CRIME SEMI-PÚBLICO
LEGITIMIDADE PARA A QUEIXA
Sumário

I - A queixa pode ser apresentada pelo titular do direito, por mandatário judicial ou por mandatário não judicial munido de poderes especiais.
II - Os poderes conferidos ao mandatário judicial não carecem de ser especiais e os poderes conferidos ao mandatário não judicial têm de ser especiais, mas não têm de ser especificados.

Texto Integral

Acordam na Relação do Porto:

Na Comarca do....., o Mº Pº deduziu acusação, em processo comum singular, contra o arguido MIGUEL....., com os sinais dos autos, pela prática de um crime de furto, p. e p. pelo artº 203º, nº 1, do C. Penal.
Distribuído o processo ao -º Juízo Criminal, o Mmº Juiz proferiu então o despacho de fls. 108 a 110 dos autos, nos termos do qual não recebeu a acusação, na consideração de que, por falta de queixa válida, não está assegurada a legitimidade do Mº Pº para exercer a acção penal e que, de todo o modo, não havendo na acusação do Mº Pº qualquer referência fáctica ao dolo do agente e, assim, não se contendo ali factos suficientes para a condenação do arguido, a acusação é manifestamente infundada.

Desta decisão recorreu o Mº Pº, dizendo em síntese conclusiva:
1. O Mº Pº acusou o arguido, imputando-lhe a prática de um crime de furto, p. e p. pelo artº 203° do C. Penal;
2. Pelo despacho recorrido, ao efectuar o saneamento do processo, nos termos do artº 311° do C. P. Penal, o Mmº Juiz rejeitou a acusação, considerando que:
a) A queixa foi apresentada por quem não dispunha de poderes para tanto. Assim, o Mº Pº, atenta a natureza semi-pública do crime em causa, não tinha legitimidade para exercer a acção penal;
b) A acusação não possui factos que permitam integrar o elemento subjectivo do crime de furto, p. e p. pelo art. 203° do C. Penal, pelo qual vem acusado o arguido.
3. Resulta, no entanto, da análise dos documentos juntos a fls. 2 e 3 dos autos que a sociedade ofendida “E....., Ldª” pretende, de forma expressa e inequívoca, que seja instaurado procedimento criminal;
4. Extrai-se, ainda, desses documentos que, ao apresentar queixa crime, António..... actuou em representação da sociedade ofendida.
5. Assim, a queixa foi apresentada por quem detinha poderes para tanto;
6. Consequentemente, possuía o Mº Pº legitimidade para acusar relativamente ao crime de furto em que se apresenta como ofendida aquela sociedade;
7. Ao rejeitar a acusação, o douto despacho em crise violou o disposto nos artº 113° do C. Penal, 49°, n° 1 e 3, e 283°, n° 1, ambos do C. P. Penal.
8. Mas, mesmo que se verificasse falta ou insuficiência de poderes, relativamente a quem apresentou a queixa, para representar a sociedade ofendida, sempre teria o Tribunal recorrido de, previamente à rejeição da acusação, notificar a mesma para, querendo, ratificar a queixa, nos termos das disposições conjugadas dos artº 268°, n° 1, do C. Civil e 40°, n° 2, do C. P. Civil, ex vi art 4° do C. P. Penal, disposições que a decisão recorrida assim violou;
9. Quanto à inexistência, na acusação, de factos que permitissem preencher o elemento subjectivo do crime de furto, p. e p. pelo artº 203° do C. Penal, consta da acusação pública que:
“Agiu o arguido voluntariamente”.
“Sabia que a lei não lhe permitia tais comportamentos”.
“Sabia que se apoderava de coisa que lhe não pertencia, contra a vontade do respectivo dono”.
10. Sendo o elemento subjectivo do tipo de ilícito em causa a ilícita intenção de apropriação de coisa alheia, encontram-se descritos na acusação factos que permitem o seu preenchimento;
11. Assim, ao rejeitar a acusação, mais violou o despacho em crise o disposto nos artº 203°, n° l, do C. Penal e 311°, n° 2, al. a), e 3, al. d), do C. P. Penal.
Termina, pedindo a revogação dessa decisão e sua substituição por outra que determine o recebimento da acusação.

Não houve resposta, o Mmº Juiz ordenou a subida dos autos e, nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto no processo.
Assim, cumpridos os vistos, cabe decidir.

*
Conforme as conclusões da motivação - pelas quais, como é sabido, o âmbito do recurso se delimita - são essencialmente duas as questões que se colocam, a saber: a) da ilegitimidade do Mº Pº para o exercício da acção penal por falta de queixa válida; b) da manifesta falta de fundamento da acusação deduzida por falta de alegação de factos integradores do elemento subjectivo do tipo legal do crime de furto acusado.

Quanto à primeira questão:
Consoante a acusação do Mº Pº, está em causa um eventual crime de furto, p. e p. pelo artº 203º, nº 1, do C. Penal, em que é ofendida a sociedade “E....., Ldª”, crime que se engloba na categoria dos crimes semi-públicos, por isso que, conforme o nº 3 do mesmo preceito, o respectivo procedimento criminal depende de queixa.
E, como se alcança da decisão recorrida, a questão ali essencialmente tratada e que ditou a conclusão pela ilegitimidade do Mº Pº reportou-se ao significado e alcance do documento de fls. 3 dos autos, uma “Declaração”, inserta em papel com timbre daquela sociedade e do teor seguinte:
“Eu, José....., sócio-gerente da firma “E....., Ldª”, autorizo o Exmº Sr. António....., ....., a representar a Empresa e tratar todos os assuntos relativos a esta junto da P.S.P, nomeadamente efectuar queixas” (sublinhado nosso), seguindo-se-lhe a data (27/6/00, que é também a da queixa), a assinatura e o carimbo da firma.

Conforme o nº 1 do artº 49º do C. P. Penal, “quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.”.
E, nos termos do nº 3 do mesmo preceito - que aqui particularmente interessa -, “a queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respectivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais.”.
No caso, a ofendida é a acima referida “E....., Ldª”, sociedade por quotas, que, como titular do direito lesado, podia apresentar a queixa directamente por intermédio dos seus gerentes que a representavam (artº 192º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais).
Mas podia ainda a queixa ser apresentada por mandatário judicial ou, como aqui sucedeu, por mero mandatário (não judicial).
Porque assim, importa definir que tipo de poderes (gerais ou especiais ou mesmo, dentro destes, poderes especiais especificados) hão-de ter sido conferidos ao mandatário, judicial ou não, para que possa representar a pessoa titular do direito ofendido e por ela validamente apresentar a queixa.

Na sua redacção originária, o nº 3 daquele artº 49º dispunha simplesmente que “a queixa é apresentada pelo titular do direito respectivo ou por mandatário munido de poderes especiais.”; sem qualquer destrinça entre mandatários judiciais e outros.
E, assim, formadas correntes divergentes sobre o alcance a dar ao mandato judicial, nos termos do qual haviam sido conferidos, nomeadamente, “os mais amplos poderes forenses ... bem como para deduzir queixas crime” - uns, entendendo-o suficiente para apresentar qualquer queixa, pois bastava a referência ao tipo ou categoria de actos, outros, sustentando a sua insuficiência, por ser necessário especificar o crime concreto pelo qual se iria proceder criminalmente -, o STJ, fixando jurisprudência quanto ao que se devia entender pela expressão “poderes especiais” contida naquele nº 3, estabeleceu, pelo Ac. nº 2/92, de 13/5/92, DR, I Série-A, de 2/7/92, que “os poderes especiais a que se refere o nº 3 do artigo 49º do Código de Processo Penal são poderes especiais especificados, e não simples poderes para a prática de uma classe ou categoria de actos”, ou seja, como mais concretamente se explicitara a dado passo do texto do acórdão, “é preciso, realmente, que os poderes especiais se concretizem em condições de permitirem a conclusão de que o titular do direito de queixa deseja procedimento criminal pelo delito concretamente denunciado e, se possível, com a indicação da pessoa ou das pessoas contra quem se visa a instauração de um processo de índole penal”.
Acórdão que - diga-se de passagem - não deixou de causar alguma perplexidade pelas dificuldades práticas em que, pela sua directa aplicação, exigindo a identificação concreta do delito a denunciar, colocava aqueles que, pela frequência com que eram ofendidos por determinados crimes (v. g., sociedades comerciais ou empresas que, pela natureza e/ou dimensão da sua actividade, são frequentemente vítimas de crimes de furto, de cheque sem provisão ou outros), se viam na contingência de ter de passar inúmeras e sucessivas procurações.
De todo o modo, tendo embora como pano de fundo situações de mandato judicial de que partiu, foi o aresto tirado em termos amplos, abrangendo, sem distinções, qualquer queixa apresentada por mandatário, judicial ou não judicial; como, aliás, não podia deixar de ser, por isso que, se razão houvesse para distinguir entre o mandato judicial e o não judicial, só poderia ser no sentido de exigências menos apertadas para o primeiro, dada a específica qualidade do mandatário (advogado) e a inerente fé a atribuir aos seus actos.

Porém, logo após aquele aresto, com o Dec.Lei nº 267/92, de 28 de Novembro - diploma que veio dispensar a intervenção notarial nas procurações passadas a advogado para a prática de actos que envolvam o exercício do patrocínio judiciário-, o legislador veio fixar autenticamente o sentido e alcance a atribuir a tal expressão - “poderes especiais” -, ao estabelecer, no nº 2 do artigo único desse diploma, que “as procurações com poderes especiais devem especificar o tipo de actos, qualquer que seja a sua natureza, para os quais são conferidos esses poderes” (sublinhado nosso), assim afastando e, também nessa medida, fazendo caducar a jurisprudência fixada pelo Ac. nº 2/92, deixando de ser exigível, nas procurações com poderes especiais a favor de mandatários judiciais, essa concreta e extrema especificação dos actos a praticar que esse Acórdão entendera necessária, bastando-se tais procurações com a simples indicação do tipo ou categoria de actos.
Ora, sendo esse o alcance que, por lei, assim foi definido para a expressão "poderes especiais” - ainda que num diploma relativo ao mandato judicial, mas que, como bem se alcança do respectivo preâmbulo, teve como fundamental preocupação a desburocratização das respectivas procurações, pela abolição da exigência de intervenção notarial, e não a definição de exigências de natureza substancial -, não se vê razão válida para que, tratando-se de mandato não judicial, se não conferisse a essa mesma expressão o mesmo sentido e alcance.

Enfim, com a actual redacção do nº 3 do artº 49º, conferida pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto - “a queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respectivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais” -, ficou agora bem claro que se não exige que ao mandatário judicial sejam conferidos poderes especiais para que possa apresentar queixa, bastando a simples procuração, outorgando poderes gerais; o que, seguramente, se posiciona na linha de justificação já antes avançada no preâmbulo do Dec.Lei nº 267/92, essencialmente na fé de que devem gozar os actos praticados pelos advogados.
Quanto ao mandatário não judicial, mantendo a exigência de que esteja munido de “poderes especiais”, mas sem nada acrescentar no sentido de que esses poderes devam ser especificados, mormente nos moldes que o supra citado Ac. nº 2/92 considerara, esta nova redacção não pode deixar de ser entendida como opção pelo alcance que, como vimos, o próprio legislador já anteriormente, com o Dec.Lei nº 267/92, conferira àquela expressão, ou seja, que bastava a indicação do tipo de actos para cuja prática eram conferidos poderes ao mandatário.
Solução que, de resto, se não vê que comporte particulares inconvenientes, sabido que, quando assim o considere, pode o mandante optar por conferir poderes mais restritos, “especiais especificados”, confinando a procuração a um crime concreto e identificado.
Em derradeira análise, o que verdadeiramente importa é que, na procuração, os poderes especiais estejam traduzidos em moldes bastantes que permitam concluir que o titular do direito de queixa deseja procedimento criminal pelo delito que, em concreto, veio a ser denunciado, sobremodo tendo em conta que, nos crimes semi-públicos, o interesse do ofendido assume particular relevo, mormente quanto à ponderação da oportunidade da (não) perseguição penal, seja em função da pessoa do concreto lesante, seja ainda em função da necessidade de preservação dos interesses e intimidade dele próprio, lesado (como é tipicamente o caso dos crimes sexuais que, na sua fundamentação, o Ac. nº 2/92 trouxe à colação).

Tendo tudo isto presente e retornando ao nosso caso, temos como evidente que, estando em causa um alegado crime de furto pelo qual foi lesada uma sociedade comercial - que tem por natural escopo o exercício lucrativo da sua actividade -, se não verificam aqui aqueles específicos interesses que, em função da pessoa do lesante e/ou do recato da lesada, poderiam levar a que o titular do direito de queixa pudesse, in casu, não desejar exercer esse direito: é por demais óbvio que, em casos como o vertente, nem a consideração da pessoa do lesante é normalmente factor relevante, nem, por outro lado, da eventual publicitação do evento pode resultar qualquer inconveniente para a lesada.
Destarte, à declaração em apreço (fls. 3 dos autos), subscrita pelo sócio-gerente da lesada, José...... - e, sublinha-se, com a mesma data da queixa - pode com toda a naturalidade atribuir-se o sentido de que, por esse meio, o declarante pretendeu conferir ao nela referido António..... poderes para, em nome da sociedade lesada, apresentar na PSP a queixa dos autos; sentido que, claramente, face aos termos dessa declaração e às circunstâncias concretas, seria o que um declaratário normal lhe atribuiria (artº 236º, nº 1, do C. Civil).
Assim e concluindo, assiste razão ao recorrente ao sustentar que o apresentante da queixa detinha poderes para tanto e, consequentemente, que ao Mº Pº assistia legitimidade para o exercício da acção penal pelo crime de furto pelo qual deduziu acusação.

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Tendo concluído pela ilegitimidade do Mº Pº, mas logo considerando que uma tal irregularidade poderia ainda ser suprida pela ratificação da queixa por parte da sociedade ofendida, o despacho recorrido acaba, afinal, por rejeitar a acusação, na consideração da sua manifesta falta de fundamento, já que nela se não encontra qualquer referência fáctica ao dolo do agente, em qualquer das suas modalidades.
Porém e com o devido respeito, pensa-se que, também aqui, se não terá ajuizado pelo melhor.
Com efeito, na acusação do Mº Pº, depois de se ter descrito o comportamento do arguido, essencialmente que este, nas bombas de gasolina a que se dirigira, abasteceu o seu veículo com gasolina, após o que se foi embora do local, sem pagar, alegou-se que “agiu o arguido voluntariamente”, “sabia que a lei lhe não permitia tais comportamentos” e “sabia que se apoderava de coisa que lhe não pertencia, contra a vontade do respectivo dono”.
Ora, sabido que o elemento subjectivo do crime de furto “é constituído pela ilícita intenção de apropriação, para si ou para outrem, de coisa alheia” (Maia Gonçalves, Código Penal Português, 8ª ed., 693), pensa-se que a acusação, mormente nos passos supra transcritos, traduz suficientemente a correspondente materialidade, não se vendo razão para, por aí, ser havida como manifestamente infundada e, por tal, rejeitada, como se entendeu na douta decisão recorrida.
Assim, o recurso é merecedor de provimento.
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Em conformidade, acorda-se em conceder provimento ao recurso do Mº Pº, pelo que se revoga a douta decisão impugnada, determinando-se a sua substituição por outra que, reconhecendo a legitimidade do Mº Pº para o exercício da presente acção penal e na consideração de que a acusação por aquele deduzida contra o arguido Miguel..... não é manifestamente infundada, faça o processo prosseguir seus termos, como no caso couber.
Sem tributação.

Porto, 04 de Fevereiro de 2004
José Henriques Marques Salgueiro
Francisco Augusto Soares de Matos Manso
Manuel Joaquim Braz