I - A condenação por crime cometido no decurso do período de suspensão da execução da pena de prisão só implica a revogação da suspensão se tal facto infirmar, de modo definitivo, o juízo de prognose favorável que esteve na base da suspensão, não se exigindo que a condenação posterior diga respeito ao mesmo tipo de crime da primeira condenação, nem que se trate de condenação por crime doloso.
II - Independentemente de a pena aplicada ao segundo crime ser de prisão efectiva ou nova pena de substituição, esta pena é mais um dos factores a atender na decisão de revogação da suspensão da execução da pena, mas não deve sobrepor-se aos outros, numa espécie de consequência automática, sob pena de se retirar o poder de decisão ao tribunal que aprecia a questão.
III - A extinção da pena cuja execução foi suspensa não surge automaticamente, como consequência do termo do prazo da suspensão, sendo necessário que o juiz a declare.
IV - Como resulta do n.º 1 do artigo 57.º do Código Penal, só depois de findo o período da suspensão é que deve ser apreciado se a pena deve ser declarada extinta ou se deve, sendo esse o caso, ser revogada a suspensão da execução da pena.
V - Analisada a norma do n.º 2 do artigo 57.º do Código Penal conclui-se que a revogação pode ter lugar após o termo do prazo de suspensão fixado, tendo apenas como limite máximo o da prescrição da respectiva pena, sem que com isso ocorra violação do princípio ne bis in idem.
Acordam, em conferência, as Juízas que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
I-RELATÓRIO
I.1 No âmbito do processo comum coletivo n.º 1336/18.0PBVIS, que corre termos pelo Juízo Central Criminal de Viseu – Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, em 09.02.2024, foi proferida a seguinte decisão [transcrição]:
“(…)
… veio a ser condenado, pelo acórdão de 30.04.2019, pela prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, p.p. pelo art.º 347.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de dois anos e seis meses de prisão; pela prática de um crime de ameaça agravada, p.p. pelos arts. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al.s. a) e c), e 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal (…) na pena de nove meses de prisão e, por alteração da qualificação jurídica dos factos, antes qualificados como crime de violência doméstica, p.p. pelo art.º 152.º nº 1, al. b) e nº 2 do Código Penal e pelo nº 3 do art.º 86.º da Lei nº 5/2006 de 23/02, pela prática de um crime de ameaça agravada, p.p. pelos arts. 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal (…) na pena de um ano de prisão.
Em cúmulo jurídico, o arguido veio a ser condenado na pena única de três anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de quatro anos, sujeita a regime de prova e plano a elaborar pela DGRSP e sujeito às obrigações definidas no acórdão.
O acórdão proferido nestes autos transitou em julgado em 31.05.2019.
2.
A factualidade relevante é a seguinte.
[1] … o arguido foi condenado pela prática, no dia 16 de maio de 2022, de um crime de resistência e coação sobre funcionário, …, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão e de um crime de ofensa à integridade física qualificada na forma tentada, … na pena de 10 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 1 ano e 8 meses de prisão, executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, …, com subordinação do regime de permanência na habitação à condição de o arguido se sujeitar a tratamento médico respeitante ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas, incluindo o seu internamento em instituição adequada, caso tal internamento viesse a revelar-se necessário - certidão da sentença extraída do processo 179.
…
3.
Questões solvendas – art.º 55.º e 56.º do Código Penal.
A decisão condenatória deste processo deixou claro que o juízo de prognose favorável feito estava umbilicalmente ligado – porque o sucesso da suspensão passava por aí – à necessidade de arguido se manter abstémio, sabido como era, então como agora, que esse consumo era o gatilho para os comportamentos penalmente ilícitos. Aliás, a DGRSP deu conta no relatório de 2.12.2021 que o consumo de bebidas alcoólicas que então já se registava era promovedor de uma perigosa instabilidade na vida do arguido; assim como, no relatório de 20.09.2022, sublinha que o próprio arguido em tempos reconhecera que o consumo de bebidas alcoólicas promovia profundas alterações no seu comportamento.
Não passara ainda um ano desde o trânsito em julgado … e já havia notícia de que o arguido tinha recaído no consumo de bebidas alcoólicas, com consequências ao nível do seu relacionamento com a companheira.
…
De acordo com a informação dada pela DGRSP, a 20.09.2022, o arguido vinha persistindo em manter alguns consumos de bebidas alcoólicas e havia indícios de que tinha aparecido no local de trabalho embriagado…
Parece-nos, pois, que esta sucessão de eventos que decorreram até ao início da execução da pena no processo 179/22.0GAMGL representam uma violação intencional e indesculpável das obrigações impostas neste processo e do próprio PRS. …
Para além do incumprimento, que julgamos ser reiterado – porque perdurou no tempo e porque intencionalmente empreendido pelo arguido em contravenção às obrigações impostas pela condenação – afinal, o arguido veio a praticar novos crimes, pelos quais foi julgado e condenado no processo 179/22.0GAMGL.
Quanto aos factos que estiveram na sua origem, sublinhamos o que se assinalou no relatório da DGRSP de 20.09.2022: o arguido não denotou qualquer sentido crítico nem verbalizou qualquer tipo de arrependimento, assumindo antes uma postura de vitimização.
Para além disso, o arguido não só reincidiu no mesmo tipo de crime de resistência e coação sob funcionário, como o fez em circunstâncias em tudo semelhantes. E, desta vez, o arguido não se bastou com a ameaça, chegando mesmo à tentativa de agressão, conduta mais grave.
…
Prevê o art.º 56.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que a suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
…
4.
Pelo exposto, revogo a suspensão da pena de três anos de prisão em que o arguido foi condenado e, em consequência, determino o seu efetivo cumprimento.
….”
Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“(…)
II) CONCLUSÕES
A. Foi o arguido condenado nos presentes autos, por acórdão transitado em julgado a 31/05/2019, numa pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 anos e sujeita ao cumprimento de regras de conduta e regime de prova assente num Plano de Reinserção Social.
B. Por sentença transitada em julgado a 07/07/2022 foi o arguido condenado numa pena de prisão efetiva, que executou em regime de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.
C. Em virtude dessa condenação, o Tribunal a quo deu início ao presente incidente a 03/10/2023, para efeitos de controlo da execução da pena suspensa aplicada nos presentes autos, decidindo por despacho, do qual ora se recorre, no sentido da revogação da mesma.
…
F. Sendo certo também que, consciente que estava do seu problema e da dificuldade em ultrapassá-lo sozinho, chegou a demonstrar-se disponível fazer um tratamento da dependência em regime de internamento, o que o Tribunal a quo nunca diligenciou.
G. No penúltimo relatório intercalar, reforça-se que, desde que se iniciou a reclusão domiciliária à ordem do Proc. N.º 179/22.0GAMGL, o arguido manteve o acompanhamento regular no CRI …, frequentando todas as consultas e obtendo resultados negativos à urina, a opiáceos, cocaína e cannabis!!!
…
I. Decorre da lei, no artigo 56.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, que a nova condenação do arguido, durante o período da suspensão, não constitui fundamento suficiente para que se revogue a mesma, este é apenas requisito de ordem formal, ao qual deve acrescer o preenchimento do requisito de ordem material, que impõe que se verifique que com a prática de novo crime se infirmou definitivamente o juízo de prognose favorável feito pelo tribunal aquando da aplicação da pena suspensa.
…
L. Revogar a suspensão da pena e submeter o arguido à prisão efetiva é uma sanção inadequada e desproporcional, que em nada beneficia o processo de ressocialização do arguido.
…
P. Na data em que o Tribunal revoga esta suspensão, 10/02/2024, a mesma já se encontra cumprida, uma vez que a decisão transitou em julgado a 31/05/2019, e o período da suspensão da execução da pena de prisão era de quatro anos, tendo terminado a 31/05/2023!!!
…
Efetuada a legal notificação, a Digna Procuradora da República respondeu ao recurso …
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, …
Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao dito parecer.
Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
…
Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, a questão a apreciar e decidir consiste em:
® Saber se estão verificados os pressupostos para a revogação da suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado nos presentes autos.
® Saber se a decisão de revogação da suspensão da execução da pena de prisão após o termo do prazo de suspensão fixado, quando o arguido foi cumprindo as obrigações impostas, ocorreu em violação do princípio ne bis in idem, consagrado no art. 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.
II.1 – Da verificação dos pressupostos para a revogação da suspensão da execução da pena de prisão.
Conforme expressamente refere em sede recursiva, o arguido ora recorrente não se conforma com a revogação da suspensão da execução da pena que lhe foi aplicada nos presentes autos.
Alega, em síntese, que embora com um percurso marcado por altos e baixos demonstra uma evolução positiva comparecendo no CRI … e manteve-se profissionalmente ocupado a maior parte do tempo.
Mais salienta que após a reclusão no âmbito do processo nº 179/22.0GAMGL manteve o acompanhamento regular no CRI … e obteve resultados negativos quanto a opiáceos, cocaína e cannabis.
Alega ainda que a nova condenação do arguido, durante o período da suspensão não é fundamento suficiente para que se revogue a mesma impondo-se que se verifique que com a sua prática se informou definitivamente o juízo de prognose favorável efetuado pelo arguido aquando da suspensão da execução da pena, o que no caso não se verifica.
Vejamos:
Dispõe o artigo 50.º do Código Penal, no que aqui releva,
“1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2 - O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
(…). [sublinhado nosso].
Como ensina Figueiredo Dias [Cf. Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do crime, p. 331 a 333] “(…) são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efetiva aplicação.
Assim, “(…) desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expetativas comunitárias”.
Deste modo, a substituição da prisão por qualquer das penas de substituição, nomeadamente a suspensão da sua execução, depende unicamente de considerações de prevenção geral e especial.
O tribunal terá de fazer um juízo de prognose sobre o comportamento futuro do agente, decidindo depois em conformidade com o que resultar dessa previsão, só devendo formular juízo positivo quando concluir à vista dos apontados elementos, reportados ao momento da decisão, que essa é a medida adequada a afastar o delinquente da criminalidade.
Já as razões para afastar este juízo de prognose favorável realizado no momento da condenação, resultarão de factos dos quais se possa concluir que o condenado não correspondeu às expectativas nele depositadas de que, pela substituição da prisão e ameaça desta, se afastasse do cometimento de crimes e pautasse a sua conduta pelo dever-ser ético-jurídico.
Assim, resulta do artigo 56.º do Código Penal, sob a epígrafe “revogação da suspensão” que:
“1 - A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:
a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou
b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas..
2 - A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efectuado.”.
Deste modo, quando no decurso da suspensão, o condenado, de forma grosseira ou repetidamente, infringe os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de ressocialização ou comete crime pelo qual venha a ser condenado e assim revele que as finalidades que estiveram na base da suspensão não puderam, por intermédio desta, ser alcançadas, a suspensão é revogada, caso em que o condenado terá de cumprir a pena de prisão fixada na sentença [artigo 56.º, n.º 1, do Código Penal].
Porém, o cometimento de crime não desencadeia, de forma automática, a revogação da suspensão, pois nos termos da alínea b), do n.º1, do aludido artigo 56.º, mesmo a condenação por um crime cometido no decurso do período de suspensão da execução da pena de prisão só implica a revogação da suspensão se tal facto infirmar, de modo definitivo, o juízo de prognose favorável que esteve na base da suspensão, quer dizer, se revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas [Entre outros, os Acórdãos do TRL, datado de 10-05-2022, Processo n.º 2755/14.6PYLSB-A.L1-5 e datado de 24-09-2015, Processo n.º 4/01.6GDLSB.L1-9, todos in www.dgsi.pt.]
A lei não se basta com a mera prática de um ou mais crimes no período de suspensão da execução da pena, pois é necessário, para que se verifique a revogação da suspensão, que essa prática demonstre a frustração do juízo de prognose favorável subjacente à suspensão da execução da pena de prisão, para o que importa ponderar a relação temporal entre a data da suspensão da execução da pena e a data em que foram praticados os novos factos, a relação entre os tipos de crime praticados, a análise das circunstâncias do cometimento do novo crime, ou seja, do quadro em que o condenado voltou a delinquir e o seu impacto negativo na obtenção das finalidades que justificaram a suspensão da pena, e bem assim a evolução das condições de vida do condenado até ao presente – num juízo reportado ao momento em que importa decidir -, em ordem à decisão de revogar ou não a suspensão da execução da pena [Acórdão do TRL, de 10-05-2022, Processo n.º 2755/14.6PYLSB-A.L1-5, in www.dgsi.pt].
Não se exige que a condenação posterior diga respeito ao mesmo tipo de crime da primeira condenação, nem que se trate de condenação na prática de crime doloso [Neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in Código Penal Comentado à luz da Constituição da República Portuguesa, 5.ª ed., pág. 353, nota 6].
Porém, é mais debatida a questão se saber se a condenação tem que ser necessariamente em pena de prisão efetiva para se poder formular o juízo da revogação da suspensão, ou se bastará, para o efeito, a condenação, ainda que numa nova pena de substituição, designadamente de suspensão da execução de pena de prisão [no sentido de que a condenação numa nova pena de substituição nomeadamente de suspensão da execução da pena, tendencialmente revelará não se encontrarem ainda esgotadas as possibilidades de socialização em liberdade, e no sentido de que a segunda condenação ter de ser em pena de prisão efetiva para se poder proceder com base nela à revogação da anterior suspensão de execução de pena de prisão: Paulo Pinto de Albuquerque in ob. cit., pág. 354, o acórdão do TRL de 10.05.2022, proc. nº 2755/14.6PYLSB-A.L1-5, disponível in www.dgsi.pt, e o acórdão do TRE de 13.07.2021, proc. nº 20/18.9GAMAC.E1, disponível in jurisprudencia.pt e o acórdão do TRC a Relação de Coimbra, de 28.03.2012, proc. nº 29/09.3GAAVZ-A.C1, disponível in www.dgsi.pt; entendendo que, mesmo não sendo a segunda condenação em pena efetiva de prisão pode haver lugar à revogação da suspensão da execução da pena aplicada na primeira condenação: o acórdão do TRC de 28.02.1990, Coletânea de Jurisprudência 1990, Tomo I, pág. 115, e os acórdãos do TRP 14.07.2010, proc. 470/08.9GEVNG.P1, e de 31.05.2023, proc. 169/20.8GFPRT.P1, disponíveis in www.dgsi.pt.]
Cremos que a pena aplicada no segundo processo deverá ser apenas mais um dos fatores a atender e não deve sobrepor-se a outros fatores, numa espécie de consequência automática, sob pena de se retirar verdadeiramente o poder de decisão ao tribunal que aprecia a questão.
Isto, naturalmente sem prejuízo de a posterior condenação do arguido em pena de prisão efetiva ser indicativa de que as finalidades que estiveram na base da decisão prévia de suspensão da execução da pena na primeira condenação não puderam ser alcançadas por meio dessa pena; e a posterior condenação do agente em pena de prisão suspensa na execução, ou noutra pena de substituição, ser indicativa de que ainda poderá ser possível um juízo de prognose favorável quanto ao comportamento futuro do agente; mas em nenhum dos casos se deverá de forma automática concluir num ou noutro sentido.
O importante é avaliar se, em concreto, da prática do novo crime no período da suspensão, levando em conta os fatores acima assinalados (nos quais se incluirá a concreta pena aplicada na segunda condenação), resulta ainda possível ou definitivamente comprometido o prognóstico favorável em relação ao comportamento futuro do condenado.
Na situação presente importa ter em consideração, como foi salientado no despacho recorrido, que o arguido foi condenado no processo nº 179/22.0GAMGL pela prática a 16.05.2022 , ou seja, numa fase em que o plano de reinserção social já estava em execução pelo menos desde julho de 2020 … e foi ali condenado pela prática de um crime de resistência e coação a funcionário, p.p. pelo art. 347º, nº 1 do Código Penal e de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, p.p. pelos arts. 22º, 23º, 73º, 143º, nº 1 al. a) e nº 2 por referência ao art. 132º, nº 2 al. l) todos do Código Penal, na pena única de 1 ano e 8 meses de prisão, executada em regime de permanência na habitação, à condição do arguido se submeter a tratamento médico ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas, incluindo o seu internamento se se mostrar necessário.
Verificamos assim, que o arguido reiterou a prática de um dos crimes pelos quais havia sido condenado nestes autos e cometeu um outro crime também contra agente de autoridade e no mesmo contexto de tempo e espaço, tendo sido condenado numa pena de prisão a executar na habitação, com a condição de tratamento.
Analisando a factualidade de um e outro processo percebem-se as semelhanças no comportamento do arguido, no sentido de que surge um desentendimento/contrariedade que provoca um descontrole no arguido e ao haver a intervenção das autoridades policiais este reage da forma descrita.
Ora, a suspensão da execução decretada, visava assegurar que o arguido fosse sensível ao desvalor da sua conduta e à indispensabilidade de evitar comportamentos análogos – a suspensão da pena foi especificamente dirigida a evitar que o arguido cometesse outros crimes contra a autonomia intencional do estado mas também que protegessem a integridade física (a violência integra o tipo legal de crime de coação sobre funcionário). E, os crimes pelos quais o arguido foi condenado correspondem precisamente aos bens jurídicos assegurados pela incriminação em causa nestes autos e a sua prática revela que o arguido foi insensível à pena que lhe foi aplicada, que se mostrou destituída de forma suficiente para evitar a repetição de comportamentos.
Por outro lado, como é salientado na decisão sob recurso, o arguido ao longo do período da suspensão o arguido foi mantendo os consumos de bebidas alcoólicas …
No caso presente, como já referimos, a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido foi motivada pela circunstância de a sua personalidade apontar para que a simples ameaça da pena de prisão seria suficiente para satisfazer as necessidades de punição, tendo-se considerado, todavia, como necessário o regime de prova e as concretas imposições e obrigações estabelecidas, designadamente a de tratamento médico que lhe fosse prescrito para debelar o consumo de bebidas alcoólicas e outras substâncias aditivas de que se deveria manter abstémio, bem assim a obrigação de manter uma ocupação profissional adequada e um relacionamento interpessoal pacífico com a sua atual companheira ou com quem venha a estabelecer relacionamento futuro.
Ouvidas as declarações prestadas pelo respetivo Técnico da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (presente na data em que o arguido foi ouvido nos termos do disposto no art. 495º, nº 2 do Código de Processo Penal) percebemos que aquele admite que o arguido nunca reconheceu verdadeiramente o seu problema com o consumo do álcool, confirmando que o que fez constar do relatório final da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, (no sentido do cumprimento das obrigações impostas) se referia fundamentalmente à circunstância de o ora recorrente ter formalmente cumprido as apresentações e consultas, reconhecendo, no entanto, que havia a notícia de consumos de álcool, confirmando igualmente que o arguido manteve uma postura de desresponsabilização e de falta de investimento no seu processo terapêutico e no projeto de reinserção social, persistindo na desvalorização da conduta que esteve na origem do último processo crime em que acabou por ser condenado, embora realçando que o arguido sempre manteve com os serviços uma postura adequada.
Assim, não nos parece merecer censura a análise efetuada no despacho recorrido, quando se refere relativamente aos consumos de álcool “esses consumos não foram, seguramente, esporádicos” e que se mantiveram ao longo do período da suspensão, “com fases em que o arguido desvalorizava os consumos, quando anteriormente, chegou a reconhecer manter em relação ao álcool, uma complexa relação de dependência, a qual promovia nele profundas alterações de comportamento. Essa mesma desvalorização, aliás, notou-se na sua audição” e também quando se afirma que “ os eventos do dia 16 de maio de 2022, que levaram às novas condenações do arguido – cf. ponto [2], supra – surgem como “inevitáveis”. E, a consequência deles, para além da condenação, acabou por ser a perda do trabalho, circunstância que lhe é inteiramente imputável e constitui, por si só, violação grosseira de uma das obrigações decorrentes da condenação nestes autos”.
…
Refere ainda o arguido que não foram no caso esgotadas as possibilidades previstas no art. 55º do Código Penal.
Ora, se é certo que o arguido não foi, efetivamente, ouvido em momento prévio no que concerne à violação das obrigações impostas, o certo é que a revogação da suspensão da execução da pena, que ora se analisa, não tem apenas subjacente as mencionadas violações, mas também a prática pelo arguido de crimes de idêntica natureza àqueles pelos quais foi condenado nestes autos, situação não abrangida no referido normativo legal.
Neste quadro, tal como ajuizou o Tribunal a quo, não podemos deixar de concluir não ser já possível manter o juízo de prognose favorável formulado quando da condenação.
Na verdade, tendo presente o seu passado criminal anterior à condenação nestes autos, e a subsequente condenação que veio a sofrer … tudo converge no sentido da insuficiência da suspensão da execução da pena de prisão para alcançar as finalidades de prevenção geral e especial na base dessa decisão primitiva de suspensão da execução da pena de prisão.
Deixou, pois, de ser possível esperar, fundadamente, que daqui para a frente o condenado se afastará da prática de outros ilícitos, e concretamente da prática de novos crimes.
Percorrendo a restante argumentação exposta no recurso a este propósito, vemos que se mostra igualmente improcedente. De facto, o relatório final de execução da pena não perturba a conclusão supra, posto que, sendo embora ali dado conta do cumprimento pelo condenado das consultas do CRI e das entrevistas junto da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, em esclarecimentos o respetivo técnico reportou que esse cumprimento foi apenas formal e que os comportamentos e instabilidade foi-se mantendo, e esta reiteração criminosa no período da suspensão, assim como das circunstâncias do cometimento dos novos factos e da forma como o recorrente os encarou, foi possível extrair a conclusão da sua impreparação para manter uma conduta futura conforme ao Direito.
Assim, considerando:
- A personalidade do arguido revelada nos factos aqui ajuizados, e nos que cometeu posteriormente, pelos quais veio a ser condenado (e em especial, tendo em conta que esses factos ocorreram numa fase em que era suposto ter havido já um verdadeiro investimento do arguido na mudança);
- Corresponderem os novos factos à repetição do crime pelo qual foi aqui condenado, associado ao cometimento de um outro crime de ofensa à integridade física qualificada na forma tentada também dirigido a OPC;
- Os sinais de não interiorização pelo condenado do desvalor da sua conduta, presentes na repetição desta conduta, nas circunstâncias em que o fez e na forma como a esses factos se reporta;
- A manutenção dos consumos de bebidas alcoólicas não esporádico, e a instabilidade inerente que redundou na perda do seu emprego, concluímos que não apenas resulta demonstrada a insuficiência da suspensão da execução da pena para alcançar as finalidades que justificaram essa primitiva decisão de suspensão, como a impreparação do condenado para se manter afastado da prática de crimes.
Na verdade, a simples ameaça do cumprimento da prisão não foi suficiente para alcançar tal desiderato, e não se prevê que o seja futuramente.
Invoca o recorrente que a circunstância de a decisão de revogação da suspensão da execução da pena ter ocorrido após o termo do período de suspensão da execução da pena, isto é, após 31.05.2023, num momento em que o arguido vinha cumprindo as condições impostas no plano de reinserção ocorreu a violação do princípio ne bis in idem, na perspetiva de que apesar de ter cumprido a pena de substituição, mantendo-se o despacho recorrido, terá de cumprir a pena principal.
Dispõe o art. 57º do Código Penal que:
1 – “A pena é declarada extinta se, decorrido o período da sua suspensão, não houver motivos que possam conduzir à sua revogação”.
Do teor do nº 1 deste artigo 57º do Código Penal, retira-se que, só depois de findo o período da suspensão é que deve ser apreciado se a mesma deve ser declarada extinta ou deverá, se for o caso ser revogada (verificando-se os requisitos do art. 56º do Código Penal).
Acresce que, nos termos do disposto no nº 2 do mesmo artigo 57º do Código Penal: “Se, findo o período da suspensão, se encontrar pendente processo por crime que possa determinar a sua revogação ou incidente por falta de cumprimento dos deveres, das regras de conduta ou do plano de reinserção, a pena só é declarada extinta quando o processo ou o incidente findarem e não houver lugar à revogação ou à prorrogação do período da suspensão”.
Analisando este normativo legal, temos de concluir que a revogação pode ter lugar após o termo do prazo de suspensão fixado, como ali expressamente se prevê, tendo apenas como limite máximo o da prescrição da respetiva pena [Cf. o Acórdão do TRL de 16.06.2015, processos nº 1845/97.2PBCSC.L1.5, e o acórdão deste TRC de 12.07.2017, processo nº 266/08.8GBSCD-A.C1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt).
Na verdade, como decorre expressamente do nº 1 do art. 57º do Código Penal, a extinção da pena não surge automaticamente como consequência do termo do prazo da suspensão, sendo necessário que o Juiz a declare e que o faça apenas se não houverem motivos que possam conduzir à sua revogação.
Assim, adiantando a nossa conclusão, cremos que não assiste razão ao recorrente quando afirma que a prolação do despacho que determinou a revogação da suspensão da execução da pena após o decurso do respetivo prazo de suspensão, na situação presente, configura qualquer violação do princípio “ ne bis in idem”, consagrado no artigo 29º, nº5, da Constituição da República Portuguesa .
Dispõe este preceito legal que “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
Em anotação a este artigo, referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ªedição, pág.207 que “ o nº5 dá dignidade constitucional ao clássico princípio non bis in idem. Também ele comporta duas dimensões: a) como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); b) como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental) obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto (…)” .
Pretendendo-se assim evitar a dupla apreciação jurídico-penal de um comportamento determinado já julgado, temos que concluir que não resultando a extinção da pena de prisão do simples decurso do respetivo prazo de suspensão e nenhuma outra prévia decisão tendo havido na matéria, não ocorreu, por via da prolação do despacho de revogação, nenhuma violação do princípio ne bis in idem.
Por outro lado, cumpre salientar que o incidente relativo à eventual revogação da suspensão da execução da pena teve o seu início logo quando - em face da informação vertida no relatório da DGRSP de que o arguido havia sofrido uma condenação por factos alegadamente praticados no período da suspensão - foi oficiado o processo nº 179/22.0GAMGL solicitando a certidão da decisão condenatória aí proferida com nota de trânsito em julgado, a qual foi junta a 14.03.2023 (cf. refª 5825483 da mesma data).
E, nessa sequência foi determinado autos através do despacho de 23.03.2023 com a refª 92661018 (cf. ainda a promoção de 16.03.2023 com a refª 92637103) que os autos aguardassem o termo da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao condenado nestes autos, a ocorrer em 31.05.2023 e que, decorrido tal prazo, fosse requisitado CRC (atualizado) do arguido, devendo ainda a secção de processos, junto da base de dados, indagar se corriam termos neste Tribunal outros processos de natureza criminal contra o condenado – artigos 56º e 57º, do Código Penal; e se oficiasse à Coordenação do Ministério Público, junto deste Tribunal, solicitando-lhe que informasse se corriam termos processos de inquérito contra o arguido, por factos praticados no período de tempo compreendido entre o dia 31.05.2019 e o dia 31.05.2023; e se oficiasse à DGRSP competente, solicitando-lhe que remeta relatório final de acompanhamento da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido nestes - o que veio a ser cumprido a 31.08.2023, vindo a ser junto o relatório final da DGRSP a 06.09.2023 (refª 6105920).
Isto é, logo em março de 2023 deu o Tribunal a quo início aos procedimentos tendentes a apreciar da eventual revogação da suspensão da execução da pena, sendo que nos despachos de 19.09.2023 (refª 93719849) e de 01.11.2023 (refª 94041084) são expressamente dadas a conhecer ao arguido as razões que poderiam determinar a revogação da suspensão da execução da pena. E, colhidas as pertinentes informações acerca da morada do arguido foi designada data para a sua audição que veio a ocorrer a 10.01.2024; pronunciando-se, após o Mº Público e o arguido - tudo conforme de corre da promoção com a refª 94526608 de 13.01.2024 e do requerimento de 13.01.2024 com a refª 6363397.
Analisando esta tramitação, sucintamente elencada, verificamos que o Tribunal a quo – ao contrário do referido nas conclusões de recurso - não deu início ao incidente para efeitos de controlo da execução da pena suspensa apenas a 03.10.2023, mas sim a 14.03.2023, tendo prosseguido com as pertinentes diligências até à decisão final.
Deste modo, tendo em conta o teor do art. 57º, nº 1 e 2 do Código Penal, e os concretos fundamentos acima enunciados, que permitem pela conclusão da verificação dos pressupostos da revogação da suspensão da execução da pena, entende-se que se mostra tempestiva a apreciação que foi feita no termo do respetivo prazo e esta não constitui, pelas razões já expostas - e muito concretamente pela integração do comportamento do arguido nas al.s a) e b) do nº 1 do art. 56º do Código Penal - qualquer violação do princípio ne bis in idem.
Nestes termos, improcedem as razões aduzidas no recurso, não merecendo o mesmo provimento.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam as Juízas da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a 3 (três) unidades de conta - arts. 513º/1 do Código de Processo Penal, 8º/9 do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma.
Notifique.
[Texto elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]
As Juízas Desembargadoras
Sandra Ferreira
(Juíza Desembargadora Relatora)
Alcina da Costa Ribeiro
(Juíza Desembargadora Adjunta)
Ana Carolina Cardoso
(Juíza Desembargadora Adjunta)