ACIDENTE DE TRABALHO
AUSÊNCIA DE BENEFICIÁRIOS
INDEMNIZAÇÃO PETICIONADA PELO FUNDO DE ACIDENTES DE TRABALHO
(FAT) - 63º DA LAT E 100º
6
CPT
VIOLAÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA E SAÚDE NO TRABALHO
DIREITO DE REGRESSO
Sumário


I- O FAT peticionou indemnização em razão de ausência de beneficiários (63º LAT) demandando inicialmente a seguradora e a empregadora, esta última apenas porque parte da retribuição não se encontrava declarada para efeito de prémio de seguro.
II- O FAT apenas alegou a existência de acidente de trabalho mortal e pediu a condenação das demandadas em indemnização legalmente pré-fixada com recurso a uma única variável (o triplo da retribuição anual do sinistrado- 63º LAT).
III- O processado em causa (100º, 6, CPT) não se destina ao apuramento de prejuízos sofridos por sinistrado ou beneficiário em que, aí si, releva na sua fixação a violação das regras de segurança no trabalho por parte do empregador.
IV- A seguradora responde pela indemnização pedida pelo FAT a título principal e com base no risco, sem prejuízo do direito de regresso a exercer em ação autónoma.
V- O FAT desistiu do pedido formulado contra a empregadora antes da prolação da sentença que decidiu de mérito. Aquela desistência foi objeto de homologação, tendo esta ré sido absolvido do pedido, transitando a decisão em julgado. Caso os autos continuassem para julgamento da questão relativa a inobservância das regras de segurança e sobre tal matéria fosse proferida sentença, esta não teria efeito de caso julgado relativamente aquele sujeito processual já excluído dos autos (ré empregadora). A ré seguradora sempre teria de intentar acção autónoma para querendo exercer direito de regresso, não fazendo sentido falar em economia processual.

Texto Integral


Acordam na Secção Social da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

Por participação entrada neste tribunal iniciou-se acção especial emergente de acidente de trabalho, dando-se conta de uma ocorrência em que teria sido vítima mortal AA, quando exercia as funções de trolha na indústria de construção civil, sob as ordens, direção e fiscalização da empresa EMP01..., Lda., sendo entidade seguradora EMP02... - Companhia de Seguros, SA.
Decorrida a fase conciliatória do processo, o Ministério Público determinou que os autos aguardassem a propositura da ação pelo FAT ou beneficiários.
Deu entrada petição inicial (em 4-11-2022) apresentada pelos herdeiros (pais), tendo sido proferido despacho saneador a declarar a incompetência material do tribunal, porquanto os AA não detinham a qualidade de beneficiários, sendo competente o foro cível. A decisão foi alvo de recurso. O TR confirmou a sentença.

***
AUTOS A QUE SE REPORTA O RECURSO:

Nesta ação especial emergente de acidente de trabalho, o FAT apresentou igualmente requerimento/petição inicial (em 29-03-2022) demandando inicialmente as rés EMP02... – Companhia de Seguros, SA e EMP01..., Lda.
Pediu que fosse declarado que o acidente sofrido pelo sinistrado AA foi um acidente de trabalho e que que as rés fossem condenadas a pagar-lhe a quantia de 29 777,40€, na proporção de 29 483,40€ para a Ré Seguradora e de 294,00€ para a Ré Empregadora.
Alegou, muito em síntese, que o sinistrado faleceu como resultado de um acidente de trabalho, tendo direito ao pagamento da quantia peticionada por não existirem beneficiários legais do Sinistrado, estando a responsabilidade do seu pagamento a cargo das rés, a primeira porque seguradora, a segunda empregadora porque não transferiu totalmente para aquela a responsabilidade por acidente de trabalho declarando uma retribuição inferior à real - 63º da LAT.
A ré seguradora apresentou contestação por impugnação e por exceção, declinando a obrigação de indemnizar por o acidente de trabalho se ter ficado a dever à violação das regras de segurança por parte da ré empregadora e alegando que neste caso é a empregadora que responde a título principal. Isto porque será, em seu entender, inaplicável o disposto no artigo 18º e 79º, 3, LAT referente à responsabilidade a título principal da seguradora. Tal preceito destinar-se-ia apenas à protecção do sinistrado e/ou beneficiários, o que não é o caso dos autos em que o pedido é formulado pelo FAT e não pelos destinatários da norma. Assim, feita a prova da culpa, será esta quem deverá responder a título principal. Termina a contestação assim:
“... deve a presente acção ser julgada improcedente, por não provada, quanto à contestante, ou, caso assim não se entenda, deve declarar-se o direito de regresso desta contra a R. Patronal por tudo quanto tenha que prestar”
A ré empregadora apresentou resposta à contestação da ré seguradora referindo que: não contestou a acção (p.i) face ao modo como foi formulado o pedido; o autor não alegou ter existido qualquer atuação culposa da sua parte (empregadora), limitou-se a peticionar-lhe o pagamento da quantia de 294,00€, relativa a parte da retribuição do sinistrado que não havia sido transferida para a seguradora, para efeitos de responsabilidade infortunística; por isso não teve oportunidade de se defender relativamente à questão ora arguida; não pode agora estar a ré empregadora  a responder a um articulado da co-ré; não releva apurar se houve ou não violação das regras de segurança pela ora ré, dado que tal não evita a responsabilidade principal da coré seguradora, sem prejuízo do eventual direito de regresso, tendo este de ser peticionado em acção autónoma. De todo o modo nega a factualidade referente a violação de regras de segurança.

Foi proferido despacho saneador no qual se relegou para final a apreciação do mérito dos autos, fixou-se a matéria assente e enunciaram-se os temas de prova.
A este propósito (temas de provas) exarou-se longo despacho dissertando sobre a inutilidade de, no presente acção, se apurar se houve violação de regras de segurança, porquanto sempre seria a seguradora a responder a titulo principal e porque esta ré sempre terá de intentar acção autónoma para exigir o direito de regresso. Este despacho não contém dispositivo sobre a excepção apresentada pela ré seguradora. Ou seja, formalmente no despacho saneador não foi proferida qualquer decisão sobre a excepção arguida pela ré. Apenas se concluiu pela não inclusão nos temas de prova da matéria referente a violação das regras de segurança por banda da empregadora.
Entretanto o autor FAT veio desistir do pedido deduzido contra a ré empregadora. A desistência foi homologada (em despacho separado e prévio à sentença de mérito da causa), sendo a ré empregadora absolvida do pedido. A sentença homologatória não foi objecto de recurso. Transitou em julgado.
*
Seguidamente, entendeu o tribunal a quo ser possível a apreciação imediata do pedido e foi proferida a decisão recorrida que é a seguinte:

DECISÃO RECORRIDA (DISPOSITIVO):
“Pelos fundamentos expostos, julgo procedente a presente ação para a efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho e, em consequência, condeno a ré seguradora ré EMP02... – Companhia de Seguros, SA, apagar ao autor Fundo de Acidentes de Trabalho a quantia de 29.483,40€, devida desde 12.12.2019, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos à taxa legal, até integral pagamento.
Custas a cargo da ré EMP02... – Companhia de Seguros, SA., (art. 527º, n.º 1, in fine, do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente por força do disposto no art. 1º, n.º 2, al. a) do Código de Processo do Trabalho, dado que o valor deste processo será fixado, justamente, na quantia concreta em cujo pagamento será condenada).
Valor da ação: €29.483,40 - art. 120º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho (valor total da prestação com expressão pecuniária a pagar pela ré, art. 120º, nºs 1 e 2 do referido diploma legal).”

RECORREU A RÉ SEGURADORA- CONCLUSÕES:

“1. A Douta decisão em crise absolve sem mais a R. Patronal, condenando a Apelante, R. Seguradora, sem que se pronuncie sobre as questões que a mesma levantou na sua defesa – a da interpretação e aplicação que no caso se deve fazer do Art. 63º Lei 98/2009 e a de, mesmo que se entenda que deve ser a R. Seguradora condenada, a de que lhe deve ser reconhecido direito de regresso contra a R. patronal por aquilo que haja de pagar ao A.
2. Ocorre, por isso, nulidade da sentença – cfr. Arts. 608º nº 2 e al. d) do nº 1 do Art. 615º ambos do CPC, por omissão de pronúncia, já que a Mma. Juiz a quo não apreciou nem se pronunciou sobre questões que devia apreciar por terem sido expressamente levantadas pela Apelante.
3. Efectivamente, quanto ao sentido e interpretação a dar ao Art. 63º da Lei 98/2009 a Mma. Juiz a quo não apreciou nem teceu qualquer comentário à argumentação da Apelante.
4. O mesmo ocorrendo quanto à questão da apreciação do acidente dos autos, sua imputabilidade à R. Patronal e, consequentemente, o direito de regresso da Apelante contra aquela – cfr. nº 3 do Art. 79º da Lei 98/2009.
5. E isto quando na própria decisão em crise se refere a existência de tal questão ao dizer, no Ponto 2.1 – Fundamentação da matéria de facto o seguinte:
“Constitui objeto de o litígio determinar se o autor tem direito arreceber da ré a peticionada quantia de 29.483,40€, sem prejuízo do disposto no nº 3 do artigo 79º da Lei nº 98/2009, de 4 de setembro, caso se verifique alguma das situações previstas no artigo 18º (atuação culposa do empregador) a seguradora do responsável satisfaz o pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse atuação culposa, sem prejuízo do direito de regresso. Ou seja, mesmo vindo a verificar-se que não foram observadas as normas sobre segurança no trabalho, a seguradora não responde subsidiariamente como acontecia ao abrigo da Lei nº 100/97, de 13 de setembro, mas responde agora por via principal, assistindo-lhe o direito de regresso sobre aquele que não observou as regras de segurança no trabalho.” – sic (sublinhados nossos)
6. Ao decidir como decidiu, proferindo de imediato decisão de mérito em que condenou a Apelante, a Mma. Juiz a quo não se pronunciou sobre o direito de regresso da Apelante contra a R. Patronal e, pior, não realizou sequer audiência de julgamento pelo que não averiguou qualquer facto relativo às circunstâncias e dinâmica do acidente que permitissem conhecer da alegada violação de regras de segurança no trabalho e, por isso, do direito de regresso da Apelante.
7. É, por isso, flagrante a nulidade da Douta decisão proferida, por ostensiva omissão de pronúncia, em violação do estatuído no Art. 608º nº 2 CPC e al. d) nº 1 615º CPC.
8. O facto de a questão das circunstâncias e dinâmica do acidente, eventual violação de regras de segurança e a do direito de regresso da Apelante não constarem do objecto do litígio nem dos temas da prova jamais obstaria ao seu conhecimento e apreciação, pois que aqueles não fazem caso julgado.
9. Por fim, se é verdade que a alteração ocorrida da Lei 100/97 para a Lei 98/2009, pela qual a responsabilidade das seguradoras quando existe culpa das entidades patronais na produção do acidente de trabalho passou de subsidiária a principal, assistindo-lhes, depois, direito de regresso contra aquelas não legitima a sua condenação quando, como nos autos, não há sinistrado nem beneficiários mas apenas o FAT.
10. Deve tal preceito legal ser interpretado como permitindo condenar de imediato a entidade patronal naquilo que houver que prestar ao FAT – cfr. Art. 9º CCiv.
Nestes termos, e ainda pelo que, como sempre não deixará de ser proficientemente suprido, deve ser concedido provimento ao presente recurso revogando-se a decisão recorrida, que absolva parcialmente a Apelante nos moldes requeridos...”
CONTRA-ALEGAÇÕES - não constam.

DESPACHO DO TRIBUNAL A QUO SOBRE A NULIDADE:
O tribunal a quo pronunciou-se sobre a arguição de nulidade sustentando a sua não verificação. Entre o mais, refere-se que o  “Tribunal limitou-se a extrair a consequência logica e jurídica do que já havia decidido no despacho saneador proferido nos autos”.

PARECER DO MINSTÉRIO PÚBLICO- sustenta-se a improcedência da apelação.
O recurso foi apreciado em conferência – art.s 657º, 2, 659º, do CPC.

QUESTÕES A DECIDIR [1]: - nulidade da sentença por omissão de pronúncia; saber se a ré seguradora pode invocar a actuação culposa do empregador (18º LAT) nesta demanda em que o FAT reclama a indemnização legal prevista para o caso de inexistência de beneficiários (63º LAT); se pode o tribunal condenar de imediato a empregadora na vez da seguradora, evitando que esta tenha de intentar acção autónoma para exercer direito de regresso, em prol da economia processual.

I.I FUNDAMENTAÇÃO

A - FACTOS PROVADOS:

1- AA nasceu no dia ../../1963.
2- No dia 11 de dezembro de 2019, pelas 09:10 horas, em ..., ..., quando se encontrava na obra de construção de umas moradias, exercendo as funções de trolha de 2ª na indústria de construção civil, sob as ordens, direção e subordinação da entidade empregadora EMP01..., Lda., foi vitima de um acidente;
3- (…) que ocorreu quando AA se encontrava com outro colega, ao nível do solo, a dar a
poio a trabalhos de cofragem que decorriam no 1º piso na zona destinada à varanda de uma moradia em construção, quando foi atingido pelo desabamento (e consequente queda) da parede exterior e toda a estrutura de cofragem da referida parede;
4- (…) provocando-lhe lesões que vieram a ser causa direta e necessária da morte no próprio dia do
Acidente.
5- AA faleceu no estado civil de solteiro;
6- (…) é filho de BB, casada, nascida a ../../1970, filha de CC e de DD, portadora do CC nº ... e EE, casado, nascido em ../../1969, filho de FF e de GG, portador do CC nº..., ambos residentes na Rua ..., ..., ..., ... ....
7- A ré EMP01..., Lda., tinha transferido, por contrato de seguro de acidentes de trabalho, em vigor na data mencionada em 2), para a ré EMP02... – Companhia de Seguros, SA, a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho de AA, pela remuneração de €600,00 por 14 meses mais 5,90 € x 22 dias x 11 meses.
8- Na tentativa de conciliação realizada a em 4.02.2022, o representante da corré seguradora aceitou a existência do acidente e a sua caraterização como de trabalho, aceitou a existência das lesões e do nexo causal com a morte, bem com o a transferência da responsabilidade infortunística relativa ao sinistrado pela retribuição de 600,00€ x 14 meses + 5,90 € x 22 dias x 11 meses;
9- (…) entendeu que o acidente resultou de atuação culposa da entidade empregadora, pelo que será responsável apenas pelas prestações normais, reservando - se o direito de regresso junto da mesma entidade empregadora.
10- A entidade empregadora, EMP01..., Lda., aceitou a existência do acidente e a sua caraterização como de trabalho, bem como a existência das lesões e do nexo causal com a morte. Aceitou ainda que o sinistrado auferia a retribuição que se encontrava transferida para a Seguradora;
11- (…) não aceitou o pagamento de qualquer quantia, por entender que não existiu violação das regras de segurança e saúde no trabalho da sua parte.

B - NULIDADE DA SENTENÇA

Na economia que ao recurso importa, segundo o artigo 615º, 1, do CPC, a decisão é nula quando:…d ) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;….
A omissão de pronúncia sobre “questões” refere-se aos pedidos deduzidos, causas de pedir e excepções, conforme tem sido decidido uniformemente pela jurisprudência (por exemplo pelo STJ, acórdãos de 13-01-2005, 12-05-2005 e 6-11-2019, www.dgsi.pt.) e acolhido pela doutrina.
Não há assim que confundir o significado de “questões” com as razões, a retórica ou os motivos invocados pelas partes para alicerçarem a sua pretensão - Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito de Processo Civil, vol. II, 2ª ed., p 437.
Nem tão pouco há que confundir falta de pronúncia, com “pouca”, deficiente ou errada pronúncia. Tal respeita ao mérito da acção. O recurso sobre a matéria - no caso de direito- é o mecanismo normal de reação à decisão, e não o vício de nulidade.
Vejamos o caso:
É verdade que a ré seguradora na contestação veio procurar eximir-se ao pagamento do peticionado pelo autor FAT, invocando violação de regras de segurança por parte da empregadora. O que integra matéria de exceção nas “acções típicas” que frequentemente aparecem no tribunal e que a recorrida cita em seu abono, em que são autores os sinistrados ou beneficiários. Trata-se, aqui, de factos modificativos da responsabilidade, excepção peremptória, cuja alegação e prova cabe a quem a invoca, no caso seguradora- 571º, 2, 576º, 3, CPC, 342º CC. Portando sobre ela teria de haver pronúncia.
Ora, o tribunal a quo, bem ou mal, acabou por se pronunciar.
É certo que no despacho saneador se dissertou longamente sobre a questão, mas depois não se tirou claramente consequências sobre a excepção propriamente dita. Queremos dizer faltou-lhe a decisão final: a procedência ou improcedência da dita excepção. Só na posse de uma decisão completa pode a parte reagir e recorrer, o que exige que haja um dispositivo claro, ainda que sistematicamente mal-organizado. A sua ausência impede que o caso julgado se tenha formado no despacho saneador.
Ainda assim, a acção é um encadeado de actos e aquela fundamentação exarada no despacho saneador não pode ser ignorada para efeitos de aferição de nulidade e deve ser relacionada com o que depois consta na sentença.
No despacho saneador na parte que mais releva fez-se constar:

“§ Da questão suscitada pelas partes sobre a possibilidade de condenação da ré empregadora a titulo principal no pedido deduzido pelo autor FAT
A ré empregadora. ... pronunciou-se ...atenta a causa de pedir dos presentes autos. .. não releva apurar se houve ou não violação das regras de segurança da sua parte, porque tal não evita a responsabilidade principal da co-ré seguradora, sem prejuízo do eventual direito de Regresso. Independentemente de se apurar que o acidente dos autos decorreu da violação de tais das regras de segurança, será sempre a corré seguradora a responder a título principal nos presentes autos e o direito de regresso sempre terá de ser peticionado em ação autónoma, a intentar pela corré seguradora contra si. ....
Em contraditório pronunciou-se a ré seguradora no sentido da possibilidade de condenação da co-ré empregadora no pedido, no entendimento de que implicaria grosseira violação do princípio da economia processual ao implicar necessariamente a interposição de outra ação judicial em que se teria que apreciar, uma vez mais, a factualidade aqui já alegada. Para além de violar o princípio da economia processual, violaria o princípio da autoridade do caso julgado – o que, só por si, torna tal entendimento inaceitável. Concluiu que são inúmeros os casos em que os autores em processo especial de acidente de trabalho não alegam a violação de regras de segurança nem formulam contra a entidade patronal qualquer pedido de prestações agravadas ou de indemnização de direito à vida ou de danos morais, mas em que a seguradora demandada se defende, imputando o acidente à violação de regras de segurança por banda daquela.
Apreciando a questão suscitada pela ré na medida em que a mesma influi na identificação do objeto do litigio e no enunciação dos temas de prova.
(...)
No caso que nos ocupa, o autor (o FAT) limitou o seu pedido à importância aludida no artigo 63° da NLAT, ou seja, uma importância igual ao triplo da retribuição anual. Tal quantia excede os limites da apólice de seguro em causa nos autos, por isso demandou também a empregadora com fundamento na parte do salário não transferido (€7,00 X14). Destarte, só porque a empregadora não transferiu o valor do salário integralmente para a ré seguradora (artigo 79º da NLAT) foi demandada nos presentes autos, caso contrário não o teria sido, o que vale dizer que além desse valor não transferido do salário para a seguradora, nunca será a empregadora condenada, mesmo que a seguradora lograsse provar a violação de regras de segurança por banda da empregadora, nem tal situação, a provar-se, desresponsabilizará a Ré seguradora da sua obrigação de satisfazer o pagamento de tal prestação (artigo 79º/3 da NLAT). O direito de regresso que lhe poderá assistir há-de ter que ser acionado contra a segurada, a empregadora, mas numa outra ação judicial.
(....)
Portanto... não se vislumbra fundamento legal que suporte a sua condenação ainda que se viesse a provar a sua culpa na produção do acidente.... Neste entendimento, os factos alegados na contestação da ré seguradora atinentes à violação de regras de segurança por parte da ré empregadora EMP01..., Lda., não têm relevância para a decisão a proferir nos autos, porque a ação não se destina ao apuramento dos prejuízos patrimoniais ou não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, mas antes ao pagamento ao Fundo de Acidentes de Trabalho da importância igual ao triplo da retribuição anual, a que se refere o art. 63.º da LAT. Por isso, não serão integrados nos temas de prova.”
           
Vejamos agora o que consta na sentença final a este propósito:

“Constitui objeto de o litígio determinar se o autor tem direito arreceber da ré a peticionada quantia de 29.483,40€, sem prejuízo do disposto no nº 3 do artigo 79º da Lei nº 98/2009, de 4 de setembro, caso se verifique alguma das situações previstas no artigo 18º (atuação culposa do empregador) a seguradora do responsável satisfaz o pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse atuação culposa, sem prejuízo do direito de regresso. Ou seja, mesmo vindo a verificar-se que não foram observadas as normas sobre segurança no trabalho, a seguradora não responde subsidiariamente como acontecia ao abrigo da Lei nº 100/97, de 13 de setembro, mas responde agora por via principal, assistindo-lhe o direito de regresso sobre aquele que não observou as regras de segurança no trabalho.
(...)
Como o Sinistrado não deixou quaisquer beneficiários, aplica-se o disposto no Art. 20º, n.º 6 da Lei n.º 100/97, “Se não houver beneficiários com direito a pensão reverte para o fundo a que se refere o artigo 39.º uma importância igual ao triplo da retribuição anual, salvo se tiver havido remição”, sendo o autor de facto, o “fundo” previsto nesta disposição legal (v. também o Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de abril, que criou o Fundo de Acidentes de Trabalho e ora A.).
(....)In casu, pela ré empregadora tinha transferida a responsabilidade infortunística relativa ao sinistrado pela retribuição de €600,00 por 14 meses mais 5,90 € x 22 dias x 11 meses, sendo esta a medida da respetiva responsabilidade. Desta forma, é a ré seguradora condenada a pagar ao autor a quantia global de 29 483,40€, sendo tal quantia devida desde 12.12.2019 (o dia seguinte ao da morte do Sinistrado – Art. 49º, n.º 7 do Decreto-Lei n.º 143/99) e a que acrescem os juros de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos até integral pagamento (Art. 135º, parte final, do Código de Processo do Trabalho).”

Conclusão:

Portanto, independentemente do processado pouco ortodoxo que foi seguido, a senhora juiz, a final, pronunciou-se sobre a questão considerando que, nestes autos em que o demandante é o FAT, a seguradora não poderia excepcionar a inobservância das regras de segurança pela empregadora por tal ser irrelevante, se bem, se mal, isso não respeita ao vício de nulidade.
A questão de saber se os autos deveriam prosseguir - para apuramento de matéria supostamente relevante - respeitaria, ou a nulidade processual (violação do 131º, 1, b, CPT ao se conhecer de mérito sem que o estado da causa o permita) ou a erro de julgamento (não previsão de uma outra hipótese de direito), consoante a perspectiva. De todo o modo, para o que importa, não integra vício de sentença.
Improcede a arguição de nulidade.

C- DIREITO

Importa saber se os autos deveriam prosseguir para apuramento da inobservância de regras de segurança por parte da empregadora enquanto causa do acidente e se, nessa sequência, a seguradora poderia ser eximida do pagamento da indemnização ao FAT e a empregadora, na sua vez, poderia de imediato ser condenada nesta acção. Isto porque, no entender da recorrente, seria inaplicável o disposto no artigo 78º, 3, LAT (responsabilidade principal solidária) que apenas de destinaria à protecção dos sinistrados e beneficiários.
Analisando:
O acidente em causa ocorreu em 11-12-2019, altura em que há muito estava em vigor a Lei de Acidente de trabalho nº 98/2009, de 4-09 (LAT), sendo esta a aplicável aos autos e não a, por vezes, mencionada na decisão recorrida - ver artigo 187º e 188º, donde resulta que a lei abrange todos os acidentes de trabalho ocorridos após ../../2010.
Ao abrigo desse diploma, e na ausência de beneficiários com direito a pensão, veio o FAT exercer o seu direito de indemnização (“Se não houverem beneficiários com direito a pensão, reverte para o Fundo de Acidentes de Trabalho uma importância igual ao triplo da pensão anual”- 63º LAT).
Os factos constitutivos desse direito a serem alegados pelo demandante FAT são: (i) a existência de um acidente de trabalho mortal (evento ocorrido no tempo ou local de trabalho, ou nas circunstâncias que estendem este conceito, de que resulte morte - 8º e 9º LAT); (ii) o montante da retribuição; e as entidades responsáveis a demandar que são a seguradora e/ou empregador consoante haja ou não transferência total ou parcial da responsabilidade por acidente emergente de acidente de trabalho.
Do requerimento/petição inicial apresentado pelo FAT constam como alegados precisamente estes factos. A empregadora unicamente foi demandada em razão de supostamente não ter declarado toda a retribuição para efeitos de cobertura de seguro.
Embora com fundamentos parcialmente diferentes, concorda-se com a decisão recorrida na parte em que conclui que sendo o FAT a pedir a indemnização será irrelevante continuar os autos para apuramento de eventual culpa da empregadora, também em especial atendendo aos contornos do caso.
Em primeiro lugar, o direito de indemnização concedido ao FAT em caso de inexistência de beneficiário com direito a pensão é fixado em “uma importância igual ao triplo da retribuição anual” - 63º LAT.
Ou seja, a indemnização é fixada apenas com recurso à variável “valor da retribuição anual”. Diferentemente, pois, do que ocorre quando a acção se destina ao apuramento de danos sofridos pelos sinistrados ou familiares/beneficiários, em que a actuação culposa do empregador dá origem a uma responsabilização agravada, sendo os montantes indemnizatórios superiores e o empregador responsável solidário com a seguradora (esta responde a título principal e solidariamente, mas só na medida do risco).
Assim sendo, na acção prosseguida pelo FAT, a eventual existência de culpa da empregadora não influencia o montante de indemnização. Só se justifica a demanda da empregadora, como o foi, em razão da não transferência total da sua responsabilidade por acidente de trabalho para a seguradora.
Poder-se-ia descortinar uma outra razão para ser demandada a empregadora com base na alegação de inobservância de regras de segurança: a de o FAT pretender obter a condenação de duas entidades (seguradora e empregadora) e assim maior garantia de pagamento (coisa pouco verossímil atenta a robustez financeira das seguradoras).
Porém, recorde-se que isso está na disponibilidade do autor, a quem cabe alegar os factos e formular o pedido.
No nosso ordenamento vigoram os princípios da necessidade de pedido e do contraditório, dos quais decorre que o tribunal não pode resolver um conflito de interesses sem que isso lhe seja pedido pela parte e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição -3º, CPC.
Repare-se que, no caso, a empregadora não deduziu sequer contestação, porque o autor FAT nada alegou e contra ela nada pediu quanto ao aspeto ora em causa, ressalvada a sua responsabilização parcial na parte da retribuição alegadamente não transferida.
Em segundo lugar, e nesta parte concordando-se com o tribunal a quo, a entidade responsável é, deste ponto de vista, a seguradora que responde pelo risco (existindo seguro, naturalmente) e a título principal, sem prejuízo do direito de regresso de que se ache detentora.
A regra é a de que o empregador transfere a sua responsabilidade por acidente de trabalho para entidades autorizadas a realizar esses seguros, respondendo estas com base no risco - 79º LAT.
A norma que, na ausência de beneficiários, concede ao FAT direito indemnizatório contra a entidade responsável não o faz depender de invocação de agravamento de responsabilidade, que nenhum proveito lhe trás.
Poder-se-á dizer, como o fez a recorrente, que nas demais acções emergentes de acidente de trabalho é-lhe lícito arguir a excepção de actuação culposa do empregador, questionado porque não o será aqui.
Ora, para além do referido quanto pré-fixação de montante da indemnização não indexado a culpa, há que atentar no regime global da LAT.
Nas “acções típicas” emergentes de acidente de trabalho, em é parte activa o sinistrado ou beneficiários, estes terão direito a maior cobertura de prejuízos (incluindo não patrimoniais) e a prestações “tarifadas” mais generosas com base no agravamento da responsabilidade (o que não acontece com o FAT). Desde logo, esse regime não está na disponibilidade das partes, por revestir natureza pública e oficiosa, ter caracter imperativo, sendo os seus direitos indisponíveis-  12º e 78º LAT. Por isso, há todo uma obrigatoriedade e interesse em concentrar e tratar no processo a questão da actuação culposa do empregador, sob pena de preclusão.
O que não acontece no caso do direito indemnizatório atribuído ao FAT, que assenta em critérios diferentes.
A causa de pedir dos autos não radica na culpa da empregadora. O FAT pede apenas o que o artigo 63º LAT lhe concede (retribuição anual x 3). As excepções que a ré seguradora possa invocar têm de impedir, modificar, extinguir o que é alegado e pedido pelo autor, ou que o juiz oficiosamente lhe possa conceder por se tratarem de direitos indisponíveis segundo a LAT. Não é caso, insistimos, o montante a receber pelo FAT está pré-estabelecido e a culpa da empregadora não o modifica. As excepção dirigem-se à parte activa e não a um corréu. Assim sendo, a alegação e prova da culpa é inócua e só atraso o processo.
A talho de foice, anota-se que este processado é um mero incidente enxertado na acção especial emergente de acidente de trabalho, que para o efeito é reaberta, conforme previsto no artigo 100º, 6, CPT (e não uma ação para a efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho com refere o tribunal a quo) - ver ac. RL de 2-03-2011 e ac.  RP de 7-07-205, www.dgsi.pt
Diga-se que o FAT é uma entidade a cuja criação presidiu o objectivo de garantir aos sinistrados e beneficiários o pagamento de prestações que não consigam obter das entidades responsáveis e que de outro modo não seriam asseguradas, em razão de incapacidade económica, ausência, desaparecimento, etc.…Os seus fundos, entre o qual se incluiu a indemnização em causa nos autos, servem também esse propósito. O incidente em causa goze igualmente de natureza urgente, o que ainda mais desaconselha soluções que façam arrastar o processado - 26º, 1, e), CPT
Ademais, numa terceira e última ordem de ideias, verifica-se que o demandante FAT desistiu do pedido contra a demandada empregadora. A senhora juiz a quo homologou a desistência e absolveu esta ré do pedido. A decisão não foi objecto de recurso e transitou em julgado.
Quer isto dizer que a pretensão do recorrente, a proceder, levaria à continuação dos autos para discutir aspectos (actuação culposa da empregadora) que respeitam a sujeito já excluído dos autos e sobre a qual a decisão proferida não teria efeito de caso julgado.
Donde se conclui que sempre a ré teria de intentar acção autónoma para querendo exercer direito de regresso, não fazendo sentido falar em economia processual.

III. DECISÃO

Pelo exposto, com fundamentos parcialmente diferentes, nega-se provimento ao recurso e mantém-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente
Notifique.
17-10-2024

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Vera Sottomayor
Francisco Sousa Pereira


[1] Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC, o âmbito do recurso é balizado pelas conclusões do/s recorrente/s salvo as questões de natureza oficiosa.