PRESTAÇÃO DE CONTAS
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
CAUSA PREJUDICIAL
Sumário

I - Pode o juiz, quando o julgar conveniente, suspender a instância quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta, ou quando ocorrer outro motivo justificado, designadamente, como forma de prevenir a formação de casos julgados contraditórios.
II - Entende-se por causa prejudicial aquela que tenha por objecto pretensão que constitui pressuposto da formulada.
III - Em qualquer das hipóteses previstas no artigo 272.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, serão sempre razões de conveniência que fundamentarão a suspensão da instância, cuja decisão não pode ser tomada pelo juiz como exercício de um poder discricionário, mas antes de um poder limitado, não podendo, por isso, ser arbitrária ou injustificadamente utilizado.

Texto Integral

Processo n.º 50/20.0T8VFR-A.P1

Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro

Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira – Juiz 3

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO.

1. No processo de prestação de contas que, por apenso ao processo de inventário, AA propôs contra BB, que nos referidos autos de inventário exerce o cargo de cabeça de casal, foi proferido o seguinte despacho:

“Refªs 15923495 e 15923495 - Suspensão da instância por causa prejudicial

Analisada a certidão judicial extraída da ação nº 458/23.0T8VFR, a correr os seus termos no Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira-J3 junta no processo de inventário, resulta que a ação identificada deu entrada a juízo a 02/02/2023 e os autos de inventário estão na fase praticamente final, sendo que os presentes autos já estão na fase final, pelo que, ao abrigo do disposto no artº 272º, nº 2, do Código de Processo Civil, mostra-se conveniente não suspender o presente processo de prestação de contas, indeferindo a suspensão da presente instância por causa prejudicial, o que se decide.

Notifique”.

Não se conformando o requerido com a referida decisão, dela interpôs recurso de apelação para esta Relação, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. Não obstante o respeito que as decisões judiciais, sempre e em qualquer circunstância merecem, vem o presente recurso interposto do douto despacho, por não se conformar o ora Cabeça de Casal/Recorrente com o mesmo e que decidiu “Analisada a certidão judicial extraída da ação nº 458/23.0T8VFR, a correr os seus termos no Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira-J3 junta no processo de inventário, resulta que a ação identificada deu entrada a juízo a 02/02/2023 e os autos de inventário estão na fase praticamente final, sendo que os presentes autos já estão na fase final, pelo que, ao abrigo do disposto no artº 272º, nº 2, do Código de Processo Civil, mostra-se conveniente não suspender o presente processo de prestação de contas, indeferindo a suspensão da presente instância por causa prejudicial, o que se decide.”

2. A Acção de anulação do testamento é prejudicial da presente Acção especial de prestação de contas

3. Verifica-se a existência desta prejudicialidade, como é definida no douto Acordão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28/02/2023, Processo n.º 31/21.7TNLSB.L1-7: “Ou seja, a decisão de uma causa depende do julgamento de outra, quando nesta acção prejudicial se aprecia uma determinada questão, cujo resultado pode afectar a decisão da acção principal, definindo ou limitando o seu objecto. Por esse motivo, tem sido entendido que a razão de ser da suspensão da instância por pendência de causa prejudicial reside na economia e coerência de julgamentos por forma a evitar a existência de decisões incompatíveis relativamente a matérias conexas (Prof. José Alberto dos Reis ob. cit., pág. 272).”

4. Ora, se está em causa uma acção de anulação de um testamento que coloca em causa a legitimidade da Interessada AA, poderá não ter esta o direito de exigir a prestação de contas. E bem assim, existir uma decisão incompatível com o próprio mérito da causa.

5. Existem razões de economia processual e coerência de julgamentos, para que a suspensão seja deferida.

Nestes Termos

E nos mais de Direito que V. Exa, doutamente suprirá, face à matéria ora alegada, deverá, salvo o sempre devido respeito por melhor e douto entendimento, ser revogado o douto despacho e ser substituído por outro que suspenda a instância, nos termos do n.º1, do artigo 272.º do Código de Processo Civil assim se fazendo a costumada J U S T I Ç A”.

A recorrida apresentou contra-alegações, advogando a inadmissibilidade do recurso interposto.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO.

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar se existe fundamento para a requerida suspensão da instância.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

Os factos relevantes à apreciação do objecto do recurso são os narrados no relatório introdutório.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Questão prévia: admissibilidade do recurso.

Defende a recorrida a inadmissibilidade do recurso argumentando que a decisão proferida a 20.09.2023 transitou em julgado.

Tal raciocínio enferma, todavia, de um manifesto equívoco: o apelante não interpõe recurso da indicada decisão, que julgou procedentes as contas apresentadas por ela própria, mas de posterior decisão que indeferiu a suspensão da instância requerida pelo ora apelante com fundamento em invocada prejudicialidade.

Nada obsta, pois, à interposição do recurso em causa, o qual foi, de resto, admitido.
2. Da requerida suspensão da instância.

Alegando o requerido que “Nos Autos Principais foi requerida a suspensão da instância tendo em conta a questão prejudicial da legitimidade da Interessada AA”, acrescenta que “...verifica-se a existência de causa prejudicial, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 272.º n.º 1 do CPC, pelo que deverá ser declara a suspensão da presente instância, também neste apenso, até que haja decisão no âmbito da sobredita acção”.

Enjeitada a pretendida suspensão da instância é da respectiva decisão que o requerido interpõe o presente recurso.

Dispõe o artigo 269.º do Código de Processo Civil, que identifica as causas que podem conduzir à suspensão da instância:

1 - A instância suspende-se nos casos seguintes:

a) Quando falecer ou se extinguir alguma das partes, sem prejuízo do disposto no artigo 162.º do Código das Sociedades Comerciais;

b) Nos processos em que é obrigatória a constituição de advogado, quando este falecer ou ficar absolutamente impossibilitado de exercer o mandato. Nos outros processos, quando falecer ou se impossibilitar o representante legal do incapaz, salvo se houver mandatário judicial constituído;

c) Quando o tribunal ordenar a suspensão ou houver acordo das partes;

d) Nos outros casos em que a lei o determinar especialmente.

2 - No caso de transformação ou fusão de pessoa coletiva ou sociedade, parte na causa, a instância não se suspende, apenas se efetuando, se for necessário, a substituição dos representantes.

3 - A morte ou extinção de alguma das partes não dá lugar à suspensão, mas à extinção da instância, quando torne impossível ou inútil a continuação da lide”.

A primeira parte da alínea c) do n.º 1 do artigo 269.º relaciona-se com o artigo 272.º do mesmo diploma legal, neste se prevendo as causas que legitimam a suspensão da instância por determinação do juiz:

1 - O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.

2 - Não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens.

3 - Quando a suspensão não tenha por fundamento a pendência de causa prejudicial, fixa-se no despacho o prazo durante o qual estará suspensa a instância.

4 - As partes podem acordar na suspensão da instância por períodos que, na sua totalidade, não excedam três meses, desde que dela não resulte o adiamento da audiência final”.

Concedem estes normativos a possibilidade de ser suspensa a instância numa acção quando já se encontre pendente uma outra acção, existindo entre ambas uma relação de prejudicialidade.

Para efeitos do artigo 272.º, uma causa está dependente do julgamento de outra, anteriormente proposta, quando a decisão desta outra acção (já proposta) possa condicionar e prejudicar o julgamento da nova acção, retirando-lhe o(s) fundamento(s) em que se baseia ou mesmo a sua razão de ser; a ocorrer tal circunstancialismo, deverá suspender-se a instância na causa dependente.

Não se prevê nele a suspensão da instância por razões de competência, mas antes por razões de conveniência. Estando pendente uma causa prejudicial, existem razões de conveniência para determinar que se aguarde que ela seja previamente decidida: “o juiz da causa subordinada pode ser normalmente competente para decidir a causa prejudicial; mas como esta está proposta e o julgamento dela pode destruir a razão de ser da outra causa, considera-se razoável a suspensão da instância subordinada”[1].

Acerca do conceito de “causa prejudicial” esclarece Alberto dos Reis[2]: “uma causa é prejudicial em relação a outra quando a razão da primeira pode destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda”.

Vale dizer: “sempre que numa acção se ataca um acto ou facto jurídico que é pressuposto necessário de outra acção, aquela é prejudicial em relação a esta[3].

Para Manuel de Andrade[4] a “verdadeira prejudicialidade e dependência só existirá quando na primeira causa se discuta, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da segunda e que não pode resolver-se nesta em via incidental”.

Mas admite o mesmo processualista que nada obsta a que se alargue a noção de prejudicialidade de maneira a abranger outros casos, de tal modo que “pode considerar-se como prejudicial, em relação a outro em que se discute a título incidental uma dada questão, o processo em que a mesma questão é discutida a título principal”.

Alberto dos Reis[5], na mesma linha de pensamento, sustentava que “há efectivamente casos em que a questão pendente na causa prejudicial não pode discutir-se na causa subordinada; há outros em que pode discutir-se nesta mas somente a título incidental (…). Na primeira hipótese o nexo de prejudicialidade é mais forte, na segunda mais frouxo; na primeira há uma dependência necessária na segunda uma dependência meramente facultativa ou de pura conveniência”.

Mais recentemente, Teixeira de Sousa[6] veio defender que “a prejudicialidade refere-se a hipóteses de objectos processuais que são antecedente da apreciação de um outro objecto que os inclui como premissas de uma decisão mais extensa (…). Por isso, a prejudicialidade tem sempre por base uma situação de conjunção por inclusão entre vários objectos processuais simultaneamente pendentes em causas diversas (…). Estando-se perante eventualidades de prejudicialidade quando a dependência entre objectos processuais é acidental e parcialmente consumptiva, pode definir-se aquela como a situação proveniente da impossibilidade de apreciar um objecto processual, o objecto processual dependente, sem interferir na análise de um outro, o objecto processual prejudicial”.

Em síntese: “entende-se por causa prejudicial aquela que tenha por objecto pretensão que constitui pressuposto da formulada[7].

Dir-se-á, assim, que, para efeitos de suspensão da instância, existe uma relação de prejudicialidade quando "a decisão de uma causa depende do julgamento de outra quando na causa prejudicial esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem de ser considerada para a decisão do outro pleito"[8].

O mesmo é dizer: “para efeitos do disposto no art. 279º, nº 1 do C.P.C., uma causa está dependente do julgamento de outra já proposta, quando a decisão desta pode afectar e prejudicar o julgamento da primeira, retirando-lhe o fundamento ou a sua razão de ser, o que acontece, designadamente, quando, na causa prejudicial, esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem que ser considerada para a decisão do outro pleito. Entende-se, assim, por causa prejudicial aquela onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia[9], sempre tendo em mente que “a razão de ser, subjacente ao aludido instituto, encontra-se no princípio da coerência de julgamentos e da economia, ou seja, pretende-se evitar que com o decurso de duas acções, em que uma das questões suscitadas pode determinar o não conhecimento da submetida a apreciação na outra, o tribunal esteja a despender esforços processuais e a onerar as partes bem como a poder eventualmente proferir decisões de sentido antagónico”[10].

Como se retira do sumário do acórdão da Relação do Porto de 7.01.2010[11]:

“I – Para efeitos do disposto no art. 279º, nº1 do CPC, uma causa está dependente do julgamento de outra já proposta, quando a decisão desta pode afectar e prejudicar o julgamento da primeira, retirando-lhe o fundamento ou a sua razão de ser, o que acontece, designadamente, quando, na causa prejudicial, esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem que ser considerada para a decisão do outro pleito.

II – Entende-se, assim, por causa prejudicial aquela onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia.

III – Existindo entre duas acções esse nexo de prejudicialidade, deverá ser suspensa a instância na causa dependente, até à decisão da causa prejudicial”.

Para além de poder determinar a suspensão da instância “quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta”, também o juiz a pode decretar “quando ocorrer outro motivo justificado” – artigo 272.º, n.º 1 do Código de Processo Civil -, designadamente, como forma de prevenir a formação de casos julgados contraditórios.

Em qualquer das hipóteses previstas no referido normativo, serão sempre razões de conveniência que fundamentarão a suspensão da instância, cuja decisão não pode ser tomada pelo juiz como exercício de um poder discricionário, mas antes de um poder limitado, não podendo, por isso, ser arbitrária ou injustificadamente utilizado.

Como resulta do artigo 276.º do Código de Processo Civil, a suspensão cessa “quando estiver definitivamente julgada a causa prejudicial ou quando tiver decorrido o prazo fixado” e “se a decisão da causa prejudicial fizer desaparecer o fundamento ou a razão de ser da causa que estiver suspensa, é esta julgada improcedente”.

Revertendo ao caso aqui objecto de discussão: a acção que corre termos no Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira com o nº 458/23.0T8VFR, e na qual o ora recorrente pretende a anulação do testamento instituído a favor da aqui recorrida, foi proposta em 2.02.2023, ou seja, em data posterior quer à instauração do processo de inventário, quer igualmente ao início do processo de prestação de contas.

Para além de não se configurarem em concreto os pressupostos da prejudicialidade convocada pelo recorrente para justificar a pretendida suspensão da instância, também não se detectam quaisquer razões de conveniência que aconselhem tal suspensão.

Quer os autos de inventário, quer o processo de prestação de contas encontram-se em fase final; neste último, foram, de resto, prestadas as contas pela requerente, havendo sido proferida decisão final sobre as mesmas, tendo o requerido, aqui apelante, apenas formulado pedido de suspensão da instância no referido processo após insistentes notificações para pagar à requerente a quota parte que lhe cabe no saldo credor das contas prestadas, sob pena de penhora de bens de que seja titular.

Não merece, pois, qualquer censura a decisão impugnada, que, por isso, se mantém, improcedendo, consequentemente, o recurso.


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Síntese conclusiva:

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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, na improcedência da apelação, em confirmar a decisão recorrida.

Custas da apelação: pelo apelante, levando-se em conta o benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.


Porto, 10.10.2024
Acórdão processado informaticamente e revisto pela primeira signatária.
Judite Pires
António Paulo Vasconcelos
Isoleta de Almeida Costa
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[1] Alberto dos Reis, “Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. III, pág. 268.
[2] Ibidem.
[3] Alberto dos Reis, “ob. cit.”, pág. 206.
[4] “Lições de Processo Civil”, págs. 491 e 492.
[5] Ibidem.
[6] Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXIV, nº 4, Outubro - Dezembro de 1977, p. 306.
[7] José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, "Código de Processo Civil Anotado", vol. 1º, Coimbra, 1999, pág. 501.
[8] Acs. STJ de 25/06/87, no Proc. 74893 da 2ª secção (relator Almeida Ribeiro); e de 29/09/93, no Proc. 84216 da 2ª secção (relator Faria de Sousa), citados no Acórdão do STJ, 06.07.2005, processo nº 05B1522, www.dgsi.pt.
[9] Acórdão da Relação do Porto, 07.01.2010, processo nº 940/08.9TVPRT.P1, www.dgsi.pt.; cf. ainda Acórdão da mesma Relação, de 17.03.98, Acórdãos da Relação de Lisboa, 18.03.2010, 05.05.2009 e 22.01.2008, www.dgsi.pt.
[10] Acórdão da Relação do Porto, 07.01.2010, processo nº 0326268, www.dgsi.pt.
[11] Processo n.º 940/08.9TVPRT.P1, www.dgsi.pt.