CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
MODIFICAÇÃO DO CONTRATO
ALTERAÇÃO ANORMAL DAS CIRCUNSTÂNCIAS
Sumário


1. Não constando do clausulado do contrato-promessa não se pode afirmar que exista para um dos contraentes a obrigação de fornecer documentos ao outro para o habilitar a marcar a escritura e cuja violação, consequentemente, permita imputar àquele qualquer incumprimento.
2. Quem celebra um contrato-promessa de compra e venda e fixa o preço, diferindo a celebração do contrato de compra e venda, assume sempre um risco de valorização ou desvalorização do bem que é objecto do contrato.
3. Prometer adquirir um prédio que está próximo de um templo aberto ao culto implica aceitar como normais as manifestações religiosas e comunitárias que os crentes ali realizam (no seu interior e, muitas vezes, nas suas proximidades), pelo que a abertura, em frente do prédio em causa, de uma nova porta de acesso uma capela mortuária pré-existente, desacompanhada de outros factos, não permite concluir pela verificação das condições de admissibilidade da modificação ou resolução do contrato por alteração anormal das circunstâncias.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral



Apelação n.º 4799/21.2T8STB.E1
(1.ª Secção)

Relator: Filipe Aveiro Marques
1.ª Adjunta: Maria Adelaide Domingos
2.ª Adjunta: Elisabete Valente

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO:
I.A.
“M..., UNIPESSOAL, LDA.” (NIPC ...27), autora na acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum que intentou contra AA (NIF ...52...), BB (NIF ...83...), interpôs recurso da sentença proferida pelo ... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., que julgou a sua pretensão totalmente improcedente.
Na sua petição inicial a autora/apelante invocou, muito em síntese, o incumprimento por parte das rés (enquanto promitentes vendedoras) de um contrato promessa, mais invocando alteração das circunstâncias e terminou com o seguinte pedido:
“Nestes termos e demais de Direito que V. Exa. Doutamente suprirá, deve a presente ação ser julgada totalmente procedente por provada, declarando-se o contrato resolvido por incumprimento definitivo imputável às Rés.
Condenando-se as Rés a devolver à Autora o dobro do sinal prometido no valor de 30.000,00€ (trinta mil euros), acrescido de juros de mora, à taxa legal supletiva, desde a citação até ao integral pagamento.
Quando assim senão entenda, e sem conceder,
Deve ser declarada a resolução do contrato de promessa por alteração anormal das circunstâncias e serem as Rés condenadas a restituir à Autora a quantia por esta entregue a título de sinal e princípio de pagamento, €15.000,00 (quinze mil euros), acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até ao integral pagamento.
E quando assim se não entenda, mas sem prescindir, ser reduzido o valor do preço do imóvel, segundo juízos de equidade, por alteração anormal das circunstâncias, em valor não inferior, a 20.000€ (vinte mil euros).”

Contestaram as rés/apeladas e alegaram, muito em suma, que foi a autora/apelante que incumpriu o contrato promessa, o que as levou a resolvê-lo. Terminam pedindo a intervenção principal provocada do mediador imobiliário e, caso a “ação venha a ser considerada procedente, seja a agência imobiliária condenada a indemnizar as RR caso estas tenham de devolver o sinal em dobro ou a devolver a comissão paga pelo negócio que não se concretizou”, e a condenação da autora como litigante de má fé.

Por despacho de 10/05/2022 foi admitida a intervenção, como interveniente principal, de “J..., Unipessoal, Lda.”, (NIPC ...91) que, por sua vez, contestou por impugnação.

Realizada audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar, fixou-se o valor da causa em 30.000,00€, delimitou-se o objeto do litígio e fixaram-se os temas de prova. Admitiram-se os requerimentos probatórios das partes e designou-se a audiência final.
Após a realização da audiência final, foi proferida a sentença objecto do presente recurso e que terminou com a seguinte decisão:
“Pelo exposto, julgo a ação totalmente improcedente e, em consequência, decido:
1. Absolver as Rés dos pedidos formulados pela Autora.
2. Absolver a chamada dos pedidos.
3. Absolver a Autora do pedido de condenação como litigante de má fé.
4. Condenar a Autora nas custas do processo.”

I.B.
A autora/apelante apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:
“1) A Douta Sentença recorrida decidiu mal.
2) Decidiu em oposição com os factos dados como provados.
3) Não considerou como provados factos que estão provados e são relevante para a boa decisão da causa.
4) Fez ainda uma incorreta interpretação dos factos dados como provados na aplicação do direito.
5) O contrato promessa continha disposição que fixava um prazo máximo para a celebração do contrato prometido (facto dado como provado em 7), o decorrer do mês de dezembro de 2022.
6) Continha ainda disposição que concedia à parte incumpridora três dias úteis repor a obrigação incumprida, sob pena de resolução automática do contrato (facto dado como provado em 8).
7) O contrato promessa de compra e venda foi objeto de uma adenda, prorrogando o prazo até 31 de janeiro de 2021, com vista à obtenção de certidão toponímica.
8) As Recorridas não cumpriram com a obrigação de apresentarem, no prazo contratualmente previsto, a certidão de dispensa da licença de utilização.
9) Constando como facto provado em 58 que “Desde o dia 15 de abril de 2021 que a Autora esteve em condições de marcar a escritura pública”.
10) Ou seja, decorridos mais de três meses sobre o prazo máximo para celebração do contrato prometido.
11) Logo, as Recorridas incumpriram definitivamente com o contrato celebrado.
12) Sendo responsáveis pela devolução do sinal em dobro à Recorrente.
13) No contrato promessa consta ainda que a Recorrente (promitente compradora) ficou obrigada à marcação da escritura (facto dado como provado em 7).
14) Em violação do disposto contratualmente, as Recorridas procederam à marcação da escritura invés da interpelação da Recorrente para o fazer (factos dados como provados em 45, 46 e 47).
15) A Douta Sentença recorrida omite, assim, facto que deveria ter sido dado como provado, pelo que aos factos provados deve ser aditado o seguinte: “Competindo à Autora a marcação da escritura e não o tendo a mesma feito, pelas Recorridas não foi feita a comunicação à Autora fixando-lhe prazo para o efeito”.
16) Consta ainda dos factos dados como provado em 46, 47 e 48, que a Recorrida não teve conhecimento da marcação da escritura pública pelas Recorridas.
17) O contrato promessa é a convenção pela qual ambras as partes, ou apenas uma delas, se obrigam, dentro de certo prazo ou verificados certos pressupostos, a celebrar determinado contrato prometido, artigo 410.º, número 1 do Código Civil.
18) O contrato promessa faz constituir na titularidade de ambas as partes o direito à celebração do contrato definitivo e a correspondente obrigação de o celebrar, direito e obrigações que têm o conteúdo que lhes é dado pelos outorgantes do contrato.
19) O direito de resolução do contrato contemplado no artigo 432.º do Código Civil constitui um direito potestativo com eficácia extintiva dependente de um fundamento, que é a situação de incumprimento definitivo.
20) O contrato promessa continha clausula que fixava as condições em que o contrato podia ser resolvido, nomeadamente, por incumprimento do prazo máximo acordado ou não cumprimento de obrigação por uma das partes.
21) Outra conclusão não podemos retirar que não seja, o incumprimento pelas Recorridas.
22) A Doutra Sentença recorrida sofre ainda contradição entre os factos dados como provados em 58 e em 68, pois fixa diferentes datas para o momento que entende como estando as Recorridas em condições de marcar a escritura, 15 de abril de 2021 e janeiro de 2021.
23) Sendo que, atenta os demais factos dados como provados, tal só ocorreu a 15 de abril de 2021.
24) Deve o facto dado como provado em 68 ser retirado dos factos dados como provados.
Quando assim se não entenda, mas sem prescindir,
25) A Recorrente deveria ter sido interpelada para fixar a data de celebração do contrato prometido, ou, em alternativa, as Recorridas deveriam ter requerido ao tribunal a fixação do prazo para a outorga do contrato, nos termos do número 3 do artigo 777.º do Código Civil.
26) Não menos importante, por aplicação do princípio da boa fé, não à Recorrente ser imputado incumprimento por motivos que a mesma desconhece, a marcação da escritura de compra e venda pelas Recorridas.
27) As Recorridas sabiam que o objetivo da Recorrente é que os imóveis que compra sejam rápida e facilmente revendidos, conforme consta como facto descrito como provado em 27, 28 e 29.
28) O prédio objeto da promessa situa-se em frente à Igreja de ....
Quando assim se não entenda, mas sem prescindir,
29) À data da celebração do contrato prometido o acesso à capela mortuária não se fazia por porta virada para o imóvel objeto da promessa.
30) A Igreja encontrava-se em obras, não se encontrando identificadas as obras em curso, e desconhecendo-se o seu alcance ou fim.
31) Devendo constar como facto dado como provado que “O vão de porta existente, que deita diretamente para o prédio objeto do contrato promessa passou, em razão das obras a ter o uso de porta de acesso à casa mortuária”, o que resulta das fotografias do antes e do depois juntas aos autos.
32) A Recorrente demonstrou às Recorridas a sua insatisfação, com o facto de estarem a ser realizadas obras com vista à abertura de capela mortuária em frente ao prédio objeto da promessa de compra e venda.
33) Dando-lhes conhecimento que se o tivesse sabido antes não teria formalizado o contrato promessa de compra e venda, tal como resulta do facto descrito como provado em 22.
34) A Douta Sentença recorrida devia ter considerado que tal alteração, constitui uma circunstância anormal e que afeta a atividade da Recorrente, tendo em atenção o seu escopo e atividade desenvolvida.
35) A Douta Sentença recorrida decidiu mal ao não considerar tal alteração como depreciativa do valor do prédio, o que resulta até conhecimento normal de qualquer sujeito.
36) Por fim, sempre se dirá que não se concedendo a fundamentação supra, deverá conceder-se a verificação de alteração anormal das circunstâncias do negócio, atento o conhecimento das partes em que a Recorrente, após ter tido conhecimento da obra em causa, viu o objetivo do negócio a escapar-lhe, atento a diminuição de lucro que viria a ter, pela desvalorização do imóvel.
37) Assim, deverá o preço do contrato prometido ser reduzido em €20.000,00 (vinte mil euros).
38) O Douto Acórdão recorrido decidiu mal e em contradição com os factos provados.”

E termina, ainda, com um pedido:
“deve a Douta Sentença recorrida ser revogada, proferindo-se Acórdão que julgue a ação procedente por provada e em consequência:
a) Declarar o contrato promessa definitivamente incumprido pela Recorridas, AA e BB, condenando-as a pagar a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros) à Recorrente, correspondente ao dobro do sinal, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até pagamento integral.
Quando assim se não entenda, mas sem conceder,
b) Declara o contrato promessa válido, mais declarando que as partes se encontram em mora.
Quando assim se não entenda, mas sem prescindir,
c) Declara o contrato promessa válido e reconhecer a existência da alteração anormal das circunstâncias que levaram à contratação do mesmo, condenando as Recorridas AA e BB à celebração do contrato prometido e redução do preço de aquisição do prédio, através de juízo de equidade, em valor não inferior a € 20.000,00 (vinte mil euros).”

I.C.
As rés apresentaram resposta que termina com as seguintes conclusões:
“1ª Não há contradição entre a decisão e os factos dados como provados, o que consubstanciaria uma nulidade da sentença (artigo 615º n.º 1 c) do CPC), que não foi invocada, estando precludido o direito de invocação pela Recorrente.
2ª A Recorrente não cumpre o ónus do artigo 640º n.º 1 b) do CPC, pois não refere quais os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa quando conclui no ponto 3) das suas conclusões que a decisão não considerou como provados factos que estão provados e que são relevantes para a boa decisão da causa.
3ª O prazo fixado no contrato promessa de compra e venda não era essencial, nem final, nem perentório. Tanto assim é que houve um aditamento ao contrato em dezembro de 2020, a própria recorrente continuou a pedir documentos e a manifestar interesse na compra do prédio, apenas pretendendo condições mais vantajosas para si, alegando a alteração das circunstâncias.
4ª Não há resoluções automáticas de contratos; a resolução é um direito potestativo e a automaticidade da resolução violaria os princípios jurídicos de certeza e segurança jurídicas.
5ª Se a recorrente tivesse solicitado a certidão de dispensa de licença de utilização anteriormente, quando pediu os outros documentos em novembro de 2020, possivelmente este documento teria sido pedido na mesma data em que foi pedida a certidão de correspondência toponímica em 3 de novembro de 2020, certamente também estaria emitida antes de 31 de janeiro de 2021, tal como decorre dos factos dados como provados sob os números 38 e 67 e que não foram impugnados.
6ª A certidão toponímica foi obtida em janeiro de 2021, portanto, dentro do prazo fixado no aditamento ao contrato (facto provado n.º 37), sendo que, em dezembro de 2020, este era o único documento em falta.
7ª A testemunha CC, notária, que foi isenta no seu depoimento e credível, explicou que o documento solicitado pela recorrente em fevereiro de 2021 (certidão camarária de dispensa de licença de utilização), era dispensável porque já existia uma certidão das finanças que certificava a anterioridade do prédio a 7 de agosto de 1951.
8ª A recorrente estava em mora desde 31 de janeiro de 2021, pois, nessa data, já tinha todos os documentos indispensáveis à marcação e realização da escritura na sua posse, independentemente de interpelação, conforme decorre do artigo 805º n.º 2 a) do CC. No limite, embora sem conceder, estava seguramente em mora desde o dia 15 de abril de 2021, data em que recebeu o documento desnecessário, mas por si solicitado (certidão camarária de dispensa de licença de utilização).
9ª Toda a alegação e conclusões da Recorrente referentes ao incumprimento imputável às Recorridas é irrelevante e falece a partir do momento em que a Recorrente fez a confissão vertida no facto 69 dado como provado e não impugnado – que deixou de querer celebrar a escritura pública devido ao facto de a porta da capela mortuária ter sido colocada em frente do prédio e não pelo facto de ter havido atraso na entrega da documentação.
10ª O ato de agendamento da escritura não é um ato com autonomia face à obrigação principal. As Recorridas fizeram o que era suposto fazer: interpelar a recorrente, conforme documento n.º 5 junto com a Contestação e original em carta fechada e devolvida ao remetente entregue em mão no dia da audiência prévia, fixando um prazo para o cumprimento (artigo 808º CC) da obrigação principal (que era celebrar a escritura de compra e venda), pelo que não deve ser aditado qualquer facto sobre esta matéria.
11ª Conforme considerado provado no facto 45 dos factos provados, a recorrente, na pessoa da sua sócia-gerente, não levantou a carta por se encontrar em período de férias, ausente da sede social e do País. Sendo a recorrente uma empresa comercial, é a única e exclusiva responsável por garantir que recebe a correspondência, mesmo quando a sua sócia-gerente se ausenta por motivo de férias, sendo a declaração receptícia eficaz, pois só não foi recebida por razões imputáveis à Recorrente.
12ª Quanto à alegada alteração das circunstâncias, se atentarmos nos factos não provados 1, 2, 3 e 4, que não foram impugnados e nos factos provados sob os números 59, 60, 61, 62 e 65, também não impugnados, que aqui se dão por integralmente reproduzidos não se encontram preenchidos os requisitos para aplicar o instituto da alteração das circunstâncias previsto no artigo 437.º do Código Civil, a saber:
a) Alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar;
b) O facto de as circunstâncias terem sofrido uma alteração anormal (excecional/imprevisível);
c) a exigência de que sejam afetados de forma grave os princípios da boa-fé;
d) que a alteração não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.
13º Quem promete comprar um prédio em frente a um complexo paroquial, com uma igreja “viva”, incluindo igreja, capela mortuária, escuteiros e serviços paroquiais (sendo que a paróquia e diocese podem fazer o que entenderem quanto à sua propriedade), em obras, não cuidando de saber de que obras se tratavam, nem manifestando a essencialidade do resultado das obras para a sua decisão de contratar, tão pouco provando que o prédio se desvalorizou, não pode pretender que haja uma alteração das circunstâncias que determinem as consequências do artigo 437º do CC.
14ª Finalmente, a Recorrente formula um pedido novo nas suas alegações de recurso,
concretamente, que seja declarado válido o contrato promessa, declarando que as partes se encontram em mora, o que não é admissível nesta fase processual e, inclusivamente, é contraditório com o pedido formulado na PI, o que, a ser procedente, até determinaria a nulidade da decisão (artigo 615º n.º 1 al. e) do CPC).”

E a chamada apresentou resposta que termina com as seguintes conclusões:
“1.ª No que respeita ao pedido deduzido pela recorrente na al. b) do recurso in fine, o mesmo é totalmente inadmissível à luz das regras do Código de Processo Civil, designadamente do disposto no seu artigo 265.º, n.º 2, uma vez que, sendo uma ampliação do mesmo, não só é extemporâneo, como ainda consubstancia um pedido totalmente novo e até contraditório com o demais peticionado.
2.ª Quanto ao alegado incumprimento das RR. na obtenção da documentação, não pode o mesmo ser julgado como verificado, atendendo à factualidade dada como provada nos pontos 36, 37, 38, 66 e 67, pontos estes não impugnados pela recorrente.
3.ª Pois que, resulta do aditamento celebrado em dezembro de 2023 – cf. Doc. 15 da PI – que, nessa data, o único documento em falta e essencial para a escritura era a certidão toponímica, a qual foi requerida pelas RR. em novembro de 2020 e emitida pela Câmara Municipal em janeiro 2021.
4.ª Por outro lado, quanto à certidão camarária de dispensa da licença de utilização, esta não era necessária para a outorga da escritura pública de compra e venda, uma vez que as RR. já dispunham de certidão da Autoridade Tributária, a qual atesta que o prédio é anterior a 1951 – cf. Doc. 3 junto com a contestação e depoimento da testemunha CC.
5.ª Com efeito, as RR. cumpriram todas as suas obrigações, nomeadamente no que respeitou à obtenção da documentação necessária, a qual se encontrava completa em janeiro de 2021.
6.ª Incumprimento houve, sim, por parte da recorrente, a quem cabia a marcação da escritura pública de compra e venda, sendo certo que, nem em janeiro, nem em abril o fez, assim como faltou à escritura agendada em junho pelas RR..
7.ª No que concerne à aplicação do instituto da alteração das circunstâncias, este nunca poderia ter sido aplicado in casu, na estrita medida em que não se encontram preenchidos os pressupostos legais do artigo 437.º do Código Civil, por referência aos pontos 59, 60, 61, 62 e 65 dos factos provados e pontos 1, 2, 3, 4 e 5 dos factos não provados, todos não impugnados pela recorrente.
8.ª Em primeiro lugar, não existiu qualquer alteração anormal e imprevisível da factualidade em que as partes assentaram a sua vontade de contratar, porque a porta da capela mortuária sempre existiu em frente ao imóvel, assim como os funerais, caixões, carrinhas funerárias, etc., sendo certo que o vão atual porta já estava aberto, mas somente tinha uma porta diferente.
9.ª Em segundo lugar, não se verifica que o resultado das obras revestisse essencialidade na vontade de contratar, visto que a recorrente nunca questionou as RR., a chamada, ou a Câmara Municipal ... sobre as mesmas, assim como nunca comunicou tal essencialidade às RR. durante todo o processo de formação do contrato.
10.ª Em terceiro lugar, a recorrente não logrou provar que, em resultado das obras, o prédio tenha sofrido desvalorização, pelo que não se encontra preenchido o pressuposto de excessiva onerosidade no cumprimento do contrato.
11.ª Por fim, igualmente não se preencheu o pressuposto relativo aos riscos do contrato, visto que, no âmbito de um contrato promessa de um imóvel situado em frente a uma Igreja com capela mortuária, sempre terá que se concluir que a colocação de uma porta nova na capela é um risco perfeitamente abrangido pelo contrato, atendendo ao seu objeto
12.ª Por todos os motivos supra expostos, não merece a decisão do tribunal a quo qualquer reparo, motivo pelo qual terá que se concluir pela sua integral manutenção.”

I.C.
O recurso foi devidamente recebido pelo tribunal a quo.
Após os vistos, cumpre decidir.
***

II. FUNDAMENTAÇÃO:
II.A.
As conclusões das alegações de recurso delimitam o respetivo objecto de acordo com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, mas não haverá lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
No caso, para além das questões prévias (relacionadas com eventual invocação de nulidade e com o novo pedido formulado pela autora), impõe-se apreciar:
a) A impugnação da decisão de facto;
b) O eventual erro de julgamento, apreciando-se a existência de incumprimento definitivo por parte das rés/apeladas;
c) Ou, em caso de não se apurar esse incumprimento, o eventual preenchimento dos requisitos para a resolução ou modificação do contrato promessa por alteração das circunstâncias.

Questões prévias:
De notar que, no caso, não resulta das conclusões da autora/apelante qualquer manifestação de vontade em invocar a nulidade da sentença recorrida. As conclusões contidas nos n.ºs 1, 2, 4 e 38 mais não são que expressões tendentes a tentar evidenciar o erro de julgamento (e não a contradição entre a fundamentação, no seu todo, com a decisão – que é o pressuposto de aplicação do artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil que, reafirma-se, não foi invocado).
Por outro lado, as apeladas invocam a questão relacionada com a alteração do pedido feito pela autora/apelante.
Na verdade, pretende a autora/apelada, inovatoriamente, obter a execução específica do contrato-promessa (que não tinha pedido inicialmente e, portanto, não foi apreciado na sentença recorrida).
Ora, resulta do artigo 260.º do Código de Processo Civil o princípio da estabilidade da instância.
Na falta de acordo (como é o caso), a alteração do pedido só pode ser feita, nos termos do artigo 265.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, até ao encerramento da discussão em Primeira Instância, pelo que o novo pedido deduzido pela autora não pode ser admitido em fase de recurso para o Tribunal da Relação.
*

II.B. Fundamentação de facto:
II.B.1 Impugnação da matéria de facto:
a) Em primeiro lugar, pretende a autora/apelante (conclusão n.º 15) que à matéria de facto provada seja aditado um novo facto.
Percorrendo, no entanto, o teor das suas alegações (1.º e 2.º parágrafos da página 9) não indica (como se impõe no artigo 640.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil) quais os concretos meios probatórios em que estriba a sua pretensão. Decisivamente, como apenas invoca o teor da lei para motivar a sua pretensão, fica patente que não poderá merecer acolhimento (já que, na verdade, pretende introduzir, como facto, uma mera conclusão).

b) Por outro lado, indica a autora/apelante (pontos 22 a 24 das suas conclusões) que existe contradição entre os factos 58 e 68 da sentença e, como tal, este último deverá ser eliminado.
Ora o teor do ponto 58 dos factos dados como provados na sentença recorrida é o seguinte: “Desde o dia 15 de abril de 2021 que a Autora esteve em condições de marcar a escritura pública”.
Por seu turno, o ponto 68 dos factos dados como provados na sentença recorrida é o seguinte: “Em janeiro de 2021, as Rés estavam em condições de marcar a escritura.”.
Tratando o ponto 58 da autora e o ponto 68 das rés, não existe qualquer contradição entre eles.
Pelo que improcede esta parte da impugnação.

c) Finalmente, pretende a autora/apelante (conclusão n.º 31) que seja dado como provado o facto que indicou: “O vão de porta existente, que deita diretamente para o prédio objeto do contrato promessa passou, em razão das obras a ter o uso de porta de acesso à casa mortuária”.
Percorrendo, também, o teor da sua motivação, limita-se a remeter para as fotografias dos autos nos seguintes termos: “Resulta das fotografias juntas aos autos, o antes e o depois, que a porta existente na Igreja que deitava diretamente para o prédio objeto do contrato promessa, era um portão de garagem, tendo, em resultado das obras, passado a funcionar como porta de acesso à casa mortuária”.
No entanto, resulta já dos factos provados (retirados da alegação da autora) o essencial (para o que interessa decidir nos autos) quanto a essa matéria: “Ao iniciar a visita foi a Autora surpreendida pelo facto de ter sido aberta uma porta, composta por três lamelas, de acesso à capela mortuária em frente ao prédio objeto do contrato promessa de compra e venda, bem como colocado um lugar de estacionamento para carro funerário.”
Ora, à instrução da causa só importam os factos essenciais, complementares ou instrumentais, que relevem para prova ou contraprova dos factos que constituam a causa de pedir e daqueles em que se baseiam as exceções invocadas, ou seja, para fundamento do direito invocado ou dos factos que impedem, modificam ou extinguem aquele direito, consoante a posição de autor ou réu em que as partes se encontrem, de acordo com todas as soluções plausíveis da questão de direito.
Os factos que constituem a causa de pedir, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 552.º do Código de Processo Civil, são os factos expostos na petição inicial (não sendo toda e qualquer alegação efetuada pelas partes que deve ser vertida na fundamentação de facto da sentença, mas apenas aquela que, essencial ou complementarmente, fundamente o direito invocado).
Aplicando-se o artigo 607.º, n.ºs 4 e 5 do Código de Processo Civil à elaboração dos acórdãos (por força do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma), para o Tribunal da Relação efetuar a reapreciação da prova produzida no Tribunal de Primeira Instância, deve ter-se presente o princípio da utilidade mencionado e consagrado no artigo citado.
Assim, empregando tal princípio à pretendida reapreciação da matéria de facto, deve entender-se que o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto do Tribunal Primeira Instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa (ver, por exemplo, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/02/2011, processo 334/10.6TVLSB-C.L1-2 Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/3df478c9b59adf2f802578530059b5a5?OpenDocument&ExpandSection=1 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/05/2017, processo 4111/13.4TBBRG.G1.S1 Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ebace760730357e18025812500383428 ).
No caso, não se vislumbra que tenha sido alegado pela autora/apelante na sua petição inicial que o vão de porta existente deite diretamente para o prédio objeto do contrato promessa (veja-se a alegação constante dos artigos 14.º a 18.º da petição inicial) nem se vislumbra que tal precisão seja relevante para a decisão do litígio (embora sempre se diga que dificilmente tal alegação poderia ser procedente, já que também resultou provado, alegado pela autora/apelante, que existe um lugar de estacionamento para carro funerário em frente dessa porta e, portanto, nunca se poderia considerar que a porta deita directamente para o prédio em causa, pois que de permeio entre a porta e o prédio existe uma via pública).
Consequentemente, não pode merecer acolhimento o pretendido aditamento.

*

II.B.2. Factos provados:
Considera-se, por isso, provado, tal como constante da sentença recorrida, o seguinte:
1. A Autora dedica-se à compra e venda e revenda de bens imóveis sendo os mesmos adquiridos para essa finalidade.
2. No dia 3 de agosto de 2020, a Autora foi contactada por DD, agente imobiliário da Remax, de que a sua agência havia angariado um prédio que poderia ser do seu interesse.
3. Após visita, a Autora apresentou em 10 de agosto de 2020 uma proposta de compra do prédio que, depois de alguma negociação, foi aceite pelas Rés.
4. Em 27 de Agosto de 2020 as Rés, na qualidade de promitentes vendedoras, e a Autora, na qualidade de promitente compradora, celebraram um acordo denominado “contrato promessa de compra e venda”, tendo por objeto o prédio urbano sito na Rua ..., n.º 28 e 30, em ..., descrito na Conservatória do Registo predial sob o nº...79, e inscrito na matriz urbana sob o artigo ...54 da União das Freguesias ....
5. No acordo denominado “contrato promessa de compra e venda” celebrado foi estipulado na cláusula segunda que o prédio urbano seria vendido pelo preço de €92.500,00 (noventa e dois mil e quinhentos euros), tendo sido pago a título de sinal pela promitente compradora a quantia de €15.000,00 (quinze mil euros), através de transferência bancária para a conta das promitentes vendedoras.
6. O remanescente preço de €77.500,00 (setenta e sete mil e quinhentos euros) seria pago mediante cheque bancário aquando da realização acordo denominado “contrato de compra e venda”, conforme estabelece o n.º 2, da cláusula terceira.
7. Na cláusula quarta foi convencionado que a outorga da compra e venda prometida seria efetuada, no máximo, no decorrer do mês de dezembro de 2020, devendo a marcação da escritura ficar a cargo da promitente compradora.
8. Foi ainda acordado pelas partes, na cláusula sexta, sob a epígrafe “incumprimento” que “em caso de eventual mora ou incumprimento do presente Contrato por qualquer uma das Partes, a mesma deverá, voluntária e unilateralmente, independentemente de qualquer notificação para o efeito, repor a situação de cumprimento no prazo máximo de 3 (três) dias úteis contados do dia seguinte, inclusive, àquele em que a obrigação deveria ter sido cumprida, sob pena de se considerar automaticamente resolvido, findo esse prazo, o presente Contrato, sem necessidade ou exigência de quaisquer outras notificações”.
9. O n.º 3 da cláusula sexta dispõe ainda que “Caso a resolução do Contrato decorra do incumprimento das respetivas obrigações pelas promitentes vendedoras, terá a Promitente Compradora o direito de exigir das mesmas, a título de indemnização, a entrega e pagamento em dobro de todas as quantias que lhes tenha entregue no âmbito do presente Contrato”.
10. Durante o período compreendido entre a assinatura do contrato de promessa e dezembro de 2020, a Autora foi solicitando ao Sr. DD, documentação do imóvel com vista à concessão de crédito bancário.
11. A Autora com vista a iniciar o projeto 3D de remodelação do prédio solicitou uma nova visita ao prédio prometido.
12. A visita ocorreu em 9 de outubro de 2020, tendo comparecido a Autora, a Ré AA, bem como EE, desenhadora contratada pela Autora para a elaboração do projeto 3D.
13. Ao iniciar a visita foi a Autora surpreendida pelo facto de ter sido aberta uma porta, composta por três lamelas, de acesso à capela mortuária em frente ao prédio objeto do contrato promessa de compra e venda, bem como colocado um lugar de estacionamento para carro funerário.
14. Aquando da visita ao prédio objeto de negócio, em agosto de 2020, o prédio em frente encontrava-se em obras, encerrado por tapumes e sem qualquer aviso ou publicidade que informasse o objeto da obra em curso.
15. A Autora nunca foi informada pelas Rés, nem pela Agência Imobiliária intermediária no presente negócio, de que seria aberta uma porta para a capela mortuária e colocado um lugar de estacionamento para carro funerário em frente ao prédio objeto de negócio.
16. Ficando a sala do prédio com vista privilegiada para o interior da capela mortuária, onde se encontrarão, em dias de funerais, além do caixão, pessoas a velar os entes falecidos.
17. E ainda, carrinha mortuária estacionada havendo a deslocação do caixão diretamente em frente ao prédio objeto da promessa de compra e venda.
18. Anteriormente às obras, a entrada da capela mortuária não era em frente ao prédio.
19. A capela mortuária não tinha qualquer vão aberto para a frente do edifício, pois era uma parede cega, sem qualquer abertura de porta, janela ou iluminação.
20. Do prédio objeto de negócio não era visível a porta da capela mortuária, atendendo que se situa na lateral do edifício, à qual se acedia por meio de uma escada.
21. Anteriormente, no local da nova porta da capela mortuária constava um portão de garagem, que servia para armazenamento de diversos objetos das atividades dos escuteiros.
22. Se a Autora tivesse conhecimento de que seria colocada uma nova entrada para a capela mortuária em frente ao prédio prometido, nunca teria efetuado proposta para compra do prédio, nem celebrado o contrato promessa.
23. Considera a Autora que a referida situação desvaloriza o valor do prédio prometido, tendo em conta a finalidade da Autora, isto é, a realização de obras com vista à renovação e revenda do prédio, na prospeção de lucro.
24. Antes mesmo de ser surpreendida a Autora já havia “encomendado” o projeto, tendo a visita ocorrido para serem tiradas fotografias e medidas para a elaboração da planta 3D.
25. Nenhuma das partes tinha conhecimento do fim das obras supra referidas.
26. A Autora quando teve conhecimento das novas condições do prédio em frente ao que havia prometido comprar contatou e questionou o agente imobiliário, via WhatsApp.
27. Todos os intervenientes sempre tiveram conhecimento que o propósito da Autora seria a compra do imóvel, realização de obras, para posterior revenda com vista ao lucro.
28. A autora adquire imóveis onde realiza pequenas obras e volta a colocar no mercado da compra e venda.
29. Os imóveis que adquire são os que entende serem rápida e facilmente revendidos.
30. Pois tem um orçamento limitado e se a venda não for rápida perde a rentabilidade do negócio, passando este a ser um custo.
31. A Autora viu-se forçada a manter o negócio, atendendo que já havia assinado o contrato de promessa.
32. O prédio da igreja estava encerrado com tapumes sem qualquer aviso de obra, cartaz ou informação que dissesse que obra estava a ser realizada.
33. A zona onde se localiza o imóvel é uma zona pacata, constituída por habitação, pastelarias, estabelecimentos de restauração.
34. É uma zona com grande procura pelo mercado estrangeiro, atenta a suas caraterísticas típicas de bairro habitacional com vida própria.
35. Considera a Autora que a colocação da capela mortuária em frente do prédio, afeta o negócio celebrado, pois quem adquirir o mesmo sujeita-se ao pesar, sofrimento e luto dos familiares e amigos dos falecidos.
36. As Rés conseguiram obter os documentos necessários para a formalização do negócio.
37. Em 23 de dezembro de 2020 foi efetuada adenda ao contrato de promessa, a fim de prorrogar pelo prazo de um mês a realização do contrato de compra e venda, referindo “- Aconteceu, entretanto, que se torna necessário para a realização da Compra e Venda, uma “Toponímica” a emitir pela Câmara Municipal ..., que se encontra já solicitada, mas que se mostra inviável obter em “em tempo útil” até ao final do corrente mês de Dezembro. Acordam assim as Partes no seguinte: ÚNICO Acordam as Partes em prorrogar a data da realização da Compra e Venda prometida até ao próximo dia 31 de janeiro de 2021 desde que obtida da Câmara Municipal ... a Certidão acima referida.”
38. A referida certidão foi obtida em janeiro.
39. A certidão do registo predial havia caducado, a caderneta predial do imóvel indicava que haviam três proprietários do imóvel, sendo que um dos titulares não fazia parte do contrato prometido, o que não permitia a liquidação dos respetivos impostos de Selo e IMT, obrigatórios para a realização da escritura.
40. A procuração na qual a Ré BB concedia poderes à Ré FF não revestia a forma exigida para o negócio a realizar, não conferindo poderes para a venda.
41. Não foi efetuada a participação para efeitos do exercício do direito de preferência pela Câmara Municipal ... e da Direção Geral do Património Cultural, nos termos do art.º 37.º da Lei n.º 107/2001, de 8 de setembro e art.º 29.º da Lei n.º 31/2014, de 30 de maio.
42. A certidão de dispensa da licença de utilização apenas foi emitida em 7 de abril de 2021 e remetida à Autora no dia 15 de abril de 2021.
43. Por diversas vezes a Autora questionou o Agente imobiliário, via WhatsApp, não tendo os referidos documentos sido obtidos até 31 de janeiro de 2021.
44. Com vista a uma resolução extrajudicial do litígio por entender a Autora verificar-se uma alteração das circunstâncias e incumprimento do prazo constante no contrato de promessa, a mandatária da Autora remeteu carta registada às Rés em 29 de abril de 2021, e as partes reuniram, mas não foi possível chegar a acordo.
45. A Autora tem conhecimento que lhe foi remetida uma carta pelas Rés, cujo conteúdo desconhece, não tendo a mesma sido levantada por a sua única sócia e gerente se encontrar em período de férias, ausente da sede social e do País.
46. Em 05 de julho de 2021, recebeu a Autora “nova” de carta das Rés, na qual vêm as Rés imputar o incumprimento do contrato prometido à Autora e informam que não sendo cumprido se considerará o mesmo “resolvido” e se “perdido o valor entregue a título de sinal”.
47. A carta refere que as Rés haviam procedido à marcação da escritura de compra e venda do imóvel no dia 24 de junho de 2021, às 14:30h, no Cartório Notarial ..., em ..., não tendo a Autora comparecido.
48. A Autora pagou a título de comissão de avaliação para a concessão de empréstimo bancário a quantia de 354,31 euros (trezentos e cinquenta e quatro euros e trinta e um cêntimos).
49. Em janeiro de 2021, mês em que deveria ter sido celebrado o contrato de compra venda, subscreveu contrato de seguro anual do prédio, tendo liquidado a quantia de 281,24 euros (Duzentos e oitenta e um euros e vinte e quatro cêntimos).
50. A Autora despendeu ainda a quantia de 614,22 euros (seiscentos e quatorze euros e vinte e dois cêntimos) no projeto de imagens 3D com vista à realização de obras no imóvel objeto do contrato prometido.
51. Tendo despendido o valor global de 1.249,77 euros (mil, duzentos e quarenta e nove euros e setenta e sete cêntimos).
52. Os pedidos da Autora foram sempre formulados através da agência imobiliária na pessoa do senhor GG, agente imobiliário.
53. A Autora nunca contactou diretamente as Réus pedindo qualquer documento.
54. Uma vez que as Rés tinham interesse no negócio, foram aceitando todos os pedidos, tendo fornecido todos os documentos que lhes eram pedidos.
55. Nem sempre os documentos foram obtidos com a rapidez com que as Rés gostariam, por razões às quais são totalmente alheias devido do COVID.
56. A Autora sabia das dificuldades com a obtenção deste tipo de documento naquelas circunstâncias, não só por ser profissional do ramo imobiliário, como, também, por ter discutido esse tema com o Senhor DD, pelo whatsapp no dia 22 de fevereiro de 2021, 17:53:54, em que o referido DD diz “Olá HH. Obrigado pelo teu contacto. Infelizmente como já falámos a câmara está a trabalhar a vapor. Assim que o documento chegar eu mando logo para ti.”
57. Do aditamento celebrado a 23 de dezembro de 2020, resulta que, o único documento essencial em falta era a certidão toponímica a emitir pela Câmara Municipal ....
58. Desde o dia 15 de abril de 2021 que a Autora esteve em condições de marcar a escritura pública.
59. O prédio situa-se em frente à Igreja de ....
60. Desde sempre que a Igreja de ... tem uma capela mortuária, escuteiros, teve durante muitos anos uma escola paroquial e, nessa rua estreita de sentido único, que a Autora bem conhece, sempre ocorreram as mais diversas festividades religiosas, atividades de escuteiros, velórios, procissões e tudo o mais que é normal acontecer nas igrejas “vivas” e onde funcionam centros paroquiais, como é o caso aqui em apreço.
61. A capela mortuária sempre esteve na mesma rua, apenas com uma porta estava aberta a menos de 50 metros da porta do imóvel.
62. Nesta rua estreita de sentido único sempre se viram carros funerários, pessoas a entrar e sair do velório, caixões a entrar e sair, noivas a entrar e sair da igreja, batizados, procissões.
63. As Rés não informaram a Autora das obras que estavam a decorrer porque não sabiam das mesmas, nem tinham como saber, até por não morarem, e já não frequentarem o local.
64. Muito menos sabiam de que obras se tratavam.
65. O vão da atual porta da capela já estava aberto, assim como, os vãos das duas janelas laterais, simplesmente tinha um portão diferente do atual.
66. A certidão camarária referente à anterioridade a 1951 não era necessária para a escritura, porquanto, substituída pela certidão da Autoridade Tributária que as partes já dispunham na data da assinatura do contrato-promessa.
67. A certidão toponímica, foi requerida em 3 de novembro de 2020.
68. Em janeiro de 2021, as Rés estavam em condições de marcar a escritura.
69. A Autora deixou de querer celebrar a escritura pública devido ao facto da porta da capela mortuária ter sido colocada em frente do prédio referido em 4 e não pelo facto de ter havido atraso na entrega de alguns documentos.

II.B.3. Factos não provados:
Do elenco dos factos não provados continuará a constar, tal como na sentença recorrida, que não resultou demonstrado:
1) Que a Autora solicitou informação às Rés, ou à Agência Imobiliária intermediária no negócio, qual a finalidade das obras que estavam a decorrer na Igreja em frente do prédio e em que consistiam.
2) Que a Autora se informou junto da Câmara Municipal acerca das obras que estavam a decorrer na Igreja em frente do prédio e em que consistiam.
3) Que a Autora informou as Rés que o resultado das obras que estavam a decorrer na Igreja em frente do prédio era um elemento essencial do negócio.

*

II.C. Fundamentação jurídica:
a) Foi celebrado entre autora/apelante e rés/apeladas um contrato promessa de compra e venda – cf. artigo 410.º, n.º 1, do Código Civil – que é a convenção pela qual as partes (ambas ou apenas uma delas) se obrigam a celebrar determinado contrato (o contrato prometido).
No caso dos autos, assumiram ambas as partes a obrigação de celebrar um contrato de compra e venda (o contrato prometido), gerando para cada uma delas uma prestação de facere (prestação de facto positivo), que consistia na obrigação de emissão de uma declaração negocial futura (para a autora/apelante de comprar e para as rés/apeladas de vender) em conformidade com ali acordado.
Estas foram as obrigações principais assumidas por cada uma das partes.
Para além da obrigação principal, podem as partes assumir outras obrigações (de natureza acessória ou secundárias) que não integram o sinalagma específico do contrato-promessa, mas que são instrumentais ao exacto cumprimento da obrigação principal ou que encerram situações de antecipação dos efeitos do contrato. Estas obrigações secundárias podem, depois, assumir relevância como fundamento da resolução do contrato-promessa quando exista um vínculo funcional entre elas e a obrigação principal, em termos tais que o incumprimento daquelas justifica o ulterior incumprimento desta (neste sentido, ver Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/02/2005, processo 04A4402 Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d275d5a0abc6189a80256fbd0068ade8. e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 8/02/2024, processo 1660/22.7T8PTM.E1 Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/ebabacf0a026673b80258aed0032e188?. ).
Como ensina Inocêncio Galvão Telles Direito das Obrigações, 7.ª Ed., Coimbra Editora, pág. 134., a falta de cumprimento do contrato-promessa não ocorre só pelo facto de o promitente ou um dos promitentes se recusar a celebrar o contrato prometido mas também por deixar de satisfazer outra ou outras obrigações que haja assumido, como v.g. reforçar o sinal.
No entanto, no caso dos autos, não se divisa que as rés/apeladas tenham assumido quaisquer outras obrigações acessórias (como a de entregar documentos à autora ou outras) para além da principal.
De resto, a obrigação de marcar a escritura pública cabia à autora/apelante. E não tendo esta procedido a essa marcação, não se vislumbra terem as rés/apeladas incorrido em qualquer mora ou incumprimento definitivo da sua obrigação (ou seja, a de emitirem, no dia e hora em que se fosse celebrar a escritura, a sua declaração de venda do imóvel).
E a actuação posterior das rés (designadamente com a carta de 5 de Julho de 2021) também não as fez incorrer em qualquer incumprimento nem constitui uma declaração antecipada de não cumprimento da promessa de celebrar o contrato definitivo. Tratou-se, apenas, de constatar a impossibilidade do cumprimento por causa imputável à autora (ver, neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25/01/2024, processo 1660/22.7T8PTM.E1 Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/b169568d469b4f3180258ac8004cbb04? ).
Como tal, não existe fundamento para se alterar, nesta parte, a sentença recorrida, pois não tem a autora direito a, por esta via, obter a pretendida devolução do sinal em dobro.
Improcede, por isso, esta parte da apelação.

b) Pretende a autora/apelante, por outro lado, operar a resolução ou a modificação do contrato por alteração anormal das circunstâncias.
No âmbito do direito privado, em regra, as partes podem estabelecer os mais diversos conteúdos contratuais, no que respeita à base do negócio e deveres acessórios. As partes são livres de estipular aquilo que entenderem, não existindo proibição legal de desequilíbrio contratual. Na verdade, “desde que haja um mínimo de justiça no conteúdo do negócio a vontade das partes impõe-se – e impõe-se por respeito ao princípio da autonomia privada – e, na existência de certos desequilíbrios toleráveis face ao ordenamento jurídico, sibi imputet, ou seja as partes assumem os compromissos, sendo-lhe imputados os riscos, as consequências ou os prejuízos decorrentes do que entenderam livremente estabelecer” (como defende Sandra dos Reis Luís “A alteração anormal das circunstâncias: o artigo 437.º do Código Civil e a situação pandémica: reflexos contratuais”, Revista Julgar Online, Julho de 2020/1, acessível em https://julgar.pt/wp-content/uploads/2020/07/20200725-JULGAR-A-altera%C3%A7%C3%A3o-anormal-das-circunst%C3%A2ncias-Sandra-R-Lu%C3%ADs-1.pdf ).
As condições de admissibilidade de modificação ou resolução do contrato por alteração anormal das circunstâncias (ver, entre muitos outros, Pires de Lima e Antunes Varela Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed. Revista e actualizada, Coimbra Editora, pág. 413., Pedro Romano Martinez Da Cessação do Contrato, 3.ª Edição, Almedina, pág. 150 e ss.) vêm previstas no artigo 437.º do Código Civil e podem dividir-se em elementos de cariz positivo e negativo. Na primeira classificação é necessário:
- que a alteração diga respeito a circunstâncias em que se alicerçou a decisão de contratar, isto é, a circunstâncias que, ainda que não determinantes para ambas as partes, se apresentem como evidentes, segundo o fim típico do contrato, ou seja, que se encontrem na base do negócio, com consciência de ambos os contraentes ou razoável notoriedade;
- que essas circunstâncias fundamentais hajam sofrido uma alteração anormal, isto é, imprevisível ou, ainda que previsível, afetando o equilíbrio do contrato;
- que a estabilidade do contrato envolva lesão para uma das partes, quer porque se tenha tornado demasiado onerosa, numa perspetiva económica, a prestação de uma das partes (embora não se exija que a alteração das circunstâncias coloque a parte numa situação de ruína económica, a manter-se incólume o contrato), quer porque a alteração das circunstâncias envolva, para o lesado, grandes riscos pessoais ou excessivos sacrifícios de natureza não patrimonial;
- que a manutenção do contrato ou dos seus termos afecte gravemente os princípios da boa fé negocial.
Na segunda categoria exige-se, para a aplicação do regime, que a alteração não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato. Ou seja, será necessário que a alteração anómala das circunstâncias não esteja compreendida na álea própria do contrato, nas suas flutuações normais ou finalidade ou, ainda, nos riscos concretamente contemplados pelas partes no acordo contratual celebrado.
Ora, quem celebra um contrato-promessa de compra e venda e fixa o preço, diferindo a celebração do contrato de compra e venda para o futuro, assume sempre um risco de valorização ou desvalorização do bem que é objecto do contrato.
Esse é sempre um risco normal assumido pelas partes: o promitente-comprador espera, naturalmente, que o bem se valorize mas assume o risco de ele se desvalorizar; já o promitente-vendedor espera que o mercado imobiliário não suba mais o valor fixado do bem, mas assume o risco de o ver valorizado e, assim, deixar de ganhar mais por se manter fiel ao contrato-promessa celebrado.
De resto, a alteração relevante diz respeito ao circunstancialismo que rodeia o contrato, objectivamente tomado como tal, isto é, como encontro de duas vontades, daí que não relevem superveniências a nível de aspirações subjectivas extracontratuais das partes, como não interessam modificações no campo das aspirações subjectivas contratuais de apenas uma delas; é o contrato que está em causa e não as esperanças de lucro ou de não perda de somente um dos intervenientes, quando a lógica do negócio não esteja em causa (como defende António Menezes Cordeiro Da Alteração das Circunstâncias, Lisboa, 1987, AAFDL, páginas 65 e 66.).
Apenas releva a alteração quando a exigência, à parte lesada, das obrigações por ela assumidas, afecte gravemente os princípios da boa-fé. Mas a concretização deste factor deverá ser apurada em face de cada caso concreto (ver Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14/09/2021, processo 5769/21.6T8LSB-A.L1-7 Acessível em http://www.gde.mj.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/d4b3c93d116f8be480258761003bdc9e. ).
No caso concreto, não se mostram verificados os indicados requisitos (cuja prova cabia à autora/apelante – o ónus da prova destes requisitos compete à parte alegadamente lesada ou prejudicada, nos termos gerais definidos no artigo 342.º do Código Civil).
Na verdade, não desapareceu, para a autora, a possibilidade de revenda do prédio que prometeu comprar. A eventual expectativa de maior ou menor lucro nessa operação faz parte do risco próprio e normal de todos os negócios desta natureza.
Não há nada de anormal no desvio apontado pela autora relativamente à porta da capela mortuária: a circunstância de adquirir um prédio que está próximo de um templo aberto ao culto implica, necessariamente, aceitar como normais todas as manifestações religiosas e comunitárias que os crentes ali realizam (no seu interior e, muitas vezes, nas suas proximidades). Sobretudo quando se sabe que a capela mortuária já existia naquele templo.
E também não provou a autora/apelante nada mais que o seu receio de que o imóvel tenha ficado desvalorizado sem provar que, efectivamente, tal desvalorização tenha ocorrido. Ou seja, não se provou que o valor do imóvel tenha sofrido uma variação significativa e inesperada.
Pelo exposto, a situação dos autos não se subsume aos requisitos exigidos no artigo 437.º do Código Civil, pelo que, também nesta parte, improcede a alegação (assim ficando prejudicado o conhecimento das demais questões).

As custas do presente recurso deverão ficar a cargo da autora/apelante, nos termos do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil, por ter ficado totalmente vencida.

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III. DECISÃO:
Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, em conformidade, confirma-se a sentença recorrida.

Condena-se a autora/apelante nas custas do recurso.

Notifique.
Évora, 26/09/2024
Filipe Aveiro Marques
Maria Adelaide Domingos
Elisabete Valente