I - A competência material do tribunal para determinada ação é aferida em função da configuração – causa de pedir e pedido – da ação intentada, e fixa-se no momento em que a ação é proposta, sendo, por regra, irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente.
II - Desde a aprovação pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), atualmente vigente, a competência dos tribunais administrativos é fixada pela natureza jurídico-administrativa da questão em litígio e pela subsunção desta no âmbito da previsão legal do art. 4.º do ETAF.
III - A ré A..., S.A. é uma pessoa coletiva de direito privado, sob a forma de sociedade anónima, de capitais exclusivamente públicos e com natureza intermunicipal, nos termos do artigo 19.º do Regime Jurídico da Atividade Empresarial Local e das Participações Locais, aprovado pela Lei n.º 50/2012, de 31 de agosto, pelo que, não sendo uma pessoa coletiva de direito público, nem estando em causa responsabilidade civil extracontratual de titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, está afastada a subsunção na previsão legal das als. f) e g) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF.
IV - Em ação de indemnização por danos alegadamente sofridos pela autora como passageira de um autocarro da ré A..., causados por travagem brusca efetuada pelo respetivo motorista, em que, apesar da ação ter sido instaurada também contra a ré A..., o pedido é deduzido apenas contra a ré seguradora, para quem foi transferida, por contrato de seguro do ramo automóvel, a responsabilidade civil pelos danos emergentes da circulação do veículo de transportes de passageiros, não se está perante atos praticados “no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo”, pelo que não tem lugar a aplicação do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro (nos termos previstos no art. 1.º, n.º 5, do referido regime), estando, por conseguinte, igualmente afastada a subsunção na previsão legal da al. h) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF.
V - Em consequência, a competência material para o conhecimento da ação pertence aos tribunais da jurisdição comum, em conformidade com o disposto nos arts. 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, 79.º e 80.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário e 64.º do Cód. Proc. Civil.
Tribunal a quo Juízo Local Cível de Matosinhos – Juiz 3
Recorrente(s) AA
Recorrido(a/s) A..., S.A. e Companhia de Seguros B...
Sumário:
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I – Relatório:
Identificação das partes e indicação do objeto do litígio
AA instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra A..., S.A. e Companhia de Seguros B..., pedindo a condenação da 2ª Ré a pagar à autora a quantia de € 30.000,00, acrescida dos juros de mora à taxa legal de citação até integral pagamento e demais encargos legais e ainda das despesas a liquidar em execução de sentença.
Para tanto, alegou que sofreu danos, que descreve, por, quando viajava como passageira num autocarro da A..., ter sido projetada contra os ferros de uma cadeira perto daquela em que ia sentada, em consequência de uma travagem brusca efetuada pelo motorista do autocarro, tendo a 1.ª ré transferido para a 2.ª ré seguradora a responsabilidade civil pelos danos emergentes da circulação do veículo de transportes de passageiros.
Citadas, as rés apresentaram contestação, tendo a 1.ª ré invocado ser parte ilegítima, por, nos termos do disposto no n.º 3 do art. 30.º do Cód. Proc. Civil e da al. a) do n.º 1 do art. 64.º do DL n.º 291/2007, de 21 de agosto, a ação dever ser intentada unicamente contra a ré seguradora, não tendo, de resto, sido deduzido qualquer pedido contra si.
Foi facultado contraditório às partes quanto ao conhecimento oficioso da exceção de incompetência material, tendo-se pronunciado apenas a autora, no sentido da competência material do tribunal a quo.
Após, na fase intermédia da ação, o tribunal a quo julgou-se materialmente incompetente para a ação.
Inconformada, a autora apelou desta decisão, concluindo:
a) Na presente ação peticiona-se a condenação da Ré Companhia de Seguros B..., a pagar à Autora 30.000,00€ e o demais peticionado.
b) Os A... transferiram a responsabilidade civil emergente da circulação dos seus veículos de transporte para a Companhia de Seguros B....
c) A competência do tribunal determina-se pela configuração que a ação tem assente no pedido e na causa de pedir.
d) Assentando a ação e os seus fundamentos na natureza das relações jurídicas em causa.
e) O sinistro em análise foi provocado pela imprudência e desatenção do condutor do veículo onde a autora se fazia transportar.
f) E as regras de condução estão toda elas regulamentadas no Código da estrada, que se impõem a todos os utentes das vias.
g) Não há, pois, nenhum litígio emergente de relações jurídicas administrativas aqui em causa.
h) Há, unicamente, um sinistro, decorrente da circulação de um veículo propriedade dos A... motivado por descuido e desatenção do seu condutor.
i) É, pois, o tribunal cível o competente para o conhecimento da causa.
j) A pretensão formulada nos moldes em que é feita, não cabe na previsão da al. g), do nº 1, do artº 4 do ETAF, por não se tratar de nenhum litígio emergente de relações jurídico-administrativas.
l) Violou a Douta sentença cem crise, o disposto nos artigos artº 42º da CRP bem como o 64º do CPC e o artº 80º da LOSJ.
Não foram apresentadas contra-alegações, tendo sido admitido o recurso por despacho de 03-09-2024.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II – Objeto do recurso:
A questão a apreciar respeita à determinação da jurisdição – tribunais judiciais (tribunais cíveis) ou tribunais administrativos – materialmente competente para a presente ação.
III – Fundamentação:
De facto
Os factos a considerar são os que estão descritos no relatório, nomeadamente, quanto às partes intervenientes e configuração – causa de pedir e pedidos – da ação intentada.
Análise dos factos e aplicação da lei:
São as seguintes as questões de direito parcelares a apreciar:
Análise dos factos e aplicação da lei:
1. Tribunais de jurisdição comum e de jurisdição administrativa
2. Competência material da jurisdição administrativa
3. Relação jurídica objeto da ação
4. Enquadramento da ação no âmbito da jurisdição administrativa
4.1. Pretensão da autora com a ação instaurada
4.2. Natureza da ré A...
4.3. Aplicação do Regime da Responsabilidade Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas
5. Responsabilidade pelas custas
1. Tribunais de jurisdição comum e de jurisdição administrativa
Os tribunais são, como resulta do disposto no art. 202.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do disposto no art. 2.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, os órgão de soberania que assumem a função jurisdicional: incumbe-lhes “administrar a justiça em nome do povo”, “assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.”.
Do disposto nos arts. 209.º, n.º 1, als. a) e b), 211.º e 212.º da CRP e arts. 40.º e 144.º da LOSJ, dentro da organização do sistema judiciário existem, além de outros, os Tribunais Judiciais (Título V da LOSJ) e os Tribunais Administrativos e Fiscais (Título VI da LOSJ).
Os tribunais judiciais são, nos termos do disposto no art 211.º, n.º 1, da CRP, “os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”, resultando do disposto nos arts. 79.º e 80.º da LOSJ que “os tribunais judiciais de primeira instância são, em regra, os tribunais de comarca”, aos quais compete “preparar e julgar os processos relativos a causas não abrangidas pela competência de outros tribunais”. Em consonância, o Cód. Proc. Civil, na Secção I do Capítulo III do Título IV do Livro I, referente à competência em razão da matéria, dispõe no seu art. 64.º quanto à competência dos tribunais judiciais, nos seguintes termos: “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. Por seu turno, do art. 65.º do CPC, quanto aos tribunais e secções de competência especializada, resulta que são as leis de organização judiciária que determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotadas de competência especializada (âmbito da competência material dentro da jurisdição comum, fixada nos arts. 81.º e 111.º a 131.º da LOSJ).
Aos tribunais administrativos e fiscais compete, nos termos do disposto no art. 212.º, n.º 3, da CRP, o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. Tal é repetido no art. 144.º, n.º 1 da LOSJ – “Aos tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.” –, que dispõe, no seu n.º 2, que “A estrutura, a competência, a organização e o funcionamento dos tribunais administrativos e fiscais são definidos em diploma próprio.”
Tal diploma é o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro.
Dispõe o art. 1.º, n.º 1, do referido ETAF, que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.”
Destas disposições resulta que, para a apreciação do presente recurso, haverá que determinar se a ação intentada pela autora constitui um litígio emergente de uma relação jurídica administrativa compreendida no âmbito da competência material da jurisdição administrativa, nos termos previstos no art. 4.º do ETAF, como entendeu o tribunal a quo, para fundamentar o afastamento da (sua) competência residual enquanto tribunal da jurisdição comum, definida nos termos dos já citados arts. 211.º, n.º 1, da CRP, arts. 79.º e 80.º da LOSJ e art. 64.º do Cód. Proc. Civil.
2. Competência material da jurisdição administrativa
Do disposto nos acima citados arts. 212.º, n.° 3 da CRP, 144.º, n.º 1 da LOSJ e 1.º, n.° 1 do ETAF, resulta que a delimitação do poder jurisdicional dos tribunais administrativos é feita com base num critério material assente na natureza da questão em litígio: serão da competência material dos Tribunais Administrativos os litígios emergentes das relações jurídico-administrativas.
Neste sentido, no Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 24-05-2017, proc. n.º 033/16, afirmou-se o seguinte: «(…) a atribuição de competência à jurisdição administrativa depende da existência de uma relação jurídica em que um dos sujeitos, pelo menos, seja ente público – da administração, actuando no exercício de um poder público, com vista à realização de interesse público legalmente definido «A Função administrativa compreende o conjunto de actos destinados à produção de bens e à prestação de serviços tendo em vista a satisfação das necessidades colectivas, função que é desempenhada essencialmente por pessoas colectivas públicas e, marginalmente, por pessoas colectivas privadas integradas na Administração Pública» (Ac. do T. de Conflitos de 2/10/2008, p. 12/08 – Relator Costa Reis) – regulado por normas de direito administrativo. Por isso, cabe aos tribunais administrativos a competência material para conhecer, nomeadamente, de pedidos indemnizatórios formulados pelo autor, com vista ao ressarcimento de danos que alegue ter sofrido em resultado de conduta ilícita de uma pessoa colectiva de direito público, assumida no âmbito de tal relação e, portanto, actuando no exercício de autoridade. «À míngua de definição do conceito de relação jurídica administrativa, deverá esta ser entendida no sentido tradicional de relação jurídica regulada pelo direito administrativo, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração. Uma relação jurídica administrativa deve ser uma relação regulada por normas de direito administrativo que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais, a todos ou a alguns dos intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito de relações de natureza jurídico-privada» (Ac. do T. de Conflitos de 20/09/2012, p.7/12 – Relator Pires Esteves). (…)».
No entanto, desde a aprovação pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais atualmente vigente, há também que ter em atenção a consagração expressa do âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais efetuada no art. 4.º do ETF, como resulta da expressa remissão para tal disposição legal efetuada pelo art. 1.º do referido Estatuto.
Dispõe tal art. 4.º – Âmbito da jurisdição – nos seguintes termos:
1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;
g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;
i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;
j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;
k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;
l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;
o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.
2 - Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.
3 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de:
a) Atos praticados no exercício da função política e legislativa;
b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;
c) Atos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões.
4 - Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
a) A apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso;
b) A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público;
c) A apreciação de atos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e seu Presidente;
d) A fiscalização de atos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça;
e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.
Daqui podemos concluir que a competência dos tribunais administrativos é fixada pela natureza jurídico-administrativa da questão em litígio e pela subsunção desta no âmbito da previsão legal do art. 4.º do ETAF.
3. Relação jurídica objeto da ação
É incontroverso, na doutrina e na jurisprudência, que a competência material do tribunal se afere em função da configuração – causa de pedir e pedido – da ação intentada e se fixa no momento em que a ação é proposta, sendo, por regra, irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente (cfr. art. 38.º da LOSJ).
No caso, atentos os factos alegados pela autora e os pedidos deduzidos, estamos perante uma ação fundada na invocação da existência de responsabilidade civil extracontratual da ré A... pelos danos sofridos pela autora, por a mesma, enquanto passageira de autocarro da ré A..., conduzido por um seu funcionário, em consequência de uma travagem brusca efetuada pelo referido condutor, ter sido projetada contra os ferros da cadeira da frente, estando essa responsabilidade civil pelos danos emergentes da circulação do referido autocarro de transportes de passageiros transferida, por contrato de seguro do Ramo Automóvel nº ..., para a ré seguradora Companhia de Seguros B..., peticionando a autora – unicamente – a condenação da referida ré Companhia de Seguros B... no pagamento da indemnização desses danos por si sofridos.
4. Enquadramento da ação no âmbito da jurisdição administrativa
Na decisão recorrida o tribunal a quo procedeu à subsunção da questão em litígio na al. g) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF, com os seguintes fundamentos:
a) – a autora “pretende prima facie a condenação da R. A... – surgindo a intervenção da 2.ª R. em razão da existência de contrato de seguro válido e eficaz à data do evento e por via do qual a 1.ª R. transferiu a responsabilidade civil emergente da circulação dos seus autocarros, ou seja, por via de um fenómeno de sub-rogação”;
b) – é “indeclinável a natureza da R. A... e as incumbências pela mesma prosseguida – prestação de serviços de interesse geral de exploração de serviços públicos de transporte na área urbana do Grande Porto, nos termos do art.45.º alínea f) do RJAEL (cfr. art.3.º dos Estatutos aprovados pelo Decreto-Lei 202/94, de 23 de julho, rectificados pela Declaração n.º 101/94) – de cariz eminentemente público.”;
c) – pelo que “o evento lesivo surge no contexto do exercício, pela 1.ª R., de incumbências de natureza pública ligadas ao transporte colectivo de cidadãos e para cuja realização são outorgados poderes de autoridade e regulada por normas de direito administrativo, escapando a sua actividade à veste de uma relação jurídica controvertida de natureza privada.”, pelo que a ação intentada “convocará o regime previsto na Lei n.º 67/2007 de 31.12 sobre o regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas”.
Passaremos, pois, a analisar tais fundamentos.
4.1. Pretensão da autora com a ação instaurada
A autora não deduziu qualquer pedido contra a ré A...: o único pedido deduzido na ação na qual foi proferida a decisão recorrida é o pedido de condenação da 2.ª ré, a seguradora Companhia de Seguros B..., a pagar à autora a quantia de € 30.000,00, acrescida dos juros de mora à taxa legal de citação até integral pagamento e demais encargos legais e ainda das despesas a liquidar em execução de sentença.
Não havendo qualquer pedido deduzido contra a ré A..., carece de qualquer suporte a afirmação efetuada na fundamentação da decisão recorrida de que “a autora “pretende prima facie a condenação da R. A...”.
A pretensão deduzida pela autora reconduz-se ao pedido formulado de condenação da ré seguradora Companhia de Seguros B... no pagamento do montante peticionado.
4.2. Natureza da ré A...
Refere-se ainda na fundamentação da decisão recorrida que “é indeclinável a natureza da R. A... e as incumbências pela mesma prosseguida – prestação de serviços de interesse geral de exploração de serviços públicos de transporte na área urbana do Grande Porto, nos termos do art.45.º alínea f) do RJAEL (cfr. art. 3.º dos Estatutos aprovados pelo Decreto-Lei 202/94, de 23 de julho, rectificados pela Declaração n.º 101/94) – de cariz eminentemente público.”
Não esclarece a decisão recorrida, no entanto, qual é a natureza da ré A....
Do disposto nos arts. 1.º, n.º 1, e 4.º, n.º 1, do referido DL n.º 202/94, de 23 de julho (atualmente já revogado – art. 22.º do DL n.º 151/2019, de 11 de outubro ) resultava que a A..., S.A. é uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, emergente da transformação operada pelo DL n.º 202/94, de 23 de julho, do A..., (A...), instituído pelo DL n.º 38144, de 30 de dezembro de 1950, tendo ainda o referido DL n.º 202/94, de 23 de julho, aprovado os respetivos estatutos, anexos àquele diploma.
Atualmente, em decorrência da intermunicipalização da A... S. A., operada pelo Decreto-Lei n.º 151/2019, de 11 de outubro, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2020 (art. 23.º do referido Decreto-Lei), decorre dos Estatutos da A..., E.I.M., S.A. – acessíveis no próprio site da A... [1] – que esta sociedade é uma pessoa coletiva de direito privado, sob a forma de sociedade anónima, de capitais exclusivamente públicos e com natureza intermunicipal, nos termos do artigo 19.º do Regime Jurídico da Atividade Empresarial Local e das Participações Locais, aprovado pela Lei n.º 50/2012, de 31 de agosto («RJAEL») – art. 1.º, n.º 2, dos Estatutos –, regendo-se pelo RJAEL, pelo Decreto-Lei n.º 151/2019, de 11 de outubro, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 175/2019, de 27 de dezembro, pelos estatutos e, subsidiariamente, pelo Regime do Sector Empresarial do Estado, sem prejuízo das normas imperativas neste previstas, e pelo Código das Sociedades Comerciais, na parte aplicável às sociedades comerciais anónimas.
Concluímos, deste modo, que esta ré – que foi demandada pela autora sem que, contudo, contra a mesma tenha sido deduzido qualquer pedido – não tem natureza pública: é antes uma pessoa coletiva de direito privado, de capitais exclusivamente públicos e com natureza municipal, constituindo uma empresa local de gestão de serviços de interesse geral (cfr. arts. 19.º e 45.º do RJAEL), que tem por objeto social principal a prestação de serviços de interesse geral de exploração do serviço público de transporte de passageiros na área urbana do Grande Porto, nos termos do artigo 45.º, alínea f), do RJAEL, conforme resulta do art. 4.º, n.º 1, dos referidos Estatutos.
Não sendo a ré A... uma pessoa coletiva de direito público, nem estando em causa responsabilidade civil extracontratual de titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, está afastada a subsunção da presente ação na previsão legal das als. f) e g) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF.
4.3. Aplicação do Regime da Responsabilidade Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas
Por fim, invoca-se na decisão recorrida que o evento lesivo gerador da responsabilidade civil extracontratual foi praticado no exercício de “incumbências de natureza pública ligadas ao transporte colectivo de cidadãos e para cuja realização são outorgados poderes de autoridade e regulada por normas de direito administrativo, escapando a sua actividade à veste de uma relação jurídica controvertida de natureza privada”, sendo aplicável o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, previsto na Lei n.º 67/2007 de 31 de dezembro.
Estabelece-se na alínea h) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público.
O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas foi aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro (art. 1.º da referida Lei n.º 67/2007), tendo sido revogado o Dec. Lei n.º 48051 de 21/11/1967 (art. 5.º da referida Lei n.º 67/2007) que, até então, regulava a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas públicas no domínio dos atos de gestão pública.
Se anteriormente o critério de determinação do âmbito da aplicação do regime do Dec. Lei n.º 48051 de 21/11/1967 assentava na distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada da Administração Pública, com o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, abandonou-se tal critério, passando o critério justificativo da aplicação do regime a ser a circunstância de a atuação resultar do exercício da função administrativa, como resulta do disposto no n.º 2 do art. 1.º do referido Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas.
Com relevância para o caso aqui em análise, verifica-se que no atual Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas alargou-se o âmbito de aplicação subjetiva do regime da responsabilidade extracontratual das pessoas coletivas de direito público e dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, à responsabilidade civil de pessoas coletivas de direito privado e respetivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por ações ou omissões que adotem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo. Tal é o que resulta do disposto no n.º 5 do art. 1.º do referido regime, ao estabelecer que “As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas coletivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas coletivas de direito privado e respetivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por ações ou omissões que adotem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.”
Como decorre desta norma, a aplicação do regime da responsabilidade do Estado às entidades privadas apenas ocorre quanto a atividade ou atuação relacionadas com o exercício de poderes públicos ou com a aplicação de princípios e normas de direito administrativo.
Ora, no caso dos autos, o facto gerador do dano cuja indemnização a autora através da presente ação pretende obter não foi produzido pela ré no uso de poderes de autoridade ou de função administrativa, não sendo aplicáveis ao caso princípios e normas de direito administrativo. Tais alegados danos e os factos geradores dos mesmos não decorrem de qualquer relação ou função administrativa entre a autora e a ré A...; a causa de pedir não se funda em qualquer ato praticado no exercício de poderes de autoridade pela referida ré, antes assentando na alegação de um ato do condutor do autocarro propriedade da ré, gerador de danos cuja indemnização a autora pretende obter apenas da ré seguradora, para quem a responsabilidade civil extracontratual decorrente da circulação do autocarro da ré A... foi transferida por contrato de seguro do ramo automóvel.
Deste modo, não se integrando a atuação alegada como fundamento da ação intentada pela autora no exercício de prerrogativas de poder público nem sendo a mesma regulada por regras ou princípios de direito administrativo, o caso em análise também não é subsumível na alínea h) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF, pelo que, não caindo no âmbito da jurisdição administrativa, a competência material para o conhecimento da ação pertence aos tribunais da jurisdição comum – cfr. Ac. do Tribunal de Conflitos de 01-03-2023, proc. n.º 03/17; Ac. do STJ de 08-11-2022, proc. n.º 57/21.0T8PST.L1-A.S1.
Procede, pois, o recurso.
5. Responsabilidade pelas custas
Nos termos do disposto no art. 1.º do Regulamento das Custas Processuais (RCP), aprovado pelo DL n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, todos os processos estão sujeitos a custas, considerando-se cada recurso como processo autónomo, desde que possa dar origem a uma tributação própria, como aqui sucede (ver arts. 529.º e 530.º do Cód. Proc. Civil e art. 6.º, n.º 1 e n.º 2, do RCP).
O art. 527.º do Cód. Proc. Civil estabelece a regra geral em matéria de custas, nos seguintes termos:
1 – A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.
2 - Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
3 - No caso de condenação por obrigação solidária, a solidariedade estende-se às custas.
Daqui resulta que o critério de atribuição da responsabilidade por custas se funda, em primeiro lugar, no princípio da causalidade, considerando-se que dá causa às custas a parte vencida: dá causa à ação, incidente ou recurso quem perde. O critério do proveito apenas opera quando não pode operar o critério da sucumbência, por não haver vencedor nem vencido (por exemplo, como sucede nos processos de revisão de sentença estrangeira sem oposição do requerido, ficando as custas do processo a cargo de quem impulsiona o processo, com base no critério do proveito).
No caso do presente recurso, existe um vencedor – o recorrente – mas não se pode afirmar que exista um vencido. Não se pode afirmar que a revogação da decisão recorrida, que conheceu oficiosamente da exceção de incompetência, postergou o interesse das rés (para mais quando, no caso, as rés, no âmbito do contraditório que lhes foi facultado quanto ao conhecimento oficioso da exceção, não se pronunciaram).
Em casos como o presente, em que há um vencedor mas não há uma parte vencida, «(…) esta não pode ser condenada no pagamento de custas porque não se verifica a causalidade (não deu causa à acção ou ao recurso), mas também aquele não o pode ser precisamente por ter havido vencimento (o que afasta o critério do proveito).» – cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-01-2019, proc. 45824/18.8YIPRT-A.L1 [2].
Neste caso em concreto, da procedência do recurso apenas resulta o prosseguimento da ação, não se sabendo quem obterá vencimento da ação. Estando-se aqui perante uma decisão interlocutória que se enquadra na tramitação do processo com vista à decisão final sobre o respetivo mérito, afigura-se-nos que será adequada a aplicação da solução defendida no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-01-2011, proc. n.º 277/08.3TBSRQ-F11-7, no qual se considerou o seguinte:
«(...) todo o processo tem um objectivo primordial, que é o da obtenção de uma regulação jurídica, declarada ou efectiva, de interesses de direito material; e que é o caminho para se lá chegar que tem um custo, em parte representado pelas custas a pagar.
Este núcleo duro de custas tem sempre um responsável final; alguém que se volve em sujeito passivo das custas por se reconhecer que, á luz de tudo, deve ser ele a suportar o encargo; seja por ser vencido; seja pelo proveito obtido; seja, em derradeiro critério, por ser aquele que desencadeou o funcionamento da máquina judiciária. Por isso, e em todo a caso, o artigo 659º nº 3 [...] exige, sob pena de nulidade (artigo 668º, n° 1, alínea f), do CPC), que se defina, com expressividade e clareza, quem são os responsáveis pelas custas e qual a relativa proporção da dívida.
Ora, do nosso ponto de vista, faz sentido que, na falta de uma outra referência juridicamente atendível, seja a esta derradeira distribuição que venha a aderir toda a restante responsabilidade a que, entretanto, não houvera oportunidade, ou possibilidade, de encontrar ajustado devedor. A autonomia tributária, que porventura houvesse, cede na parte da repartição de responsabilidade; e a quem seja onerado pelo custo global e final da acção acrescerá, na mesma proporção, por se entender que a essa principal responsabilidade devem ter adesão aquelas outras conexas ou meramente instrumentais, a dívida de custas gerada pelo acto ou termo a que antes se não conseguiu conhecer responsável.
A dívida interlocutória de custas adere, nesta óptica, à dívida final, referente à contrapartida global do “pacote” de serviço de justiça prestado; nascendo a respectiva obrigação na esfera daquele que, a final, venha a ser reconhecido como o devedor das principais custas da acção. É o que comummente se chama de dívida de custas pela parte que seja vencida a final; que em inúmeras situações é habitual reconhecer; e que, em consonância, faz relegar para a mesma decisão final – em regra, a sentença ou o acórdão que julguem do mérito da causa – o exacto e pontual cumprimento do mencionado artigo 659º, nº 4 do CPC. Sobre casos de condenação no pagamento de custas da parte ou das partes que a final ficarem vencidas, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Março de 2005, proc.º nº 05B531, de 17 de Abril de 2007, proc.º nº 07B956, e da Relação do Porto de 12 de Abril de 2010, proc.º nº 1057/09.4TBVFR-A.P1, todos em www.dgsi.pt. (…)
Alheio ao interesse que era latente ao recurso de apelação, e nele abstendo-se de contra-alegar, ou, de todo o modo, de intervir, não se mostra razoável que seja ele a suportar as custas da apelação. Ao obterem vencimento nesse recurso, também aos apelantes não é reconhecível o nascimento da vinculação no pagamento das custas. Por conseguinte, a solução de equilíbrio é considerar que as custas do recurso de apelação devem acrescer às custas devidas pelo processo principal que está na sua génese, sendo o(s) mesmo(s) o(s) sujeito(s) passivo(s), e na mesma exacta proporção, de umas e de outras. (…)».
Em conformidade, atento o vencimento da apelante e o facto de as apeladas não terem dado causa à decisão recorrida, nem terem ficado vencidas no recurso, as custas do recurso ficam a cargo da parte que ficar vencida a final, na respetiva proporção.
IV – Dispositivo:
Pelo exposto, na procedência da apelação, acorda-se em revogar a decisão recorrida, julgando-se competente, em razão da matéria, para conhecer da presente ação, o Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível de Matosinhos – Juiz 3.
Custas do recurso a cargo da parte que ficar vencida a final, na respetiva proporção.