DEPOIMENTO DE PARTE
DECLARAÇÕES DE PARTE
DISCRIMINAÇÃO DOS FACTOS
APERFEIÇOAMENTO
REJEIÇÃO
Sumário


I – A parte ao requerer o depoimento de parte deve indicar, discriminadamente, os factos sobre os quais há-de recair (art.º 452.º, nº 2 do CPC.).
II – Quando a discriminação dos factos aos quais se pretende inquirir a parte não é feita, a solução não será no sentido do indeferimento de tal meio de prova, mas sim o julgador deve convidar a parte requerente a aperfeiçoar o seu requerimento de prova, concedendo assim a possibilidade de suprir tal falta.
III – Incumbe à parte que pretende prestar declarações indicar os factos sobre que irá depor, delimitando minimamente o objeto do seu depoimento que se deverá cingir aos factos em que tenha intervindo pessoalmente ou tenha conhecimento direto de forma a permitir ao juiz maior precisão na condução da inquirição.
IV- Se após o convite ao aperfeiçoamento a parte continua sem discriminar a matéria factual objeto do depoimento e das declarações de parte por si requeridas, o requerimento probatório deve ser rejeitado.

Texto Integral


Acordam na Secção Social da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO
           
Nos presentes autos de processo comum em que é Autor AA e Ré EMP01..., Lda., veio a Ré, na contestação em sede de indicação de prova, requer o depoimento de parte do Autor à matéria constante dos artigos 6.º a 83.º do seu articulado e requer que o seu sócio gerente, BB preste declarações à matéria dos artigos 6.º a 91.º do seu articulado.

Os autos prosseguiram a sua tramitação normal e aquando da prolação do despacho saneador, a Mma. Juiz a quo proferiu o seguinte despacho no que respeita à admissão de tais depoimentos:
“(…)
Ao abrigo do disposto nos artigos 452.º n.º 2 e 466.º do Código de Processo Civil, convido o autor e a ré a, no prazo de dez dias, indicarem, de forma discriminada, os factos sobre que hão de recair os seus depoimentos e as declarações do legal representante da ré e do autor, respetivamente.
(…)”
O Autor deu cumprimento ao determinado em tal despacho e a Ré reproduziu praticamente, o requerimento feito anteriormente.
Seguidamente foi proferido o seguinte despacho pelo Tribunal a quo.
“O autor veio requerer a prestação de declarações e o depoimento de parte do legal representante da ré.
Ao abrigo do disposto nos artigos 452.º e 466.º do Código de Processo Civil:
1.º admito as declarações de parte à matéria indicada, com exceção dos artigos 3.º da petição inicial (por constituir matéria aceite pela ré), 35.º da petição inicial e 78.º da resposta (por constituir matéria irrelevante para a decisão da causa), 80.º a 86.º da resposta (por ser de teor conclusivo);
2.º admito o depoimento de parte do legal representante da ré, com exceção dos artigos 3.º da petição inicial (por constituir matéria aceite pela ré), 78.º da resposta (por constituir matéria irrelevante para a decisão da causa), 80.º a 86.º da resposta (por ser de teor conclusivo).
Notifique.

*
A ré veio requerer a prestação de declarações do seu legal representante e o depoimento de parte do autor.

As partes haviam já requerido a prestação de declarações e depoimentos de parte nos respetivos articulados, tendo sido notificadas expressamente, nos termos dos artigos 452.º e 466.º do Código de Processo Civil para discriminarem a matéria a submeter para apreciação de tais requerimentos. Em resposta a tal despacho judicial, a ré limitou-se a reproduzir o requerimento que já havia efetuado, pejado de factos irrelevantes, conclusivos, claramente inadmissíveis por estes e outros motivos, designadamente: artigos 7.º, 11.º, 12.º, 27.º, 41.º, 58.º, 72.º, 78.º, 85.º e 90.º da contestação (por constituir confissão, pedido ou impugnação do alegado pelo autor), 13.º e 14.º da contestação (por ser irrelevante), 8.º, 15.º, 16.º, 43.º, 44.º, 55.º e 74.º da contestação (por se reportar ao teor do documento), 17.º, 20.º, 45.º, 59.º, 61.º, 62.º e 69.º  da contestação (por ser matéria de direito), 23.º, 42.º 49.º, 53.º, 54.º, 57.º, 65.º, 77.º, 88.º e 91.º da contestação (por ser de teor conclusivo), acrescentando-lhe factos do articulado de resposta.  A indicação feita pela ré, ao requerer a prestação de declarações à matéria dos artigos 6.º a 91.º e a prestação de depoimento à matéria dos artigos 6.º a 83.º é obviamente insuficiente para que se considere cumprido o dever legal de discriminação dos factos. Na sua contestação a ré impugna a matéria da petição inicial nos artigos 6.º a 97.º, sendo que os artigos 90.º a 97.º contêm matéria de teor puramente conclusivo, ou seja, a ré indica toda a matéria. Indicar a matéria dos artigos 6.º a 83.º e 6.º a 91.º, ou indicar «todos», ou não indicar, são uma e a mesma opção, a de não discriminar a matéria de facto sobre a qual se pretende produzir o depoimento/declarações, de acordo com as limitações legais.
Apesar de o Tribunal ter feito um convite à ré para discriminar os factos sobre os quais pretenderia ouvir as declarações/depoimento, a ré não acatou tal convite, limitando-se a reproduzir o requerimento anteriormente feito, infringindo o disposto no artigo 452.º n.º 2 do Código de Processo Civil: «2 - Quando o depoimento seja requerido por alguma das partes, devem indicar-se logo, de forma discriminada, os factos sobre que há de recair.», também aplicável às declarações de parte ao abrigo do disposto no artigo 466.º n.º 2 do mesmo diploma legal.
Pelo exposto, por não se mostrarem verificados os pressupostos legais dos artigos 452.º n.º 2 e 466.º n.º 2 do Código de Processo Civil, indefiro o requerido.
Notifique.
(…)”

Inconformada com tal despacho interlocutório na parte em que não admitiu o depoimento de parte do autor, nem a prestação de declarações de parte, veio a Ré interpor recurso de apelação, no qual formula as seguintes conclusões que passamos a transcrever:

“1ª) Compulsados os requerimentos de depoimento e declarações de parte apresentados pela Ré (com a contestação e com o requerimento de 02.03.2023, ref. ...17), verifica-se que indicou de forma discriminada os factos sobre os quais pretendia que fosse objeto do meio de prova: respetivamente, os artºs 6º a 83º e artºs 6º a 91º da contestação, e os artºs 63º a 66º da resposta do A.
2ª) Assim, é inequívoco, é objetivo, é fático que a Ré discriminou a matéria a que pretendia a prestação do depoimento e das declarações de parte, e tanto basta para cumprir o ónus legal a que estava obrigada.
3ª) Coisa diversa é a discriminação poder integrar algum facto que pudesse eventualmente não ser admissível (o que se alega sem conceder, e apenas por mero esforço de raciocínio), o que a ocorrer deveria ter determinado a Mmª Juíza a quo a proceder, no âmbito da apreciação e decisão sobre os requerimentos de prova, à seleção dos que entendia passiveis de integrar este meio de prova,
4ª) como, de resto, fez relativamente ao requerimento equivalente apresentado pelo A. (foi indicada pelo A. a matéria dos artºs 1º a 4º, 7º, 9º, 10º, 13º a 18º, 24º, 27º a 35º, 40º e 47º da PI e 78º a 86º da resposta, e não admitida a matéria dos artºs 3º e 35º da PI e 78º, 80º a 86º da resposta), como se divisa da decisão que antecede o despacho recorrido.
5ª) Mas já não, como fez, fulminar e indeferir in totum o meio de prova, como se Ré não tivesse indicado (bem ou mal) a matéria a que pretendida o depoimento e as declarações de parte, assim ficcionando uma omissão que, efetivamente, não ocorre in casu.
6ª) Indicar uma seleção mais abrangente de factos não equivale a não indicar nada (como se entendeu no despacho recorrido), caso contrário, estar-se-á a privar juridicamente a parte de produzir um meio de prova que requereu por entender ser relevante para a defesa e para a descoberta da verdade material.
7ª) Mais, com isso está-se a criar uma desigualdade entre A. e Ré – cfr art. 4º do Cód. Proc. Civil - tanto mais que (como se disse já) o requerimento do A. de depoimento e declarações de parte foi objeto do “crivo” judicial relativamente ao que, em concreto, haveria, ou não, de integrar o objeto do meio de prova, e sem que isso tenha determinado a não admissão do depoimento e das declarações de parte.
8ª) Contra isto não se diga (como resulta da decisão recorrida) que a Ré foi convidada a discriminar os factos, e que não o acatou.
9ª) É que, do despacho a que, neste particular, se alude na decisão recorrida (ínsito no despacho saneador) não se depreende uma decisão de “aperfeiçoamento” e/ou de seleção, seriação, expurgação que se pretendesse relativamente ao objeto do depoimento e declarações de parte já formulado nos articulados (PI e contestação).
10ª) Consequentemente, não é justo, nem equitativo (sempre salvo o devido respeito) cominar--se agora a parte com uma alegada falta de acatamento de um convite “ao aperfeiçoamento” que, efetivamente, não resulta explicito do despacho, nem foi entendido como tal.
11ª) A isto se aduz que também o A. indicou o objeto da forma alargada efetuada pela Ré (cfr. requerimento ref. ...85, de 01.03.2023) e, não obstante, a Mmª Juíza a quo admitiu o meio de prova decidindo (e bem) o que da matéria indicada era, ou não, subsumível ao depoimento e declarações de parte.
12ª) Por outro lado, e diversamente do que foi entendimento da decisão recorrida, os factos sobre os quais a recorrente requereu o depoimento e as declarações de parte não são “pejado(s) de factos irrelevantes, conclusivos…inadmissíveis….”, pois que, são atinentes quer à relação laboral mantida entre as partes e aos supostos créditos que integram a causa de pedir e o pedido, quer à defesa apresentada pela Ré, e inerentes contra créditos, e são factos pessoais do A. e do legal representante da Ré, e/ou de que têm conhecimento.
13ª) Pelo exposto, deveria ter-se admitido o depoimento e declarações de parte requeridos pela Ré/recorrente, e com o objeto que foi indicado, o que agora, em revogação da decisão recorrida, deverá decidir-se, e se requer.
14ª) Foi violado o disposto nos artºs 4º, 452º, 453º e 466º do Cód. Proc. Civil (ex vi do art. 1º-2 do Cód. Proc. Trabalho).

TERMOS EM QUE, dando-se provimento ao presente recurso, deve ser revogada a decisão recorrida, e substituída por outra que julgue em conformidade com as conclusões anteriores, tudo com as legais consequências. ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA.”

Não foi apresentada qualquer resposta ao recurso.
O recurso foi admitido como apelação a subir imediatamente em separado e com efeito devolutivo.
Chegados os autos a este Tribunal, foi determinado que se desse cumprimento ao disposto no artigo 87.º n.º 3 do CPT., tendo a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitido douto parecer no sentido da improcedência da apelação.
Não foi apresentada qualquer resposta ao parecer do Ministério Público.
Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657.º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II OBJECTO DO RECURSO

Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões do Recorrente (artigos 635.º, nº 4, 637.º n.º 2 e 639.º, nº 1, do Código de Processo Civil), coloca-se à apreciação deste Tribunal da Relação uma única questão que consiste em apurar se o Tribunal a quo podia ter indeferido o depoimento de parte do Autor e a prestação de declarações do legal representante da Ré com fundamento na inobservância do prescrito no n.º 2 do art.º 452.º do CPC aplicável às declarações de parte ex vi art.º 466º, n.º 2 do CPC.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A constante do relatório que antecede.

IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO

Do indeferimento do depoimento de parte do Autor e da prestação de declarações do legal representante da Ré

A recorrente insurge-se apenas quanto ao facto de não ter sido admitido como meio de prova o depoimento do Autor, bem como a prestação de declarações do seu legal representante, defendendo que o despacho recorrido viola os artigos 4.º, 452.º, 453.º e 466.º do CPC., já que discriminou a factualidade relevante para a prestação de cada um dos depoimentos.
Vejamos se lhe assiste razão.
Atento o facto de o regime das declarações de parte ser decalcado, parcialmente, do regime aplicável ao depoimento de parte iremos abordar a questão partindo da análise deste regime.
O “depoimento de parte” é um meio de prova cujo objetivo é o de provocar e obter de alguma das partes a confissão judicial que se encontra previsto no art.º 352.º do Código Civil e no artigo 452.º do CPC, que se integra na secção epigrafada “prova por confissão das partes” e no capítulo “prova por confissão e por declarações das partes”.

Estabelece o art.º 452.º do CPC. o seguinte:

«1 - O juiz pode, em qualquer estado do processo, determinar a comparência pessoal das partes para a prestação de depoimento, informações ou esclarecimentos sobre factos que interessem à decisão da causa.
2 - Quando o depoimento seja requerido por alguma das partes, devem indicar-se logo, de forma discriminada, os factos sobre que há de recair».

Por outro lado, no que respeita à decisão sobre a admissibilidade do depoimento de parte revela-se pertinente o disposto no artigo 454.º do CPC. que incide sobre os factos que podem ser objecto de depoimento de parte, estipulando o seguinte:
«1 - O depoimento só pode ter por objeto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento.
2 - Não é, porém, admissível o depoimento sobre factos criminosos ou torpes, de que a parte seja arguida».
Decorre das citadas disposições legais que a parte pode requerer o depoimento de parte, almejando uma confissão, que só poderá incidir sobre factos desfavoráveis ao depoente, deverá indicar, discriminadamente, os factos sobre os quais tal depoimento há-de recair, que sempre terão que ser factos em que aquele tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento direto.
Como se refere no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31.05.2022, proc. n.º 6660/21.1T8LSB-A.L1-7[1],““Discriminar” significa, em tal contexto, que se devem mencionar os pontos do articulado onde constam os factos sobre que há-de incidir o depoimento ou as declarações, não se bastando com uma referência genérica, como, por exemplo, toda a matéria da petição inicial ou da contestação.”
Assim, em sede de prova por depoimento de parte, deve a parte indicar os factos sobre os quais há-de incidir o depoimento, sendo tal essencial para que o juiz possa aferir da pertinência e da utilidade de tal diligência.
Como se escreve no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6-02-2020, processo n.º 3144/12.2TBPRD-Q.P1[2], “esta exigência não é despicienda ou meramente formal, a mesma resulta desde logo de um dever de cooperação para com o tribunal cuja função não é substituir-se à parte na escolha dos factos a confessar, apenas controlar se os factos escolhidos são efectivamente passíveis de confissão. Depois, essa indicação é ainda necessária para garantir o contraditório, organizar a produção de prova no julgamento e permitir a preparação da pessoa ou ente que irá ser sujeita a esse meio de obtenção da confissão.”
O Professor José Alberto dos Reis entendia ser evidente que a exigência legal referente à discriminação dos factos não estaria satisfeita se o requerente se limitasse a pedir o depoimento da parte contrária sobre todos os factos (ou sobre todos os artigos) da petição inicial, ou sobre todos os artigos da contestação, porque tal não corresponde a uma indicação discriminada, sendo necessário especificar os factos que hão-de ser objeto do depoimento[3].
Ora, como temos vindo a defender, quando a discriminação dos factos aos quais se pretende inquirir a parte não é feita, a solução não será no sentido do indeferimento de tal meio de prova, mas sim o julgador deve convidar a parte requerente a aperfeiçoar o seu requerimento de prova, concedendo assim a possibilidade de suprir tal falta.
Esta é sem dúvida a solução que melhor se adequa à prossecução da verdade material, tendo presente que actualmente são conferidos ao juiz maiores poderes de zelar pelo aproveitamento dos actos das partes que apresentem deficiências, sendo este o entendimento praticamente uniforme na jurisprudência[4], quer da doutrina[5], a solução por nós agora defendida, ou seja, na falta de indicação do objecto do depoimento, deve então o juiz convidar a parte requerente a proceder à sua especificação. Solução esta que, de resto, como se consigna no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 18/12/2013, Proc. nº 114/09.1TBETR-A.P1 e no Ac. da Relação de Guimarães de 12/11/2015, Proc. n.º 7178/11.6TBBRG-A.G1 (consultáveis in www.dgsi.pt.),  é a que “melhor se coaduna com os objectivos de prossecução da verdade material e de aproveitamento dos actos das partes que apresentem deficiências”.
Como escreve José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código do Processo Civil, 3ª edição, pág. 285, em anotação ao artigo 452.º “Não sendo indicados os factos quando se requer o depoimento, o juiz deve ainda convidar a parte a fazer a indicação. Com efeito, para a prossecução da verdade material foram conferidos ao juiz poderes de zelar pelo aproveitamento dos atos das partes que apresentem deficiências, sendo excessivo aplicar a consequência normal da não observância dum ónus processual, que é a preclusão.”
E como se refere a propósito da discriminação dos factos sobre os quais o depoimento irá recair, no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 6-02-2020, processo n.º 3144/12.2TBPRD-Q.P1[6] “esta exigência não é despicienda ou meramente formal, a mesma resulta desde logo de um dever de cooperação para com o tribunal cuja função não é substituir-se à parte na escolha dos factos a confessar, apenas controlar se os factos escolhidos são efectivamente passíveis de confissão. Depois, essa indicação é ainda necessária para garantir o contraditório, organizar a produção de prova no julgamento e permitir a preparação da pessoa ou ente que irá ser sujeita a esse meio de obtenção da confissão. Ou seja, estamos aqui perante algo bem diverso das declarações de parte.”
Importa salientar que atentos os poderes direção e em aplicação dos princípios do inquisitório e da cooperação, previstos nos arts. 6.º e 7.º do CPC, cabe ao julgador, verificada alguma incorreção, incompletude ou deficiência, nos articulados, ou meios de prova neles indicados, convidar as partes ao seu suprimento, antes de os indeferir. Já que só assim se alcança o objectivo delineado na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, de 22/12/2012, que deu origem ao CPC, ora em vigor, de que a instrução decorra ”sem barreiras artificiais”, de que, “o juiz apreenda a realidade histórica tal como esta, pela prova produzida, se apresenta nos autos” e ainda de que “mantêm-se e reforça-se o poder de direcção do juiz e o princípio do inquisitório (no activo suprimento da generalidade da falta de pressupostos processuais, na instrução da causa …).
Idêntica ponderação deve ser realizada relativamente ao requerimento para prestação de declarações de parte, já que estas são, atualmente um meio de prova que incide sobre os factos de que a parte tenha conhecimento direto e que só pode ser requerido pela própria parte e não pela parte contrária, nem por determinação oficiosa do tribunal.
Prescreve o art.º 466.º, n.º 1 do CPC, que “as partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento directo”, aplicando-se-lhes, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior.
Daqui resulta a remissão para as normas que regulam o depoimento de parte – art.ºs 456.º e 465.º do CPC. designadamente o dever de a parte que pretende prestar declarações indicar os factos sobre que irá depor, delimitando minimamente o objecto do seu depoimento que se deverá cingir aos factos em que tenha intervindo pessoalmente ou tenha conhecimento direto de forma a permitir ao juiz maior precisão na condução da inquirição.
Nesta situação a posição doutrinária e jurisprudencial tem sido no sentido de que a falta de indicação no respetivo requerimento dos factos sobre que a parte irá depor deve ser suprida mediante convite judicial, nunca podendo ser motivo de indeferimento imediato[7].
Apraz dizer que assumindo atualmente o juiz não um papel meramente passivo, mas um comportamento ativo em sede de direção e gestão processual- cfr. art.º 6.º do CPC. -, incumbindo-lhe o poder de disciplina, tem o poder-dever de ao ser confrontado com um pedido da parte no sentido pretender prestar declarações de parte de indeferir a diligência se tal se justificar (caso seja impertinente ou dilatória). Importa assim reter que é ao juiz que cabe emitir juízo sobre a admissibilidade e utilidade das diligências instrutórias solicitadas.
Revertendo ao caso em apreço e tendo presente o prescrito no artigo 63.º do CPT diremos, desde já, que a ré/recorrente deveria ter cumprido logo no seu articulado, onde se requer as provas, o ónus de discriminação dos factos sobre os quais incidiria o depoimento de parte, bem como deveria ter discriminado o objeto das declarações de parte, uma vez que podendo fazê-lo até ao início das alegações orais em 1.ª instância optou logo por o fazer em sede de contestação, estando assim, obrigada a observar os requisitos de admissibilidade processual referentes à discriminação cfr- art.º 466.º n.ºs 1 e 2 do CPC.
Na verdade, no caso em apreço, quer o autor, quer a ré requereram nos seus articulados (petição e contestação) a prestação do depoimento de parte bem como a prestação de declarações, não tendo dado cabal cumprimento ao disposto no n.º 2 do art.º 452.º do CPC., já que não discriminaram nem os factos sobre os quais pretendiam que incidisse o depoimento de parte, nem discriminaram o objeto das declarações de parte. Indicaram praticamente toda a matéria por si articulada, respetivamente, o que não estariam proibidos de o fazer caso a mesma integrasse factos pessoais ou factos dos quais os depoentes tivessem conhecimento direto (cfr. art.º 454.º n.º 1 do CPC.).
Neste contexto, diremos que quer a Ré, quer o Autor, apresentaram requerimentos probatórios nos respetivos articulados e ambos foram convidados a aperfeiçoar os seus requerimentos de prova, indicando, de forma discriminada, os factos que pretendem fazer incidir os seus depoimentos e as declarações do legal representante da ré e do autor, respetivamente, tudo isto ao abrigo do prescrito nos artigos 452.º n.º 2 e 466.º do Código de Processo Civil.
Tal convite foi aceite pelo Autor que reformulou o seu requerimento e não foi aceite pela Ré que no seu requerimento de 2.03.2023 repetiu o seu anterior requerimento, indicando que pretendia que o autor prestasse depoimento praticamente a todo o seu articulado e que as declarações de parte incidissem sobre praticamente todo o seu articulado. Ou seja, feito o convite ao aperfeiçoamento a Ré não indicou nem o objeto do depoimento de parte, nem o objeto das declarações, limitando a transcrever o requerimento anterior, acrescentando agora também matéria que consta da resposta à contestação.
 Como refere o Ministério Público no parecer junto aos autos “Em face da forma deficiente como veio dar resposta, consideramos que continuou sem observar as regras referentes ao ónus de discriminação quer respeitante aos factos pessoais, quer aos factos desfavoráveis.
Na indicação dos factos sobre que pretendia que incidissem o depoimento de parte e as declarações de parte não cuidou minimamente de selecionar os factos.
E a situação do Autor não é a mesma.
O Autor, após o convite para discriminar os factos, veio fazê-lo, sendo que, desde logo, o articulado/petição do Autor é mais linear e, mesmo assim, o Autor teve o cuidado de excluir certos artigos.
É certo que o Tribunal ainda expurgou o requerimento do Autor de certos factos/artigos, mas pontuais.
A situação da Ré é diferente da do Autor, como bem resulta do despacho recorrido.”
Não podemos deixar de concordar com estas considerações.
Com efeito, a Ré veio indicar o depoimento de parte do autor à matéria dos artigos 6.º a 83.º da contestação e 63.º a 66.º da resposta do autor e veio indicar para as declarações de parte à matéria dos arts. 6.º a 91.º da contestação e 63.º a 66.º da resposta do A., tal como havia indicado inicialmente com exceção da matéria da resposta do autor.
Como é consabido os articulados são peças processuais onde se alega de facto e de direito e se conclui pelo pedido, o que significa que neles estão contidos não só factos, mas também direito, conclusões e outras considerações, muitas das vezes misturadas, por força da técnica utilizada.
Ora, é precisamente o que sucede no caso em apreço, onde se misturam factos, com direito, com conclusões e considerações, sem que a Ré tenha cuidado minimamente de discriminar a matéria de facto sobre a qual deveria incidir o depoimento de parte, pois indicou por duas vezes, praticamente toda a matéria que consta da contestação, a qual incide sobre matéria conclusiva, de direito, desprovida de factos pessoais e até de matéria que não é desfavorável ao autor.
Por outro lado, no que respeita às declarações de parte também foi indicada praticamente toda a matéria da contestação contendo os artigos indicados conclusões, considerações ou factos que não são pessoais, pois não são factos em que interveio ou teve conhecimento direto o legal representante da Ré.
Daqui resulta manifesto que a Recorrente não discriminou os factos objeto quer do depoimento, quer das declarações de parte, pois ao indicar a quase totalidade dos factos que constam da contestação fê-lo de forma deficiente, já que inclui matéria conclusiva, de direito, outras considerações, factos não pessoais e factos não desfavoráveis
Importa realçar que não é exigível que o juiz no uso dos seus poderes e princípios de direito, faça o trabalho que a lei impõe às partes, pois não compete ao juiz escolher a matéria quer do depoimento de parte, quer das declarações de parte, sendo certo que as declarações de parte não podem sequer ser determinadas pelo juiz, não lhe cabendo também escolher o seu âmbito.
Ora, competindo o ónus da iniciativa da prova às partes, a quem incumbe também discriminar os factos dela objeto, tendo sido efetuado o convite ao aperfeiçoamento, não tendo sido acatado, afigura-se-nos manifesto que a apresentação deficiente do meio de prova que não cumpre os requisitos legais deve ser equiparada à ausência de apresentação, como sucede no caso dos autos.
Assim, se após o convite ao aperfeiçoamento a parte continua sem discriminar a matéria factual objeto do depoimento e das declarações de parte por si requeridas, o requerimento probatório deve ser rejeitado.
Como se escreve a este propósito no Acórdão deste Tribunal de 17.12.2019, proc. n.º 3545/18.2T8BCL.-A.G1[8] “Resulta ainda dos princípios de cooperação processual e de auto responsabilização das partes, sobretudo quando, mesmo depois de convidadas, persistem na inobservância das regras processuais(10).
Pese embora tais regras sejam mescladas com o principio do inquisitório e de aquisição processual, da busca da verdade material e do princípio de gestão processual, estes, no caso concreto, consideram-se plenamente cumpridos com o convite a aperfeiçoamento do requerimento probatório com vista a suprir deficiências, que a parte não acatou.
Assim também o entende a doutrina, conforme Ferreira de Almeida que, quanto às declarações de parte, diz: “dirigido à parte convite no sentido de proceder a tal discriminação e não sendo esse convite acatado, deve ser indeferido a utilização desse meio probatório” (11). Também Lebre de Freitas (12) defende o efeito preclusivo de rejeição do articulado que decorra da inobservância do ónus processual de não indicar os factos, após convite de aperfeiçoamento.”
É de confirmar a decisão recorrida e consequentemente improcede o recurso.

V - DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso confirmando-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.
Notifique.
Guimarães, 17 de Outubro de 2024

Vera Maria Sottomayor (relatora)
Maria Leonor Barroso
Antero Dinis Ramos Veiga


[1] Consultável em www.dgsi.pt
[2] Consultável em www.dgsi.pt.
[3] cfr. Código de Processo Civil Anotado, Volume IV Reimpressão Coimbra Editora, 1987, pág. 132
[4] v.g. Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21/12/2015, Proc. nº 4059/15.8T8LSB-4, in www.dgsi.pt.
[5] cfr. v.g. Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil, Anotado, vol. 2º, 2ª ed., pág. 500
[6] Consultável in www.dgsi.pt
[7] cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2.ª edição, pág. 551.
[8] Consultável em www.dgsi.pt