para o mandato correspondente ao triénio de 2023-2025; ii) Deliberar sobre a remuneração e prestação de caução dos e pelos membros dos órgãos sociais da Sociedade, eleitos ao abrigo do ponto antecedente; iii) Deliberar sobre outros assuntos de interesse.
Estamos, como resulta do relatório inicial, perante o processo especial (de jurisdição voluntária) de convocação judicial de assembleia geral de sócios/acionistas, previsto no art.º 1057.º do CPC.
O processo de convocação judicial de assembleia de sócios previsto no art.º 1057º do CPC) “abarca casos em que a lei comercial prevê expressamente a convocatória da assembleia geral, nomeadamente para suprir a inércia dos órgãos societários a quem cabe tal convocação (art.ºs 375º, n.º6, 355º, n.º3 do CSC), ou situações em que a assembleia geral, apesar de convocada, foi ilicitamente impedida de funcionar” (cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II (Processo de Execução, Processos Especiais e Processo de Inventário Judicial), 2º edição, Reimpressão, págs. 534 e 535.
Dizem ainda estes autores que o pedido de convocação judicial de assembleia previsto no art.º 375º, n.º6 do CSC, não exige a apreciação pelo tribunal das razões do sócio requerente, competindo-lhe apenas verificar se a recusa foi ou não, legitima à luz do disposto no art.º 375º do CSC, isto é, se formalmente, se verificam os pressupostos constantes dos n.ºs 2 e 3.
Ou seja, não cabe ao tribunal, ao sindicar o preenchimento do requisito da necessidade da assembleia geral, a indagação da substância dessa necessidade, bastando-se com sua verificação em termos meramente formais (neste sentido cf. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7/2/2023, Relator Fernando Vilares Ferreira, processo n.º 778/22.0T8AMT.P1, disponível para consulta in www.dgsi.pt).
Por outro lado, o processo não se dirige contra ninguém, nem contra quem se recusou a convocar a assembleia, nem contra quem impediu a sua realização ou funcionamento e, em caso de procedência, designa-se quem exercerá a função de presidente da assembleia e promovem-se as diligências indispensáveis a garantir a realização e funcionamento da assembleia, com indicação da respetiva ordem de trabalhos (seja a indicada pelo requerente, seja a que o juiz estabeleça em resultado das diligências instrutórias que realize) – Cf. Ob. cit., Loc. cit.).
A legitimidade ativa é conferida a qualquer sócio, nos casos previstos nos art.ºs 67º, n.º4, 248º, n.ºs 1 e 2, 263º do CSC; também aos gerentes ou administradores, no caso previsto no art.º 67º, n.º4 do CSC e, no caso das sociedades anónimas a um ou mais acionistas que possuam ações correspondentes a, pelo menos, 5% do capital social nos casos dos art.ºs 375º, n.º6 do CSC («os accionistas cujos requerimentos não forem deferidos podem requerer a convocação judicial da assembleia») e 378º, n.º1 e 4 do CSC («O accionista ou accionistas que satisfaçam as condições exigidas pelo artigo 375.º, n.º 2, podem requerer que na ordem do dia de uma assembleia geral já convocada ou a convocar sejam incluídos determinados assuntos; Não sendo satisfeito o requerimento, podem os interessados requerer judicialmente a convocação de nova assembleia para deliberar sobre os assuntos mencionados, aplicando-se o disposto no artigo 375.º, n.º 7»).
Caso proceda a ação, o dispositivo da sentença deve conter três segmentos complementares: o deferimento do pedido; a designação de quem há de exercer a função de presidente da assembleia, a promoção das diligências indispensáveis a garantir a realização e funcionamento da assembleia (n.º3).
No caso, pretendia a autora a convocação de assembleia Geral da Ré, sociedade anónima.
Prescreve o art. 375º do CSC que: «1 - As assembleias gerais de accionistas devem ser convocadas sempre que a lei o determine ou o conselho de administração, a comissão de auditoria, o conselho de administração executivo, o conselho fiscal ou o conselho geral e de supervisão entenda conveniente; 2 - A assembleia geral deve ser convocada quando o requererem um ou mais accionistas que possuam acções correspondentes a, pelo menos, 5% do capital social; 3 - O requerimento referido no número anterior deve ser feito por escrito e dirigido ao presidente da mesa da assembleia geral, indicando com precisão os assuntos a incluir na ordem do dia e justificando a necessidade da reunião da assembleia; 4 - O presidente da mesa da assembleia geral deve promover a publicação da convocatória nos 15 dias seguintes à recepção do requerimento; a assembleia deve reunir antes de decorridos 45 dias a contar da publicação da convocatória; 5 - O presidente da mesa da assembleia geral, quando não defira o requerimento dos accionistas ou não convoque a assembleia nos termos do n.º 4, deve justificar por escrito a sua decisão, dentro do referido prazo de 15 dias; 6 - Os accionistas cujos requerimentos não forem deferidos podem requerer a convocação judicial da assembleia; 7 - Constituem encargo da sociedade as despesas ocasionadas pela convocação e reunião da assembleia, bem como as custas judiciais, nos casos previstos no número anterior, se o tribunal julgar procedente o requerimento.
Em conformidade, nos termos do art.º 375º do CSC, a convocação judicial da assembleia geral de acionistas prevista no n.º 4, depende da verificação dos seguintes requisitos: a) ter o interessado na convocação dirigido um requerimento (escrito) ao presidente da mesa da assembleia geral (PMAG), solicitando a convocação de uma assembleia geral; b) ter indicado com precisão, nesse requerimento, os assuntos a incluir na ordem do dia; c) ter justificado a necessidade da reunião da assembleia; e d) não ter o PMAG promovido a publicação da convocatória da assembleia geral nos 15 dias seguintes à receção do requerimento ou ter indeferido, sem justificação pertinente, a convocatória.
No que toca ao primeiro e segundo requisitos, as assembleias gerais de sócios/acionistas são, via de regra, convocadas pelo presidente da mesa da assembleia geral (art.º 377.º, n.º 1 do CSC). No entanto, o presidente da mesa da assembleia geral convoca por iniciativa ou a requerimento dos órgãos ou sujeitos indicados no art.º 375.º1 e 2 do CSC. Um desses “sujeitos”, de acordo com tal art.º 375.º, n.º 2 do CSC, é o sócio que possua ações correspondentes a 5% ou mais do capital social, o qual tem o direito de requerer ao presidente da mesa da assembleia geral a convocação da assembleia, devendo o requerimento ser-lhe dirigido, ser feito por escrito e indicar com precisão os assuntos a incluir na ordem do dia da assembleia (art.º 375.º, n.º3 do CSC).
Quanto ao terceiro requisito, a justificação de tal necessidade fica satisfeita com a mera indicação de assuntos, a incluir na ordem do dia, que sejam, legal e estatutariamente, sujeitos a deliberação dos sócios, não sendo exigível que o requerente indique/adiante, de modo preciso, os factos e as razões fundamentadoras da proposta a apresentar em Assembleia Geral (neste sentido cf. Ac. da Relação de Coimbra de 6/11/2018, Relator Barateiro Martins, proferido no processo n.º 189/18.2T8GRD.C1).
No caso dos autos, está provado que em 31 de maio de 2023 a recorrente/requerente enviou uma carta registada com aviso de receção para a sede da recorrida/requerida dirigida ao presidente da mesa da assembleia geral da requerida a requerer a convocação de uma assembleia geral de acionistas com vista à deliberação dos seguintes pontos de discussão: i) eleição dos órgãos sociais da sociedade para o mandato correspondente ao triénio de 2023-2025; ii) remuneração e prestação de caução dos e pelos membros dos órgãos sociais da sociedade, eleitos ao abrigo do ponto antecedente; iii) outros assuntos de interesse. Por seu turno, o Presidente da Mesa da Assembleia Geral não promoveu a publicação da convocatória da assembleia geral nos 15 (quinze) dias seguintes à receção do requerimento.
No que diz respeito, ao primeiro requisito, a sentença recorrida deu-o como verificado considerando, que a recorrente se arroga a titularidade de 49,90% (quarenta e nove vírgula noventa por cento) do capital da requerida.
A apelada considera, por seu turno, que este requisito se encontra controvertido, porquanto a autora já não é acionista da requerida.
Porém, quanto à questão da legitimidade suscitada na oposição considerou o Tribunal recorrido que esta se prende com a legitimidade ad substantiam e não processual, verificando-se esta pois que a requerente arroga-se a qualidade de acionista da sociedade e enquanto tal tem direito de requerer a convocação da assembleia geral, decisão que não foi impugnada por qualquer das partes e que, como tal se encontra transitada.
Quanto ao segundo requisito, no requerimento escrito dirigido ao Presidente da Mesa da Assembleia Geral (como resulta dos factos provados) indicou a recorrente com precisão os assuntos a incluir na ordem do dia da assembleia a convocar: i) eleição dos órgãos sociais da sociedade para o mandato correspondente ao triénio de 2023-2025; ii) remuneração e prestação de caução dos e pelos membros dos órgãos sociais da sociedade, eleitos ao abrigo do ponto antecedente; iii) outros assuntos de interesse e justificou a sua necessidade (3º requisito): “a necessidade de realização da Assembleia Geral Extraordinária cuja convocatória ora se requer pretende-se com a circunstância de que, nos termos da lei e dos estatutos da Sociedade, deve proceder-se à eleição dos membros dos órgão para o mandato em curso. Sem prejuízo do disposto no n.º5 do art. 391º do CSC, e uma vez que o normativo referido é uma disposição transitória destinada a assegurar a gestão corrente de uma sociedade considerando que não foram eleitos órgão sociais para nenhum período posterior a 2016, cabe proceder com urgência às aplicáveis nomeações. Adicionalmente, mais e faz notar que o órgão de administração deve ser composto por um número de membros entre 5 (cinco) e 9 (membros), pelo que, além da irregularidade do mandato, o número mínimo de membros do órgão de administração também não se encontra cumprido.”
Considerando que do artigo 24 do Estatutos da requerida, ponto um consta que “a administração da Sociedade é exercida por um Conselho de Administração composto por um mínimo de cinco e um máximo de nove membros e, do ponto dois consta que os membros do Conselho de Administração serão eleitos pela Assembleia Geral pelo período de três anos e poderão sempre ser reeleitos”, na missiva enviada à recorrida mostra-se suficientemente justificada a necessidade de convocação da Assembleia Geral.
Por fim, não tendo o Presidente da Mesa da Assembleia Geral promovido a publicação da convocatória da assembleia geral nos 15 (quinze) dias seguintes à receção do requerimento, de igual modo se mostra verificado o quarto requisito.
A presente ação deu entrada em juízo em 21/06/2023 e foi apresentada contestação em 28/09/2023.
No entanto, e aqui reside o âmago do presente recurso, no dia 02/11/2023, o Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Requerida convocou uma Assembleia Geral da requerida constando do ponto 7 da Ordem de Trabalhos da convocatória o seguinte: Proceder a eleição dos órgãos sociais da Sociedade para o mandato correspondente ao triénio 2023/2025. A assembleia geral veio a realizar-se na segunda data mencionada na convocatória, no dia 21/12/2023, pelas 9h30. Nesta reunião da assembleia geral foi deliberado, entre outros, a eleição dos órgãos sociais da requerida para o mandato correspondente ao triénio de 2023-2025, tendo sido nomeados cinco administradores do Conselho de Administração.
Tendo sido dado a conhecer nos autos pela requerida, em 11 de janeiro de 2024 (ou seja, na pendência da ação) a convocatória para a Assembleia Geral realizada no dia 02/11/2023 e a realização assembleia geral na segunda data mencionada na convocatória, no dia 21/12/2023, pelas 9h30, entendeu o Tribunal a quo que se verificava inutilidade superveniente da lide, tendo, por consequência e nos termos do disposto no art. 277º, al. e) do CPC declarado extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, decisão contra a qual se insurge a recorrente.
Vejamos se assim é.
Nos termos do art.º 277.º al. e), do CPC, a inutilidade e a impossibilidade superveniente da lide, ocorre quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, ou se encontra fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio /neste preciso sentido, José Lebre de Freitas, João Redinha, Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, I Volume, 2ª Edição, Almedina, 2003 anotação 3 ao art.º 287.º, p. 512.
Dizem-nos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, in Ob. Cit., Vol. I, pág. 356 que “a inutilidade superveniente da lide decorre em geral dos casos em que o efeito pretendido já foi alcançado por via diversa”.
Também sobre esta temática, escreveu-se no Acórdão do STJ de 25.3.2010 – Processo n.º 2532/05.5TTLSB.L1.S1, Conselheiro Pinto Hespanhol, disponível em www.dgsi.pt, que: “A impossibilidade da lide ocorre por morte ou extinção de uma das partes, por desaparecimento ou perecimento do objecto do processo, ou por extinção de um dos interesses em conflito. Por sua vez, a inutilidade superveniente da lide verifica-se quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não possa ter qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo ou porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio”, e no Acórdão da Relação de Lisboa, de 2-07-2019, proferido no processo n.º 566/19.1YRLSB.L1-7, Relatora Micaela Sousa, (igualmente disponível in www.dgsi.pt e citado pelo apelante nas suas alegações que): “A instância pode extinguir-se por inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide, o que se verifica quando, por facto ocorrido na sua pendência, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência requerida, situação em que não existe qualquer efeito útil na decisão a proferir por já não ser possível o pedido ter acolhimento ou o fim visado com a acção ter sido atingido por outro meio.”
A alínea e) do artigo 277º do CPC prende-se com o princípio da estabilidade da instância, que se inicia com a formulação de um pedido consistente numa pretensão material com solicitação da sua tutela judicial.
A Autora propõe a presente ação especial para convocação judicial de Assembleia Geral contra a apelada, com fundamento nos art.ºs 1057º do CPC e 375º, n.º 6 do CSC, tendo como causa de pedir a inércia dos órgãos societários a quem incumbe tal convocação.
Dos estatutos da requerida consta que a administração da Sociedade é exercida por um Conselho de Administração composto por um mínimo de cinco e um máximo de nove membros e, do ponto dois consta que os membros do Conselho de Administração serão eleitos pela Assembleia Geral pelo período de três anos e poderão sempre ser reeleitos.
Este objetivo, esgota-se, como bem entendeu a primeira instância, com a convocação da Assembleia Geral e a eleição dos membros do Conselho de Administração.
Resulta dos factos que no dia 02/11/2023, o Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Requerida convocou uma Assembleia Geral da requerida constando do ponto 7 da Ordem de Trabalhos da convocatória o seguinte: Proceder a eleição dos órgãos sociais da Sociedade para o mandato correspondente ao triénio 2023/2025, que a assembleia geral veio a realizar-se na segunda data mencionada na convocatória, no dia 21/12/2023, pelas 9h30 e que, nesta reunião da assembleia geral, foi deliberado, entre outros, a eleição dos órgãos sociais da requerida para o mandato correspondente ao triénio de 2023-2025.
No que diz respeito ao efeito que com a presente ação é possível obter – convocação da Assembleia Geral - encontra-se atingido pela iniciativa do Presidente da Mesa que veio, assim, tomar a ação que há muito deveria ter tomado, concordando-se, pois, com a conclusão da sentença recorrida quando diz que: em face da deliberação tomada na assembleia de 21/12/2023, a ré passou a ter os seus órgãos nomeados, mostrando-se alcançado o primeiro dos desideratos da convocação requerida, não podendo, assim, prosseguir a ação com vista a alcançar finalidade já satisfeita”.
Nas suas conclusões recursivas defende a recorrente que a convocatória para a Assembleia Geral a excluiu, não obstante reconhecer que essa decisão se encontra controvertida e em discussão no âmbito de processo arbitral, não podendo deixar de ser convocada, não constituindo, por isso, convocatória idónea a fazer intervir a recorrente na Assembleia Geral realizada.
Sublinha-se, como supra se evidenciou, que o objeto da presente ação se circunscreve à convocação judicial de Assembleia Geral, determinado o n.º3 do art.º 1057º do CPC que, deferido o pedido, é designado pelo juiz a pessoa que há-de exercer a função de presidente e ordena as diligências indispensáveis à realização da assembleia. Desta forma, o seu objeto esgota-se na promoção das diligências indispensáveis à realização e funcionamento de assembleia que se agenda, que competirão ao Presidente da Assembleia da Mesa Geral indicado, situando-se para lá desse objeto, e por isso extravasando o poder cognitivo e decisório do tribunal (no seu âmbito), as vicissitudes da sua convocatória e as vicissitudes e ocorrências de tal assembleia - cf. Acórdão da Relação do Porto de 19/03/2024, proferido no processo 2657/23.5T8STS-A.P1, disponível para consulta in www.dgsi.pt – e que eventualmente possam determinar a nulidade ou anulabilidade das deliberações tomadas por vícios de procedimento (relativos ao modo ou processo pelo qual se formou a deliberação, ao “como” se decidiu), ou são de conteúdo (atinentes à regulamentação ou disciplina estabelecida pela deliberação, ao “que” foi decidido) – na classificação de vício dada por Coutinho de Abreu, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. I, p. 656).
Concluindo, é correta a premissa de que partiu a Mmº Juiz a quo para julgar verificada a impossibilidade superveniente da lide ao referir, quanto à questão da nomeação dos órgãos sociais, que a falta de convocatória dirigida à recorrente, independentemente de poder eventualmente constituir um vício conducente à nulidade ou anulabilidade das deliberações tomadas na assembleia em causa, não obsta a que se considere inútil a convocação da assembleia para nomeação dos órgãos sociais. Pois que, tendo sido tomada a deliberação, como resulta da ata junta ao processo, e não tendo sido requerida cautelarmente a suspensão da sua execução (circunstância que, a verificar-se, deveria ter sido alegada e demostrada pela parte na resposta dada), a deliberação produz efeito jurídico enquanto se mantiver em vigor e a sociedade Silcoge encontra-se atualmente representada pelos membros do conselho de administração nomeados.
A administração encontra-se nomeada e a sua nomeação a produzir efeitos na ordem jurídica, posto que não foi atacada nem o pode ser por via da presente ação, pelo que, nesta conformidade, inexiste fundamento para convocação da assembleia com vista à nomeação dos órgãos sociais.
Em consonância com o acima expendido, não pode deixar de se concluir que a lide se torna inútil quando sobrevêm circunstâncias que, de todo o modo, inviabilizariam o pedido, não em termos de procedência (pois que então estar-se-ia no âmbito do mérito), mas por razões conectadas com a não possibilidade adjetiva de lograr o objetivo pretendido com a ação, por já ter sido atingido por outro meio ou já não poder sê-lo.
É certo que a recorrida apenas deu a conhecer nos autos a convocatória para a Assembleia Geral após a realização desta, mas não vemos como esta sua conduta seja de integrar no conceito de abuso de direito na forma de venire contra factum proprium – como entende a apelante nas suas conclusões recursivas (cf. conclusão 16).
Dos articulados da ação resulta à evidência o conflito entre ambas as partes acerca da qualidade da primeira de sócia da segunda, afirmando-a a primeira e negando-a a segunda, questão que é neste momento litigiosa.
Ocorre uma situação típica de abuso do direito quando alguém, detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela ordem jurídica, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante.
No caso, não está demonstrado que a intenção dos órgãos da requerida em convocar a Assembleia Geral e realizá-la sem dela dar conhecimento à recorrente tenha sido a de exclui-la, intencionalmente, da participação da Assembleia Geral, tão só porque a requerida entende (com razão ou sem ela não é de avaliar no âmbito do presente recurso) que a requerente não é sua sócia e, como tal, não lhe assiste o direito legal de participar na Assembleia Geral de sócios e para tal ser convocada. Foi este o entendimento que a apelada pugnou em sede de oposição ao pedido nesta ação, de modo que não vemos como, a sua atuação posterior, possa constituir conduta cuja valoração negativa resulte ilegítima por forma a integrar o instituto do abuso de direito. Se a apelada considera que, neste momento, a apelante não é sua sócia, limitou-se a atuar dessa mesma forma, em consonância, com a sua defesa na ação.
Defende, ademais, a recorrente a inexistência de fundamento para a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, quanto aos restantes pontos da ordem de trabalhos que pretendia ver fixados: ii) remuneração e prestação de caução dos e pelos membros dos órgãos sociais da sociedade, eleitos ao abrigo do ponto antecedente.
Este ponto não consta do aviso convocatório da Assembleia Geral, nem foi objeto de deliberação em sede de assembleia Geral.
A sentença recorrida entendeu que “da referida deliberação, em face da omissão de qualquer referência à remuneração do cargo, temos que concluir necessariamente que a assembleia de sócios não quis remunerar as pessoas nomeadas, pois caso contrário tê-lo-ia feito no ato da nomeação. Com efeito, afigura-se-nos que a questão da remuneração está necessariamente implícita na decisão de nomeação, pois que para a remuneração constituirá um elemento essencial do acordo subjacente à designação. Na verdade, atenta a deliberação tomada, que a posição da assembleia quanto a esse ponto está efetivamente tomada e definida, ainda que de forma implícita, revelando-se inútil o prosseguimento da lide para o efeito.
A este propósito prevê o art. 399.º do CSC que “compete à assembleia geral de acionistas ou a uma comissão por aquela nomeada fixar as remunerações de cada um dos administradores, tendo em conta as funções desempenhadas e a situação económica da sociedade.”,
Por seu turno, o ponto 23, 2, al. a) e 3, als. c) e d) dos Estatutos da requerida estabelece que sobre a matéria relativa a eleição de órgãos sociais e sua remuneração e prestações acessórias é exigida 75% da totalidade do capital com direito de voto, caso os acionistas deliberem em primeiro ou segunda convocatória e estejam presentes ou representados acionistas titulares de, pelo menos, setenta e cinco por cento da totalidade do capital social com direito de voto e dispõe o ponto 33 dos Estatutos da requerida que os membros dos órgãos sociais serão remunerados ou não conforme deliberado em Assembleia Geral.
Defende a recorrente que a fixação da remuneração se trata de disciplina imperativa, não sendo lícito aos sócios que deixem de sobre ela deliberar (cf. conclusão 37º).
A este propósito pronuncia-se J.M.Coutinho de Abreu, in Ob. Cit., pág. 352/352 no seguintes termos: «o art. 399º, n.º1 não impõem remuneração; determina a quem compete fixá-la – quando devida. Não parece que haja razões suficientes para impedir a possibilidade de o estatuto social prever a gratuitidade dos cargos (todos ou alguns) de administração».
No caso da ré, como vimos, o que se prevê a este propósito nos seus estatutos é que “os membros dos órgãos sociais serão remunerados ou não conforme deliberado em Assembleia Geral”, deixando a possibilidade de a Assembleia Geral deliberar por uma ou outra possibilidade. Não existe omissão dos estatutos nesta matéria e por via dela a presunção de que os administradores têm direito à remuneração (Cf. J.M.Coutinho de Abreu, in Ob. Cit., pág. 363). E, é para estes casos (que não o dos autos, como vimos), que refere o mesmo autor que não é lícito aos sócios que deixem de deliberar.
De qualquer modo, a ilicitude desta omissão apenas se reflete nos próprios titulares dos órgãos de administração que, caso não haja deliberação, podem fazer valer judicialmente o seu direito (cf. o mesmo autor in. Ob. Cit., Loc. cit.). Ou seja, e concluindo, a deliberação sobre a remuneração dos membros dos órgãos de administração é uma atribuição da Assembleia Geral decorrente da lei e dos estatutos da ré, que pode deliberar remunerá-los ou não, mas os sujeitos afetados pela falta de deliberação são os próprios membros dos órgãos de administração.
Ora, a questão da remuneração dos elementos da Assembleia Geral está implícita na decisão de nomeação, pois que para a remuneração constituirá um elemento essencial do acordo subjacente à designação.
Na ausência de convocatória e subsequente deliberação da Assembleia Geral sobre a questão da remuneração, é perfeitamente válida a conclusão da sentença recorrida no sentido de se poder concluir que «da referida deliberação, em face da omissão de qualquer referência à remuneração do cargo, temos que concluir necessariamente que a assembleia de sócios não quis remunerar as pessoas nomeadas, pois caso contrário tê-lo-ia feito no ato de nomeação». Esta conclusão tem, por outro lado, como consequência que as remunerações dos administradores da Ré não possam ser estabelecidas por outras vias - nomeadamente por ato dos próprios administradores - sob pena de nulidade do ato desse estabelecimento por violação de norma legal imperativa (v. artº.s 280.º, n.º 1 e 295.º do Cód. Civil) (cf. neste sentido Acórdão da Relação do Porto de 12.04.2012, processo n.º 9836/09.6TBMAI.P1, disponível em www.dgsi.pt; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/03/2014, processo n.º 9836/09.6TBMAI.P1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt).
Em síntese, três conclusões se retiram: i) apenas não é licito aos sócios deixar de deliberar quanto à remuneração dos órgãos de administração quando ocorra a presunção de que são remunerados; ii) nestes casos, os órgãos da administração podem exigir judicialmente a fixação de remuneração; iii) não pode a remuneração dos sócios ser estabelecida por outra via que não seja a deliberação em Assembleia Geral de sócios.
E, assim sendo, indicados e nomeados, por deliberação dos sócios, em Assembleia Geral, estando a questão da remuneração associada a esta nomeação, a omissão de pronúncia dos sócios quanto à remuneração tem, definitivamente, em si implícita a decisão de não remuneração, como se decidiu em primeira instância, o que significa que, quanto a esta questão, está também esgotado o objeto da ação.
Idêntica afirmação é válida para a questão da falta de fixação de caução.
Nos termos do art.º 396º, n.º1 do CSC “a responsabilidade de cada administrador deve ser caucionada por alguma das formas admitidas na lei, na importância que seja fixada no contrato, mas não podendo ser inferior a € 250 000 para as sociedades emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado nem para as sociedades que cumpram os critérios da alínea a) do n.º 2 do artigo 413.º e a € 50 000 para as restantes sociedades.
Prevê o n.º 3 do mesmo preceito que exceto nas sociedades emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado e nas sociedades que cumpram os critérios da alínea a) do n.º 2 do artigo 413.º, a caução pode ser dispensada por deliberação da assembleia geral ou constitutiva que eleja o conselho de administração ou um administrador e ainda quando a designação tenha sido feita no contrato de sociedade, por disposição deste.
A ré não se encontra em nenhumas das situações elencadas e que constituem exceção à obrigatoriedade de prestação de caução, pelo que os órgãos de administração, por cláusula estatutária ou deliberação da assembleia geral, podem ser dispensados de prestar caução.
Acresce o disposto no n.º 5 do art. 396º do CSC.
Nos termos deste preceito, que prevê a dispensa legal de prestação de caução, é dispensada a prestação de caução aos administradores não executivos e não remunerados.
Refere Maria Elisabete Ramos, in Ob. Cit., em anotação ao artigo 396º, pág. 310 que a redação deste preceito não é clara quanto aos administradores abrangidos por esta dispensa legal, mas que o seu teor literal comporta a interpretação de que são visados dois grupos de administradores: a) os não executivos e, além destes, os não remunerados. A letra da lei também é compatível com a interpretação de que a norma abrange o(s) administrador(es) que simultaneamente seja(m) não executivo(s) e não remunerado(s), mas neste caso poder-se-ia argumentar que se o legislador quisesse acolher esta última orientação, deveria ter escrito “é dispensada a prestação de caução aos administradores que simultaneamente sejam não executivos e não remunerados”.
De todo o modo, seja qual for a posição a tomar quanto ao sentido da norma, para o que ao caso importa a conclusão a tomar é que, na ausência de disposição estatutária, os órgãos da administração apenas podem ser dispensados de prestação de caução, por deliberação da Assembleia Geral.
Assim sendo, tendo a Assembleia Geral nomeado órgãos de gestão e não tendo deliberado a respetiva dispensa de prestação de caução, como decorre do art. 396º, n.º1 do CSC, é do mesmo modo válida a conclusão de que caso tivesse sido intenção da sociedade de dispensar os administradores nomeados da prestação de caução, tê-lo-ia feito na assembleia de designação.
Nomeados os órgãos executivos da ré em Assembleia Geral de sócios ocorrida na pendência da ação, constituindo quer a dispensa da remuneração, quer a prestação de caução prestações intrinsecamente associadas ao cargo de administrador, a serem definidas em sede de Assembleia Geral, a omissão de deliberação sobre as mesmas, atento o disposto nos arts. 399º do CSC e 396º do CSC em conjugação com os constantes dos pontos 23 e 30 dos Estatutos da Sociedade Ré só pode ser entendido no sentido de não ter sido fixada a primeira, e de não ter sido dispensada a segunda, como fez a decisão recorrida.
Consistindo o objeto da presente ação a convocação de Assembleia Geral da Ré, sociedade anónima, com vista à nomeação dos seus órgãos de gestão – Conselho de Administração, sendo pressuposto da justificação da necessidade de convocação, o facto de, nos termos da lei e dos estatutos da Sociedade, dever proceder-se à eleição dos membros dos órgãos para o mandato em curso, as duas outras questões elencadas pela recorrente na ordem de trabalhos são, acessórias àquela, que era o fundamento e causa de pedir da presente ação.
E, assim sendo, não podemos deixar de considerar, como fez a decisão recorrida e do mesmo modo defende o apelado que, uma vez realizada a Assembleia Geral onde se cumpriu aquele desiderato, ocorreu um facto posterior à inauguração da presente lide que implica a desnecessidade de sobre ela recair pronúncia judicial, por ausência de efeito útil.
Improcede a apelação, devendo manter-se inalterada a sentença recorrida, ficando prejudicada a apreciação da questão da inadmissibilidade de alteração do pedido suscitadas pela recorrida nas suas contra-alegações de recurso (conclusão J).
IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 1ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante (art.º 527º do CPC).
Registe e notifique.
Lisboa, 15-10-2024,
Susana Santos Silva
Ana Rute Costa Pereira
Paula Cardoso