I - Há erro de julgamento sempre que o tribunal emite um juízo sobre determinado facto sem que sobre o mesmo tenha sido oferecida ou mandada produzir prova suficiente, situação em que a apreciação não se fica pela decisão recorrida, antes se alargando à análise do conteúdo de toda a prova dos autos, sempre dentro dos limites especificados pelo recorrente face ao ónus que lhe é imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do C.P.P.
II - Nesta situação a lei processual penal exige que o recorrente indique qual a decisão de facto que entenda adequada face ao manancial probatório, em contraponto à decisão de facto que consta da decisão recorrida, indicando a cada passo factual a justificação do facto alternativo que propõe como o acertado.
III - O princípio da presunção de inocência tem um duplo significado: enquanto regra de tratamento a dispensar ao arguido ao longo do processo, determinando que, qualquer que seja o manancial de indícios existente da prática de um crime, o arguido deve ser tratado como inocente até que seja declarada a sua condenação definitiva; como regra de juízo, adequada à estrutura acusatória do processo, pois que o arguido não tem de provar a sua inocência, competindo à acusação carrear a prova que consubstancia a culpa, ao juiz proceder à busca da verdade material e, em caso de dúvida, ser decretada a absolvição.
Acordam os Juízes, em Conferência, na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
RELATÓRIO
Nos presentes autos de Processo Comum Singular que seguem termos sob o nº 237/23.4SBGRD no Tribunal Judicial da Comarca da Guarda/Juízo Local Criminal da Guarda/Juiz 2, o Ministério Publico requereu o julgamento do arguido
…
Imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido no artigo 152º, nº 1, alínea b), nº 2, alínea a) e nºs 4 e 5 do Código Penal.
A ofendida/assistente … deduziu pedido de indemnização civil contra o demandado …, requerendo que o mesmo seja condenado a pagar-lhe, a título de danos não materiais, a quantia de 5.000,00€
O arguido apresentou contestação e requerimento de prova.
Findo o julgamento veio a ser proferida sentença, na qual foi decidido:
. Condenar o arguido …, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido nos termos do artigo 152º, nº 1, alínea b) e nº 2, alínea a) e nºs 4 e 5 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 2 (dois) meses de prisão.
. Suspender na sua execução a pena de 3 (três) anos e 2 (dois) meses de prisão de prisão, pelo período de 3 (três) anos e 2 (dois) meses, subordinada a regime de prova e plano de reinserção social e elaborar e fiscalizar pela DGRSP, o qual passe pela prevenção do risco de reincidência (Sujeição ao acompanhamento pela DGRSP, entidade perante a qual ficará sujeito às seguintes obrigações: receber visitas ou comparecer perante o técnico de reinserção social competente sempre que este o entenda por necessário, designadamente para efeitos de entrevistas de acompanhamento; comunicar ou colocar à disposição da DGRSP todas as informações e documentos solicitados por este organismo), com, pelo menos relatórios de dois em dois meses.
. Julgar parcialmente procedente por provado o pedido de indemnização cível deduzido … contra o arguido e em consequência condenar o arguido a pagar à demandante:
- a quantia de €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais acrescidas de juros de mora a partir da data da notificação do demandado cível para contestar o pedido de indemnização cível e às taxas legais desde então em vigor, até efectivo e integral pagamento.
…
. Absolver o arguido/demandado … do demais peticionado.
Inconformado com tal decisão condenatória, o arguido … interpôs recurso, que se apresenta motivado e com as seguintes conclusões:
DE FACTO:
1ª Mal andou a sentença ao considerar provados todos os factos constantes da acusação.
…
DE DIREITO:
57ª A sentença é nula porque ofende o princípio do pedido e incorre em excesso de pronuncia.
58ª No pedido de indemnização cível não são peticionados quaisquer juros, no entanto,
59ª A sentença condena o arguido em “2.500,00€ a título de danos não patrimoniais acrescidas de juros de mora a partir da notificação do demandado cível para contestar o pedido de indemnização cível e às taxas legais desde então em vigor, até efectivo e integral pagamento”.
60ª Tal decisão é uma decisão surpresa que ofende o princípio do pedido e incorre em excesso de pronuncia.
61ª Fazendo-o, o Tribunal a quo violou o princípio do pedido, como acima se expôs, ferindo de nulidade a sentença (artigo 615.º, n.º 1, e), do CPC).
62ª O excesso de pronúncia ocorre quando se procede ao conhecimento de questões não suscitadas pelas partes ou que não sejam de conhecimento oficioso, por força do disposto na 2ª parte da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.
63ª A jurisprudência está uniformizada desde 2015 com o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 9/2015 do Supremo Tribunal de Justiça, que expressamente declara que “Se o autor não formula na petição inicial, nem em ulterior ampliação, pedido de juros de mora, o tribunal não pode condenar o réu no pagamento desses juros.”
64ª Violou ainda o Tribunal a quo os artigos 128º, nº 1, e 129º nº 1 do Código de processo Penal.
65ª Violou ainda o princípio do in dubio pro reo, pois perante um suporte probatório tão extenso e coerente da tese defendida pelo arguido em sede de audiência e julgamento, esta teria, no mínimo, de resultar em factos pouco claros, que não podiam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador;
66ª E deveria, por isso, ter sido valorado probatoriamente a favor do arguido.
Termos em que deve ser revogada a douta sentença, nos termos das conclusões.
Notificado o Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 411º do Código do Processo, veio o mesmo pronunciar-se, …
…
Igualmente notificada para os termos do recurso apresentado pelo arguido, a assistente … veio apresentar a sua resposta …
…
O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação de Coimbra emitiu Parecer …
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2 do Código do Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir do recurso apresentado.
Na sentença recorrida, com relevância para a decisão da matéria recursal, foi feito constar o seguinte:
II – Fundamentação
2.1. Factos Provados
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos, com relevo para a decisão:
1. O arguido iniciou uma relação de namoro, no ano de 2012, com …, tendo, a partir do ano de 2019, passado a residir com a mesma, como se de marido e mulher se tratassem, tendo partilhado mesa, leito e habitação na …, até o mês de Maio de 2023, data em que o referido relacionamento terminou.
2. Em datas não concretamente apuradas, mas situadas no ano de 2017, na residência do casal, sendo … detentora de um cão, para sua companhia, o arguido, por diversas vezes, como forma de amedrontar e humilhar aquela, desferiu pancadas no crânio daquele animal.
3. Em dia especificamente não determinado, mas ocorrido no ano de 2020, na residência do casal, na sequência de uma discussão, o arguido arremessou um comando de televisão na direcção de …, vindo a atingi-la no rosto, provocando-lhe dores e um hematoma nesse local.
4. Desde o início do relacionamento, o arguido passou a controlar para onde … se deslocava bem como em que gastava o seu dinheiro, exigindo-lhe, para o efeito, que a mesma lhe entregasse as facturas de pagamento do combustível do veículo em que circulava.
5. No mesmo período e para o mesmo efeito, quando … regressava à residência do casal, o arguido questionava-a, insistentemente, onde a mesma havia estado e o que tinha feito.
6. … para consumir um café tinha de pedir dinheiro ao arguido e o mesmo não permitia que a mesma realizasse compras, para consumo doméstico, sozinha.
7. Mesmo quando … se encontrava a tomar banho, o arguido sentava-se na casa de banho a olhar para a mesma, de forma a controlá-la.
8. Em dia não concretamente apurado, mas situado em Setembro de 2022, quando o casal se encontrava de férias …, pretendendo entrar no Casino, tendo o arguido se apercebido que não tinha consigo o seu cartão de cidadão, o mesmo dirigiu a … as seguintes expressões: “és sempre a mesma merda, porque não me lembraste? Já sabias para onde vínhamos”.
9. No dia 26 de Maio de 2023, na residência do casal, após … ter comunicado ao arguido que pretendia sair de casa, pondo fim ao relacionamento, o arguido, em tom agressivo, disse-lhe “Tu és maluca! O que tens nessa cabeça? Não sabes o que andas a fazer! És uma estúpida!”.
11. Em data não concretamente apurada, mas depois do episódio acima descrito, o arguido deslocou-se ao local de trabalho de …, a fim de saber do paradeiro desta, tendo questionado as suas colegas de trabalho onde aquela se encontrava.
…
Mais se provou que:
…
20. O demandado agiu assim com o propósito de afetar a saúde psíquica e física da Demandante, bem sabendo que com os seus comportamentos lhe causava sofrimento psíquico, dores e ferimentos.
21. A Demandante, sentiu-se profundamente menorizada na sua pessoa, menosprezada pela pessoa com quem escolheu ter uma relação, revelando mal-estar psicológico, trauma, ansiedade e medo constantes, tristeza, sentimentos de vergonha e humilhação, que consubstanciam um quadro depressivo.
22. A conduta do Demandado fez, de igual modo, com que o demandante perdesse o ânimo, orgulho, preenchimento emocional e intelectual, vivendo com medo e ansiedade constantes de que o Demandado a possa agredir física e psicologicamente de novo.
23. Todas estas circunstâncias criaram no demandante uma vasta e estigmatizante perturbação do seu equilíbrio emocional, social e psicológico, constituindo um grave atentado à sua personalidade moral.
Tudo o demais alegado não se considerou por se tratar de repetição, de conclusões ou de factos sem relevância para a decisão da causa, ou já dados como provados.
2.2. Factos não Provados
…
2. 3. Motivação da decisão da matéria de facto:
…
*
III – Enquadramento jurídico-penal
…
*
VI. Do pedido de indemnização civil:
…
*
DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Fazendo presente a norma do artigo 412º, nº 1 do Código do Processo Penal o objecto da lide recursal é fixado na motivação, onde são ancorados os seus fundamentos específicos e delimitado pelas conclusões, como síntese da respectiva fundamentação, sem prejuízo das questões que ao Tribunal ad quem incumba conhecer oficiosamente (como sejam os vícios enunciados no nº 2 do artigo 410º do Código do Processo Penal, as nulidades da sentença gizadas no artigo 379º, nº 1 e 2 do Código do Processo Penal e as nulidades que não devam ser consideradas sanadas face aos consignado nas disposições conjugadas dos artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1 do Código do Processo Penal)[1] [2]
Analisadas que sejam as conclusões apresentadas pelo recorrente …, as questões que se apresentam a decidir são, pois, as seguintes:
. Impugnação da sentença, por erro de julgamento na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3 e 4 do Código do Processo Penal;
. Impugnação da sentença, por erro de direito, atenta a sua nulidade por excesso de pronuncia, nos termos previstos no artigo 615º, nº 1, alínea e) do Código do Processo Civil;
. Impugnação da sentença, por erro de direito, por violação do princípio da livre apreciação da prova consignado no artigo 127º do Código do Processo Penal;
. Impugnação da sentença, por erro de direito, atenta a violação do princípio do in dubio pro reo.
*
. DECISÃO
Considerando o que é disposto no artigo 428º do Código de Processo Penal aos Tribunais da Relação estão conferidos poderes de cognição de facto e de direito.
Como sabemos o recurso é “o meio processual destinado a sujeitar a decisão a um novo juízo de apreciação, agora por parte de um tribunal hierarquicamente superior, imposto pela necessidade de garantir a principal via de reapreciação das decisões em processo penal, ante o auto-esgotamento do poder jurisdicional, em cada instância; é o principal caminho legal para corrigir os erros cometidos na decisão judicial.”[3]
Direito este que constitui uma das mais importantes dimensões das garantias de defesa do arguido em processo penal e em que se afirma o principio do direito a um duplo grau de jurisdição.
Tendo já ficado explicitado o objecto da presente lide recursal tanto quanto os limites dos poderes de apreciação deste Tribunal importa-nos, então, face ao estipulado nas disposições conjugadas dos artigos 368º e 369º por remissão do artigo 424º, nº 2, todos do Código do Processo Penal determinar a respectiva ordem de conhecimento:
. Em primeiro lugar, das questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
. Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da causa:
- Começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do artigo 412º do Código do Processo Penal, seguindo-se, eventuais, vícios a que dão corpo o artigo 410º do mesmo diploma legal;
. Em terceiro lugar, das questões relativas à matéria de direito.
Seguindo, assim, pelo trajecto agora firmado importa conhecer da arguida nulidade da sentença, por excesso de pronuncia, nos termos previstos no artigo 615º, nº 1, alínea e) do Código do Processo Civil.
Alinha, para esse efeito, o ora recorrente que, a sentença é nula porque ofende o princípio do pedido e incorre em excesso de pronúncia, posto que no pedido de indemnização cível não são peticionados quaisquer juros, no entanto, foi decidido condenar o arguido em “2.500,00€ a título de danos não patrimoniais acrescidas de juros de mora a partir da notificação do demandado cível para contestar o pedido de indemnização cível e às taxas legais desde então em vigor, até efectivo e integral pagamento”.
Conheçamos
Compulsados os presentes autos verificamos que, na sequência de notificação que lhe foi operada, a ofendida/assistente … apresentou pedido de indemnização cível contra o ora recorrente, arguido e demandado, vindo a peticionar que fosse julgado procedente, por provado, aquele pedido e, em consequência, ser o demandado condenado a pagar à demandante a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), a titulo de danos não patrimoniais.
Findo o julgamento, em sede de sentença, veio a ser decidida a procedência parcial daquele pedido e, em consequência, foi determinada a condenação do demandado, ora recorrente, no pagamento da quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) título de danos não patrimoniais acrescidas de juros de mora a partir da data da notificação do demandado cível para contestar o pedido de indemnização cível e às taxas legais desde então em vigor, até efectivo e integral pagamento.
Estabelece o artigo 400º do Código do Processo Penal, sob a epigrafe “Decisões que não admitem recurso”, que:
1 - Não é admissível recurso:
a) De despachos de mero expediente;
b) De decisões que ordenam actos dependentes da livre resolução do tribunal;
c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo, exceto nos casos em que, inovadoramente, apliquem medidas de coação ou de garantia patrimonial, quando em 1.ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além da prevista no artigo 196.º;
d) De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, exceto no caso de decisão condenatória em 1.ª instância em pena de prisão superior a 5 anos;
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância;
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;
g) Nos demais casos previstos na lei.
2 - Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
3 - Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil.
Sufragando-nos no nº 2 do artigo 400º Código do Processo Penal, em conjugação com o artigo 44º, nº 1 da Lei nº 62/2013 de 26/08, o aludido segmento decisório não é susceptível de recurso porquanto não se reúnem cumulativamente dois requisitos:
. o valor do pedido formulado não foi superior ao da alçada do tribunal recorrido, já que o valor foi o de € 5.000,00, sendo a alçada do tribunal de 1ª instancia o de € 5.000,00;
. a decisão impugnada não desfavoreceu o recorrente em valor superior a metade da alçada respectiva, ou seja, o valor da sucumbência, que no caso foi de € 2.500,00, não é de valor superior a metade da alçada daquele tribunal de 1ª instância (é igual).
Vale tudo por dizer, assim, que atenta a sua irrecorribilidade, não se conhece da pretensão recursal, no que atende ao aludido segmento do pedido cível.
Passamos, pois, ao conhecimento das questões que atinam ao mérito da causa.
No que atende ao direito ao recurso relativo à decisão da matéria de facto, a lei processual adjectiva vem admitir duas possíveis abordagens – a chamada revista alargada à matéria de facto, que se trata de uma impugnação restrita da matéria de facto enquadrada à luz dos vícios previstos no nº 2 do artigo 410º do Código do Processo Penal e a impugnação ampla da matéria de facto prevista no artigo 412º, nº 3 da lei adjectiva penal que vem obrigar ao cumprimento preciso dos ónus prescritos naquele mesmo dispositivo.
Na primeira daquelas modalidades, o sujeito terá que lançar mão dos vícios previstos no nº 2 do artigo 410º da lei adjectiva penal, sendo condição para tal impugnação da matéria de facto que aluda à existência de erro notório na apreciação da prova, aquele que “consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum.”[4]
Face a esta sua natureza, o Tribunal de recurso está limitado a conhecer dos eventuais vícios que promanam da decisão recorrida e, não sendo possível saná-los, importa-lhe ordenar o reenvio dos autos para um novo julgamento, com vista ao desiderato prevenido no artigo 426º do Código do Processo Penal, qual seja o de correcção.
Importa, todavia, ter presente que os aludidos vícios, de que cura o falado artigo 410º, nº 2 da lei processual penal, são, ainda, de conhecimento oficioso “pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”, na medida em que ficou determinada por Jurisprudência Fixada (Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 7/95 de 19/10).
Tais vícios da decisão “são defeitos estruturais da própria decisão penal, razão pela qual a lei exige que a sua demonstração resulte do respectivo texto por si só, ou em conjugação com as regras da experiência comum.”[5]
É, por isso mesmo, que não compete ao Tribunal superior conhecer da matéria de facto, procedendo à sua reapreciação, consignando-se o seu oficio na detecção, eventual, dos falados vícios da sentença, evidenciados no seu corpo, sendo certo que, nos termos da lei adjectiva, lhe imporá saná-los, se tal for possível, ou não o sendo, determinar a remessa dos autos para novo julgamento.
Na segunda das modalidades estamos perante um efectivo recurso da matéria de facto, a levar a preceito de acordo e segundo a previsão do artigo 412º, nºs 3, 4 e 6 do Código do Processo Penal.
Enquanto naquela primeira modalidade estamos perante um recurso de direito, que se concretiza mediante a invocação de um vicio da decisão final (sentença ou acórdão), já nesta o recorrente tem que lançar mão ao manancial probatório examinado em audiência de julgamento, que tem que especificar, de molde a cumprir o ónus que lhe é imposto no nº 3 do artigo 412º do falado diploma processual penal.
São, por isso, valorosas as palavras de ensinamento de Sérgio Gonçalves Poças[6] quando, após dar nota, do corpo legal do artigo 412º da lei adjectiva penal salienta que “Resulta assim claro da norma que na motivação, de forma clara e concisa, mas completa, o recorrente deve expor as razões do seu inconformismo — os fundamentos de facto e de direito por que entende que tribunal decidiu mal.
A necessidade de o recorrente ser e claro e completo nos fundamentos do recurso, assume-se como de algo essencial ao conhecimento deste — como adiante melhor se verá.
De facto, só o recorrente sabe do que discorda e por que razão discorda. Ora se assim é e é, de forma clara e completa, está onerado a dizer a discordância, e das suas razões, de facto e de direito.
Na verdade, se o recurso pretende remediar o mal feito, desde logo, o recorrente está onerado a identificar devidamente o mal da decisão e as razões por que é mal.
Sejamos claros: o Tribunal de recurso só pode apreciar a razão do recorrente se este for claro nas razões da sua razão.
Nada se decide no reino do mistério. (…)”
Como já se disse havendo lugar a uma apreciação alargada, que não se fica pela decisão recorrida, antes se alargando à análise do conteúdo de toda a prova dos autos, sempre dentro dos limites especificados pelo recorrente face ao ónus que lhe é imposto pelos nº 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal que, naturalmente não tendo como desiderato um novo julgamento visa, contudo, que o Tribunal “ad quem” aprecie.
Vale tudo por dizer, assim, que apenas o escrupuloso cumprimento deste ónus permite ao Tribunal “ad quem” firmar a decisão a que alude o nº 6 da citada norma que, de outro modo, fica comprometida.
Apreciando a lide recursiva apresentada pelo recorrente … verificamos que o mesmo começa por alegar a existência de erro de julgamento relativamente aos pontos 1. a 9., 12. a 16. e 20. a 23. dos factos dados por provados.
Entende-se existir erro de julgamento, de acordo com o disposto no artigo 412º, nº 3 do Código de Processo Penal, sempre que o Tribunal emita um juízo sobre determinado facto sem que acerca do mesmo tenha sido oferecida ou mandada produzir prova suficiente; situação em que o recurso visa a reapreciação da prova produzida e sedimentada nos autos, a ser apreciada em 2ª instância.
Há, assim, lugar a uma apreciação alargada, que não se fica pela decisão recorrida, antes se alargando à análise do conteúdo de toda a prova dos autos, sempre dentro dos limites especificados pelo recorrente face ao ónus que lhe é imposto pelos nº 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal que, naturalmente não tendo como desiderato um novo julgamento visa, contudo, que o Tribunal ad quem aprecie dentro dos limites fixados pelo recorrente.
Exige, nesta situação, a lei processual penal que o recorrente indique qual a decisão de facto que entenda adequada face ao manancial probatório em contraponto à decisão de facto que consta da decisão recorrida, indicando a cada passo factual a justificação do facto alternativo que propõe como o acertado.
Como ficou decidido no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 03/2012, publicado no Diário da Republica, I Série, nº 77, a 18 de Março de 2012 «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
Absolutamente impressivo acerca desta matéria se apresenta a decisão do mesmo Tribunal onde alude que “no que se refere à parte criminal, importa ter presente que o recurso em matéria de facto não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento da decisão recorrida, mas apenas, em plano diverso, uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere injustamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na perspectiva do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas em suporte técnico ou transcritas quando as provas tenham sido gravadas) – art. 412º, nº 3, al. b) do CPP, ou determinado a renovação das provas nos pontos em que entenda que deve haver renovação da prova. Porém, tal sindicância deverá ter sempre uma visão global da fundamentação sobre a prova produzida de forma a poder acompanhar todo o processo dedutivo seguido pela decisão recorrida em relação aos factos concretamente impugnados (…).”
Solução esta que o legislador impõe uma vez que, como bem salienta o Professor Germano Marques da Silva “o poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância”.
Tendo presentes estas exigências legais e volvendo a todo o conteúdo da lide recursiva importa descortinar como o ora recorrente leu as exigências vertidas nos nºs 3 e 4 do artigo 412º do Código do Processo Penal.
No corpo motivador o ora recorrente, arguido nos autos, no que atende aos concretos pontos de facto que lhe suscitam discordância faz a sua cabal identificação.
Já quanto às concretas provas, vejamos:
. quanto ao ponto 1. vem apresentar o depoimento da assistente, indicando a concreta passagem em que estriba a sua impugnação, com a respectiva especificação para a acta;
. quanto aos pontos 2. a 9. vem apresentar os depoimentos das testemunhas …, indicando as concretas passagens em que estriba a sua impugnação, com a respectiva especificação para a acta;
. quantos aos pontos 11. a 16 e 20 a 23 não vem apresentar nenhum meio de prova.
Feita a análise excursiva pelo dito corpo motivador – excluindo o ponto 1. onde entende tratar-se de um lapso de escrita que, nesses termos, deve ser alterado – o ora recorrente, arguido nos autos, no que concerne aos pontos 2. a 9., após elaborar uma síntese do segmento probatório que entendeu eleger, elenca os critérios que, a seu ver, ditam uma diversa decisão acerca dos aludidos factos.
Vale tudo por dizer, pois, que no que atende aos pontos 1. a 9. o ora recorrente … dá cumprimento ao dever de especificação, nos moldes com o explicita Paulo Pinto de Albuquerque[7], isto é, que “o recorrente deve explicitar por que razão essa prova «impõe» decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever da especificação.”
Não sem que deixe de acrescentar que “O grau acrescido de concretização exigido na Lei nº 48/2007 de 29/08 visa precisamente impor ao recorrente que relacione o conteúdo especifico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado.”
Tal dever de concretização das provas, bem como o de especificar o motivo pelo qual se impõe uma diversa decisão está directamente ligado à função do julgador, concretamente à que lhe fica imposta por força do nº 6 da citada norma do artigo 412º da lei adjectiva penal, qual seja a de reexaminar a prova – a indicada e a que entenda relevante, visando cumprir um dos princípios fundamentais do processo penal português, mas, também, o seu desiderato fundamental, o da descoberta da verdade material.
Versando sobre o aludido conceito de “verdade material” são ubérrimas as palavras do Professor Castanheira Neves[8] quando afirma que «quanto à «verdade» que aqui se visa, devemos ter em conta que ela tem a ver com a realidade da vida, com a acção humana e as circunstâncias do mundo humano, pois a verdade que importa ao direito (e, assim, ao processo) não poderá ser outra senão a que traduza uma determinação humanamente objetiva de uma realidade humana. É ela, pois, uma verdade histórico-prática. A sua modalidade não é a de um juízo teorético, mas a daquela vivência de certeza em que na existência, na vida, se afirma a realidade das situações, com tudo o que nestas de material e de espiritual participa. Quer dizer, será errado identificarmos a ideia de objetividade científica (sistemático-conceitual e abstrato-generalizante) – pois isso seria esquecer, por um lado, que a intenção teorético-cientifica é o resultado de uma modificação específica, e metodologicamente deliberada, na intenção e modos originários da experiência fundamental em que se nos dá a realidade, e por outro lado, ignorar que o «facto» da ciência (os factos para a ciência), longe de ser o facto absoluto ou o «dado» correlativo das específicas intenções científicas, e que, portanto, haverá sempre de distinguir-se, pelo menos, dos factos da experiência humano-natural e histórica. Do que se trata aqui é antes daquela particular objetividade da vida, a exprimir sempre uma «indissolúvel unidade do conhecer e do agir», um prático experimentar-compreender teoreticamente irredutível. O que não é, todavia, contraditório, com a pretensão da racionalização. Só que não deve esquecer-se que se trata de uma racionalização de índole prático-histórica, a implicar menos o racional puro do que o razoável, proposta não à dedução apodítica, mas à fundamentação convincente para uma análoga experiência humana, e que se manifesta não em termos de inteleção, mas de convicção (integrada sem dúvida por um momento pessoal) – já por isso a racionalização toma no nosso caso muito justamente o nome de motivação e não o de demonstração.» (sublinhados do autor).
Enunciado no artigo 340, nº 1 do Código do Processo Penal, que disciplina a prova em sede de audiência de julgamento, este principio, ainda que dirigido em especial a esta fase do procedimento, impõe-se, contudo, em todas as fases do procedimento, sendo resultado de uma “concepção” personalista do direito e democrática do Estado[9], provindo de uma leitura própria do principio do acusatório entremeada pelo da investigação, tudo expressão da procura de uma verdade que não seja meramente formal, mas antes daquela que resulta da identidade dos factos que da vida foram levados ao processo.
Fruto da contribuição de todos os sujeitos processuais somos também de dizer, assim como o fez o Professor Germano Marques da Silva[10] que este é o produto e fruto «de uma melhor prossecução da verdade e para uma decisão (mais) justa».
Paulo Dá Mesquita[11] afirma-o, aludindo a que “circunscrever o poder de cognição do tribunal ao objecto do recurso recortado pelas questões e pedidos formulados nas conclusões não limita o órgão jurisdicional a apreciar apenas as provas indicadas pelas partes na sua argumentação perante o tribunal superior. O tribunal deve ser norteado pelo seu próprio juízo relativamente à indagação em concreto imposta pelo principio da relevância, em particular quanto ao eventual valor probatório de outras provas, i.e., a aptidão de elementos de prova não indicados pelo recorrente (mas admitidos no processo) para se vir a considerar mais provável ou menos provável a proposição que se pretende provar ou colocar em causa. O art. 412º/6 visa tornar claro um parâmetro que, independentemente dessa norma, constitui corolário da independência do tribunal ad quem. O tribunal deve empreender a selecção de provas validamente adquiridas que podem e devem ser examinadas e valoradas em função do juízo judicial sobre a respectiva relevância. O tribunal ad quem não está constrangido nesse exercício pelas partes que apenas delimitam o objecto do recurso devendo, designadamente, identificar as especificas questões de facto susceptiveis de reapreciação em segunda instancia. O juízo sobre a relevância assumida pelo tribunal ad quem tem de ser conformado pela própria finalidade do recurso sobre a matéria de facto: não é um novo julgamento, mas apenas apreciação da razoabilidade da decisão recorrida tendo em atenção, nomeadamente, princípios e regras de direito probatório.”
Igualmente no reporte das conclusões, o ora recorrente deu cumprimento à especificação das indicações previstas no artigo 412º, nº 2 a 5 do Código do Processo Penal, quanto aos salientados pontos 1. a 9.
Destarte mostram-se cumpridos os ónus de especificação a que dão corpo os nºs 3, alíneas a) e b) e 4 do artigo 412º da lei adjectiva penal em relação ao espolio factual impugnado nos pontos 1. a 9, quanto aos convocados depoimentos testemunhais.
Verificada a sentença recorrida, no segmento dos factos provados, com pertinência para a decisão a proferir, tem o seguinte recorte:
…
Destarte é de concluir, pois, que o Tribunal recorrido justificou, de forma rigorosa e objectiva, o modo como formou a sua convicção considerando, por um lado, as declarações da ofendida, que “veio contar, de forma sentida, com medo e receio, afagada com os acontecimentos, tudo o que passou, viveu e teve que suportar”, tanto quanto o contributo probatório carreado pelo depoimento das testemunhas que mereceram total credibilidade do Tribunal, que avaliou de acordo com as regras da experiência comum e o normal discorrer dos acontecimentos.
Isto é, prespassa da analise critica firmada à decisão recorrida, no que à matéria aludida concerne, que o Tribunal recorrido, para além de especificar cada meio de prova em que se estribou para formar a sua convicção, fez ainda a alusão circunstanciada da matéria factual para que o mesmo foi essencial.
No que respeita à prova por declarações e testemunhal aquele especificou o modo como cada um dos intervenientes explicitou o respectivo conhecimento dos factos, deixando lavrado tudo quanto cada um desses intervenientes transmitiu ao Tribunal, tanto quanto a sua razão de ciência.
Ademais não deixou, ainda, de firmar a correlação de tais declarações e depoimentos com a demais prova carreada para os autos, qual seja a prova documental.
Outrossim, e no que atende ao teor das declarações prestadas pelo arguido, ora recorrente, após proceder à respectiva explicitação, aquele Tribunal adianta a sua posição quanto à respectiva relevância para a formação da sua convicção.
Não omite, ainda, a valoração conjunta de todos os meios probatórios, numa critica conjugada, adiantando, ainda, os fundamentos para a respectiva relevância para a formação da sua convicção.
Vale tudo por dizer, pois, que não se apresenta qualquer fundamento de ordem probatória que determine uma decisão diversa daquela que foi perfilhada e que se escorra no segmento probatório achado nos pontos 1. a 9., com as modificações que se ordenaram.
Nesses termos, e pelos fundamentos aduzidos, improcede a lide recursal do recorrente …, no que atende à impugnação ampla da matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 412º do Código do Processo Penal.
Um dos argumentos da presente lide recursal é a afirmação da existência de erro de direito em que lavra a sentença recorrida por desrespeito pelo principio da livre apreciação da prova, que se acha consignado no artigo 127º do Código do Processo Penal.
Alinha o ora recorrente … que o princípio da livre apreciação da prova não significa que o julgador possa valorá-la segundo o seu livre arbítrio, tendo a valoração que tem de assentar num manancial probatório.
Assinala que o juízo crítico e rigoroso sobre a prova produzida na audiência de julgamento não pode traduzir-se numa operação puramente subjetiva, emocional e imotivável, posto que o juízo crítico e rigoroso sobre a prova e a sua ligação a cada facto a provar é o momento fulcral para obtermos uma decisão de qualidade.
Vejamos
Estabelece o artigo 127º do Código do Processo Penal, sob a epigrafe “Livre apreciação da prova”, que:
Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Ressalta, pois, deste normativo legal que, em sede de processo penal, rege o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova e, por outra banda, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal.
Livre exame e valoração estes que, como pugna o Professor Germano Marques da Silva[12] «(…) não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão».
Ou como de outro modo adianta o Professor Figueiredo Dias[13] “não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável ou incontrolável – e portanto arbitraria – da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem na verdade esta discricionariedade (como já dissemos tem toda a discricionariedade jurídica) os seus limites que não podem licitamente ser ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material”, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutivel a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo”.
Razão por que, cumprindo as exigências legais e da Constituição, qualquer decisão judicial, nos termos dos artigos 97º, nº 4 do Código do Processo Penal e 205º, nº 1 da Constituição da Republica Portuguesa, tem que cumprir o dever de fundamentação, dever esse que é ainda uma das garantias estabelecidas no artigo 32º, nº 1 daquele ultimo diploma.
O dever de fundamentação é uma das escoras em que se legitima o poder jurisdicional e como salientam J.J.Gomes Canotilho e Vital Moreira[14] “o dever de fundamentação das decisões dos tribunais obedece a várias razões extraídas do princípio do Estado de Direito, do princípio democrático e da teleologia jurídico-constitucional dos princípios processuais. Sob o ponto de vista da juridicidade estatal (principio do Estado de Direito), o dever de fundamentação explica-se pela necessidade de justificação do exercício do poder estadual, da rejeição do segredo nos actos do Estado, da necessidade de avaliação dos actos estaduais, aqui se incluindo a controlabilidade, a previsibilidade, a fiabilidade e a confiança nos actos do Estado. Sob o ponto de vista do princípio democrático, para além de algumas das razões explicitadas a propósito do princípio da juridicidade, podem acrescentar-se as exigências de abertura e transparência da actividade judicial, de clarificação da responsabilidade jurídica (e politica) pelos resultados da aplicação das leis, a indispensabilidade de aceitação das sentenças judiciais e dos seus fundamentos por parte dos cidadãos. Finalmente, sob o prisma da teleologia dos princípios processuais, a fundamentação das sentenças serve para a clarificação e interpretação do conteúdo decisório, favorece o autocontrolo do juiz responsável pela sentença, dá melhor operacionalidade ao heterocontrolo efectuado por instâncias judiciais superiores e, em último termo, contribui para a própria justiça material praticada pelos tribunais.”
José António Mouraz Lopes[15] explicita-o, de forma contundente, ao afirmar que “A dimensão extraprocessual enquanto finalidade da fundamentação da sentença concretiza uma função de controlo externo das decisões colocando-se por isso mesmo e como se verá, no mesmo patamar da sua dimensão endoprocessual a qual concretiza o seu controlo interno. Essa dimensão corporiza a legitimação da própria decisão. Simultaneamente é a própria legitimação do órgão que a profere que está em causa e que, por via da decisão, é reafirmada.”
É, acrescentamos nós, o principio conformador do procedimento penal que traduz a independência do poder judicial e lhe exige, no seu devir prático, a concretização do Estado de Direito Democrático, face à sua definição constitucional ancorada no artigo 2º da nossa Lei Fundamental.
Volvendo aos autos duvidas nenhumas nos acodem quanto ao rigoroso cumprimento do aludido princípio da livre apreciação da prova.
Pois que, ao invés do alegado na lide recursal, o Tribunal recorrido lavrou uma fundamentação que cumpre as exigências legais.
Não achamos uma motivação pessoal, nem caprichosa ou mesmo eivada de qualquer preconceito.
Não alcançámos a aquisição probatória por intermedio da violação de lei ou derrogação de direitos ou garantias.
Não encontrámos um julgador anémico ou desinteressado do cumprimento das suas funções.
Bem pelo contrário, quer na policia de audiência, quanto na fundamentação da decisão de facto e de direito, o Tribunal mostrou-se conhecedor das normas, de empreender e fazer cumprir o respectivo conteúdo.
Outrossim modelou a aquisição da prova com escrupuloso respeito pelos princípios e regras normas legais, nomeadamente a vertida no artigo 128º do Código do Processo Penal, de molde a destrinchar o nível de conhecimento de cada um dos intervenientes.
Lavrou com clareza e rigor, como já adiantámos, a fundamentação da decisão de facto, em estrito respeito pelo poder-dever de livre apreciação da prova.
Destarte, atentos os argumentos de facto e de direito ditados, terá que improceder a firmada alegação recursal.
Na sua lide recursal, a final, o ora recorrente … alude a que o Tribunal recorrido obliterou, na leitura de toda a prova produzida, o princípio in dubio pro reo, em desrespeito pela norma do artigo 32º, nº 2 da Constituição da Republica Portuguesa.
Conheçamos
Estabelece o artigo 32º da Constituição da Republica Portuguesa, sob a epigrafe “Garantias de Processo Criminal”, que:
1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.
3. O arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória.
4. Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais.
5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
6. A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento.
7. O ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei.
8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
9. Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.
10. Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.
Precisamente uma das garantias do processo criminal estabelecidas na aludida norma é a fixada no nº 2, qual seja que “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (…)”
É Cesare Beccaria, quem na sua obra “Dos Delitos e Das Penas”[16], insurgindo-se contra o vigente processo inquisitório, pugna pela vigência deste princípio ao afirmar que “A um homem não se pode chamar culpado antes da sentença do juiz, nem a sociedade pode negar-lhe a sua protecção pública, senão quando se decidir que violou os pactos com os quais se outorgou. Qual é, pois, o direito, se não o da força que dá potestas ao juiz para impor uma pena a um cidadão enquanto há dúvidas se é réu ou inocente? Não é novo este dilema: ou o crime é certo ou incerto. Se certo, não convém que se lhe aplique outra pena diferente daquelas que se encontram previstas na lei, e é inútil a tortura porque inútil a confissão do réu; se é incerto, não se deve atormentar um inocente, pois ele é, segundo a lei, um homem cujos delitos não estão provados.”[17]
Sendo um principio enformador de todo o ordenamento processual penal, conforme decorre, quer da falada norma do artigo 32º da nossa Constituição, como da tratadista internacional a que o Estado Português se nos vinculou, múltiplas são as dimensões que comporta.
Primacialmente havemos de atermo-nos, para a decisão dos autos, a um duplo significado:
. por um lado, enquanto regra de tratamento a dispensar ao arguido ao longo do processo;
. por outro lado, enquanto regra de juízo.
Se na primeira daquelas acepções aquele principio vem determinar que, qualquer que seja o manancial de indícios existente da prática de um crime, o arguido importa que seja tratado como inocente, até que seja declarada a sua condenação definitiva.
Pois que, nesta dimensão, o principio da presunção de inocência é imanente ao principio da liberdade e dignidade da pessoa humana, pressupostos em que assentam o Estado Português como Estado de Direito Democrático, e que clamam, entre outras que, se no decorrer do processo se verificar a necessidade da aplicação de uma medida de coacção, a mesma não pode usurpar a função de uma sanção ou qualquer antecipação da pena.
Na segunda das firmadas acepções aquele princípio é uma regra de juízo, adequada à estrutura acusatória do processo, como o refere Alexandra Vilela[18], na medida em que o arguido não tem de provar a sua inocência, competindo à acusação carrear a prova que consubstancia a culpa, ao juiz proceder à busca da verdade material e, em caso de dúvida, ser decretada a absolvição do arguido.
Nas palavras de Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira[19] «este princípio (o do in dubio pro reo) considera-se também associado ao princípio nulla poena sine culpa, pois o princípio da culpa é violado se, não estando o juiz convencido sobre a existência dos pressupostos de facto, ele pronuncia uma sentença de condenação. Os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo constituem a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena».
Isso mesmo foi já afirmado pelo mais Alto Tribunal[20] quando decidiu que “a violação do principio do in dubio pro reo, que dizendo respeito à matéria de facto é um principio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, só pode ser sindicado pelo STJ dentro dos seus limites de cognição, devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410º, nº 2 do CPP, e só se verifica quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de duvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dividas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção. Inexistindo dúvida razoável na formação do juízo factual que conduziu á condenação do arguido, fica afastado o princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência, nomeadamente quando tal juízo factual não teve por fundamento uma imposição de inversão de prova, ou ónus de prova a cargo do arguido, mas resultou do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, com impõe o art. 355º, nº 1 do CPP, subordinadas ao princípio do contraditório, conforme art. 32º, nº 1 da CRP (…)
Volvendo ao caso dos autos, e como ressalta do já decidido, o Tribunal recorrido, no que tange à aquisição probatória e respectiva analise, respeito com rigoroso escrúpulo, os princípios da legalidade, da livre apreciação da prova e bem assim do principio da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
Ademais, como já decorre da análise exaustiva da decisão recorrida, é cristalino que a mesma ressuma de uma analise critica e ponderada dos meios probatórios, sempre com respeito pelos princípios da legalidade, do contraditório e da livre apreciação probatória, meios probatórios que fundadamente foram escrutinados para a formação da sua convicção, que ditou qual a factualidade dada como provada e aquela que não resultou provada bem como a medida da pena e da indemnização aplicadas.
Outrossim não ressalta do respectivo teor qualquer assomo de duvida, mais pequena que seja, em qualquer espirito avisado.
Nestes termos, e na ausência de qualquer dúvida, não há lugar à aplicabilidade do princípio do in dubio pro reo, por ausência de fundamento legal.
Face ao exposto, e pelos invocados fundamentos, improcede a versada arguição recursal.
*
DISPOSITIVO
Por todo o exposto, e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes da 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em:
- Ordenar, nos termos do disposto no artigo 431º do Código do Processo Penal ordena-se a alteração da redacção dos pontos 1., 2. e 9. …
- Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido … e, em consequência, mantem-se a decisão recorrida (com a ressalva da alteração ordenada)
Custas a cargo do recorrente que se fixam em 4 UC (quatro unidades de conta), sem prejuízo do gozo de eventual benefício de apoio judiciário.
O presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela sua relatora, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal.
Maria José dos Santos de Matos
Maria de Fátima Calvo
Rosa Pinto
[1] Vejam-se, a propósito, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ de 19/10/1995, publicado no D.R. I-A Série de 28/12/1995 e o do mesmo Tribunal de 03/02/1999, publicado no BMJ, 484, 271.
[2] Recursos em Processo Penal, Simas Santos e Leal-Henriques, Rei dos Livros, 7ª edição, 71 a 82.
[3] Manuel Simas Santos, Intervenção em Sessão subordinada ao tema: «Do processo penal interno ao processo penal internacional: alguns aspectos críticos», integrada no Simpósio de Direito Processual Penal, organizada pela Escola de Direito da Universidade do Minho, Publicado em Que futuro para o direito processual penal? simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português/coordenação Mário Ferreira Monte [et al.], Coimbra Editora, 2009.
[4] Acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra, prolatado no Processo nº 26/16.2GESRT.C1 e publicado em www.dgsi.pt
[5] Acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra prolatado no Processo nº 1/14.1GBMDA.C1 com data de 18/05/2016, publicado em www.dgsi.pt.
[6] Revista Julgar, nº 10, 2010, página 20 e seguintes.
[7] Comentário do Código do Processo Penal à luz da Constituição da Republica e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª edição actualizada, UCP, página 1134 e seguintes.
[8] Sumários de Processo Criminal, 1967 – 1968, edição policopiada, 1968.
[9] Rodrigues Maximiano, “A Constituição e o Processo Penal: competência e estatuto do Ministério Público, dos Juiz de Instrução Criminal e do Juiz Julgador – a decisão sobre o destino dos autos e os artigos 346 e 351 do CPP”, Revista do Ministério Público, ano 2, volumes 5 e 6, 1981.
[10] Curso de Processo Penal volume 2, 5ºEdição, Lisboa, Editorial Verbo, Babel, 2011.
[11] Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, Almedina, página 217 e seguinte.
[12] Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 111.
[13] Direito Processual Penal, Vol. I., 1974, Coimbra, pág. 202.
[14] Constituição da Republica Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, volume II, 4ª edição, 526 e 527.
[15] A fundamentação da Sentença no Sistema Penal Português, Legitimar, Diferenciar, Simplificar, Almedina, página 63.
[16] Fundação Calouste Gulbenkian, 5ª edição, Lisboa
[17] Alexandra Vilela, Considerações acerca da Presunção de Inocência em Direito Processual Penal, Coimbra Editora, Reimpressão, 2005, página 31 e seguintes.
[18] Idem, página 59 e seguintes.
[19] Constituição da Republica Portuguesa Anotada, 4ª edição, Vol. I, 519.
[20] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 12/09/2013, publicado em www.itij.pt.