IRREDUTIBILIDADE DA RETRIBUIÇÃO
TRANSMISSÃO DE ESTABELECIMENTO
CATEGORIA PROFISSIONAL
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
ABUSO DE DIREITO
Sumário


I- O artigo 129.º, n.º 1, alínea d) do Código do Trabalho consagra o princípio da irredutibilidade da retribuição.
II- Estipula este princípio que é proibido ao empregador diminuir a retribuição do trabalhador, salvo nos casos previstos no Código do Trabalho ou em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho.
III- Se o contrato de trabalho se transmitiu para diferente entidade empregadora em consequência de uma transmissão de estabelecimento, a nova empregadora está obrigada a respeitar todos os direitos contratuais e adquiridos do trabalhador, nomeadamente retribuição, categoria profissional e conteúdo funcional.
IV- Não se tendo verificado qualquer uma das situações legalmente previstas para a possibilidade de redução da retribuição, a diminuição da mesma, pela nova entidade empregadora, constitui uma violação do disposto no artigo 129.º, n.º 1, alínea d) do Código do Trabalho.
V- O desgaste emocional, ansiedade, humilhação e desconsideração sentidos pela trabalhadora, em consequência da diminuição ilícita da sua categoria profissional, nas particulares circunstâncias do caso concreto, constituem danos não patrimoniais que merecem a tutela do direito.
VI- Mostra-se justa e adequada a quantia de € 10.000,00 para compensar tais danos não patrimoniais e a gestão dos mesmos durante cerca de oito anos.
VII- Não atua em situação de abuso de direito a trabalhadora que só depois de se reformar veio intentar ação judicial contra a ex-empregadora, reclamando direitos decorrentes da diminuição da sua retribuição e da diminuição da sua categoria profissional.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral


P.1358/22.6T8BJA.E1


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório
Na presente ação declarativa emergente de contrato individual de trabalho, sob a forma de processo comum, que AA move contra J..., Lda., foi proferida sentença contendo o seguinte dispositivo:
«Em face de tudo quanto se deixou exposto julgo parcialmente procedente a ação intentada por AA contra J..., LDA. e, em consequência;
a) Condeno a Ré a pagar à autora a quantia de €10.000,00 (dez mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais resultantes da diminuição ilícita da sua categoria;
b) Condeno a ré a pagar à autora a quantia de 199.417,69€ (cento e noventa e nove mil, quatrocentos e dezassete euros e sessenta e nove cêntimos), referentes a diferenças salariais dos anos de 2011 a 2021 e respetivos juros de mora à taxa civil vencidos até 01.03.2024 e vincendos desde essa data até efetivo e integral pagamento;
c) Condeno a ré a pagar à autora indemnização pelas diferenças da pensão de reforma por invalidez da autora em resultado da redução da remuneração de janeiro de 2011 até à data da cessação do contrato, a liquidar em incidente de liquidação de sentença:
d) Absolvo a ré do demais peticionado.
Decido não condenar as partes como litigantes de má-fé.

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Custas a cargo de autora e ré, na proporção do decaimento quanto aos pedidos líquidos, que se fixa em 69% para a ré e 31% para a autora (artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
O valor da ação foi fixado no despacho saneador.
Registe e notifique, dando conhecimento da presente sentença ao ISS-IP/Centro Distrital ..., após trânsito.».
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Inconformada, a ré interpôs recurso desta decisão, extraindo das alegações do recurso as seguintes conclusões:
«1 – A Ré foi condenada no valor de 199.417,69€, a título de diferenças salariais, que a AA. auferia antes da cedência do estabelecimento comercial H..., que pertencia à sociedade F....
2 – Considerando o facto provado em 14º, consta que a AA. trabalhou para a “Soc. F..., S.A.”, como diretora do “H...”, com poderes de representação junto de bancos, Autoridade Tributária e Aduaneira, Conservatórias, Notários, entidades públicas e privadas e instituições e de representação do H..., nos tribunais, tendo autonomia e liberdade (…)
3 – A AA. foi promovida a diretora do Hotel (…), posição que tinha em novembro de 2010 – ver depoimento da AA., minutos 15:38 a 16:38
4 - Pelo facto XVII e XVIII foi a AA. aumentada na sua retribuição de 23.393,58€ para 29.393,58€, entre 2002 e 2003.
5 – Qual a relação entre o vínculo laboral da AA. enquanto trabalhadora da Soc. F... e o seu desempenho de administradora de facto, para a mesma sociedade e a acumulação como Presidente do Conselho de Administração da empresa O..., S.A.?
6 – A AA. passou a exercer as funções de Diretora do H..., ao serviço da F..., conforme os poderes que lhe foram conferidos – facto 14 (administradora de facto).
7 - A AA. exerceu estas funções até à data da cessão do H..., para a Ré – cf. facto 14º e 31º.
8 – Conforme referido a AA./Recorrida, exercia as funções de administradora de facto, em sentido amplo, exercendo direta e indiretamente e de modo autónomo, funções próprias de administradora da Sociedade F..., em relação ao H....
9 – Nos termos do art.º 129º da Lei 7/09 é possível a diminuição de retribuição dos trabalhadores, nos casos previsto na lei, ou seja, no caso de mudar para uma categoria inferior e foi o caso nos autos, em relação à AA..
10 - Resulta dos autos, que a AA. em 1986, iniciou as suas funções como administrativa na empresa F... – cf. facto provado 30
11 – A AA., enquanto trabalhou na F..., a categoria de Diretora do H..., acumulou funções como representante e administradora de facto, com total poder e decisão e de representada F... – cf. facto provado 14º.
12 – Resulta que devido às tarefas de maior responsabilidade, correspondente à sua categoria superior, a sua remuneração seria também superior, cf. histórico das remunerações.
13 - Ao terminar essas funções, conforme se deu como provado em 15º, a AA. deveria regressar às suas funções e vencimento relacionado com a sua categoria profissional, previstas no contrato de trabalho.
14 – A lei admite a possibilidade de redução do salário para o valor auferido antes do início das suas funções de administração de facto da sociedade F..., melhor identificada.
15 – O contrato de trabalho celebrado entre a AA. e a F..., ficaria suspenso, com o início do exercício pela AA. das funções de administradora de facto da empresa F....
16 – Assim como, em acumulação, quando passou a ser Presidente do Conselho de Administração da Sociedade O..., entre 2000 e 2007, do mesmo grupo de empresa da F... – cf. doc. juntos aos autos.
17 – Na verdade, entre 2000 e 2007, a AA. acumulou as funções de Diretora e administradora de facto do H... da empresa F... e Presidente do Conselho e Administração da empresa O..., do mesmo grupo.
18 – O vencimento da AA. aumentou de 12.918,87€ em 1999 (cf. facto XIV) para 17.613,43€, em 2001 (cf. facto XVI), 29.393,58€, em 2003 (cf. facto XVIII) e mantendo-se com rendimento anual de 30.743,25€ até 2010 (cf. facto XXV), exatamente no momento que esta passou a exercer as funções de administradora.
19 – O contrato de trabalho da AA. deveria ter ficado suspenso, com o início do exercício, pela AA. Das funções de Presidente do Conselho de Administração, quer como Administradora de facto da F..., por força do previsto no n.º 2 do art.º 398º do CSC.
20 – Esta realidade, não foi observada pelo Tribunal a quo.
21 - Suspensão que só deveria cessar no termo do desempenho das referidas funções de administradora de direito e de facto.
22 - Na verdade, existe uma incompatibilidade entre os vínculos laborais da AA., enquanto assalariada e os de administração, pelo que o exercício das funções de administração, quer de facto (F...), quer de direito, não pode basear-se num contrato de trabalho da AA..
23 – No fim das funções de administradora, a AA. voltaria a readquirir as suas funções e o estatuto de trabalhadora com os direitos que tinha antes de ser administradora ou Presidente do Conselho de Administração.
24 - Conforme facto provado 14, a AA., enquanto Diretora do H..., era simplesmente administradora da F..., este facto foi confessado pela AA. – minuto 15:38 a 16:38.
25 – A AA. não tem o direito de reclamar da Ré o vencimento que auferia à data da aquisição pela Ré do H... à F....
26 - Foi este o entendimento da AA., ao não ter reclamado a redução do vencimento à Ré, durante 11 anos que trabalhou ao serviço desta.
27 – Sendo certo que a AA. não reclamou, demonstrando a sua total aceitação e concordância, bem sabendo que deixou de exercer as funções de administradora da F....
28 - A AA. estabeleceu com a F... uma relação de administração de facto e de Presidente do conselho de Administração em relação à empresa O... do grupo.
29 – A AA. deixou de ser administradora da F..., com a aquisição pela Ré do H....
30 – O contrato de trabalho, para as funções de administradora da F..., não pode ser qualificado e enquadrado no contrato de trabalho da AA., enquanto administrativa que conforme se deu como provado, até à data da cedência do H... para a Ré.
31 – A AA. acumulava, incorporava, simultaneamente as posições jurídicas de empregadora e empregada (autonomia e liberdade técnica e de gestão, despedimentos, transação e receção, pagamento de dinheiro de empresas – facto 14º).
32 - Todos os direitos que a AA. beneficiasse por força das suas funções de administração, deixaram de ser devidas a partir do momento que deixou de exercer essas funções de administração das empresas do grupo, ou seja, da F... ou da empresa O..., S.A..
33 - Não resulta que a partir de 2007, o vencimento da AA. fosse reduzido para a sua categoria profissional, anterior a 2000 e este facto não tem que ser alegado e provado pela Ré, a este propósito leia-se os factos XV a XXV, cf. histórico das remunerações.
34 – O vencimento que a AA. passou a receber pela Ré, provado em 24º, era exatamente o salário devido pelas funções que a AA. passou a exercer ao serviço da Ré, ou seja, da Diretora do Hotel, com vencimento base de 1.200,00€ e não como administradora.
35 – O desgaste emocional e a humilhação da AA. dada como provada em 34º, não tem fundamento legal.
36 - A douta sentença, violou e aplicou de forma deficiente o art.º 334º, 1152º e 1157º do CC, 391º, 398º e 406º do CSC e 258º e 323º do CT, ao não relevar as efetivas funções e tarefas desempenhadas pela AA., enquanto ao serviço da F..., até à data da cedência do estabelecimento comercial pela Ré.
37 - Ao serviço da F..., a AA. exercia funções de administradora de facto, não recebendo ordens nem as dava, não havendo subordinação jurídica nem económica, era a AA., que tinha todos os poderes de administração da F..., incorporava em si própria as funções de empregadora e empregada, incluindo o seu vencimento.
38 - Em violação expressa do previsto no n.º 1 e 2 do art.º 398º do CSC.
39 - Após os poderes conferidos à AA. em 2000, de administradora e representante da F..., o contrato de trabalho da AA. suspendeu-se, já que vigorava há mais de 1 ano, cf. art.º 398º do CSC.
40 – A lei proíbe a acumulação na mesma pessoa, os poderes de administração, mesmo de facto, e as de trabalhadora subordinada na mesma sociedade, de forma simultânea (anterior ou posterior) aos poderes de administração, para evitar aproveitamento económico.
41 – Devido a estas circunstâncias o contrato de trabalho da AA. a partir de 2000 suspendeu-se até novembro de 2010, data que terminou as suas funções práticas de administradora da F....
42 - A AA., exerceu as funções de administradora, de forma ilegal, acumulando com as suas funções laborais, para que foi contratada, enquanto administrativa.
43 – Nos termos do n.º 2 do art.º 398º do CSC, a AA. não podia acumular as suas funções laborais, com a de Presidente do Conselho de Administração da O..., S.A., sem que fosse suspenso o seu contrato de trabalho, nem como administradora da F..., em relação ao H....
44 – A incompatibilidade era total, já que aumentou o seu salário anual, enquanto administradora da F..., S.A., manteve-o, depois de deixar de acumular tais funções, com a de Presidente do Conselho de Administração da O..., S.A., em 2007.
45 – A AA. não tem direito de receber da Ré os valores referentes ao contrato de trabalho da AA., enquanto auferido, em acumulação de funções de administradora, o vencimento legal da AA. deveria ser retomado, ao vencimento legal de 2011, como Diretora do Hotel.
46 – O douto Tribunal, não analisou criticamente a natureza jurídica das funções da AA., à data da cedência do estabelecimento.
47 - A douta sentença recorrida, invoca e fundamenta erradamente a condenação da Ré pelo princípio da irredutibilidade de retribuição.
48 – Fundamenta que a Ré não demonstrou que a AA. auferisse uma parcela remuneratória acrescida por virtude das funções que acumulava, como Presidente do Conselho de Administração da outra sociedade do grupo e administradora de facto da F....
49 – Com o devido respeito, o Tribunal a quo, ignorou os documentos que demonstram o registo histórico dos descontos para a Segurança Social da AA., em que exatamente na data do exercício de Presidente do Conselho de Administração a O..., teve um acréscimo do vencimento de 12.918,87€ para 29.393,58€, entre 2000 e 2003, quando iniciou exercício da função de administradora de facto da F....
50 – A condenação da Ré nas diferenças salariais, depois da cedência do estabelecimento H..., omitindo esta realidade, é uma autêntica injustiça e violação da lei invocada.
51 – Os factos dados como provados de 25º a 29º e 34º, não são fundamentados, para além das declarações da AA. e seu marido.
52 - Releva-se que o depoimento de BB, marido da AA., minutos 06:36 a 08:43, foi interessado e parcial, bem como do depoimento da AA., nada é referido sobre os alegados danos morais.
53 – A AA. não demonstrou ter sofrido danos não patrimoniais que alega, e por consequente não devia o douto Tribunal, dar como provado o facto de 25º a 29º e 34º, que fundamentasse a condenação da Ré no valor de 10.000,00€, a título de danos não patrimoniais.
54 - O douto Tribunal, sem prova objetiva e desinteressada deu como provado estes factos, apena pelas declarações da AA. e seu marido, o que não se concorda.
55 – Não resultando critério legal, objetivo e equitativo que fundamentasse a condenação da Ré em tal valor, a título de danos não patrimoniais.
Nestes termos deve ser procedente o recurso, revogando-se a douta sentença, nos termos peticionado pela Ré.».
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Não foram oferecidas contra-alegações.
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A 1.ª instância admitiu o recurso como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo, em virtude de ter sido prestada caução.
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O processo subiu à Relação e o Ministério Público emitiu parecer a pugnar pela improcedência do recurso.
O recorrente ofereceu resposta, reiterando o alegado no recurso.
O recurso foi mantido e, após a elaboração do projeto de acórdão, foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. Objeto do Recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).
Em função destas premissas, as questões suscitadas no recurso podem ser assim elencadas:
1.ª Impugnação da matéria de facto.
2.ª Inexistência do direito às diferenças salariais respeitantes aos anos de 2011 a 2021.
3.ª Falta de fundamento para a condenação no pagamento de indemnização por danos não patrimoniais.
4.ª Verificação de abuso de direito.
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III. Matéria de facto
A 1.ª instância julgou como provados os seguintes factos:
1) A AA. tem 64 anos de idade, é reformada e iniciou a sua vida profissional como trabalhadora da “F..., S.A.”, sociedade com o NUIPC ...90, com sede na ..., número ...0-A, ... ... (de ora em diante, abreviadamente designada por “F...”).
2) A F... foi a primeira proprietária da unidade hoteleira designada por “H...”, na ..., na qual a AA. trabalhou desde a sua construção até ao ano de 2012.
3) O H... é atualmente detido pela R., uma sociedade comercial que tem por objeto a prossecução de atividades hoteleiras e de restauração, construção civil, compra, venda e administração de bens imóveis, a comercialização de bens e produtos destinados à construção civil e ainda a prestação de serviços relacionados com as referidas atividades.
4) O H..., com o site ... é um hotel de 3 (três) estrelas, com mais de 40 quartos e está situado em frente ao recinto de feiras e exposições de ...
5) Tal como consta do seu site, o H... situa-se junto da R..., das ..., do centro da cidade e das suas principais atracões, incluindo o ... e o ..., dispõe de internet gratuita, ginásio, bem como de parque de estacionamento privativo;
6) O H... tem parceria com a plataforma de reservas online “Booking.com”, que lhe atribui a categoria de “Ótimo”.
7) O H... consta igualmente também do site “Trivago”,
8) O H... tem também o seu nome, descrição e fotografias na plataforma “Visit Alentejo”, que dá a conhecer aos visitantes as diversas ofertas turísticas e hoteleiras existentes na zona.
9) O H... é também um dos hotéis referenciados na página oficial da Câmara Municipal ..., que o descreve como “uma moderna unidade hoteleira situada perto do centro da ... com 45 quartos, onde o conforto e a funcionalidade se aliam” - ...
10) O H... vem anunciado no site de viagens “Momondo”
11) E aparece referenciado no site “Hotelscombined” e noutras páginas de turismo e agências de viagens, como seja a “Portugal Stay” , ..., a “All about Portugal”, a agência de viagens Geostar, a “Portugal Get Aways”, a “Jet Cost” e a “Lifecooler”.
12) A F..., é uma sociedade comercial que se dedica à urbanização de terrenos e sua comercialização e execução de obras de construção civil em como a compra e venda de prédios e revenda dos adquiridos e ainda o exercício de atividades de hotelaria e similares, animação turística, e que, até ao final de 2010 detinha o “H...”;
13) A autora trabalhou para a F... desde 1986 até 21.12.2010, com um interregno entre 1998 a 2002, período em que trabalhou para outra sociedade do grupo - a O..., S.A.
14) Durante o período em que trabalhou para a F... como Diretora do H... a F... conferiu à autora poderes para a representar junto de Bancos, Autoridade Tributária e Aduaneira, Conservatórias, Notários, entidades públicas, privadas e institucionais, de representação do Hotel e junto dos Tribunais, tendo autonomia e liberdade técnica e de gestão por parte da sua então entidade empregadora, de rececionar e serem emitidos a seu favor e como beneficiária cheques das entidades financeiras e de todos os assuntos, temas e matérias conexas com a F....
15) A ré nunca lhe conferiu tais poderes.
16) A Autora acumulou as funções e responsabilidades de Diretora do H... com as de Presidente do Conselho de Administração da sociedade comercial denominada “O..., S.A” no período temporal compreendido entre março de 2000 e setembro de 2007.
17) Até ao dia 21.12.2010 o H... era detido pela “F...”.
18) No dia 21 de dezembro de 2010, foi celebrado um contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança, por escritura pública, mediante o qual a F... vendeu à ora R. o prédio onde se encontrava instalado o “H...” descrito sob o número ... da freguesia ..., da Conservatória do Registo Predial ... pelo preço de um milhão e quinhentos mil euros;
19) No referido contrato, a F... declarou que o prédio seria vendido livre de ónus ou encargos e que todas as contribuições, impostos e outras despesas relacionadas com o imóvel se encontravam total e regularmente liquidadas;
20) A parte compradora, ora R., declarou e fez constar do contrato, que o referido prédio se destinava ao exercício da sua atividade comercial – e o Hotel continuou em funcionamento.
21) Consta expressamente do contrato celebrado que a venda em questão compreendia “o estabelecimento comercial nele instalado, denominado «H...», móveis, equipamentos, máquinas e utensílios, bem como a transferência, para a compradora, de todos os trabalhadores atualmente ao serviço do hotel. A venda é feita no estado de conservação em que o imóvel e bens do estabelecimento se encontram.”
22) No dia seguinte ao da escritura de compra e venda do H... o gerente da ora R., CC, referiu à AA. que, por motivos financeiros, não lhe ia conseguir pagar o mesmo que estava a receber anteriormente.
23) A AA., que na altura tinha a sua filha a estudar na faculdade e não podia ficar sem trabalho, não reclamou da situação.
24) Assim, a partir do dia 31/12/2010 a AA. passou a receber da R. a quantia de 1200,00€ (mil e duzentos euros) de salário até setembro de 2013 e a quantia de 1.250,00€ a partir de outubro de 2013 e até final do contrato.
25) Foi com alguma dificuldade que a AA. continuou a dar suporte financeiro à sua filha, na altura estudante universitária,
26) Tendo as alterações no orçamento familiar impactado igualmente nos restantes membros do seu agregado,
27) Como foi o caso do marido da AA., que teve passar a trabalhar a tempo inteiro em vez de a tempo parcial e, desse modo, passou a estar menos presente no quotidiano familiar.
28) A AA. deixou de passear com o seu marido com a frequência com que fazia, uma vez que passaram a estar mais limitados economicamente,
29) Tendo a alteração da sua situação económica sido desgastante para a AA., passando a mesma a ser uma pessoa mais ansiosa, situação que se agravou quando lhe foram retiradas as funções de Diretora de Hotel.
30) No início da sua carreira, em 1986, a AA. foi contratada como administrativa.
31) A AA. foi sendo promovida ao longo do tempo, chegando à posição de Diretora do Hotel – posição essa que detinha, em novembro de 2010.
32) Já depois da transferência do estabelecimento hoteleiro para a ora R., a AA. manteve as funções de Diretora do H..., o que a obrigava a trabalhar fora de horas, sem que por esse facto recebesse qualquer quantia adicional.
33) Em data não concretamente apurada mas cerca de dois anos após a aquisição do H... pela ré, esta determinou que a autora deixasse de exercer funções de “Diretora de Hotel” e passou a exercer apenas funções de “Diretora de Eventos”, sendo fisicamente transferida, sem qualquer justificação, para uma unidade hoteleira ao lado do H... – O H....
34) Toda esta situação provocou na AA. desgaste emocional, sentindo-se esta humilhada e desconsiderada.
35) A autora esteve de baixa médica 13 dias em setembro de 2020, 30 dias no mês de outubro de 2020, 28 dias no mês de novembro de 2020 e 12 dias em fevereiro de 2021.
36) Por requerimento entregue na Segurança Social no dia 2 de dezembro de 2021, a AA. solicitou a pensão de invalidez.
37) Por ofício datado de 19 de janeiro de 2022, a Segurança Social informou a AA. do deferimento do requerimento de pensão por invalidez relativa, com início em 02 de dezembro de 2021, no valor de € 1.195,00 (mil cento e noventa e cinco euros).
38) A AA. passou à situação de reforma no referido dia 2 de dezembro de 2021.
39) Passando, a partir dessa data, a receber uma pensão de reforma, calculada unicamente com base nos rendimentos do seu trabalho.
40) A segurança social considerou, na atribuição da pensão por invalidez da autora, a seguinte carreira retributiva da autora:
i. No ano de 1986, a AA. recebeu o valor nominal de €1.039,17, (mil e trinta e nove euros e dezassete cêntimos), valor revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma em €3.637,60 (três mil seiscentos e trinta e sete euros e sessenta cêntimos).
ii. No ano de 1987, a AA. recebeu o valor nominal de €1.985,22 (mil novecentos e oitenta e cinco euros e vinte e dois cêntimos), valor revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma em €6.351,31 (seis mil, trezentos e cinquenta e um euros e trinta e um cêntimos).
iii. No ano de 1988, a AA. recebeu o valor de €2.131,47 (dois mil, cento e trinta e um cêntimos e quarenta e sete cêntimos), valor revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma em €6.221,76 (seis mil, duzentos e vinte um euros e setenta e seis cêntimos).
iv. No ano de 1989, a AA. recebeu o montante de €2.928,39 (dois mil novecentos e vinte e oito cêntimos e trinta e nove cêntimos), valor revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma em €7.644,00 (sete mil seiscentos e quarenta e quatro euros).
v. No ano de 1990, a AA. recebeu o montante de €3.461,96 (três mil, quatrocentos e sessenta e um euros e noventa a seis cêntimos), valor revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma em €7.914,73 (sete mil, novecentos e catorze euros e setenta e três cêntimos).
vi. No ano de 1991, na AA. recebeu o montante de €4.491,18 (quatro mil quatrocentos e noventa e um euros e dezoito cêntimos), valor revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma para €9.216,35 (nove mil duzentos e dezasseis euros e trinta e cinco cêntimos).
vii. No ano de 1992, a AA. recebeu o montante de €6.107, 28 (seis mil cento e sete euros e vinte e oito cêntimos), valor revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma em €11.508,56 (onze mil, quinhentos e oito euros e cinquenta e seis cêntimos).
viii. No ano de 1993, a AA. recebeu o montante de €6.194,07 (seis mil, cento e noventa e quatro euros e sete cêntimos), valor revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma em €10.960,41 (dez mil novecentos e sessenta euros e quarenta e um cêntimos).
ix. No ano de 1994, a AA. recebeu o montante de €6.194,07 (seis mil, cento e noventa e quatro euros e sete cêntimos), valor revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma em €10.417,79 (dez mil, quatrocentos e dezassete euros e setenta e nove cêntimos).
x. No ano de 1995, a AA. recebeu o montante de €11.362,62 (onze mil, trezentos e sessenta e dois euros e sessenta e dois cêntimos), valor revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma em €18.358,59 (dezoito mil, trezentos e cinquenta e oito euros e cinquenta e nove cêntimos).
xi. No ano de 1996, a AA. recebeu o montante de €12.918,87 (doze mil, novecentos e dezoito euros e oitenta e sete cêntimos), valor revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma em €20.245,16 (vinte mil, duzentos e quarenta e cinco euros e dezasseis cêntimos).
xii. Em 1997, a AA. recebeu a quantia de €12.918, 87 (doze mil, novecentos e dezoito euros e oitenta e sete cêntimos), valor revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma em €19.811,09 (dezanove mil, oitocentos e onze euros e nove cêntimos).
xiii. Por seu lado, em 1998, a AA. recebeu a quantia de €12.918, 87 (doze mil, novecentos e dezoito euros e oitenta e sete cêntimos), valor revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma em €19.289,16 (dezanove mil, duzentos e oitenta e nove euros e dezasseis cêntimos).
xiv. Em 1999, a AA. recebeu a quantia de €12.918, 87 (doze mil, novecentos e dezoito euros e oitenta e sete cêntimos), valor revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma em €18.855,09 (dezoito mil, oitocentos e cinquenta e cinco euros e nove cêntimos).
xv. Em 2000, a AA. recebeu o montante de €12.918, 87 (doze mil, novecentos e dezoito euros e oitenta e sete cêntimos), valor revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma em €18.340,99 (dezoito mil, trezentos e quarenta euros e noventa e nove cêntimos).
xvi. Em 2001, a AA. recebeu o montante de €17.613,43 (dezassete mil, seiscentos e treze euros e quarenta e três cêntimos), valor revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma em €23.957,79 (vinte e três mil, novecentos e cinquenta e sete euros e setenta e nove cêntimos).
xvii. Em 2002, a AA. recebeu o montante de €23.393,58 (vinte e três mil, trezentos e noventa e três euros e cinquenta e oito cêntimos), valor revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma em €32.119,39 (trinta e dois mil, cento e dezanove euros e trinta e nove cêntimos).
xviii. Em 2003, a AA. recebeu o montante de €29.393,58 (vinte e nove mil, trezentos e noventa e três euros e cinquenta e oito cêntimos), valor revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma em €38.893,59 (trinta e oito mil, oitocentos e noventa e três euros e cinquenta e nove cêntimos).
xix. Em 2004, a AA. recebeu o montante de €30.393,68 (trinta mil, trezentos e noventa e três euros e sessenta e oito cêntimos), valor revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma em €39.186,57 (trinta e nove mil, cento e oitenta e seis euros e cinquenta e sete cêntimos).
xx. Em 2005, a AA. recebeu o montante de €30.393,58 (trinta mil, trezentos e noventa e três euros e cinquenta e oito cêntimos), valor revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma em €38.192,57 (trinta e oito mil, cento e noventa e dois euros e cinquenta e sete cêntimos).
xxi. Em 2006, a AA. recebeu o montante de €30.393,58 (trinta mil, trezentos e noventa e três euros e cinquenta e oito cêntimos), valor revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma em €36.995,07 (trinta e seis mil, novecentos e noventa e cinco euros e sete cêntimos).
xxii. Em 2007, a AA. recebeu o montante de €30.393,58 (trinta mil, trezentos e noventa e três euros e cinquenta e oito cêntimos), valor revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma em €36.025,51 (trinta e seis mil e vinte e cinco euros e cinquenta e um cêntimos).
xxiii. No ano de 2008, a AA. recebeu o valor de €30.593,90 (trinta mil, quinhentos e noventa e três euros e noventa cêntimos), valor revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma em €35.198,28 (trinta e cinco mil, cento e noventa e oito euros e vinte e oito cêntimos).
xxiv. No ano de 2009, a AA. auferiu o total de €30.994,54 (trinta mil, novecentos e noventa e quatro euros e cinquenta e quatro cêntimos), montante revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma em €35.659,22 (trinta e cinco mil, seiscentos e cinquenta e nove euros e vinte e dois cêntimos).
xxv. No ano de 2010, a AA. recebeu o montante total de €30.743,25 (trinta mil, setecentos e quarenta e três euros e vinte e cinco cêntimos), valor revalorizado pela segurança social para efeitos de reforma em €34.739,87 (trinta e quatro mil, setecentos e trinta e nove euros e oitenta e sete cêntimos).
xxvi. No ano de 2011, a AA. recebeu o montante total de €16.800 (dezasseis mil e oitocentos euros), valor revalorizado em €18.303,60 (dezoito mil, trezentos e três euros e sessenta cêntimos).
xxvii. No ano de 2012, a AA. recebeu o montante de €14.400 (catorze mil e quatrocentos euros), valor que foi revalorizado para o montante de €15.261,12 (quinze mil, duzentos e sessenta e um euros);
xxviii. No ano de 2013, a AA. recebeu o montante de €14.550 (catorze mil, quinhentos e cinquenta euros), valor que foi revalorizado para €15.308,06 (quinze mil, trezentos e oito euros e seis cêntimos).
xxix. No ano de 2014, a AA. recebeu o montante de €15.000 (quinze mil euros), valor que foi revalorizado para o montante de €15.781,50 (quinze mil, setecentos e oitenta e um euros e cinquenta cêntimos).
xxx. No ano de 2015, a AA. recebeu o montante de €15.000 (quinze mil euros), valor que foi revalorizado para o montante de €15.703,50 (quinze mil, setecentos e três euros e cinquenta cêntimos).
xxxi. No ano de 2016, a AA. recebeu o montante de €16.250 (dezasseis mil, duzentos e cinquenta euros), valor que foi revalorizado para o montante de €16.880,50 (dezasseis mil, oitocentos e oitenta euros e cinquenta cêntimos).
xxxii. No ano de 2017, a AA. recebeu o montante de €16.250 (dezasseis mil, duzentos e cinquenta euros) valor que foi revalorizado para o montante de €16.641,63 (dezasseis mil, seiscentos e quarenta e um euros e sessenta e três cêntimos).
xxxiii. No ano de 2018, a AA. recebeu o montante de €18.750 (dezoito mil, setecentos e cinquenta euros) valor que foi revalorizado para o montante de €18.956,25 (dezoito mil, novecentos e cinquenta e seis euros e vinte e cinco cêntimos).
xxxiv. No ano de 2019, a AA. recebeu o montante de €17.500 (dezassete mil e quinhentos euros) valor que foi revalorizado para o montante de €17.566,50 (dezassete mil, quinhentos e sessenta e seis euros e cinquenta cêntimos).
xxxv. No ano de 2020, a AA. recebeu a quantia de €13.792 (treze mil, setecentos e noventa e dois euros).
xxxvi. Por fim, no ano de 2021, a AA. recebeu o montante de €16.216,68 (dezasseis mil, duzentos e dezasseis euros e sessenta e oito cêntimos)
41) A AA. encontra-se, pois, a receber o montante mensal de €1.195,00, (mil e quarenta e três euros) – correspondente ao valor líquido de €1.043,00.
42) A Ré realizou obras e melhoramentos no interior do H... com o objetivo de melhoramento da sua atratividade comercial e turística, designadamente, aumento de número de quartos dos 45 existentes para 52 quartos, bem como, obras no bar e restaurante do hotel.
43) A autora nunca reclamou da redução da remuneração nem da alteração das funções perante o representante da ré.
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E julgou como não provados os seguintes factos:
1) Quem conheceu o H... durante os anos em que a AA. lá trabalhou, sabia que a AA. era a “cara” do Hotel, de tal forma era a dimensão da sua dedicação ao trabalho aí desempenhado.
2) Em 2021 foi diagnosticada à autora a condição de diabética tipo 1, doença ligada à desregularização do sistema nervoso.
3) A autora apresentou queixas que levaram a uma baixa psiquiátrica no início do ano de 2019, que, por se encontrar em situação de lay off, acabou por ser formalizada apenas em 2020.
4) Se a AA. soubesse que os seus rendimentos iriam diminuir da forma abrupta que diminuíram, poderia ter tentado chegar a um acordo para cessar o contrato com a F..., e tentar arranjar uma outra solução para a sua vida profissional.
5) A autora acordou com a ré a remuneração que lhe passou a ser paga a partir da aquisição do H... pela ré.
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IV. Impugnação da matéria de facto
A recorrente impugnou, especificadamente, a decisão sobre a matéria de facto relativa aos pontos 25 a 29 e 34 do elenco dos factos provados.
Referiu, em síntese, que o tribunal a quo se baseou nas declarações da autora e no depoimento prestado pelo seu marido para considerar a factualidade descrita nos aludidos pontos como demonstrada. Porém, argumentou, a autora nada referiu sobre os alegados danos morais e o seu cônjuge prestou um depoimento interessado e parcial, pelo que, concluiu, estes meios probatórios não podem ser considerados e a factualidade em causa não se pode ter por provada.

A determinada altura das alegações e conclusões do recurso alegou, ainda, que o tribunal a quo ignorou documentos relacionados com o histórico dos vencimentos auferidos pela autora. Todavia, não impugnou nenhum ponto específico do acervo fáctico relacionado com as retribuições auferidas pela autora.

Vejamos.
De harmonia com o normativo inserto no n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Este dever consagrado no preceito abrange, naturalmente, situações em que a reapreciação da prova é suscitada por via da impugnação da decisão sobre a matéria de facto feita pelo recorrente.
Em tal situação, deve o recorrente observar o ónus de impugnação previsto no artigo 640.º do Código de Processo Civil.
Prescreve este dispositivo legal:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
Analisemos então se a recorrente cumpriu o ónus de impugnação imposto pelo artigo.
No que respeita aos pontos especificamente impugnados (25.º a 29.º e 34 dos factos assentes), entendemos que o mencionado ónus se mostra cumprido, pois a recorrente indicou os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, referiu que tal factualidade não deveria ter sido dada por provada e especificou porque é que os meios probatórios que fundaram a decisão que se impugna não podem ser considerados.
Aceita-se, pois, nesta parte, a impugnação apresentada.
Quanto à observação de que determinada prova relacionada com o histórico de vencimentos da autora foi ignorada pelo tribunal a quo, verifica-se que a recorrente não indicou qualquer ponto de facto que considere incorretamente julgado em função da (alegada) desconsideração da referida prova.
Como tal, por incumprimento do artigo 640.º, n.º 1, alínea a), terá de ser rejeitada, nesta parte, a (aparente) impugnação.
Avançando …
Os pontos especificamente impugnados têm o seguinte teor:
25) Foi com alguma dificuldade que a AA. continuou a dar suporte financeiro à sua filha, na altura estudante universitária,
26) Tendo as alterações no orçamento familiar impactado igualmente nos restantes membros do seu agregado,
27) Como foi o caso do marido da AA., que teve passar a trabalhar a tempo inteiro em vez de a tempo parcial e, desse modo, passou a estar menos presente no quotidiano familiar.
28) A AA. deixou de passear com o seu marido com a frequência com que fazia, uma vez que passaram a estar mais limitados economicamente,
29) Tendo a alteração da sua situação económica sido desgastante para a AA., passando a mesma a ser uma pessoa mais ansiosa, situação que se agravou quando lhe foram retiradas as funções de Diretora de Hotel.
34) Toda esta situação provocou na AA. desgaste emocional, sentindo-se esta humilhada e desconsiderada.
Ouvimos a gravação de toda a prova produzida em julgamento e, adianta-se, afigura-se-nos que não assiste razão à recorrente.
Nas declarações prestadas pela autora nada foi referido quanto à factualidade impugnada.
A testemunha DD (arrolada pela autora) também não se pronunciou sobre a materialidade em causa.
Apenas o marido da autora, a testemunha BB, referiu que a redução do salário daquela (em cerca de mil euros) obrigou a família a alterar alguns hábitos, nomeadamente deixaram de ter “devaneios”, “saídas” e “passeios”. Tornou-se também mais difícil suportar financeiramente a estadia da filha em Lisboa, que, na altura, era estudante universitária. Além disso, a testemunha, que estava reformada e tinha um “part-time” num gabinete de contabilidade, viu-se forçada a trabalhar a tempo inteiro para colmatar a diminuição do orçamento mensal familiar.
Também referiu que a alteração da situação económica foi psicologicamente desgastante para a autora, tendo-lhe causado muita ansiedade, o que acabou por resvalar para o relacionamento familiar.
No seu depoimento mencionou, igualmente, o estado de espírito da autora depois de ter sido transferida para o H....
Ora, apesar de a testemunha ser o cônjuge da autora, o seu depoimento afigurou-se-nos sincero, espontâneo, coerente e credível, e, por isso, deve ser atendido.
É perfeitamente verossímil que, em face da diminuição do vencimento mensal da autora, o seu cônjuge tenha procurado trabalhar mais horas para auferir mais dinheiro e que a família tenha tido necessidade de alterar hábitos de lazer, que, até então, podia suportar.
Quanto ao estado de espírito da autora, é vulgar, recorrendo à experiência comum e à normalidade da vida, que seja o núcleo familiar próximo quem mais se dá conta desse estado.
Destarte, afigura-se-nos que o depoimento da testemunha permite, consistentemente, dar por demonstrada a factualidade impugnada.
Como tal, improcede a impugnação da matéria de facto.
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V. Da alegada inexistência do direito às diferenças salariais
Veio a recorrente invocar que o tribunal a quo errou ao reconhecer que a autora tem direito a diferenças salariais.
Para tanto, alegou, em súmula e no essencial, que a autora recebeu uma retribuição superior enquanto acumulou funções de Diretora do H... com funções de representante e administradora de facto da sociedade F... (anterior proprietária do estabelecimento hoteleiro), mas, ao cessar as funções de administração, regressou às funções e vencimento anteriores, o que justifica a verificada redução do seu salário.
As funções como administradora da F... e, também, como Presidente do Conselho de administração de outra empresa do grupo (“O..., S.A.”) não se enquadram no contrato de trabalho da autora, que, acrescentou, deveria ter sido considerado suspenso enquanto foram exercidas tais funções.
Adiante-se que, com o devido respeito, que é muito, entendemos que não assiste razão à recorrente.
Apreciemos.
Com arrimo nos factos provados, o que resultou demonstrado foi que a autora foi contratada para exercer funções de administrativa, em 1986, mediante retribuição, para a sociedade “F..., S.A.”, que era a proprietária da unidade hoteleira designada por “H...”, na ....
Porém, ao longo do tempo, a autora foi sendo promovida e chegou à posição de Diretora do Hotel, no âmbito da sua relação laboral.
Na data em que a ré/recorrente adquiriu a mencionada unidade hoteleira (21-12-2010), e em que assumiu a posição de empregadora da autora, a autora exercia as funções de Diretora do H....
Tais funções continuaram a ser exercidas por mais cerca de dois anos.
Ou seja, as funções de Diretora do Hotel foram exercidas no âmbito do contrato de trabalho celebrado, que teve o seu início em 1986.
É certo que se deduz da factualidade provada que, enquanto exerceu as funções de Diretora do Hotel, a então empregadora da autora lhe conferiu poderes para a representar junto de Bancos, Autoridade Tributária e Aduaneira, Conservatórias, Notários, entidades públicas, privadas e institucionais, de representação do Hotel e junto dos Tribunais, tendo autonomia e liberdade técnica e de gestão, de rececionar e emitir a seu favor e como beneficiária cheques das entidades financeiras e de todos os assuntos, temas e matérias conexas com a F....
Igualmente se provou que a autora, entre março de 2000 e setembro de 2007, acumulou as funções e responsabilidades de Diretora do H... com as de Presidente do Conselho de Administração da sociedade comercial denominada “O..., S.A”, que era outra sociedade do grupo.
Todavia, a ré não alegou, nem logrou demonstrar, que as quantias pagas à autora anteriormente à venda do H... à ré, contemplassem o pagamento dessas atividades acrescidas.
Sobre esta matéria, é incisivo o que se escreveu na sentença recorrida:
«Volvendo ao caso concreto, não existem duvidas, perante a matéria de facto provada, que a autora até à venda do H... à ora ré auferia uma determinada remuneração (2.170,97€) e, a partir da venda, passou a receber remuneração inferior (inicialmente 1.200,00€ e, posteriormente, 1.250,00€).
A ré alega que a Autora no âmbito da sua anterior entidade empregadora, desempenhava funções e responsabilidades muito para além da categoria profissional de Diretora de Hotel – representado a mesma junto de entidades publicas e privadas - e exerceu funções como Presidente do Conselho de Administração de uma outra sociedade, durante os anos de 2000 a 2007, o que justificava a sua remuneração acrescida, a qual não se justificaria apenas como diretora do hotel.
No entanto não alegou nem logrou demonstrar que a autora auferisse uma parcela remuneratória acrescida por virtude dessas funções.».
Deste modo, todas as quantias pagas à autora constituíam a contrapartida monetária pelas funções laborais exercidas.
Ou seja, na data em que a ré adquiriu o H... a autora auferia uma remuneração mensal de € 2.170,97, pelo exercício das funções como Diretora do Hotel.
E, apesar da transmissão do estabelecimento e consequente transmissão do contrato de trabalho da autora para a ré, que assumiu a qualidade de empregadora[2], a autora manteve todos os direitos contratuais e adquiridos, nomeadamente retribuição, categoria profissional e conteúdo funcional.
A modificação subjetiva do contrato de trabalho, que ocorreu, em nada afetou a retribuição que estava a ser paga à trabalhadora.
Sucede que a partir de 31de dezembro de 2010 e até setembro de 2013 a autora passou a receber da ré a quantia de € 1.200,00 de salário, e a quantia de € 1.250,00, a partir de outubro de 2013 até ao final do contrato.
Quid júris?
A retribuição do trabalho é um dos elementos essenciais caracterizadores do contrato de trabalho.
O pagamento da retribuição é a principal obrigação contratualmente assumida pela empregadora e constitui a contrapartida pelo trabalho realizado pelo trabalhador.
O artigo 127.º, n.º 1, alínea b), do Código do Trabalho, dispõe expressamente que um dos deveres do empregador é o de pagar pontualmente a retribuição ao trabalhador.
Por seu turno o artigo 129.º, n.º 1, alínea d), do mesmo compêndio legal, estatui que é proibido ao empregador diminuir a retribuição do trabalhador, salvo nos casos previstos neste código ou em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho.
Consagra-se neste artigo a garantia da irredutibilidade da retribuição auferida pelo trabalhador.
Sobre o tema, escreveu-se no acórdão desta Secção Social de 10-10-2019 (Proc. 1841/18.8T8EVR.E1), acessível em www.dgsi.pt:
«(…) observar-se-á que o princípio da irredutibilidade da retribuição constitui uma das garantias do trabalhador no contexto da relação laboral, dele decorrendo a impossibilidade de redução da retribuição auferida, ressalvando-se apenas os casos previstos no Código ou em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho.
O Código prevê alguns casos de diminuição da retribuição: redução do tempo de trabalho ou da suspensão do contrato de trabalho em situação de crise da empresa – art. 305.º n.º 1 al. a) – passagem do trabalhador do regime de trabalho a tempo integral para o regime do trabalho a tempo parcial – art. 154.º n.º 3 – ou a descida de categoria, nos casos em que é admitida e com autorização dos serviços inspetivos do ministério responsável pela área laboral – art. 119.º.
Fora destas situações, a diminuição da retribuição, nomeadamente por mero acordo com o trabalhador, não é admitida por lei e constitui, de resto, contraordenação muito grave – art. 129.º n.º 2 do Código do Trabalho.».
Ora, na situação que se aprecia, a diminuição da retribuição da autora não se mostra prevista em instrumento de regulamentação coletiva.
Ainda que a regulamentação coletiva aplicável estabeleça patamares mínimos retributivos para a categoria de Diretor de hotel em valor inferior ao que a autora auferia, tal não justifica, obviamente, qualquer redução da retribuição da autora.
Acresce que a verificada diminuição da retribuição também não se enquadra em nenhuma das situações previstas no Código do Trabalho que permitem a redução da retribuição.
Nomeadamente: não ocorreu qualquer regresso a funções anteriores após fim de qualquer comissão de serviço (cf. artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do Código do Trabalho); não ocorreu qualquer mudança para categoria inferior mediante acordo, com fundamento em necessidade premente da empresa ou do trabalhador, autorizada pelo serviço com competência inspetiva do ministério responsável pela área laboral (cf. artigo 119.º do Código do Trabalho); e não ocorreu qualquer redução ou suspensão do contrato de trabalho motivada por situação de crise da empresa (cf. artigo 305.º do Código do Trabalho).
Em suma, não vislumbramos qualquer fundamento legal para a ocorrida redução da retribuição mensal da autora.
A recorrente veio alegar que o contrato de trabalho da autora deveria ter sido considerado suspenso enquanto esta exerceu funções como administradora de facto da sociedade F... e enquanto foi Presidente do Conselho de Administração da sociedade comercial denominada O....
No entanto não suscitou esta questão no tribunal recorrido (daí que a mesma não foi apreciada).
Estamos, assim, perante uma questão nova que não foi colocada à apreciação da 1.ª instância.
Ora, é consabido que o âmbito do recurso se define pelas conclusões formuladas pela recorrente. Todavia, existe um natural limite às questões suscitadas nas conclusões: a decisão recorrida.
Os recursos visam o reexame de uma decisão proferida pelo tribunal a quo, de forma a possibilitar, se houver fundamento para tanto, a correção de tal decisão.
Os recursos são, assim, meios de impugnação e de correção de decisões judiciais.
Está vedada ao tribunal de recurso a possibilidade de se pronunciar sobre questões novas, não suscitadas no tribunal recorrido, salvo se forem de conhecimento oficioso.
Tem sido este o entendimento unânime da nossa Jurisprudência.
Neste sentido, a título meramente exemplificativo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25-03-2009 (Proc. 09P0308) e de 18-06-2006 (Proc. 06P2536) e da Relação de Évora de 31-05-2012 (Proc. 245/08.5T8STC.E2) e de 08-05-2012 (Proc. 595/09.3TTFAR.E1).
Consequentemente, estando em causa uma nova questão, que não é de conhecimento oficioso, não pode este tribunal conhecer da mesma.
Enfim, em face de todo o exposto, o que se conclui é que a redução da retribuição mensal da autora a partir de 31-12-2010 foi ilegal, por violar o disposto no artigo 129.º, n.º1, alínea d), do Código do Trabalho.
Logo, a autora tinha o direito às diferenças salariais em dívida tal como foi apreciado na sentença recorrida, que se sufraga.
Improcede, assim, igualmente, a segunda questão suscitada no recurso.
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VI. Sobre a indemnização por danos não patrimoniais
A recorrente não se conforma com a sua condenação no pagamento de uma indemnização à autora, no montante de € 10.000,00, por danos não patrimoniais resultantes da diminuição ilícita da categoria profissional.
Para melhor compreensão, citamos, de seguida, o trecho da sentença recorrida que se ocupou desta matéria:
«DA DIMINUIÇÃO DA CATEGORIA PROFISSIONAL
Quanto ao pedido de indemnização por diminuição da categoria profissional, cumpre chamar à colação as normas jurídicas com interesse para a causa.
Nos termos do disposto no artigo 115º do Código de Trabalho (de 2009):
«1 - Cabe às partes determinar por acordo a atividade para que o trabalhador é contratado.
2 - A determinação a que se refere o número anterior pode ser feita por remissão para categoria de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho ou de regulamento interno de empresa.
3 - Quando a natureza da atividade envolver a prática de negócios jurídicos, considera-se que o contrato de trabalho concede ao trabalhador os necessários poderes, salvo se a lei exigir instrumento especial».
Por sua vez de acordo com o disposto no artigo 118º do mesmo diploma legal:
«1 - O trabalhador deve, em princípio, exercer funções correspondentes à atividade para que se encontra contratado, devendo o empregador atribuir-lhe, no âmbito da referida atividade, as funções mais adequadas às suas aptidões e qualificação profissional.
2 - A atividade contratada, ainda que determinada por remissão para categoria profissional de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho ou regulamento interno de empresa, compreende as funções que lhe sejam afins ou funcionalmente ligadas, para as quais o trabalhador tenha qualificação adequada e que não impliquem desvalorização profissional.
3 - Para efeitos do número anterior e sem prejuízo do disposto em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, consideram-se afins ou funcionalmente ligadas, designadamente, as funções compreendidas no mesmo grupo ou carreira profissional.
4 - Sempre que o exercício de funções acessórias exigir especial qualificação, o trabalhador tem direito a formação profissional não inferior a dez horas anuais.
5 - Constitui contraordenação grave a violação do disposto no número anterior.»
Sendo certo que, nos termos do previsto no artigo 119º do mesmo diploma: «A mudança do trabalhador para categoria inferior àquela para que se encontra contratado pode ter lugar mediante acordo, com fundamento em necessidade premente da empresa ou do trabalhador, devendo ser autorizada pelo serviço com competência inspetiva do ministério responsável pela área laboral no caso de determinar diminuição da retribuição.»
Uma das manifestações do poder de direção do empregador, enquanto detentor dos meios de produção e pessoa empenhada num determinado projeto de atividade económica consubstanciado na empresa que dirige, é o poder determinativo da função dos trabalhadores ao seu serviço.
No exercício deste poder, compete, sem dúvida, ao empregador fixar qual o conjunto ou núcleo essencial de tarefas ou funções que o trabalhador deve desempenhar no cumprimento do contrato entre ambos estabelecido, definindo, desse modo, a respetiva posição na organização técnico-produtiva da empresa ou seja, a sua categoria profissional, sendo com base nela que se estruturam parte dos seus direitos e garantias, designadamente, o direito a auferir uma determinada remuneração.
A qualificação do trabalhador, em termos de categoria profissional, normalmente estabelecida aquando da celebração do contrato de trabalho ou pelas alterações decorrentes da sua própria dinâmica, designa-se, vulgarmente, por categoria contratual ou categoria-função.
Todavia, se o conjunto essencial de tarefas desempenhadas pelo trabalhador corresponde ao núcleo de tarefas ou funções integrantes de uma determinada categoria profissional já institucionalizada por lei ou instrumento de regulamentação coletiva de trabalho aplicável ao sector de atividade em que a empresa se insere, deve a entidade empregadora atribuir ao trabalhador, precisamente, essa categoria profissional institucionalizada, dado que, nessa circunstância, a atribuição da categoria profissional se lhe torna vinculativa. Estamos, neste caso, perante a denominada categoria normativa ou categoria-estatuto.
De qualquer modo, a categoria profissional de um trabalhador deve corresponder à natureza e espécie de tarefas por ele concretamente desempenhadas, sendo que a determinação da categoria normativa ou categoria-estatuto deve ser aferida por comparação entre as tarefas efetivamente desempenhadas pelo trabalhador e as que tipificam a categoria institucionalizada, reconhecendo-se-lhe a categoria cujo conteúdo funcional essencial mais se aproxime das tarefas que, em concreto, sejam por ele exercidas.
No caso mostra-se provado que a autora exercia as funções de diretora de hotel quando foi transmitida a exploração do hotel para a ré e, posteriormente, a ré deixou de lhe atribuir tais funções e a mesma passou a desempenhar funções de gestora/diretora de eventos.
Resulta evidente que estamos perante duas categorias profissionais distintas e que, ao retirar as funções de direção do hotel à autora, não logrando provar o acordo da mesma e que tal ocorreu com fundamento em necessidade premente da empresa ou do trabalhador, tal retirada de funções e alteração da categoria profissional da autora se revelam ilícitas, conferindo à autora o direito a ser indemnizada pelos danos patrimoniais e não patrimoniais daí decorrentes.
Por estarmos no âmbito das relações contratuais, o incumprimento dos deveres do empregador presume-se culposo (cfr. artigo 799º do Código Civil).
Quanto aos danos a lei distingue entre danos patrimoniais e danos não patrimoniais.
Em relação aos danos não patrimoniais, exige-se apenas que tenham gravidade suficiente de modo a merecer a tutela de direito (artigo 496º, nº. 1 do diploma em referência).
Não sendo possível a reconstituição/compensação natural, o ressarcimento destes danos só poderá ocorrer por via da compensação em dinheiro (cfr. artigo 566º, nº. 1 do mesmo diploma)
Não fornecendo quando a eles a lei critérios normativos concretos que fixem o valor do seu montante indemnizatório, a sua quantificação “deverá ser feita através do recurso à equidade, considerando-se, nomeadamente, para o efeito ao grau de culpabilidade do responsável e do lesado, as respetivas situações económicas de cada um, a sua proporcionalidade em relação à gravidade do dano, tomando ainda em conta todas as regras da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida, e sem perder de vista a peculiaridade de que se reveste o caso concreto, por forma a que, a essa luz, sejam condignamente compensados” – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 14-03-2023, relatado por ISAÍAS PÁDUA, proc. 11575/18.8T8LSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
No caso mostra-se provado que a autora, com a alteração da categoria profissional, se sentiu humilhada, desconsiderada e ansiosa, merecendo, por isso a tutela do direito.
Estamos perante factos gravosos, sem qualquer justificação plausível, merecendo censura, em face do percurso da autora e dos anos de trabalho ao serviço da exploração do H....
Embora seja desconhecida a situação financeira da ré temos como ponto assente que esta sempre será superior à da autora, que aufere uma pensão de reforma no valor líquido de 1.043,00€.
Todavia não podemos deixar de notar que decorreram mais de 10 anos sobre a prática dos factos, sem que a autora tenha reclamado dos mesmos e a autora não logrou provar qualquer doença que resultasse da atuação da ré.
Em face do exposto entendemos ser de fixar a indemnização por danos não patrimoniais em €10.000,00 (dez mil euros).».
Não poderemos deixar de concordar e de aderir aos fundamentos transcritos.
A 1.ª instância apreciou corretamente a ilegalidade da diminuição da categoria profissional da autora, ocorrida quando a mesma foi transferida para o H..., onde passou a exercer funções inerentes à categoria de Diretora de Eventos.
Subscrevemos, assim, absolutamente, e para evitar tautologias, a fundamentação utilizada pela 1.ª instância.
Em função do manancial fáctico relacionado com a matéria em causa (pontos 29, 33 e 34 dos factos provados), é evidente que o ato ilícito praticado pela ré provocou danos de natureza não patrimonial à autora: sofreu desgaste emocional; agravou a ansiedade já provocada pela redução dos rendimentos mensais; e, sentiu-se humilhada e desconsiderada.
Durante cerca de oito anos, a autora teve de gerir emocionalmente os efeitos do ato ilegal praticado pela sua empregadora, pois a diminuição da categoria ocorreu cerca de dois após a aquisição do H... pela ré e manteve-se até à reforma da autora em 2021.
É consabido que os danos não patrimoniais são aqueles que não sendo suscetíveis de avaliação pecuniária, apenas podem originar uma compensação material visando, dentro do possível, equilibrar ou atenuar os efeitos produzidos por esses danos.
O artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, admite a indemnização dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
Não se concretiza na disposição legal os casos de danos não patrimoniais que justifiquem uma indemnização. Refere-se tão só que esses danos, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. Significa isto que cabe ao tribunal, no caso concreto, dizer se o dano é grave e se merece ou não a tutela do direito.
Conforme refere Bruno Bom Ferreira, num artigo publicado na Verbo Jurídico, sob o tema “A problemática da titularidade da indemnização por danos não patrimoniais em direito civil”:
«A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objetivo (essa apreciação deve ter em linha de conta as circunstâncias do caso concreto), devendo abstrair-se dos fatores subjetivos (“de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada”)».
Ora, os danos não patrimoniais sofridos pela autora, no contexto apurado, revestem a natureza de uma lesão grave, pelo que merecem a tutela do direito.
E, no nosso entender, a indemnização arbitrada pela 1.ª instância mostra-se justa, adequada e equitativa.
O valor fixado é apto a compensar ou neutralizar os danos sofridos decorrentes do ato ilícito, perante uma evidente impossibilidade de reparação natural.
Concluindo, também nesta parte, se confirma a decisão recorrida.
*
VII. Sobre o abuso de direito
Entende a recorrente que a autora não tem o direito de reclamar da diminuição da retribuição e da diminuição da categoria profissional porque durante o tempo em que prestou serviço para a ré (cerca de 10 anos) nunca apresentou qualquer reclamação, resultando assim demonstrado que aceitou e concordou com a situação ocorrida.
Analisemos.
A figura do abuso de direito consagrada no nosso ordenamento jurídico emerge essencialmente de um valor fundamental para a vida social, juridicamente organizada – a boa-fé.
«É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito» - artigo 334.º do Código Civil.
O abuso de direito revela-se nos seguintes grupos típicos de atuações abusivas (sem prejuízo de se manter sempre a mente aberta para comportamentos abusivos não enquadráveis nesta tipologia típica):
- o venire contra factum proprium;
- a inalegabilidade;
- a suppressio;
- o tu quoque;
- o desequilíbrio no exercício.
Em breve síntese:
Sob o chamado venire contra factum proprium, tem-se entendido que se trata de uma conduta contraditória, cuja proibição está contida no segmento da norma contida no artigo 334.º do Código Civil, que alude aos limites impostos pela boa-fé – cf. acórdão da Relação do Porto de 11-05-1989, CJ, 1989, 3.º, pág. 192.
Alguém assume uma conduta que é contraditória com outra conduta que já havia assumido, e que leva à violação da confiança que se havia instalado quanto ao comportamento inicialmente assumido.
Por isso o venire contra factum proprium, na sua apreciação, combina-se com o princípio da tutela da confiança.
A inalegabilidade formal ou, simplesmente inalegabilidade, ocorre quando alguém se aproveita da invalidade formal do negócio jurídico, em termos contrários à boa-fé.
Num primeiro momento o agente dá azo à nulidade formal de determinado negócio jurídico dele se prevalecendo e mantendo-o enquanto lhe seja conveniente, para quando lhe deixar de convir vir invocar a sua nulidade, libertando-se de tal negócio. Ora, o sistema não poderia permitir tal violação da confiança – cf. acórdão da Relação de Lisboa de 24-04-2008, (Proc.2889/2008.6), publicado em www.dgsi.pt.
A suppressio (supressão) abrange situações de não exercício prolongado de um direito que, em certas circunstâncias, deixa de se poder exercer, por tal exercício contrariar a boa-fé – cf. portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/ano-2005/ano-65-vol-ii-set-2005/artigos-doutrinais/antonio-menezes-cordeiro-do-abuso-do-direito-estado-das-questoes-e-perspectivas-star/.
Distingue-se do venire contra factum proprium por o exercício retardado do direito consubstanciar, à luz do sistema, uma situação de injustiça para a parte contrária e violar a tutela da confiança/boa-fé – cf. acórdão da Relação do Porto de 15-/12-2005 (Proc..0535984), consultável em www.dgsi.pt.
O tu quoque (também tu!) abrange situações em que uma pessoa que viola uma norma jurídica não pode, depois, vir invocar essa mesma norma a seu favor – cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12-01-2002 (Proc. 02B4734) e da Relação de Lisboa de 24-04-2008 (Proc, 2889/2008.6), ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
O desequilíbrio no exercício pode definir-se «como o exercício de um direito que devido a circunstâncias extraordinárias dá origem a resultados totalmente estranhos ao que é admissível pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objetiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício (aqui se incluem o exercício danoso inútil, a exigência injustificada de coisa que de imediato se tem de restituir e o puro desequilíbrio objetivo)» -cf. acórdão da Relação de Coimbra (Proc. 102/11.8TBALD.C2), publicado em www.dgsi.pt.
Retornando ao caso que nos ocupa, atenta a argumentação utilizada pela recorrente, apenas se mostram suscetíveis de estar em causa o venire contra factum proprium e a suppressio.
Contudo, entendemos que não se verifica qualquer uma das situações.
Expliquemos porquê.
Desde logo, os factos não evidenciam que a autora tenha assumido qualquer comportamento concludente perante a ré que revelasse aceitação e concordância com a diminuição da retribuição e com a diminuição da categoria.
A propositura da presente ação e a reclamação dos direitos laborais não contradiz, pois, qualquer comportamento anteriormente assumido pela trabalhadora.
Quanto ao decurso do tempo (10 anos) sem apresentação, pela trabalhadora, de qualquer reclamação junto da empregadora, afigura-se-nos que tal situação não contraria os ditames da boa-fé, nem constitui uma situação de injustiça para a empregadora.
Com interesse, leia-se o que se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12-2011 (Proc. 2/08.9TTLMG.P1.S1) acessível em www.dgsi.pt:
« A relação laboral é uma relação de natureza duradoura, que está sujeita ao longo da sua existência a ser questionada quanto ao imperfeito cumprimento pelas partes outorgantes.
Mas se constitui tarefa nada dificultosa para a entidade empregadora interpelar o trabalhador, no momento que lhe aprouver, quanto ao defeituoso desempenho da sua função, outro tanto se não verifica por parte do trabalhador, quando o incumprimento se verifica do lado da primeira.
Precisamente porque nessa relação não se verifica um equilíbrio de forças quanto à exigência da respetiva contraprestação.
O trabalhador representa indubitavelmente a parte mais débil da relação de trabalho porque, por regra, é a que dela mais carece e, por isso, é humano e compreensível que não reclame de direitos que lhe assistam enquanto tenha interesse na manutenção dessa relação e não a queira colocar em risco com a reclamação de contraprestações não satisfeitas, sobretudo através de demanda judicial.
Por tal motivo é que os créditos emergentes da relação laboral não prescrevem enquanto o contrato se mantiver em vigor, dando-se oportunidade ao trabalhador [e também ao empregador] de os poder reclamar durante o ano seguinte ao termo do contrato (art. 381.º, n.º do CT).
E o facto de o trabalhador vir a exigir do empregador prestações salariais que há longos anos lhe eram devidas, prestações que na altura podia ter exigido, mas que não exigiu, qualquer que tenha sido o motivo — imperfeito conhecimento dos seus direitos, receio de perda do emprego, expectativa de reparação do incumprimento do empregador, etc. — não integra, por princípio, uma atuação com abuso do direito, mas antes um exercício incensurável do mesmo direito.
É que a não reclamação na altura própria de direitos que assistam ao trabalhador não comporta o significado, atenta a natureza e posição das partes no contrato, que o mesmo deles tivesse pretendido abdicar, tanto mais tratando-se de direitos indisponíveis, para mais tarde assumir uma conduta antagónica e surpreender o empregador com um pedido inesperado.
A relação laboral está concebida na lei em termos de ambas as partes poderem reclamar uma da outra créditos que lhes assistam, quer durante a vigência do contrato quer durante o ano seguinte ao seu termo, enquanto tais créditos se não mostrem prescritos. E, assim sendo, cada uma delas, tem de estar consciente e prevenida para a eventualidade de uma petição reclamadora de direitos, tanto mais nas situações em que não possam ignorar a falta de cumprimento da sua parte, por longínqua que ela já se mostre.».
Em suma, a propositura da presente ação e a reclamação de direitos por diminuição da retribuição e por diminuição da categoria profissional não assume uma situação de abuso de direito.
Bem pelo contrário, a autora exerceu direitos que lhe assistiam, dentro do quadro legal, em absoluto respeito pelo princípio da boa-fé em que se funda o ordenamento jurídico.
Concluindo, sufragamos a decisão recorrida, na parte em que decidiu que a autora não agiu em abuso de direito.
Consequentemente, e em face de todo o exposto, o recurso improcede na totalidade, devendo as custas do mesmo ser suportadas pela recorrente, nos termos previstos pelo artigo 527.º do Código de Processo Civil.
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VIII. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas do recurso pela recorrente.
Notifique.

Évora, 26 de setembro de 2024
Paula do Paço
Mário Branco Coelho
João Luís Nunes
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[1] Relatora: Paula do Paço; 1.º Adjunto: Mário Branco Coelho; 2.º Adjunto: João Luís Nunes.
[2] Esta matéria não é objeto de controvérsia nos autos.