CRIME DE DENÚNCIA CALUNIOSA
EXERCÍCIO DO DIREITO DE DENÚNCIA
Sumário

I - Para que o tribunal de recurso conheça de determinado assunto, assegurando dessa forma a legitimidade da sua intervenção, a decisão objecto do recurso tem de se ter pronunciado sobre a mesma.
II - Qualquer participação, criminal ou disciplinar, dirigida contra pessoa certa contém, objectivamente e ainda que a nível de suspeita sustentada por argumentos meramente indiciários, uma ofensa à honra e consideração do denunciado, por se traduzir na imputação de factos penal ou disciplinarmente ilícitos.
III - “Autoridade”, para efeitos do crime de denúncia caluniosa, é a entidade competente para conhecer e decidir o respectivo procedimento, seja criminal, contraordenacional ou disciplinar.
IV - Tendo os órgãos da Ordem dos Advogados, nos termos do artigo 114.º, n.º 1, do EOA, competência exclusiva para efeitos de exercício do poder disciplinar sobre um advogado, resulta que eles integram o conceito de “autoridade” referida no n.º 1 do artigo 365.º do Código Penal.
V - No crime de denúncia caluniosa os interesses protegidos pela incriminação são a administração da justiça, a não ser perturbada por impulsos inúteis e infundados, e os acusados a serem protegidos contra imputações falsas e temerárias lesivas da sua honra.
VI - Sendo impensável num Estado de direito impedir quem quer que seja de participar um facto delituoso, com a justificação de que lesará a honra do participado, ocorre uma colisão de direitos entre o direito à honra do denunciado e o direito à denúncia como forma de acesso à justiça, devendo prevalecer o direito considerado superior.
VII - Não existe o direito de denúncia quando o denunciante conhece a falsidade dos factos imputados, o que afasta a causa de exclusão de ilicitude prevista no art.º 31.º, n.ºs 1 e 2 al. b), do Código Penal
VIII - Para o preenchimento do crime de denúncia caluniosa exige-se a comprovação de não ter a pessoa denunciada cometido o facto denunciado, no caso os ilícitos disciplinares, a que acresce o tipo subjectivo do crime, o mesmo é dizer o agente saber que o visado é inocente da infracção que lhe imputa, excluindo-se dele o dolo eventual.

Texto Integral

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Acordam, em Conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I.

RELATÓRIO


1. Por sentença datada de 23 de outubro de 2023, proferida pelo Juízo Local Criminal de Coimbra, Comarca de Coimbra, proferida no processo comum singular n.º 573/17.9T9CTB (C2), foi decidido (transcrição):

     1. Julgo a pronúncia remissiva para a acusação pública parcialmente provada e procedente e, consequentemente, condeno a arguida , pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art. 365º, nº 2, do Código Penal, na pena de 85 (oitenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), o que perfaz a multa de € 595,00 (quinhentos e noventa e cinco euros).

2. Julgo parcialmente provado e procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante … contra a arguida/demandada e, consequentemente, condeno a arguida/demandada a pagar ao demandante a quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais por este sofridos em consequência da conduta da arguida/demandada, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde o trânsito em julgado da presente decisão até efetivo e integral pagamento, absolvendo-a do demais peticionado.

(…)

4. Condeno o demandante e a demandada nas custas cíveis, na proporção dos respetivos decaimentos, fixando à instância civil o valor de € 5.000,00.

Da sentença proferida recorre a arguida – que apreciaremos posteriormente ao conhecimento do



Ø RECURSO INTERLOCUTÓRIO:

            Cabe, em primeiro lugar, conhecer do recurso interlocutório interposto pela arguida .

1. Recurso da arguida (conclusões):

I. Acontece que a, então, requerida junção dos CDs se destinava a demonstrar “a violência e arrogância com que o ora Queixoso tratava a ora arguida”, conforme atrás referido.

Que a Mmª Juiz entendeu “não se mostrar essencial ou fundamental para a defesa da Arguida.

E, foi nesse pressuposto que a questão foi julgada e avaliada em ambas as instâncias.


II.               Mas, como não pode deixar de ser, o que está em causa é a perceção da Arguida quanto à existência desse dito “controlo”, que é um dos pontos fundamentais da acusação.

III.              …

IV.             Ora, para fundamentar a perceção e convicção da Arguida quanto a esse “controlo” julga-se fundamental a junção e apreciação dessa gravação, em que o próprio Queixoso/Assistente declara expressamente esse “controlo”, conforme transcrições do CD.

V.               Acontece que o CD junto à Contestação, cuja junção foi indeferida e confirmada pelo douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/04/2021, não corresponde ao CD que acompanhou a Requerimento de 02/10/2023, como se pode ver inequivocamente das respetivas transcrições, comparadas com as constantes do ar.º 36.º da Contestação.

VI.             Assim, nem os pressupostos da junção são os mesmos, nem o CD é o mesmo cuja junção foi anteriormente indeferida.

VII.            Pelo que não se verifica caso julgado quanto à presente junção do CD e respetivas transcrições.

VIII.           Acresce que o CD cuja junção ora se requer é de manifesta importância para a defesa da Arguida, nomeadamente para prova da sua perceção e convicção do dito “controlo” por parte do Queixoso/Assistente, conforme atrás se demonstrou.

IX.             E, o art.º 32.º, n.º 1 da Constituição garante que: “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.”

X.  Mas, o art.º 187.º, n.º7/CPP admite a utilização de gravações ou comunicações de outro processo, para serem utilizadas por pessoa referida no n.º 4 do mesmo processo, que é o caso da Arguida.

XI.             E, tratando-se de uma garantia constitucional de direitos fundamentais, o referido preceito constitucional é de apreciação direta e prevalece sobre quaisquer leis restritivas e, mesmo, atento o princípio da proporcionalidade, outros preceitos constitucionais, como garante o art.º18.º,n.º2daConstituição: “A lei pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”.

XII.            Acresce que o CD em causa não reveste qualquer “intromissão nas telecomunicações” nem na “vida provada”, porquanto é exatamente um diálogo entre os próprios ora Queixo/Assistente e a ora Arguida.

XIII.           Porém, como se deixou demonstrado, nem os pressupostos da presente junção são os mesmos da Contestação, nem o CD é o mesmo cuja junção foi anteriormente indeferida.

Sendo que, agora, pretende-se provar um facto concreto, para defesa da Arguida, quanto à denúncia de “controlo”, o qual está na base da acusação e da própria condenação.

XIV.          Pelo que o despacho recorrido violou os art.º 126.º, n.º 3/CPP e 187, n.º 7 /CPP, bem como a garantia fundamental da Constituição consignada no citado art.º32, n.º 1 da Constituição.

Nestes termos e nos demais de direito, com o douto suprimento de V.s Exas, Exmºs Senhores Desembargadores, deve o presente recurso ser julgado procedente e o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que admita a junção aos autos do CD e respetivas transcrições, conforme requerido pela Arguida no seu requerimento de 02/10/2023 - refª 46674918.


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2. Resposta do Ministério Público:

Pronuncia-se pela improcedência do recurso, não formulando conclusões.

           

3. Resposta do demandante cível … (conclusões):
a) Do Douto Despacho que indeferiu a pretensão da Arguida, e bem, a Mma. Juiz inculca a óbvia natureza ilícita do referido CD como meio de prova, o que claramente constituiria sempre uma prova nula, e, de igual modo, o trânsito em julgado que já havia recaído nestes mesmos autos, sob a mesma requerida pretensão, feita em sede de Contestação da Arguida, e por decisão proferida por Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/4/2021;
b) Os ficheiros de áudio que a Recorrente pretendia também agora juntar nos presentes autos, alegadamente fazem parte de um CD que já tinha junto ao processo de violência doméstica que apresentou contra o aqui Recorrido, o qual correu seus termos sob o …, e que foi arquivado em sede de inquérito pelo Ministério Público, cujo despacho de arquivamento consta junto aos presentes autos;
c) Já no decorrer dos presentes autos, foi proferido Despacho pela Mma. Juiz do Tribunal a quo, datado de 14/12/2020 (referência 84284434) que, em síntese, indeferiu a junção aos autos do mesmo objeto (cd´s) na Contestação da Arguida, identificados como Docs. N.ºs 6 a 12;
d) A Arguida, aqui Recorrente, interpôs Recurso desse Despacho, o qual foi totalmente improcedente;
e) Tal como já Doutamente referido e fundamentado no Despacho proferido e que foi confirmado por Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra a junção do (s) cd (s) e transcrições juntos pela Arguida, teria e tem de ser obviamente rejeitada, nada tendo de relevante para o objeto dos presentes autos;
f) …
g) …
h) Do ponto de vista legal, a suposta obtenção e também a consequente utilização dos elementos cuja junção se pretenderia sempre se consubstanciariam como crime nos termos do art.º 199.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPP;
i) O que, inequivocamente, faz com que o Tribunal, não possa, de forma nenhuma valorar o pretendido face ao disposto no art.º 199.º, alínea b) do CP e 126.º, n.º 3 do CPP e isto porque a sua utilização e consequente valoração como prova é proibida e nula!
j) E, essa situação, aplica-se tanto ao meio de prova utilizado, o (s) dito (s) cd (s), mas igualmente à reprodução que dele se possa fazer por qualquer forma;
k) E, por ser, assim, o art. 167º CPP faz depender a validade da prova produzida por reproduções mecânicas da sua não ilicitude face ao disposto na lei penal;
l) Face a tudo o exposto, deve manter-se na íntegra o Douto Despacho proferido pelo Tribunal a quo em 2/10/2023 e que respeitou na íntegra a Douta Decisão proferida por esse Tribunal da Relação, já transitada em julgado, datada de 28/4/2021 sobre a mesma questão.
m)
n) ….

4. Parecer do Ministério Público nesta Relação:

         Apôs o visto.


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5. Conhecimento do recurso:

Ø DESPACHO RECORRIDO:

«(…) Outro tanto não se passa com os CDS cuja junção a arguida pretende ora de novo juntar aos autos.

Aqui cumpre referir, que a arguida em sede de contestação juntou CDS com exato teor dos que pretende ora voltar a juntar aos autos, sendo que no despacho que admitiu a contestação foi emitida expressa pronúncia sobre esses cds que ora de novo a arguida pretende juntar aos autos, indeferindo-se a sua junção pelos fundamentos que melhor constam da decisão que foi proferida em 14/12/2020.

Essa decisão foi objeto de recurso pela arguida, sendo que o Tribunal da Relação de Coimbra veio a final negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

Resulta assim que a pretendida junção das gravações constantes desse CD, já foi objeto de apreciação neste tribunal, já foi objeto de recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra, que confirmou essa decisão, o que significa que operou caso julgado formal no âmbito deste processo sobre a questão que ora de novo pretende a arguida trazer à colação.

Assim sendo uma vez que se formou caso julgado formal quanto à questão da não admissão aos autos desses  ficheiros,  que a arguida de novo pretende ora juntar aos autos, o Tribunal,  obviamente com respeito pela decisão proferida pelo Tribunal Superior e com respeito ao caso julgado que se formou no âmbito deste processo sobre a questão então decidida, não poderá admitir aos autos a junção destes ficheiros  que ora de novo a arguida pretende juntar aos autos, sendo certo que desde a prolação dessa decisão pelo Tribunal de 1ª Instância e pelo Tribunal de 2ª Instância, não há qualquer alteração  que seja suscetível de alterar o que então foi  decidido, aqui se referenciando como sublinha o Tribunal da Relação de Coimbra, que para além de não terem  relevância para o presente processo, sempre se trataria de prova proibida.

Assim, e sem necessidade de considerandos adicionais, o tribunal indefere a junção aos autos dessas transcrições constantes dos CDS.»

ü Requerimento da arguida que deu causa ao despacho:

ü A 7.12.2020 a arguida juntou contestação e ofereceu, entre outros, como meio de prova ficheiros de áudio, sobre o qual incidiu o seguinte despacho:

            «No que tange aos CD’s contendo conversações da arguida com o queixoso, entendemos que consubstanciam provas proibidas, por consubstanciarem uma intromissão nas telecomunicações sem o consentimento do titular – art.º 126º n.º 3 do CPP. No caso, o teor destas comunicações não se mostra essencial ou fundamental para a defesa da arguida relativamente ao crime que lhe vem imputado, visando, sim, retratar a forma como o queixoso se dirigia a si e o teor do que lhe dizia, o que nos parece irrelevante para o preenchimento ou afastamento do tipo de crime de denúncia caluniosa que lhe vinha imputado, o que apenas confirma não apenas a irrelevância do meio probatório, como a sua proibição.

                Nessa medida, indeferimos a junção desta prova, admitindo-se apenas a relativa ao processo aludido em 43. da acusação.»

ü Esta decisão foi confirmada na íntegra por esta Relação de Coimbra, por acórdão proferido a 28.4.2021, transitado em julgado.

Desde logo, importa considerar que as gravações cuja junção a arguida requereu e sobre as quais incidiu o despacho recorrido encontram-se incluídas nos ficheiros protestados juntar (e depois juntos) com a contestação, objeto do Acórdão desta Relação referido.

Mais: a parte agora transcrita consta igualmente da contestação da arguida, ipsis verbis.

Assim, não assiste razão à recorrente no que afirma na conclusão V do recurso interposto, sendo apenas distinto o suporte em que esta apresentou de novo as gravações (agora, não num CD, mas dois ficheiros digitais) ([1]).

Ora, conforme se refere no Acórdão proferido nesta Relação de Coimbra a 28.4.2021, “o art. 167º, nº 1, do C.P.P. atribui valor probatório às reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo eletrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas, no caso de as mesmas não serem proibidas nos termos da lei penal.

E nos termos do nº 1, al. a), do art. 199º do Código Penal quem sem consentimento «gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas», comete o crime de gravação ilícita. A proibição destas provas deriva, ainda, da proteção da intimidade da vida privada.

Tratando-se exatamente do mesmíssimo meio de prova, naturalmente que haverá de se considerar ter a sua pretendida junção e valoração sido anteriormente objeto de decisão, transitada em julgado, donde decorre a formação de caso julgado formal quanto a tal matéria.

O facto de o requerente invocar fundamentos distintos para a pretendida junção não é passível de alterar a decisão que, versando sobre o mesmo objeto – o meio de prova em causa -, terá de ser considerada integralmente válida.

Tanto basta para concluir pela improcedência do recurso interlocutório interposto.


***

Ø RECURSO DA SENTENÇA:


 

2. Inconformada com a sentença, dela recorreu a arguida , formulando as seguintes conclusões (que se transcrevem na parte relevante):

I. Deve ser declarada a extinção da responsabilidade criminal da Arguida, pela amnistia, por força do art.º 127, nº 1/CP, conjugado com o citado art.º 4º da Lei n.º 38-A/2023.

II. É certo que existe o princípio da livre apreciação da prova (art.º 127.º/CPP), mas não se trata de um poder discricionário em que pode valer tudo, sobretudo em processo penal, em que vigora os princípios da presunção de inocência do arguido e in dubio pro reo.

II. A prova dos autos deve ser apreciada de acordo com os princípios fundamentais da presunção de inocência e in dubio pro reo.

IV. O princípio da presunção da inocência encontra-se consagrado no art.º 32.º, n.º 2 da Constituição, como uma garantia fundamental.

V. O princípio in dubio pro reo consubstancia um princípio geral do direito processual penal e até do próprio Estado de Direito.

VI. Só deve haver lugar a condenação quando se verificam “indícios fortes” que sustentem a condenação e revelem uma convicção indubitável de que o facto se verifica.


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3. Respostas ao recurso:

Respondeu o Ministério Público, no sentido da improcedência do recurso, bem como o demandante


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4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-geral Adjunto apôs o seu visto.

  


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II. SENTENÇA RECORRIDA

(transcrição das partes relevantes para o conhecimento do recurso)

«(…) Da discussão e instrução, resultaram provados os seguintes factos:

1. …, é advogado de profissão, exercendo, … tal atividade profissional há cerca de 25 anos, sendo profissional reputado.

2. … foi mandatado pela ora arguida para a patrocinar como advogado no processo de divórcio …, tendo-lhe a ora arguida conferido o mandato quando o processo de divórcio já corria os seus termos, que foi iniciado por um outro advogado.

3. Na altura a arguida era cidadã brasileira.

4. Na sequência dos contactos havidos entre … e a arguida … os mesmos iniciaram um relacionamento amoroso, tendo passado a viver maritalmente …

5. Dessa relação nasceu … o filho de ambos, ….

6. …

7. … antes da separação do casal, a arguida tentou viajar …, acompanhada do filho menor do casal …, tendo utilizado uma declaração de autorização para de se ausentar do … na qual constava aposta uma assinatura reconhecida, com os dizeres …

8. Nesse dia …, quando a arguida, munida de tal autorização, juntamente com o seu filho … se apresentaram nos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) para viajar …, o SEF bloqueou a sua saída, porquanto existia nesses serviços um pedido de restrição de saída do território nacional do menor apresentado por …, tendo por tal este, … sido contactado telefonicamente pelo SEF, negando perante esses serviços ter dado autorização para a saída do menor do país e assinado tal declaração.

9. Nesse dia …, na qualidade de advogado em causa própria, apresentou … uma providência tutelar cível contra a ora arguida, …, na qual requereu, com carácter de urgência, ademais, que o menor …a, fosse entregue à guarda e cuidados do pai, …

11. No dia 24 de junho de 2016, foi proferida decisão nessa providência tutelar cível, sem audição da aí requerida e ora arguida, na qual se exarou:

“(…) …

Porque assim, dada a não oposição por parte do MºPº, determino como medidas cautelares, com carácter de muito urgente:

a. que o menor seja entregue à guarda e cuidados do pai, …

b. que a Requerida seja inibida de se ausentar do território nacional com o menor, …

15. Inconformada com toda a situação suprarreferida em 8. a 14., a arguida gizou um plano com intenção de atingir a honra e decoro profissional de …

16. Assim, …, pelo seu próprio punho, a arguida redigiu e remeteu ao Presidente do Conselho de Deontologia … da Ordem dos Advogados a missiva junta a fls. 12 a 17, e que aqui dou por integralmente reproduzida, na qual ademais, exarou:

«Pretendo participar disciplinarmente de …

(…)

… tem em sua posse

todos os meus documentos do meu divórcio que ele me tratou e não me devolveu.

2ª Queixa: … está a usar documentos do meu divórcio para se beneficiar das leis e tentar tirar o meu filho.

Quero os meus documentos do meu divórcio e já pedi … diz não ter nada mas foi ele quem fez o meu divórcio e ficou com todos os meus documentos no escritório dele, local aonde trabalhei sei que eu tenho o direito a ter os meus documentos.

É um crime um advogado se beneficiar dos documentos de uma cliente em causa própria.

(…)

3ª Queixa

(…) acuso … de ABUSO DE PODER

Ele sempre me ameaçou na cidade que ele controlava a PSP O chefe da PSP é amigo …

Passei por violência doméstica muito tempo com este senhor … (…)

4ª Queixa

Violência contra a criança

… cometeu o crime mais nojento e desumano que um ser humano poderia cometer que foi tirar a mãe do filho …

5ª Queixa

… médico no hospital de castelo branco sempre dá atestados médicos para o … faltar em julgamentos

… está a defender este médico … em um processo de violência doméstica.

Troca de favores de pessoas que cometem os mesmos crimes Abuso de tudo.

6ª Queixa

… trabalha no tribunal …. Portanto é um absurdo um tribunal destes estar a tratar de um assunto de …, onde o mesmo conhece todos os funcionários, toma café com o procurador, etc.

(…)

Portanto o tribunal não foi imparcial para comigo nem nunca o será. Ele lá conhece todos.

Compra todos.

7ª Queixa

Meu processo de nacionalidade … perdeu.

Não me devolveu os documentos do meu processo de nacionalidade (…)».

17. …, bem sabia a arguida que os factos denunciados que nela exarou, consistentes em: …, eram falsos.

18. Com efeito, não é verdade que … tem na sua posse todos os documentos da arguida …

19. Não é verdade que …

20. Não é verdade que

21. Não é verdade que …

22. Não é verdade que …

23. Não é verdade que …

24. Não é verdade que …

25. Não é verdade que …

26. Recebida a suprarreferida missiva …, foi instaurado o Processo de Apreciação Liminar …

27. …, foi … notificado do teor de tal carta sendo-lhe concedido o prazo de 20 dias para se pronunciar …

28. …, veio tal Processo Liminar a ser arquivado, com a seguinte fundamentação:

29. Quando dirigiu à Delegação de Deontologia de Coimbra da Ordem dos Advogados a participação disciplinar acima referida, e através dela manifestou a vontade de participar disciplinarmente contra o …, bem sabia a arguida que os factos que denunciou como praticados por este suprarreferidos em 17., eram falsos.

30. Sabia outrossim a arguida que … é advogado, e, por isso, está sujeito à ordem e disciplina impostas pelo Conselho de Deontologia da Ordem dos Advogados, mais sabendo que o incumprimento de normas deontológicas importa para o mesmo a sua sujeição a processo disciplinar. 

31. Apresentando tal participação disciplinar conhecendo a falsidade das denúncias e suspeitas suprarreferidas em 17., que bem sabia aquele não ter cometido, quis a arguida que fosse instaurado contra o advogado … procedimento disciplinar.

32. Só por motivo de todo alheio à vontade da arguida é que … não viu instaurado tal procedimento disciplinar, não obstante sempre ter sido obrigado a passar pela humilhação de se justificar no âmbito de um processo de apreciação liminar, respondendo a imputações falsas que lhe haviam sido feitas pela arguida e assim se defendendo de modo a obstar a que tal processo preliminar pudesse vir a ser convertido em processo disciplinar.

33. Agiu a arguida de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e penalmente punida.

MOTIVAÇÃO

(...)

PARTE CRIMINAL


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III. QUESTÕES A DECIDIR

… ([2]).

            Assim, tendo em consideração as conclusões recursivas, as questões a decidir são as seguintes:

a) Aplicação da Lei da Amnistia;

b) Impugnação da matéria de facto;

c) Subsunção dos factos ao crime de denúncia caluniosa; e

d) Pedido de Indemnização Cível.


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                                    IV.  APRECIAÇÃO DO RECURSO


1.

            O crime por cuja prática a recorrente foi julgada é abstratamente punível com prisão até 1 ano ou multa – art. 361º, n.º 2, do Código Penal, reportando-se os factos a data anterior a 19.6.2023.

            Reclama, por esta razão, a recorrente pela aplicação ao caso da previsão contida no art. 4º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto – amnistia de infrações penais puníveis com pena de prisão não superior a 1 ano ou a 120 dias de multa -, defendendo que a amnistia prevista em tal normativo não se encontra limitada pelo limite de idade a que se refere o art. 2º, n.º 1, da mesma Lei, que apenas se refere às “sanções penais”.

            Importa deixar uma primeira nota: a questão ora suscitada não é objeto da decisão recorrida. Ora, para que o tribunal de recurso conheça de determinado assunto, assegurando dessa forma a legitimidade da sua intervenção, nos termos do art. 399º do Código de Processo Penal, a decisão objeto do recurso tem de se ter pronunciado sobre a mesma. Se a questão colocada não é objeto da decisão recorrida, o tribunal de recurso está impedido de a conhecer ([3]).

            Por último, relativamente à invocada inconstitucionalidade, remete-se integralmente para o teor do acórdão desta Relação de 22.5.2024, rel. Paulo Guerra, bem como a jurisprudência no mesmo sentido que aí é referida ([4]).


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2. Impugnação da matéria de facto

            A reapreciação da prova em recurso não pode e não deve equivaler a um segundo julgamento. O duplo grau de jurisdição não assegura a sujeição da acusação a dois julgamentos em tribunais diferentes, mas apenas garante que o interessado possa obter do tribunal superior uma cirúrgica fiscalização e controlo de eventuais erros da decisão da matéria de facto através do reexame parcial da prova.

            Na verdade, o julgamento da matéria de facto em primeira instância obedece a princípios estabelecidos na lei para potenciar a descoberta da verdade histórica a partir dos meios de prova que a representam. É aqui preponderante o princípio da imediação na produção da prova, que visa assegurar a existência de uma relação de contacto pessoal e direto entre o julgador e a prova cognoscível.

            Na segunda instância, a reapreciação da matéria de facto faz-se, em regra, sem imediação, com a audição das provas registadas cuja análise tenha sido sugerida no recurso, estando dependente do impulso dos sujeitos processuais a renovação da prova – artigos 412º nºs 3 a 6 e 417º nº 7 al. b) do Código de Processo Penal.

            Por isso, e em regra, a avaliação da prova em primeira instância, feita de forma direta, oral e imediata obedece a uma forma de procedimento que coloca o juiz do julgamento em melhores condições para a decisão da matéria de facto do que a avaliação feita com base na audição (sequer visualização) do registo, meramente parcial (porque despido de qualquer manifestação física, expressional, dos comportamentos humanos valorizados), de provas de produção pretérita. 

                Por outro lado, o julgamento da matéria de facto está sujeito ao princípio da livre apreciação da prova estabelecido no artigo 127º do Código de Processo Penal, princípio válido para o julgamento em primeira instância como para a verificação de eventuais erros de julgamento na Relação, de acordo com o exame crítico da prova - que não deixa de estar vinculado a critérios objetivos jurídico-racionais e às regras da lógica, da ciência e da experiência comum.

            Concluindo, só haverá erro de julgamento da matéria de facto, suscetível de ser modificado em sede de recurso, naquelas situações em que o recorrente consiga demonstrar que a convicção do tribunal de primeira instância sobre a veracidade de certo facto é inadmissível (não é sustentada em dados objetivos). Se o juiz da primeira instância assumiu uma das soluções plausíveis, entre as várias que as provas possibilitam, de forma fundamentada, a decisão é inatacável.

            No recurso amplo da matéria de facto o recorrente tem de se socorrer das provas examinadas na audiência da primeira instância, tratando-se aqui de autêntico recurso que tem por objeto a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

             Este deve especificar, sob pena de rejeição:

            - os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;

            - as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; e

            - as provas que devem ser renovadas (artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal).

            E quando as provas tenham sido gravadas, a referida especificação deve efetuar-se por referência ao consignado em ata (quanto ao meio de prova registado, seu início e termo), devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação (artigo 412º, nº4, do Código de Processo Penal).

             

            Embora de forma pouco rigorosa e com algumas deficiências, cumpre o recorrente a invocação mínima destas exigências para que esta relação possa conhecer da impugnação da matéria de facto efetuada.

            …

            Vejamos:

            Soçobrando a pretendida alteração, naturalmente que se mantém o facto contrário não provado.

            Improcede, assim, na totalidade a impugnação da matéria de facto deduzida.


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3. Subsunção dos factos ao crime de denúncia caluniosa

Estabelece a norma incriminadora em causa neste processo (art. 365º, n.º 2, do Código Penal):

1 - Quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

2 - Se a conduta consistir na falsa imputação de contraordenação ou falta disciplinar, o agente é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

Em primeiro lugar, alega a recorrente que a denúncia que efetuou a uma ordem profissional não preenche o requisito “denúncia perante autoridade”, sendo inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, a interpretação extensiva da norma.

Ora, o preceito transcrito refere-se à denúncia da prática de crime, contraordenação ou falta disciplinar sobre determinada pessoa. Assim, autoridade, para efeitos do crime de denúncia caluniosa, é a entidade competente para conhecer e decidir o respetivo procedimento, seja criminal, contraordenacional ou disciplinar.

Como se refere na sentença sob recurso, «A denúncia terá de ser feita ou a suspeita lançada diretamente “perante autoridade”, que são os tribunais e demais instâncias formais a que cabe processar a criminalidade, contraordenações, ou infrações disciplinares, ou “publicamente”, quando é acessível a um círculo indeterminado de pessoas.»

O Estatuto da Ordem dos Advogados estabelece, no art. 114º, n.º 1, que “Os advogados e os advogados estagiários estão sujeitos ao poder disciplinar exclusivo dos órgãos da Ordem dos Advogados, nos termos previstos no presente Estatuto e nos respetivos regulamentos”. Desta forma, para efeitos de exercício do poder disciplinar sobre um advogado detém tal autoridade – o órgão da Ordem dos Advogados - competência exclusiva.

Não vem, pois, efetuada qualquer interpretação extensiva da norma incriminadora, não se mostrando ferido o princípio da proporcionalidade.

Rematando, como bem refere o Ministério Público na resposta apresentada, “É certo que a justiça, enquanto bem jurídico supra-individual ([5]), esgota-se no monopólio estatal, sendo administrada em nome do Povo pelos Tribunais. Posto isto, o regulamento disciplinar da OA assume forma legislativa e, por conseguinte, está legitimada democrática e legalmente. Nessa medida, em nada fica subtraído o poder democrático do Estado enquanto detentor exclusivo do poder legal (vis legis), ao conferir por via legislativa os poderes necessários à Ordem dos Advogados para, de forma livre e independente, fiscalizar e disciplinar a atuação dos seus membros.”

                                                           *

Seguidamente, invoca a recorrente não se encontrar preenchido o elemento imputação de falta disciplinar, uma vez que, conforme consta do facto provado em 28, próprio Conselho de Deontologia de Coimbra da Ordem dos Advogados concluiu não decorrer da participação da arguida a violação concreta de deveres deontológicos, para além da alusão à falta de entrega de documentos por parte do Sr. Advogado participado.

Sucede que esta decisão foi proferida pelo órgão disciplinar após um procedimento de averiguação prévia, em que o ofendido foi ouvido, altura em que concluiu da forma provada, fundamento para o arquivamento do processo a que as queixas da arguida deram causa.

No entanto, tal não significa que as condutas relatadas nas queixas apresentadas não fossem idóneas para constituírem violação dos deveres deontológicos dos advogados – sendo certo que caso o Conselho de Deontologia da OA o entendesse teria arquivado liminarmente o expediente remetido, em lugar de instaurar um processo prévio de averiguação.

Na realidade, conforme consta da sentença recorrida com todo o acerto,

«Por outro lado, vista na sua objetividade tal missiva dirigida pela arguida à Ordem dos Advogados, qualquer que seja o nome que se lhe dê (missiva, queixa, participação, exposição), resulta claramente que na mesma se lança suspeita, se denunciam, se imputam, ao ofendido factos suscetíveis de configurarem infração disciplinar.

Com efeito após informar que … foi seu advogado no seu processo de divórcio, e que perdeu o seu processo de nacionalidade, quando a arguida na mesma exara:

“O … tem em sua posse todos os meus documentos do meu divórcio que ele me tratou e não me devolveu”.

“Quero os meus documentos do meu divórcio e já pedi. … diz não ter nada mas foi ele quem fez o meu divórcio e ficou com todos os meus documentos no escritório dele”.

“Não me devolve os documentos do meu processo de nacionalidade”.

A arguida está claramente a denunciar factos praticados pelo …, suscetíveis de constituírem infração disciplinar, nos termos do disposto nos arts. 101º nº 2, e 115º, nº 1 do EOA.

Quando a arguida em tal missiva exara “Doutor … médico … sempre dá atestados médicos para o … faltar em julgamentos. …

Quando a arguida exara em tal missiva que o advogado … está a usar documentos de uma cliente (dela arguida) em causa própria; … está claramente a lançar a suspeita de factos praticados pelo advogado AA factos, suscetíveis de constituírem infração disciplinar nos termos do disposto nos arts. 88º, nºs 1 e 2, 90º, nº 2, al. a), e 115º, nº 1 do EOA.

Quando a arguida exara em tal missiva que:

Está claramente a lançar a suspeita de factos praticados pelo advogado … factos, suscetíveis de constituírem infração disciplinar nos termos do disposto nos arts. 83º, nº 2, 88º, nºs 1 e 2, 89º, 90º, nº 1 e nº 2, al. a), e 115º, nº 1 do EOA.»

Conclui-se, assim, que a arguida denunciou ao Conselho de Deontologia da Ordem dos Advogados, que detém em exclusivo o poder disciplinar sobre os advogados, factos cuja prática imputa ao advogado demandante suscetíveis de constituírem infração disciplinar, nos termos dos arts. 83º, nº 2, 88º, nºs 1 e 2, 89º, 90º, nº 1 e nº 2, al. a), e 115º, nº 1 do EOA.

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Mais alega a recorrente não se verificar o requisito da falsidade dos factos imputados. No entanto, como se extrai da motivação recursiva nesta parte, o não preenchimento deste elemento do tipo legal de crime dependia da prévia procedência da impugnação da matéria de facto nesta parte, o que a recorrente não logrou obter.

As demais considerações que efetua, com base em documentos/peças processuais juntas aos autos, não podem nesta sede subsuntiva ser considerados, mas apenas em sede de impugnação ampla da matéria de facto: o preenchimento dos elementos, objetivos e subjetivo, do tipo legal de crime só pode assentar nos factos dados como provados na sentença, que neste recurso se mantiveram inalterados.

No que se refere à alegação de os factos imputados pela arguida nas queixas que apresentou não passarem de um “conjunto de imputações/suspeições vagas e genéricas” e de perceções da arguida, convoca-se o que consta da sentença a propósito: «Com efeito, relativamente a estas últimas imputações, visto o contexto global de tal missiva, entende-se que não se trata de meras opiniões, conclusões pessoais, juízos de valor.

A arguida identifica claramente atos processuais e decisões judiciais, …

Tais imputações, assumem no contexto em que são utilizadas o significado de enunciados de factos concretos ou concretamente referenciáveis, e não meras generalizações, opiniões, conclusões pessoais, ou juízos de valor.»

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Passando a tentar contrariar o elemento consciência da falsidade dos factos, discorre a recorrente sobre meios de prova e considerações que não podem ter lugar em sede de subsunção jurídica, uma vez assentes de forma definitiva os factos provados. Repete-se que os factos imputados se não tratam, manifestamente, de meras perceções da arguida, o que teria de resultar do acervo factual provado – resultando antes a consciência da arguida na falsidade das imputações efetuadas.

Deste modo, no que respeita ao elemento subjetivo do tipo legal de crime de denúncia caluniosa, resta vincar que o mesmo consta dos factos provados, não tendo cabimento o alegado pela recorrente a propósito da qualificação jurídica dos factos (provados na sentença).

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Invoca ainda a recorrente que “apresentou a participação disciplinar em causa, no exercício de um direito, o que sempre constitui uma causa de exclusão de ilicitude ao abrigo do art.º 31.º, n.ºs 1 e 2 al. b)/Código Penal”, por ter denunciado factos ilícitos ([6]) – sublinhado nosso.

Esta norma prevê o seguinte:

«1- O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade.

2- Nomeadamente, não é ilícito o facto praticado:

(…) b) No exercício de um direito.»

Vejamos:

  Qualquer participação, criminal ou disciplinar, dirigida contra pessoa certa contém, objetivamente, ainda que a nível de suspeita sustentada por argumentos meramente indiciários, uma ofensa à honra e consideração do denunciado, por se traduzir na imputação de factos penal ou disciplinarmente ilícitos.

Sucede que no crime de denúncia caluniosa os interesses protegidos pela incriminação são a administração da justiça, a não ser perturbada por impulsos inúteis e infundados e dos acusados a serem protegidos contra imputações falsas e temerárias lesivas da sua honra., constituindo um crime doloso.

Assistindo-se a uma colisão de direitos entre o direito à honra do denunciado e o direito à denúncia como forma de acesso à justiça, deve prevalecer o direito considerado superior ([7]). É certo que num Estado de direito é impensável impedir quem quer que seja de participar um facto delituoso, com a justificação de que em consequência da participação ir-se-á lesar a honra do participado ([8]).

Sucede que para o preenchimento do crime de denúncia caluniosa se exige a comprovação de não ter a pessoa denunciada cometido o facto denunciado, no caso os ilícitos disciplinares; ao que acresce o tipo subjetivo do crime, “mormente quando a conduta consistir na falsa imputação de falta disciplinar exige-se o dolo e desde logo a consciência da falsidade da imputação, “o que significa que o sujeito age contrariando o seu melhor saber (wieder bessere Wissen”), o mesmo é dizer que o agente sabe ser o visado inocente da infração que lhe imputa”, o mesmo é dizer, ainda, que só o dolo direto é punível” ([9]) – excluindo-se deste modo o dolo eventual.

Ou seja, não existe o direito de denúncia quando o denunciante conhece a falsidade dos factos imputados: o direito de denúncia, o direito de acesso aos tribunais e o direito à liberdade de expressão e informação não permitem a participação contra outra pessoa de factos que o denunciante sabe serem falsos, por tal conduta colidir contra o interesse que constitui a razão da existência desses direitos ([10]).

No caso, constando da factualidade provada que a arguida sabia serem falsos os factos que denunciou, obviamente que não pode operar a causa de exclusão da ilicitude invocada – improcedendo igualmente nesta parte o recurso.

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Finalmente, reclama a recorrente o seguinte: “De qualquer forma, mesmo que assim não fosse entendido, verificar-se-iam sempre os requisitos da dispensa da pena, por força do art.º 74.º, n.º 1/CP, uma vez que a ilicitude dos factos, dado o seu enquadramento e a culpabilidade da Arguida, a existir, são diminutos e não existem razões de prevenção a considerar, dado que estes ocorreram em 2017, já lá vão mais de 6 anos”.

O crime praticado pela recorrente é punível com prisão até 1 ano ou multa até 120 dias – art. 365º, n.º 2, do Código Penal.

A dispensa de pena, a que se refere o art. 74º, n.º 1, do Código Penal, é apenas aplicável aos crimes puníveis com pena de prisão não superior a 6 meses ou só com multa até 120 dias.

Por esta razão não pode ter lugar a pretendida aplicação do instituto da dispensa de pena.

 


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4. Pedido de indemnização cível

O tribunal recorrido fixou a quantia de 2 500,00€, para reparação dos danos causados ao ofendido, decisão contra a qual se insurge a Recorrente, através do presente recurso.

O montante do pedido cível formulado pelo demandante contra a arguida foi de € 5.000,00, valor este que foi fixado na sentença como valor da instância cível.

Nos termos do artigo 400º nº 2 do Código do Processo Penal só é admissível recurso relativo à indemnização civil, «desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada».

«Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de (euro) 30 000 e a dos tribunais de primeira instância é de (euro) 5 000» (artigo 44.º, nº 1, da Lei 62/2013, de 26 de agosto).

Como o valor do pedido de indemnização cível é igual ao da alçada dos tribunais de 1ª instância (não sendo, pois, superior), a decisão sobre o pedido cível é irrecorrível, em razão do respetivo valor.

Pelo que, nesta parte, rejeita-se o recurso, nos termos do artigo 420.º, n.º 1, al. b), segunda parte e artigo 414º, nº 2, do Código de Processo Penal.


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V. DECISÃO

Pelas razões expostas, decide-se:

a) Julga-se improcedente o recurso interlocutório interposto pela arguida ;

b) Julga-se totalmente improcedente o recurso da sentença interposto pela arguida …

Custas do recurso interlocutório pela arguida, fixando-se em 3 UC’s a taxa de justiça devida.

Custas do recurso interposto da sentença pela arguida, fixando-se em 5 UC’s a taxa de justiça devida

Coimbra, 9 de outubro de 2024

Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso (relatora – processei e revi)

Sara Reis Marques (1ª adjunta)

Cristina Pêgo Branco (2ª adjunta)


[1] Abstemo-nos de qualificar esta censurável conduta processual da recorrente.
[2] - neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336.
[3] Ademais, o art. 2º, n.º 1, da Lei de Graça de 2023 declara expressamente que os limites aí enunciados se aplicam “nos termos definidos nos artigos 3º e 4º”, não se compreendendo a delimitação ao perdão que a recorrente pretende extrair da letra da lei, que é clara e bem expressa.
[4] Em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/7032bc91e7fdacf980258b32004d9a4f?OpenDocument&Highlight=0,amnistia
[5] “Todos los bienes jurídicos colectivos responden a la necesidad de proteger a las personas; incluso si se protegen sin referente individual, los bienes jurídicos colectivos llevan siempre implícita la protección de las personas en cuyo beneficio emergen. Pero los bienes jurídicos colectivos son realidades supraindividuales valiosas en sí, distintas de los intereses individuales, y responden a exigencias sociales y económicas. Como si de un fenómeno holístico se tratare, el bien jurídico colectivo es algo más y distinto a la suma de intereses individuales (…)”, Mercedes Alonso Alamo et al, Un Modelo Integral de Derecho Penal – Libro homenage a la professora Mitentxu Corcoy Bidasolo, Colección de Derecho Penal y Procesal Penal, BOE, Madrid 2022, p. 397.
[6] Não deixando de se anotar que nesta parte a recorrente já qualifica as imputações por si efetuadas de factos ilícitos praticados pelo ofendido, reclamando o direito de os denunciar……
[7] Cf. Ac. da Relação do Porto de 12.3.2014, rel. Artur Oliveira, proc. 12/12.1TAAFE-A.P1, em www.dgsi.pt
[8] Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 21.4.2010, rel. Oliveira Mendes, proc. 1/09.3YGLSB.S2, em www.dgsi.pt
[9] Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 14.1.2021, rel. Francisco Caetano, proc. 30/15.8TRLSB.S1, em www.dgsi.pt
[10] - No mesmo sentido, a título exemplificativo, cf. Ac. da Relação do Poro de 21.1.2015, rel. Fátima Furtado, proc. 7309/10.3TDPRT.P2, em www.dgsi.pt