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PER
RECUSA
HOMOLOGAÇÃO
VIABILIDADE ECONÓMICA
Sumário
I – Através do PER pretende-se facilitar e promover a recuperação efetiva de empresas economicamente viáveis e que sejam suscetíveis de recuperação financeira. II – Verificada a aprovação do Plano de Recuperação submetido à votação dos credores, cumpre conhecer dos eventuais pedidos de recusa de homologação do Plano e, em qualquer caso, aferir oficiosamente da legalidade do procedimento por referência às normas imperativas que o regulam, e da legalidade do Plano por referência às medidas por ele previstas e às informações que o mesmo deve conter nos termos do art. 17º-F, nº 1 do CIRE. III - A par com a dita apreciação judicial da legalidade do procedimento e do Plano, a al. g) do nº 7 do art. 17º-F aditada pela Lei nº9/2022 de 11.01 introduziu uma apreciação de cariz técnico e económico para controlo judicial do mérito do Plano, impondo ao juiz a aferição da sua adequação para evitar a insolvência da empresa e garantir a sua viabilidade. IV – Esta sindicância é feita por recurso a critério de razoabilidade e por referência às concretas condições em que a devedora se apresenta e ao cenário produtivo (e/ou outro) que projeta ao longo da execução do plano em ordem à demonstração da sua capacidade para obter os recursos líquidos necessários à satisfação do passivo já constituído nos termos propostos pelo Plano aprovado pelos credores, e da capacidade de gerar as receitas necessárias à simultânea satisfação dos custos gerados pelo exercício da(s) atividade(s) económica(s) que se propõe prosseguir. V – Considerando que, por natureza, o Plano é integrado por previsões/prognósticos de desempenho que só o devir do tempo pode ou não confirmar, o ónus da demonstração da viabilidade do plano, que recai sobre o devedor, não se reconduz a uma prova no sentido estrito do termo, mas a uma justificação assente em dados objetivos, ainda que previsionais, da qual a viabilidade da empresa resulte como uma possibilidade razoável aferida por padrões de cariz económico e financeiro. VI – Os dados objetivos em que assentam as previsões do Plano devem respeitar critérios de racionalidade económica, que o julgador deverá assumir pela positiva, exceto se as premissas do plano de negócios se apresentarem como manifestamente irreais e/ou inexequíveis à luz do senso e regras de experiência comum. VII - Ultrapassada a apreciação, na fase liminar da admissão do procedimento, da repercussão da falta de documentos previstos no art. 24º, nº 1 do CIRE, as informações mínimas previstas no art. 17º-F, nº 1, al. b) que o Plano deve fornecer não se impõe sejam cumpridas, nem tão pouco se bastam, com a junção de documentos contabilísticos, mas sim o com a descrição, no âmbito do Plano, “da situação patrimonial financeira e reditícia da empresa no momento da apresentação da proposta do plano de recuperação”. VIII - Os bens e respetivo valor que no cumprimento do art. 17º-F, nº 1, al. b) são identificados no plano não têm que coincidir, e poucas vezes coincidem, com os valores e bens inscritos e contabilizados no ativo da sociedade posto que, para além de este conceito abranger ativos não físicos, intangíveis e não monetários, o seu âmbito não tem como critério o direito de propriedade sobre os bens, antes abrange todos os recursos controlados pela entidade como resultado de acontecimentos passados e do qual se espera que para esta fluam benefícios económicos futuros, o que abrange bens alheios detidos pela empresa, bem como investimentos incorporados em bens alheios que, cessada a fruição pela empresa, revertem para o proprietário e que, por isso, não são abrangidos pelo princípio da responsabilização patrimonial previsto pelo art. 601º do Código Civil. IX – A informação previsional prevista pela al. h) do art. 17º-F, nº1 e a identificação dos respetivos pressupostos integra o conteúdo mínimo exigido pelo art. 17º-F, nº 1 indispensável para avaliar a saúde financeira da devedora ao longo do período da execução do Plano e, assim, em estreita relação com o dever de aferição judicial da perspetiva razoável de o Plano evitar a insolvência e permitir a viabilidade da empresa; designadamente, o balanço pró-forma ou previsional, que demonstra a posição financeira da empresa no final de determinado período de tempo (exercício económico) e fornece informação detalhada sobre os seus ativos (o valor investido na empresa), passivos (obrigações da empresa perante terceiros) e capital próprio (a situação ou o património liquido da empresa, correspondente à diferença entre os seus ativo e passivo). X – Para auxiliar o juiz na formulação daquele juízo técnico económico sobre o Plano, a lei impôs ao administrador judicial provisório a apresentação de Parecer a esse respeito, mas só cumprirá aquele papel de auxiliar da justiça e a finalidade processual para que foi pensado se a conclusão expressada no Parecer assentar, não em genéricos e lacónicos chavões, mas em factos ou dados concretos convocados para a justificar através de um enquadramento técnico e económico que, na medida do possível e no essencial, ‘troque por miúdos’ e em linguagem acessível a juristas as bases e o alcance das previsões apresentadas pela devedora. XI - O cash-flow operacional ou de exploração permite aferir se a atividade produtiva está ou não a gerar fluxos positivos; o cash-flow ou fluxo de tesouraria corresponde ao fluxo do dinheiro, o que entra (inflows) e sai (outflws) de uma empresa num período de tempo específico, e constitui um indicador de extrema importância na gestão da dinâmica da empresa porque fornece uma visão realista e atual da empresa e permite rapidamente avaliar se dispõe ou não de liquidez para cumprir pontualmente os compromissos nas datas dos seus vencimentos, e, por isso, o principal critério de aferição e caracterização da situação de insolvência, conforme previsto no art. 3º, nº 1. XII – A inclusão, nos mapas previsionais, de receita proveniente de venda de ativos refletida nos valores previsionais dos fluxos de tesouraria não assenta em dados objetivos ou objetiváveis que a justifiquem se o valor daquela receita for superior ao valor dos bens e/ou direitos do património da devedora identificado no Plano e neste não constar qualquer informação/justificação sobre aquela venda, pelo que a receita dela proveniente não pode considerar-se como previsão atendível ou fiável. XIII - Na ausência de previsão justificada de outras receitas ou de inputs para reforço de tesouraria, a diferença negativa entre os valores previsionais do EBITDA e os valores de amortização do passivo objeto do PER revela de forma inexorável a inaptidão do Plano para evitar a situação de tesouraria deficitária característica da situação de insolvência, na qual a devedora incorreria no período da execução do plano. XIV – Conclusão que é reforçada se do alegado pela devedora resultar que na pendência do PER não gerou receitas suficientes para fazer face a todos os encargos operacionais já no exercício efetivo da atividade que no Plano se propõe desenvolver, circunstância que, além do mais, revela que os resultados e desempenhos económicos positivos revelados nas demonstrações de resultados previsionais não correspondem à realidade dos fluxos financeiros gerados pela atividade que mantém e com cujos rendimentos projeta cumprir o serviço de dívida. XV – A constatação da verificação da situação de insolvência atual da devedora não deverá constituir fundamento determinante da não homologação do Plano, mas apenas enquanto aquela situação revelar a inaptidão do Plano para garantir a viabilidade económica da devedora nos termos e com fundamento legal na al. g) do nº 7 do art. 17º-F, como é o caso.
Texto Integral
Acordam os juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I - Relatório
1. C…, S.A., com sede na Avenida …, Lisboa e capital social de €50.000,00, requereu Procedimento Especial de Revitalização (PER) em 21.07.2023.
Alegou, em síntese, que conta atualmente com 4 estabelecimentos em Lisboa (um instalado no local da sede e os demais nas Estações Metropolitanas do Chiado do Saldanha e de São Sebastião), emprega 17 trabalhadores, é sócia única de seis sociedades e assumiu todos os compromissos destas empresas perante terceiros; em 2018 beneficiou da homologação de Plano de Recuperação que, com exceção do plano de pagamento previsto para o crédito da Autoridade Tributária (AT), não está a cumprir pontualmente por se encontrar com problemas financeiros gerados pela contração da atividade do Jogo Social no âmbito da pandemia, pela subida da inflação, pela proibição de venda pelos CTT e perda do negócio de revenda no Pingo Doce para a concorrência; não dispõe de liquidez imediata para cumprir as suas dívidas e para cumprir o anterior plano de revitalização, e não conseguiu obter entradas de capital para evitar o recurso a um novo Plano; aos seus 5 maiores credores tem dívidas nos montantes de €9.621.410,40 a Radar da Sorte – Lotarias e Jogos, Ldª, €2.721.831,92 à Autoridade Tributária (objeto de plano prestacional acordado no âmbito anterior PER e em cumprimento), €547.297,33 à Segurança Social (SS) do qual cerca de €517.000,00 correspondem a dívidas de 3 das suas participadas por si assumidas, €152.136,75 aos CTT…, SA, e €99.615,07 a … Sociedade de Advogados, que é objeto de discussão judicial; a credora Radar da Sorte assumiu o papel de credor das dívidas bancárias e manifestou vontade de encetar negociações nos termos e para os efeitos do art. 17º-C, nº 1 do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE)[1]; a partir de 2023 vai contrair ‘muitíssimo’ a sua atividade ao nível de estabelecimentos e de colaboradores, dos quais vai despedir 10, com redução de custos de exploração; a sua recuperação e viabilização é possível através de um plano de reestruturação que atenue o peso da dívida e permita flexibilizar a gestão dos recursos no desenvolvimento da sua atividade, e com o qual os seus credores ficarão numa posição mais favorável em comparação com um cenário de declaração de insolvência.
Indicou administrador judicial provisório (AJP) e juntou documentos, incluindo certidão permanente, certidão da sentença homologatória do PER de 2017, declarações a que alude o art. 17º-A, nº 2 e 17º-C, nº 1[2], relação de credores e relação de ações e execuções, documento a que alude o art. 24º, nº 1, al. c) (ex vi art. 17º-C, nº 3, al. b), relação de bens e direitos de que é titular, contas anuais relativas aos exercícios de 2020, IES dos anos de 2020 e 2021, mapa de pessoal, proposta de Plano de Recuperação, e ata da deliberação da assembleia geral para apresentação da sociedade a PER.
2. Proferido despacho de nomeação do AJP (08.08.2023), em 18.09.2023 juntou Lista Provisória de Credores, publicada em 19.09.2023, e objeto de impugnação pela devedora decidida por despacho de 20.12.2023.
3. Por requerimento de 22.11.2023 o AJP e a devedora subscreveram pedido de prorrogação do prazo para negociações prevista pelo art. 17º-D, nº 5.
4. Em 26.12.23 a devedora depositou nos autos o Plano de Revitalização nos termos e para os efeitos do art. 17º-F, nº 1, realçando que o mesmo difere do plano apresentado aos credores em sede de negociações.
5. Na sequência da junção da 1ª versão do Plano, foram apresentados os seguintes pedidos de recusa de homologação:
5.1. Em 28.12.2023, pela credora LIQUI.DO, SA - alegou nos autos que os créditos que reclamou (no total de €13.611,88) têm origem no incumprimento de dois contratos de locação com termo em 30.06 e 30.10.2023, que a devedora não procede ao pagamento dos alugueres desde abril de 2023 mas os contratos não foram resolvidos por incumprimento atendendo à instauração do PER, que através da proposta de redução dos créditos comuns em 50% e do seu pagamento em 150 prestações mensais a devedora pretende alterar o contrato de locação e ficar na posse dos bens objeto do contrato sem que para tanto tenha que pagar os alugueres a que se obrigou no prazo temporal ajustado; que os créditos emergentes de obrigações de contratos bilaterais não podem ser alterados através de um plano de recuperação sem o acordo da contraparte; que só votará favoravelmente o plano se este previr o pagamento dos alugueres vencidos à data da homologação do plano e o cumprimento integral dos contratos no prazo temporal por eles previsto e que se assim não for requer a não homologação do Plano.
5.2. em 09.01.2024, pelo MP, em representação da Autoridade Tributária (AT) - alegou que: na pendência do PER a devedora continua a constituir dívida nova, cujo total passou de €2.581.719,02 para €2.645.081,08, mas que será superior porque não submete as DMR e não procede à entrega de declarações de IVA, IRC e IES, sendo a ultima de 2021, e o IMI dos anos de 2022 e 2023 está em dívida; em fevereiro de 2023 alienou grande parte do seu património imobiliário à Radar da Sorte; no PER de 2017 a AT reclamou crédito de €160.960,12 e das 150 prestações previstas no Plano ali aprovado apenas foram pagas 50; desde 2017 que a devedora não entrega IRS retido, regista capitais próprios negativos e não regista qualquer fatura desde junho de 2023; a proposta de plano depositada não vem acompanhada de declaração de contabilista (CC) ou revisor oficial de contas (ROC) subscrita há não mais de 30 dias a atestar que não se encontra em situação de insolvência atual; no Plano: o crédito da AT consta com taxa de juro 0% quando deveria prever o pagamento dos vencidos e vincendos à taxa legal fixada para os juros de mora das dívidas ao Estado, é omisso quanto às garantias nos termos do art. 199º, nº 13 do CPPT, e deveria prever o vencimento da 1ª prestação no máximo até ao final do mês seguinte à data da sentença homologatória do plano. Caso não se entenda pela não homologação do plano, deverá ser declarado ineficaz em relação à AT.
5.3. em 09.01.24, por … e … – alegaram que o Plano não prevê a venda de elementos do ativo que, conforme consta da informação contabilística referente a 2022, ronda o valor de €5.600.000,00, incompatível com os valores dos ativos que ali constam na descrição da situação patrimonial da empresa; atualmente a devedora não terá atividade e a proposta de pagamento assenta numa projetada mas não demonstrada obtenção de rendimentos de estabelecimentos que não existem atualmente e que se desconhece se terá condições para os vir a explorar porque do plano também resulta que terá que recorrer a financiamento para os equipar. Conclui que a devedora está insolvente e não apenas em situação económica difícil ou insolvência meramente eminente.
6. Em 15.01.2024 a devedora depositou nos autos nova versão do Plano, realçando que o mesmo difere do depositado em 26.12.23 relativamente ao crédito da AT e do ISS, na pág. 20, “e consequente alteração do ponto 7 relativo aos efeitos da execução do plano de recuperação.”
7. Vieram requerer a não homologação do plano:
7.1. em 18.01.2024, a credora Quantinfor – Consultoria Informática, Ldª – alegou que o Plano não é viável e credível por não evidenciar capacidade de gerar os meios financeiros necessários para implementação do plano, e que a única medida de reestruturação do passivo apresentada pela devedora – perdão de dívida e prazo de pagamento do remanescente - configura um perdão quase total da dívida.
7.2. em 24.01, a credora … – reiterou os fundamentos que alegou em 09.01, e aderiu aos fundamentos invocados pelo MP.
7.3. em 25.01, a credora … – reiterou os fundamentos que alegou em 09.01, concluindo como ali que a devedora está em situação de insolvência, que obsta à homologação do plano.
7.4. em 25.01, o MP – reiterou que: na pendência do PER a devedora continua a constituir dívida nova, cujo total passou de €2.581.719,02 para €2.645.081,08, mas que será superior porque não submete as DMR e não procede à entrega de declarações de IVA, IRC e IES, sendo a ultima de 2021, e o IMI dos anos de 2022 e 2023 está em dívida; em fevereiro de 2023 alienou grande parte do seu património imobiliário à Radar da Sorte; no PER de 2017 a AT reclamou crédito de €160.960,12 e das 150 prestações previstas no Plano ali aprovado apenas foram pagas 50; a devedora não entrega IRS retido desde 2017, e regista capitais próprios negativos. Caso não se entenda pela não homologação do plano, deverá ser declarado ineficaz em relação à AT.
8. Em 02.02.2024 o AJP juntou resultado da votação[3] e o parecer a que alude o art. 17º-F, nº 6 do CIRE, que elaborou no sentido de o plano apresentar perspetivas razoáveis de garantir a viabilidade da devedora, exclusivamente suportado no pressuposto, ali assumido, de que a “redução do passivo (…) vai-se traduzir numa significativa melhoria da situação líquida da empresa, circunstância que lhe permitirá, salvo melhor apreciação, garantir a continuidade das suas operações, e alcançar o seu objetivo, ou seja, manter a sua atividade e com os meios libertos liquidar a dívida existente”, que “o plano prevê a ‘adequação’ do montante das dívidas à capacidade financeira da empresa.”
9. Foi ordenada a junção de certidão permanente da credora Radar da Sorte, SA e da sócia maioritária desta e, por despacho de 13.03.2024 e por referência a fundamentos dos pedidos de recusa de homologação, foi ordenada a notificação da devedora para juntar a declaração a que alude o art. 17º-A, nº 2 do CIRE, a IES do ano de 2022 e as contas do exercício de 2023 ou a respetiva IES caso já tenha sido entregue, e explicitar se atualmente exerce atividade e qual.
10. Em resposta a devedora alegou que a declaração do art. 17º-A,nº 2 foi junta com a petição inicial, juntou balancete de fecho do exercício de 2022 e alegou que brevemente será objeto de certificação legal de contas e auditoria pelo fiscal único, anexou documento subscrito pelo Contabilista Certificado pelo qual este declarou que os trabalhos relativos ao exercício de 2022 estarão concluídos em 06.06.2024, que os trabalhos necessários para encerramento do exercício de 2023 estarão concluídos em 31.07.2024, que em 28.04.2023 renunciou à função de CC da devedora e só em 29.03.2024 retomou estas atribuições e aqueles trabalhos foram prosseguidos.
A devedora mais alegou que relativamente ao exercício de 2023 ainda está dentro do prazo legal de cumprimento das obrigações fiscais e que a empresa esteve sem atividade comercial de março a dezembro de 2023, que desde janeiro de 2024 recomeçou a atividade de mediador dos jogos da Santa Casa da Misericórdia em loja na Avenida … que abriu em 2022 e nas estações de Metropolitano do Saldanha e da Baixa/Chiado, e que o 4º estabelecimento, na estação de São Sebastião, está em fase de preparação pela Metrocom, com um atraso a que a devedora é alheia, mas que aquele deverá estar disponível no semestre em curso; que o funcionamento das referidas lojas criaram 5 novos postos de trabalho e foram contratados novos funcionários para além dos 3 que mantiveram os contratos de trabalho com a empresa; que em 2023 decorreram as negociações e o processo de licenciamento pelo departamento de Jogos Santa Casa da Misericórdia da transferência de terminais para as lojas da Metrocom, que foi finalizado em janeiro de 2024, e as lojas foram montadas e preparadas nessas instalações para a sua reabertura em janeiro de 2024; em outubro de 2023 foi concluído o processo de despedimento coletivo; em setembro de 2023 o CC renunciou às funções e em fevereiro de 2024 foi novamente nomeado para o cargo.
11. Em 19.05.2024 foi proferida sentença que concluiu que “o plano junto não apresenta perspetivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa ou de garantir a sua viabilidade, não consubstanciando o mesmo um plano viável e credível, nos termos e para os efeitos previstos na alínea g) do nº 7 do artigo 17º-F do CIRE”, e decidiu pela recusa de homologação do Plano.
12. Inconformada, a devedora apresentou o presente recurso requerendo a revogação da decisão e a sua substituição por outra que determine a homologação do Plano de Revitalização. Apresentou conclusões que, não obstante como tal epigrafadas, longe de o serem, apresentam-se prolixas, não cumprindo minimamente o ónus de sintetização imposto pelo art. 639º, nº 1 do CPC posto corresponderem à quase total reprodução da motivação do recurso, incluindo gráficos e citações doutrinais e jurisprudenciais. Porém, não obstante a referida deficiente prestação processual da recorrente, que agrava o exercício de depuramento das questões do recurso, é possível identificar as que por ele vêm submetidas a apreciação, razão pela qual não se proferiu despacho de convite ao aperfeiçoamento nos termos do art. 639º, nº 3 do CPC na medida em que o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que o mesmo não tem efeito preclusivo para o recorrente[4], pelo que se procede à transcrição das conclusões tal qual como formuladas pela recorrente para posterior delimitação e definição do objeto do recurso.
I. Com o devido respeito, que é muito, não pode a Recorrente sufragar a sentença proferida pelo tribunal a quo, pelas razões que se exporão, importando, no entanto, fazer um prévio e breve enquadramento da situação presente.
II. Em 24 de Abril de 2019 a Glorious Plural, Lda, adquiriu ao Banco Montepio Geral cerca de 89% do capital social da C…, S.A., doravante C… – Cfr. Doc. 1 (contrato de compra e venda de acções); operação realizada no âmbito de PER apresentado pela Recorrente em 2016, que correu termos no Juízo de Comércio de Lisboa – Juiz 3, sob o nº de processo 0929/17.1T8LSB - e homologado por sentença transitada em julgado em 2 de Maio de 2018 (Cfr. Doc. 2)
III. Após a aquisição da c… pela Glorious Plural, manteve-se o cumprimento daquele primeiro PER da Recorrente, mormente quanto aos pagamentos à AT.
IV. Assim, assenta num pressuposto falso a sentença recorrida quando refere que
“Não se vislumbra que tenha pautado a sua conduta pelos ditames da boa-fé, sendo certo que, durante esse período, ia agravando o seu passivo ao nível dos créditos tributários, gerando nova dívida perante a Autoridade Tributária e Aduaneira (…)”
Isto posto,
V. A finalidade do PER é, inequivocamente, a recuperação da empresa, ao contrário do que sucede no âmbito do processo de insolvência, destinado à satisfação do interesse dos credores.
VI. Descendo ao caso sub judice, é, desde logo, lógico que a implementação do plano de recuperação é o cenário que mais favorece a recuperação da Recorrente, comparativamente com a hipótese de uma declaração de insolvência.
VII. Além de proporcionar a recuperação da empresa, a homologação do PER constitui, também, no caso vertente, a solução que mais favorece o interesse dos credores, ao contrário do referido na sentença recorrida.
VIII. Em Fevereiro de 2023, a Recorrente deu em pagamento à credora “Radar da Sorte” todos os seus imóveis (à excepção de um terreno de valor quase nulo), pelo seu valor comercial, num total de €2.683.555,00, superior ao seu valor patrimonial.
IX. Ora, a informação contabilística reportada a 2022, invocada pelas credoras … e …, naturalmente ainda não reflectia a referida operação de alienação de património, que só ocorreu posteriormente.
X. Assim, o activo considerado na referida informação contabilística de 2022 ainda compreendia aqueles imóveis, no valor de 1,378 M€.
XI. Acresce que tal activo compreendia, ainda, o valor de cerca de 3,78 M€, respeitante a um terreno sito em Coina, relativamente ao qual a Recorrente celebrou um contrato-promessa na qualidade de promitente compradora; contrato esse antiquíssimo, anterior a 2010, consumado ainda sob a égide de anteriores administrações e que nunca veio a repercutir-se na celebração da escritura de compra e venda do terreno,
XII. Esclarece-se que o referido valor de 3,78M€ se manteve nos registos de contabilidade da Recorrente pelo facto de nunca ter sido realizada a devida imparidade, por razões contabilísticas.
XIII. No caso vertente, conforme comunicado à Autoridade Tributária, o técnico oficial de contas e o auditor e revisor único da Recorrente renunciaram às suas funções em 2023, em Setembro e Março, respectivamente.
XIV. Apenas em Março de 2024, a empresa de contabilidade e o TOC aceitaram retomar as suas actividades e responsabilidades, após verificação das condições para a recuperação da empresa.
XV. Os exercícios de 2022 e 2023 estarão encerrados durante os próximos meses de Junho e Julho, respectivamente.
XVI. O exercício de 2024 está, igualmente, a ser contabilizado,
XVII. Tendo as obrigações relativas a SAFT e IVA sido entregues (Janeiro a Abril de 2024); os processamentos salariais foram processados; as Declarações Mensais de Remunerações foram entregues, e as contribuições e retenções liquidadas.
XVIII. A descrição financeira que consta do plano não é falsa; a divergência assinalada pelo tribunal a quo resulta do carácter dinâmico e oscilante do panorama financeiro de qualquer sociedade, que se repercute numa constante mutação dos indicadores contabilísticos.
XIX. Acresce que a este respeito ocorrem as particularidades já esclarecidas nos artigos 22.º a 28.º da presente motivação, que aqui se dão por integrados, e que justificam as divergências destacadas.
XX. Quanto à putativa situação de insolvência da Recorrente, resulta expressamente da declaração do ROC/TOC junta como Doc. 7 do requerimento inicial que a empresa “não se encontra em situação de insolvência”.
XXI. Conforme informou os autos, a Recorrente apenas esteve sem actividade desde Março a Dezembro de 2023 (o tempo necessário para se reorganizar e ponderar a melhor solução para o futuro da empresa), mas retomou a actividade a partir de Janeiro de 2024 (mal seria se fosse o inverso, e o mais importante é o momento actual da Devedora, em crescendo!).
XXII. Relativamente à ausência de liquidez e possibilidades de crédito da Recorrente, trata-se de circunstâncias características de qualquer empresa que se submeta a um PER, o que não impede que, muitas vezes, o plano seja aprovado, homologado e cumprido.
XXIII. A decisão de alteração do objecto social da Recorrente foi já aprovada por unanimidade em Assembleia Geral, conforme acta que se junta. Cfr. Doc. 3.
XXIV. Assim, a expansão da empresa a outras áreas de negócio encontra-se em vias de concretização e fomentará o progresso da empresa.
XXV. Logo a partir de Dezembro de 2023, a Recorrente reabriu o estabelecimento sito na Avenida …, em Lisboa, para venda de tabaco e jogo social materializado (vulgo, lotaria nacional e instantânea).
XXVI. Acresce que a Recorrente reiniciou a sua actividade social em Janeiro de 2024, com a abertura de 3 estabelecimentos de mediação social, pós aceitação, por parte do DJSCML (Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa), da mudança de endereços de 3 estabelecimentos.
XXVII. Desde então, a actividade da Recorrente tem crescido de forma consistente:
(segue-se gráfico inserido na motivação das alegações de recurso e que a recorrente novamente reproduz nas conclusões)
XXVIII. Considerando apenas o mês de Fevereiro como o 1º mês em funcionamento pleno dos estabelecimentos, em 3 meses (de Março a Maio), o negócio cresceu 21%!
XXIX. Considerando uma taxa de crescimento mensal conservadora, e com base no ciclo de negócio, é expectável atingir os seguintes resultados (3 estabelecimentos):
(gráfico inserido na motivação das alegações de recurso e que a recorrente novamente reproduz nas conclusões)
XXX. Os novos estabelecimentos comerciais cuja exploração vem prevista no plano de recuperação em crise não são uma incerteza: três deles já existem, estão licenciados e em actividade e vêm apresentando notável crescimento.
XXXI. Além dos três estabelecimentos vindos de elencar, a Recorrente encontra-se em vias de abrir um outro, na estação São Sebastião, que se encontra apenas dependente de o concessionário dos espaços comerciais na rede Metropolitano de Lisboa (Metrocom) libertar o espaço para implementação do estabelecimento.
XXXII. É, também, manifesto que não se justifica a dúvida que o tribunal a quo expressa na sentença recorrida de que a Recorrente tenha condições para continuar a exploração dos seus estabelecimentos já instalados ou a instalar, em face de uma putativa falta de capacidade para assumir o cumprimento de contratos de locação futuros sobre equipamentos indispensáveis à exploração.
XXXIII. Actualmente, o negócio da Recorrente liberta já margem suficiente para liquidar os compromissos com pessoal, fornecedores correntes, com excepção dos senhorios dos espaços.
XXXIV. Ora, a evolução da actividade comercial tem demonstrado a capacidade dos três actuais estabelecimentos de se pagarem integralmente, antes do final do exercício, bem como suportar a estrutura de custos operacional mínima.
XXXV. Acresce que a estabilização do 4º estabelecimento - sobre o qual se tem uma estimativa de rentabilidade semelhante à do sito na estação de metro de Baixa-Chiado – permitirá começar a libertar margem para cumprir compromissos perante terceiros, nomeadamente os previstos no plano aprovado.
XXXVI. A implementação do PER permitiria, desde logo, reduzir substancialmente a dívida, com repercussão nos capitais próprios da empresa.
XXXVII. Por outro lado, o período de carência previsto no plano permitiria garantir a sustentabilidade da empresa, com a consolidação e expansão da sua actividade comercial (já em curso, conforme atrás desenvolvido) e reposição dos seus capitais próprios.
XXXVIII. Por último, entendeu o tribunal a quo que a Recorrente teria agido de má-fé. Ora,
XXXIX. Diante das dificuldades que a Recorrente ultrapassava no final do ano de 2022, impunha-se, à altura, evitar que o endividamento continuasse a avolumar-se.
XL. A Recorrente tudo fez para satisfazer o seu maior credor, no sentido de evitar a insolvência e a verdade é que tal atitude permitiu que visse o maior crédito reclamado reduzido a 5% e evitar que a referida credora propusesse um pedido de insolvência.
XLI. Depois de ponderar sobre a solução a aplicar à empresa, entendeu a Recorrente que a implementação de um PER, com perdão de parte da dívida e um período de carência, permitiria que a empresa beneficiasse das condições e tempo necessário à revigoração da sua actividade comercial e reposição dos seus capitais próprios.
XLII. O aumento de dívida referido pela AT resulta, sobretudo, de actos praticados em exercício anterior ao primeiro PER (2016) a que a Recorrente se submeteu e de uma correcção à matéria colectável referente ao exercício de 2016, sob mandato de anteriores administrações.
XLIII. Acresce que o crédito reclamado nos presentes autos compreende 157,471.10€ de dívida em sede de IRC relativo a 2016, a cujo pagamento a Recorrente só foi condenada por decisão com trânsito em julgado em 2023!
XLIV. Já o valor de dívida adicional de 77.438,87€ resulta, na sua vasta maioria, de planos prestacionais no contexto de medidas excepcionais no âmbito da pandemia COVID-19.
XLV. Mais se salienta que, ao contrário do alegado pela AT em sede de oposição à homologação do plano, a dívida da Recorrente à Autoridade Tributária não tem qualquer relação com uma putativa omissão de entrega das Declarações Mensais de Remunerações, pelo simples facto de que tais declarações foram todas entregues.
XLVI. Desde o primeiro PER até ao presente, a Recorrente liquidou à Autoridade Tributária o valor de 526.774€, tendo conseguido reduzir a dívida perante aquela credora.
XLVII. Relativamente ao aumento da dívida perante a Segurança Social, esclarece-se que se deve à sub-rogação relativa a adiantamentos feitos a ex-colaboradores da Recorrente, despedidos em sede de despedimento colectivo, que foi comunicada em Janeiro de 2023; montante que ascende a cerca de 107.000,00€ (a que acrescerão juros).
XLVIII. Nos termos da alínea g) do nº 7 do artigo 17º-F do CIRE, ao avaliar se o plano de recuperação é ou não merecedor de homologação, o juiz deve aferir se este “apresenta perspectivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa ou de garantir a viabilidade da mesma”.
XLIX. Considerando as limitações de formação profissional dos juízes sobre a matéria e o apertado prazo para o efeito (10 dias após a recepção da documentação), parece difícil garantir que o juízo de viabilidade legalmente previsto possa ser efectuado com apropriado rigor.
L. Assim, o tribunal só deverá recusar a homologação de um plano aprovado em casos de manifesta inviabilidade.
LI. Relativamente às ponderações a cargo do Juiz neste âmbito, o Exmo. Sr. Dr. F…, Juiz deste Juízo de Comércio de Lisboa, salienta a importância de dois aspectos absolutamente determinantes:
-A aprovação do plano pelos credores de acordo com as maiorias legais;
-O parecer do AJP a que alude o nº 6 do artigo 17º-F (favorável, neste caso).
LII. Nesse sentido, refere o seguinte:
“Primeiramente, o juiz irá verificar se o plano de recuperação se encontra aprovado de acordo com as maiorias legais e, num segundo momento, se apresenta perspetivas razoáveis de garantir a viabilidade da empresa. Ou seja, quando o juiz for aferir das perspetivas razoáveis do plano assegurar a viabilidade da empresa já se encontra na posse de um forte indício de viabilidade desta: a maioria (legal) dos credores – que são também proprietários económicos da empresa – aprovou o acordo, pelo que se depreende que este garante a recuperação da empresa.
À vontade dos credores – como indício de aptidão do plano de recuperação para garantir a viabilidade da empresa – haverá que adicionar, ainda, o sentido do parecer do AJP, que não sendo vinculativo, é a opinião técnica de um profissional de recuperação de empresas, dotado de formação específica e experiência profissional nesta área.
Havendo concordância entre o parecer favorável do AJP e a maioria legal exigida de credores não vemos, aparentemente e em teoria, razões para concluir que o plano de recuperação alcançado não apresente perspetivas razoáveis de garantir a viabilidade da empresa. Mais difícil será responder: o que fazer em casos de dissenso?”
LIII. Ora, no caso vertente, o plano reuniu os votos favoráveis de credores que representam mais de 77% do total dos créditos reconhecidos.
LIV. Além disso, no parecer a que alude o nº 6 do artigo 17º-F, o AJP concluiu que o plano apresenta perspectivas razoáveis de garantir a viabilidade da empresa devedora, por prever a “adequação” do montante das dívidas à sua capacidade financeira.
LV. Assim, as referidas circunstâncias (que assumem a maior relevância na ponderação sobre a aptidão do plano de recuperação para garantir a viabilidade da empresa), acrescidas de toda a restante argumentação já aduzida na presente motivação, demonstram, à saciedade, que o plano de recuperação em crise apresenta perspectivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa e de garantir a sua viabilidade, sendo viável e credível, nos termos e para os efeitos previstos na alínea g) do nº 7 do artigo 17º-F do CIRE.
LVI. Impõe-se, por isso, a revogação da sentença recorrida e sua substituição por outra que determine a homologação do plano em causa.
Juntou documentos, para os quais remete na motivação das alegações de recurso, e protestou juntar outros.
12. O Ministério Público apresentou contra-alegações pelas quais concluiu que
1º - Não foi violada qualquer disposição legal, sendo que a decisão não padece de qualquer nulidade, vicissitude ou irregularidade.
2º - Inexiste qualquer motivo para ser concedida razão à recorrente, pelo que deve a douta decisão recorrida ser mantida, negando-se provimento ao recurso.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos arts. 635º, nº2 e 5 e 639º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil, o objeto do recurso corresponde às decisões por ele impugnadas, é definido pelo objeto destas, delimitado pelo teor das conclusões de recurso e, sem prejuízo das questões que oficiosamente cumpra conhecer, destina-se a reponderar e, se for o caso, a anular, revogar ou modificar as decisões objeto de censura. Não se destina a reexaminar o processo e todas as questões nele suscitadas ou que o mesmo suscita, nem a apreciar e a criar soluções sobre questões de facto e/ou de direito que não foram sujeitas à apreciação do tribunal a quo e que, por isso, se apresentam como novas, ficando vedado, em sede de recurso, a apreciação de questões precludidas por ausência de arguição de vícios da sentença e de ampliação do objeto do recurso, bem como de novas causas de pedir em sustentação do pedido ou da defesa. Acresce que o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos nas alegações, mas apenas das questões de facto ou de direito que, não estando cobertas pela força do caso julgado, se apresentem relevantes para conhecimento do respetivo objeto, sendo o tribunal livre na aplicação e interpretação do direito (cfr. art. 5º, nº 3 do CPC).
Mais se assinala que a sentença recorrida não declarou prejudicada a apreciação de outras questões invocadas nos pedidos de não homologação do Plano, que não foram apresentadas contra-alegações com pedido de ampliação do objeto do recurso ou de arguição de nulidade da sentença nos termos e para os efeitos do art. 636º, nº 1 e 2[5] do CPC (ao que aqui releva, com fundamento em omissão de pronúncia), e que, nesse cenário processual, e em alinhamento com o princípio da proibição da reformatio in pejus previsto pelo art. 635º, nº 5 do CPC, não tem lugar a aplicação da regra da substituição do tribunal recorrido pelo tribunal de recurso prevista pelo art. 665º do CPC por preclusão do conhecimento daquelas outras questões nesta sede[6].
Assim, considerando as questões conhecidas pela decisão recorrida e a impugnação que às mesmas é dirigida nas conclusões enunciadas pela recorrente, pelo presente recurso cumpre apenas apreciar se o Plano de Recuperação aprovado cumpre ou não o pressuposto legal de homologação previsto pelo art. 17º-F, nº 7, al. g) do CIRE - se apresenta ou não perspetivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa ou de garantir a viabilidade da mesma.
III – Questão prévia - Da admissibilidade dos documentos juntos com as alegações de recurso
Sob a epigrafe Junção de documentos e de pareceres prevê o art. 651º do CPC que As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância. O art. 425º do CPC prevê que Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.
Assumindo o modelo de reponderação do nosso sistema de recurso e o disposto no art. 611º, nº 1 do CPC – dos quais resulta que “a decisão do recurso deve reflectir a situação de facto existente no momento do encerramento da discussão em 1ª instância”[7] – , os requisitos previstos pelo art. 425º centram-se na definição da natureza e alcance jurídico-processual da ‘impossibilidade’ da junção dos documentos, que a doutrina e a jurisprudência consensualmente reconduzem a questão de superveniência objetiva ou subjetiva do documento por referência (temporal) ao encerramento da discussão em 1ª instância. O art. 651º prevê um novo fundamento, específico da instância recursiva, da necessidade do documento determinada pela novidade de elemento de facto ou de direito introduzido no julgamento operado pela decisão recorrida.
Requisitos que de forma elucidativa constam tratados no acórdão da Relação de Coimbra de 18.11.2014, cujo sumário, por brevidade de exposição, aqui se transcreve: I – Da articulação lógica entre o artigo 651º, nº 1 do CPC e os artigos 425º e 423º do mesmo Código resulta que a junção de documentos na fase de recurso, sendo admitida a título excepcional, depende da alegação e da prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: (1) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso; (2) ter o julgamento de primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional.//II - Quanto ao primeiro elemento, a impossibilidade refere-se à superveniência do documento, referida ao momento do julgamento em primeira instância, e pode ser caracterizada como superveniência objectiva ou superveniência subjectiva.//III – Objectivamente, só é superveniente o que historicamente ocorreu depois do momento considerado, não abrangendo incidências situadas, relativamente a esse momento, no passado. Subjectivamente, é superveniente o que só foi conhecido posteriormente ao mesmo momento considerado.//IV – Neste caso (superveniência subjectiva) é necessário, como requisito de admissão do documento, a justificação de que o conhecimento da situação documentada, ou do documento em si, não obstante o carácter pretérito da situação quanto ao momento considerado, só ocorreu posteriormente a este e por razões que se prefigurem como atendíveis.//V – Só são atendíveis razões das quais resulte a impossibilidade daquela pessoa, num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido anteriormente conhecimento da existência do documento.//VI – Quanto ao segundo elemento referido em I deste sumário, o caso indicado no trecho final do artigo 651º, nº 1 do CPC (a junção do documento ter-se tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância), pressupõe a novidade da questão decisória justificativa da junção do documento com o recurso, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão recorrida, o que exclui que essa decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum.
Com as alegações a recorrente juntou os seguintes documentos:
Doc. 1 - documento epigrafado de “contrato de compra e venda de ações entre Caixa Económica Montepio Gera, Caixa Económica Bancária, SA, com vendedora, e Glorious Plural” como compradora, tendo por objeto 896.280 ações nominativas com o valor nominal unitário de €5,00 correspondente a 89,628% do capital social da recorrente, datado de 24.04.2019 e integrado por vários anexos.
Doc. 2 - certidão de acórdão da Relação de Lisboa de 10.04.2018 e do trânsito em julgado em 02.05.2018, tendo por objeto decisão de indeferimento do pedido de não homologação de Plano de Recuperação (por ilegitimidade do requerente) e sentença de homologação do mesmo Plano no âmbito do procedimento especial de revitalização de Lusomilhões, SA.
Doc. 3 – ata da assembleia geral da recorrente de 08.09.2023 na qual foi deliberada a alteração do seu objeto social “pela necessidade de alargar o âmbito de negócios da sociedade em consonância com o proposto no Processo Especial de Revitalização”, e alteração da sua denominação social para ‘C... – Lotarias, SA’.
Sem curar agora da relevância dos documentos em questão na apreciação do mérito do recurso, a recorrente limitou-se a referenciá-los e a dá-los por reproduzidos na articulação da motivação do recurso, e procedeu à sua junção sem que tenha alegado qualquer justificação para a sua apresentação apenas em sede de recurso, o que por si só bastaria para fundamentar a sua rejeição.
Ainda que assim não fosse, a sua junção sempre careceria de pertinência processual. Conforme dispõem os arts. 341º e 362º do CC e 5º, nº 1 do CPC, os documentos constituem meios de prova de factos oportunamente alegados pelos interessados – não se destinam a comprovar fundamentos jurídicos, e muito menos o teor das decisões pretendidas – pelo que a sua junção em sede de recurso pressupõe que este tenha como objeto a impugnação da decisão de facto para alteração do julgamento (provado ou não provado), da seleção (por excesso ou insuficiência), ou da redação (por imprecisão ou incorreção) dos factos descritos pela decisão recorrida, pedido que não integra o objeto do presente recurso, o que por si só bastaria igualmente para rejeitar a junção daqueles (ou de qualquer outro documento) com as alegações de recurso.
Acresce que nenhum dos documentos juntos cumpre o requisito da superveniência pressuposto pelo art. 425º do CPC posto que foram todos produzidos antes da sentença recorrida e antes até da submissão do Plano à votação dos credores, circunstância por si só impeditiva da admissão dos documentos em sede de recurso na medida em que a recorrente não justificou, nem se vislumbra justificação para a impossibilidade de os juntar, pelo menos, até à prolação da sentença recorrida.
Finalmente, o contrato de compra e venda de ações e a sentença de homologação do Plano de uma outra sociedade e o acórdão que a confirmou nada elucidam quanto aos alegados pagamentos à AT cumpridos pela recorrente no âmbito do PER que requereu em 2017, nem as causas da constituição das novas dívidas fiscais, sendo que é por referência a esta questão – créditos da AT - que nas alegações de recurso a recorrente faz referência àqueles contrato e documentos. Por outro lado, se é certo que a sentença recorrida faz referência à necessidade de a recorrente proceder à alteração do seu objeto social para o adequar ao alargamento da sua atividade a outras áreas de negócio projetado no plano, para além de esta corresponder a questão introduzida nos autos através do teor do Plano que a recorrente submeteu à aprovação dos credores e homologação do tribunal, resulta da sentença que essa referência se resume a uma constatação ou observação jurídica sem que a erija a fundamento da decisão de recusa de homologação, pelo que aquela questão – da alteração do objeto social da recorrente - não detém a virtualidade de configurar a novidade pressuposto pelo art. 651º para justificar a junção de documento em sede de recurso, que a lei prevê como excecional.
Nestes termos, carece de fundamento legal a junção dos documentos apresentados com as alegações de recurso, motivo pelo qual vão rejeitados[8], com consequente condenação da recorrente nas custas do incidente a que deu causa nos termos dos arts. 443º, nº 1 e art. 27º, nº 1 do Regulamento das Custas Processuais, que se fixa em 1 UC por adequada à atividade processual a que deu causa em sede recursiva.
IV – Fundamentação
A) De Facto
Para melhor contextualização e compulsar da apreciação dos fundamentos que suportam a decisão recorrida e dos que lhe são opostos pela recorrente, dos documentos juntos aos autos extratam-se e assentam-se os seguintes factos:
1. A devedora, matriculada na Conservatória do Registo Comercial em 07.06.1972, à data da instauração destes autos consta inscrita como sociedade anónima com sede em Avenida …, Lisboa, capital social de €5.000.000,00 titulado por 1000000 ações no valor nominal de €5,00, objeto social “Lotarias e apostas mútuas; valores selados, fiscais e do correio, e impressos oficiais; livraria, papelaria e tabacaria, fotografia, reprografia e outras tecnologias de captação; processamento, reprodução e transmissão de imagem e som; informática e tecnologias afins”, e conselho de administração nomeado para o biénio 2019/2020 constituído por M. e C., e fiscal único M…, SROC, Ldª (certidão permanente de 13.07.2023 junta com a pi, da qual consta referência a pedido de alteração ao contrato por ap. 36/20230712 pendente de elaboração e suscetível de alterar o conteúdo do certificado)
2. Da referida certidão permanente mais constam menções de depósito de contas até ao exercício do ano de 2019, estas ultimas depositadas em 2021:
- em 05.07.2017 foi inscrita nomeação de administrador judicial provisório (AJP) no âmbito de PER, à qual em 23.04.2018 foi averbada a cessação de funções daquele AJP;
- em 23.04.2018 foi inscrita decisão de homologação de Plano de Recuperação em PER por sentença de 07.12.2017 transitada em julgado em 03.04.2018.
- em 30.01.2023 foi inscrita redução do capital no montante de €5.950.000,00, número de ações 1000 no valor nominal de €5,00, e alterações aos arts. 4º, nº 1, 9º, nº 5 e 12º, nº 1 do contrato de sociedade, por deliberação de 20.01.2023, registo que foi lavrado provisório por dúvidas.
3. Da ata da assembleia geral nº 64 da devedora consta que em 20.01.2023 os acionistas presentes e representados totalizavam €4.483.450,00, correspondente a 89,67% do capital social, foi aprovado o Relatório e Contas de 2021 e, sob proposta da acionista GloriousPlural, deliberada a redução do capital social da C… para €50.000,00, que o vogal do Conselho de Administração C. sublinhou ser indispensável para cobrir os prejuízos registados e para criar condições adequadas ao cumprimento das condições legais exigidas para recorrer ao Procedimento de Regime Extracontratual de Reestruturação. Pelos membros do Conselho de administração mais foi declarado que ultrapassar a situação difícil da empresa passa pelo trespasse de um numero significativo de lojas para permitir reduzir de forma significativa o seu passivo e garantir a subsistência da empresa, que o trespasse das lojas foi negociado com a sociedade que adquiriu os créditos detidos por entidade bancária e, nesse seguimento, a acionista GloriousPlural apresentou uma proposta de “ratificação das operações de trespasse de lojas realizadas em 2022, que abrangeu as seguintes: Estabelecimento de Braga, Estabelecimentos do Porto – S. Bruno e Cedofeita, Estabelecimento Aveiro, (…) Viseu, (…) Coimbra, (…) de Setúbal, (…) de Faro, (…) de Alvalade (…) de Benfica (…) de Moscavide (…) na Rua da Vitória (…) na Costa da Caparica (…) Cova da Piedade e (…) em Castelo Branco.”
4. Em 06.07.2023 M. e C., nas qualidades de, respetivamente, presidente e vogal do conselho de administração da devedora, subscreveram ata avulsa, não numerada, da qual consta estarem presentes todos os membros do Conselho de administração da devedora e que por este foi deliberada a mudança da sede social da sociedade para a Av. …, Lisboa, e a alteração ao art. 1º, nº 1 dos Estatutos.
5. Da relação de bens junta com o requerimento inicial constam os seguintes: Bens imóveis: 1. ½ prédio urbano – casa com r/c e 1º andar sito em Moimenta, Vinhais, artigo 20, e avaliado em €4.993,80. Estabelecimentos comerciais: 1. Estabelecimento na Estação Baixa Chiado do Metropolitano de Lisboa, avaliado em €75.000,00; 2. Estabelecimento na Estação do Saldanha II do Metropolitano de Lisboa avaliado em €75.000,00; 3. Estabelecimento na Estação de S. Sebastião do Metropolitano de Lisboa avaliado em €75.000,00; 4. Estabelecimento na Av. … – 2 terminais – avaliado em €150.000,00. Bens móveis: 1. Automóvel ligeiro de mercadorias, marca Ford, …-XS, de 21.07.2004, avaliado em €1.000,00. 2. Automóvel ligeiro de mercadorias, marca Smart, …-HN-.., de 17.04.2009, avaliado em €1.500,00. 3. Automóvel ligeiro de mercadorias, marca Citroen, ..-LS-.., de 26.05.2011, avaliado em €2.500,00. Créditos sobre terceiros: 1. (…) €2.574,05, em execução (…) 2. … €5.038,76, em execução … 3. … €1.846,14, em execução … 4. … €3.170,11, em execução … 5. … €1.472,78, em execução …
6. Na declaração a que alude o art. 24º, nº 1, al. i) a recorrente declarou que desde que foi fundada em 1933 dedicou-se a atividades no domínio das lotarias e das apostas mútuas, e que é mediadora da entidade concessionária de Jogo Social, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
7. Da sentença homologatória do Plano de Recuperação da recorrente, proferida em 07.12.2017 no âmbito do PER nº …/17.3T8LSB, consta que a lista de créditos ali junta pelo AJP ascende ao montante de €35.826.484,94.
8. Do Plano de Recuperação ali aprovado e homologado consta que:
- em 2017 o ativo da devedora é contabilizado pelo valor de €16.405.301,00, do qual €8.066.093 corresponde a ativo não corrente, e os imóveis propriedade da devedora estão contabilizados pelo justo valor e estão hipotecados;
- a C... tem 23 estabelecimentos de venda ao publico a nível nacional e 9 de revenda, e 100 trabalhadores;
- “todo o contexto de 2016 levou à opção pela alienação do principal imóvel e sede da empresa sob a forma de dação em pagamento ao credor hipotecário, não se manifestando uma medida minimamente suficiente para a resolução de todos os problemas financeiros”,“pela incapacidade séria de ajustar os atuais meios libertos operacionais a um compromisso de serviço da dívida exequível”.
- a dívida da C... à SS é de €892.000,00, e à AT é de €2.867.000,00;
- a dívida de participadas da devedora sem atividade operacional (Binganimus e Pataca da Sorte) à SS, AT, e ao Turismo de Portugal, é de cerca de €1.075.000,00;
- a dívida à Caixa Económica do Montepio Geral, maior credor da empresa, é de €21.500.000,00;
- os créditos da AT e da SS são reembolsados em 150 prestações (entre 2018 e 2030); os créditos das instituições financeiras entre 2018 e 2032 (com 2 anos de carência), os fornecedores em 24 prestações (créditos inferiores a €50.000,00) e 48 prestações (créditos superiores a €50.000,00);
- são mantidos os postos de trabalho.
9. Com o requerimento inicial foi junta a declaração a que alude o art. 17º-A, nº 2, subscrita em 18.07.2023 pelo CC da recorrente, pela qual declarou que esta não se encontra em situação de insolvência, considerando:
“1. As demonstrações financeiras, não auditadas, reportadas a 31/12/2022, aplicadas a uma valorização baseada numa perspetiva de continuidade da empresa e à manutenção dos postos de trabalho dos seus trabalhadores; 2. O âmbito do acordo de reestruturação que a Sociedade pretende negociar e viabilizar junto dos seus credores por ser considerado do Conselho de Administração que a implementação de um P.E.R. é, nesta fase, a medida fundamental para recuperar a empresa; e 3. Que a negociação do pagamento das dividas a fornecedores, entre outros credores, vai, de acordo com os proponentes, reunir condições para implementar as medidas de crescimento na área comercial, que num futuro próximo poderão tornar a empresa novamente sustentável.
(…) Em 18 de julho de 2023, em consequência da atividade operacional deficitária, as demonstrações financeiras continuam a evidenciar um capital próprio negativo de, enquadrando a sociedade nas disposições previstas no artigo 35º do Código das Sociedades Comerciais e continuando a subsistir uma previsão de incerteza material quanto à continuidade das operações.
10. Da IES do exercício de 2021, entregue em 20.01.2023, consta declarado ativo no valor de €8.277.847,61 e passivo no valor de €21.603.127,22, sendo €12.593.531,00 referente a financiamentos obtidos (não corrente), €2.543.484,35 a fornecedores, €3.757.140,41 ao Estado, €632.933,16 a financiamentos obtidos (corrente), e €1.329.457,00 outras contas a pagar. A IES foi acompanhada dos anexos L e P (ambos relativos a IVA) e do anexo R, do qual consta que é de 23 o numero de estabelecimentos da entidade.
11. Do relatório de gestão e contas referente ao exercício de 2021 e datado de 19.12.2022 consta:
- a dívida bancária junto de dois bancos encontrava-se em moratória de crédito; a operação de aquisição de 89,63% do capital da empresa proporcionou um perdão na dívida junto do Banco vendedor – CEMG – no montante de €12.502.593,73; a dívida bancária ascende a €13.226.464,00, encontrando-se €8.505.973,00 em PER e o remanescente como dívida corrente; €4.300.000,00 da dívida bancária não é garantida (Banco EuroBic)
- em maio de 2022 o credor Novo Banco cedeu os créditos reconhecidos em PER a Ares Lusitano STC, SA que por sua vez os cedeu em novembro do mesmo ano à sociedade Radar da Sorte, Ldª;
- em outubro e novembro de 2022 os Bancos CEMG e EuroBic cederam as suas dívidas às sociedades PARSOC, SA e Radar da Sorte, Ldª pelo que antevê que em 2023 haja necessidade de acordar novos termos para liquidação da dívida bancária reconhecida em PER.
- sob o ponto 42 – “outras informações relevantes” - “Com a operação de compra e venda da maioria do capital da empresa, o principal credor bancário (Banco Montepio) procedeu ao perdão de dívida previsto no PER, nos montantes 9.100.702,73 euros e de 3.401.891,00 respeitantes a capital e juros vencidos, respetivamente.(…). O Plano do PER ao longo do exercício de 2019 foi cumprido na íntegra. Os pagamentos aos Fornecedores, Bancos e Estado, foram conforme os planos definidos. (…). A C... foi objeto de uma inspeção tributária, concluída em 2019 e em sede de imposto de selo, que deu origem a liquidações relativas aos exercícios de 2015 e 2016, nos montantes de 62.863,89 euros e 91.878,93 euros, respetivamente. (…). Sobre o impacto que a pandemia Covid-19 teve na actividade da empresa, e no sector em geral: (…) entendeu a administração, no dia 19 de março de 2020, suspender a actividade comercial em todos os estabelecimentos (…) a suspensão estendeu-se até 4 de maio (…). (…). A empresa aderiu ao regime de moratórias relativa a financiamentos bancários. (…). O Plano do PER ao longo do exercício de 2020 foi parcialmente cumprido. Não foram cumpridos os seguintes pagamentos: Fornecedor CTT: 11 parcelas no total de €102.402,72//Instituições Financeiras: aplicaram-se as moratórias vigentes no contexto das medidas excecionais de apoio às empresas”
12. Das demonstrações financeiras das contas referente ao exercício de 2021 consta:
- Ativo não corrente (€6.239.102,79), composto por ativos fixos tangíveis (€1.670.222,23), propriedades de investimento (€337.967,23), goodwill (€224.669,91), outros investimentos financeiros (€3.771.434,89), ativos por impostos diferidos (€205.766,96)
- Ativo corrente (€2.180.162,17), composto por inventários (€1.146.415,20), clientes (€309.470,86), Estado e outros entes públicos (€13.080,34), outros créditos a receber (€187.953,03), Diferimentos (€16.087,31), caixas e depósitos bancários (€507.155,43)
- resultado líquido do período de €1.368.138,08 negativos
- capital próprio de €13.056.603,33 negativos
- ativos financeiros dados em garantia ou penhor, como colateral de passivos ou passivos contingentes – valor das dívidas garantidas por hipoteca (em 2020 e em 2021): da Segurança Social - €541.190,15; das instituições financeiras - €5.706.911,80.
13. Da certificação legal das contas do exercício de 2021, subscrita em 19.01.2023, consta, nas “Bases para a opinião com reservas”, que “O ativo inclui um crédito no montante de €3.750 milhares de euros respeitantes a um adiantamento, realizado em exercícios passados, para a aquisição de um ativo que não se concretizou, nem existem garantias associadas que possam assegurar o retorno desta quantia. Por este motivo consideramos que o ativo e o capital próprio estão sobreavaliados neste montante.”; e sob a epígrafe “Incerteza material relacionada com a continuidade” que:
“O capital próprio permanece negativo no montante de €13.056 milhares de euros e o fundo de maneio é também negativo no montante de 6.367 milhares de euros. O business plan apresentado no âmbito do PER pela casa-mãe, prevê a recuperação de resultados e ao acordo alcançado com o principal banco financiador prevê igualmente a melhoria da posição financeira através do reforço do capital próprio (aumento de capital/prestações suplementares) a realizar pelos actuais acionistas. (…)” Durante o exercício de 2022, a C... constatou que parte da sua dívida bancária foi cedida a outras entidades. Procedeu também a uma redução do passivo junto do Instituto de Gestão Financeira Social e junto do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, com fundos provenientes do trespasse de alguns estabelecimentos.”
14. Do balancete acumulado de dezembro de 2022 da recorrente constam inscritos:
- na conta 1 (meios financeiros), saldo devedor de €83.286,32 (correspondente a débito e crédito acumulados de €67.415.223,67 e €67.331.937,35), distribuído pelo caixa e depósitos bancários;
- na conta 21 (clientes), saldo credor de €43.518,36 (corresponde a débito e a crédito acumulados de €15.454.579,64 e €15.498.098,00, e inclui perdas por imparidades acumuladas de €1.763.484,46 na conta 21921)
- na conta 22 (fornecedores), saldo credor de €1.763.484,46 (correspondente a débito e crédito acumulados de €53.274.681,63 e €54.300.730,23;
- na conta 2312 (remunerações a pagar ao pessoal), saldo credor de €00,00 (vd. conta 63);
- na conta 24 (Estado e outros entes públicos), saldo credor de €2.921.562,62;
- na conta 2413 (IRC estimado), saldo credor de €306.592,38;
- na conta 242 (retenção de imposto sobre rendimento de trabalhadores dependentes e independentes e sobre rendimentos prediais), saldo credor de €9.590,17 (correspondente a débito e a crédito acumulados de €124.151,95 e €133.742,12);
- na conta 244 (outros impostos), saldo credor de €2.409.862,11 (correspondente a débito e crédito acumulados de €161.759,81 e €2.571.621,92);
- na conta 245 (contribuições à SS), saldo credor de €185.492,60 (correspondente a débito e credito acumulados de €320.327,64 e €505.820,24);
- na conta 25 (financiamentos obtidos), saldo credor €00,00 (correspondente a débito e a crédito acumulados de €13.225.293,09);
- na conta 27 (outras contas a pagar e a receber), saldo credor de €11.868.193,17 (correspondente a débito e crédito acumulados de €21.292.751,76 e €33.160.944,93), que inclui saldo credor de €11.597.445,41 da conta 278838 referente a RDS (Radar da Sorte) e PARSOC (correspondente a débito e crédito acumulados de €3.643.269,32 e €15.240.714,73);
- na conta 5 (capital, reservas e resultados transitados), saldo devedor de €13.325.279,61 (correspondente a débito a e crédito acumulados de €44.324.172,90 e €30.998.893,29);
- na conta 71 (vendas), saldo credor de €27.266.645,33 (jogo, tabaco, jornais, outras mercadorias);
- na conta 8 (resultados), saldo devedor de €504.612,50
15. Da lista de créditos definitiva constam inscritos créditos no montante total de cerca de €13.592.415,23, do qual crédito da AT de €2.581.719,02, sendo €40.798,73 com privilegio mobiliário geral, crédito do ISS de €21.470,93 com privilégio creditório, 11 créditos laborais no total de cerca de €243.000,00, crédito de Radar da Sorte…, Ldª de €9.621.410,40.
16. Da proposta de Plano de Recuperação datado e apresentado nos autos em 15.01.2024 e submetido à votação dos credores consta: “[a] C... …, SA é um mediador de jogo social devidamente autorizado pelo Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa” (DJSCM), referência à situação e evolução da recorrente desde a apresentação a PER em 2017 até à situação que a levou à apresentação do presente PER e respetivas causas (pandemia, guerra da Ucrânia e inflação); identificação dos bens e direitos e respetivo valor (correspondentes aos descritos na relação de bens aludida em 5); descrição da situação atual da recorrente (autorização para o funcionamento de 4 estabelecimentos mediadores dos Jogos da Santa Casa Misericórdia e restabelecimento da atividade nesses estabelecimentos desde o inicio de 2024) e de projetos de atividade futura (ampliação da atividade a outras áreas) e da exploração de mais novos estabelecimentos de mediador dos JSCM em 6 novas estações projetadas pela Metro de Lisboa, 2 a partir de 2025, e mais 4 a partir de 2027); descrição da atividade que exerce e projeta desenvolver; indicação dos recursos humanos e dos recursos externos e logísticos a afetar ao exercício da sua atividade, estes últimos por recurso a aluguer de equipamentos (quiosques).
17. Mais constam:
a) gráficos descritivos dos valores das rubricas do ativo, do capital próprio e do passivo nos anos de 2016 a 2022, que evoluíram, o ativo, do valor de €36.636.419,33 para o valor de €6.648.576,58; o capital próprio, do valor de €2.152.564,24 (e dos valores subsequentes de €18.413.476,86 e €22.941.209,86 negativos nos anos de 2017 e 2018) para o valor negativo de €11.044.314,09, e o passivo, do valor de €34.483.855,13 para o valor de €17.692.890,66;
b) gráfico das rubricas/valores contabilizadas no apuramento do resultado líquido do período nos anos de 2016 a 2022 (vendas e serviços, ganhos e perdas das subsidiárias, custo mercadorias, fornecimentos e gastos com pessoal, imparidades, provisões, outros rendimentos, juros e imposto sobre rendimento do período), e os valores dos resultados líquidos apurados, de €5.491.588,47 negativos no ano de 2016, €20.346.609,19 negativos em 2017, €139.349,34 em 2018, €8.948.785,57 em 2019, €291.020,08 negativos em 2020, €1.897.776,29 negativos em 2021, e €3.290.190,53 em 2022;
c) gráfico de fluxos de caixa no mesmo período, sendo os referentes às atividades operacionais (recebimentos de clientes, pagamentos a fornecedores e ao pessoal, pagamento/recebimento imposto sobre rendimentos, e outros recebimentos/pagamentos) nos valores de €358.181,27 negativos em 2016, €883.281,84 negativos em 2020, €105.383,83 em 2021, e €663.352,32 em 2022.
18. Na descrição da atual situação, projeções futuras e recursos a afetar à atividade, consta referido no Plano que:
d) a devedora obteve recentemente a autorização para o funcionamento de 4 estabelecimentos mediadores, nos quais no início de 2024 reiniciou a sua atividade (Av. ..., estações de S. Sebastião, do Baixo Chiado e do Saldanha II do Metropolitano de Lisboa, cujos terminais estão já ativos, e que para efeito da simulação subjacente ao plano foram considerados os resultados de outros estabelecimentos já operados em circunstâncias similares do ponto de vista do tráfego pedonal, um cenário mediano entre o exercício com os melhores resultados (2019) e os piores (2020), e 75º desse valor médio (por tratarem-se de estabelecimentos em novas localização) conforme gráfico que expõe;
e) considera-se igualmente a colocação de jogo social físico (cauteleiro) junto de empresas que o possam incluir na sua oferta ao cliente, desconhecendo ainda qual a regulamentação aplicável, sendo o Radar da Sorte fornecedor e distribuidor à C..., mas que é complexo atingir este objetivo e considera-se um período considerável para alcançar resultados significativos;
f) considera-se a subcontratação de todos os serviços de midle e backoffice nas áreas financeiras, controlo operacional, TI e contabilística com remuneração via permilagem do volume de faturação para garantir um limite ao nível dos custos operacionais e a sua diluição por todos os estabelecimentos
g) procedeu-se ao despedimento coletivo de 10 funcionários, cujos créditos são contemplados no Plano, e a empresa mantém 7 dos 8 que serão necessários (2 por cada estabelecimento);
h) considera-se o modelo de aluguer com opção de compra/leasing pelo período de 5 anos para adquirir e equipar todos os quiosques/estabelecimento visto a revitalizando não ter capacidade de financiamento bancário;
i) têm sido desenvolvidas iniciativas para alargar a atividade da C... a outras áreas de negócio – apoiar industrias portuguesas a internacionalizar os seus negócios – com foco em 4 sectores (têxtil, agro-alimentar, construção modular, e tecnologias de informação) que não requerem investimento nem quadro de pessoal permanente porque implementadas pela administração da devedora e que em 2024 começarão a contribuir para o resultado da empresa.
19. Sobre a dívida aos credores prevê:
i) pagamento integral dos créditos da SS e da AT nos termos legalmente previstos no art. 196º do CPPT, ou seja, em 60 e 150 prestações, respetivamente, acrescido de juros à taxa legal em vigor, vencendo-se a primeira prestação no final do mês seguinte à data da sentença homologatória, com manutenção das garantias existentes nos termos do art 199º, nº 13 do CPPT;
ii) pagamento dos créditos dos trabalhadores em 60 prestações mensais iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira prestação no 8º dia do mês seguinte ao transito em julgado da sentença homologatória;
iii) redução do crédito da Radar da Sorte para 5% (€481.070,52) e o seu pagamento em 150 prestações, com período de carência de um ano;
iii) redução do valor dos restantes créditos para 50% e o seu pagamento em 150 prestações mensais, com período de carência de um ano, da seguinte forma:
a. Pagamento de 5% do crédito reduzido nas primeiras 60 prestações “uma vez que a C... necessita de mais disponibilidade financeira durante tal período para pagar aos trabalhadores”;
b. Pagamento do valor remanescente (do crédito reduzido) nas restantes 90 prestações.
20. Sob o ponto 7 do Plano – “Efeitos da Execução do Plano de Recuperação” –consta apresentação gráfica de valores previsionais para os anos de 2024 a 2032 relativamente a:
i) Previsão de Receitas:
ii) amortização nos valores em dívida:
iii) cash-flow – demonstração dos resultados expectáveis:
21. Mais consta do plano que numa eventual situação de insolvência os credores comuns nada receberão e os restantes credores receberão apenas uma parte dos seus créditos.
B) De Direito
1. O procedimento especial de revitalização (PER) foi instituído entre nós pela Lei nº 16/2012 de 20.04, integrado num conjunto de procedimentos formais legais previstos no âmbito do Programa Revitalizar (aprovado por Resolução do Conselho de Ministros nº 43/2011), tendo como destinatários devedores em situação de crise financeira – com dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações por falta de liquidez ou de crédito, ou em situação de insolvência iminente - que visem e sejam suscetíveis de viabilização e recuperação, “[p]rivilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial, relegando-se para segundo plano a liquidação do seu património sempre que se mostre viável a sua recuperação.”[9] Finalidade que, apostando na credibilização do PER, foi reforçada pelas alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto Lei nº 79/2017 de 30.06, agora no âmbito do Programa Capitalizar (aprovado por Resolução do Conselho de Ministros nº 42/2016 de 18.08), “enquanto programa estratégico de apoio à capitalização das empresas, à retoma do investimento e ao relançamento da economia, com o objetivo de promover estruturas financeiras mais equilibradas, reduzindo os passivos das empresas economicamente viáveis, ainda que com níveis excessivos de endividamento, bem como de melhorar as condições de acesso ao financiamento das micro, pequenas e médias empresas.”[10] E mais recentemente pela Lei nº 9/2022 de 11.01 que, transpondo para o ordenamento jurídico português a Diretiva 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20.06.2019 “sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas”, procedeu a alterações ao CIRE e outros diplomas com ele conexos.
Em síntese, através do PER, e conforme considerando 24 da Diretiva 2019/1023[11], pretende-se facilitar e promover a recuperação efetiva de empresas economicamente viáveis e que sejam suscetíveis de recuperação financeira, proporcionando ao devedor um procedimento para propor e negociar com os seus credores um plano de recuperação sem passar pelo estigma da declaração da insolvência, num contexto híbrido de atos de natureza judicial e extrajudicial, caraterizado essencialmente pelos princípios da consensualidade e do compromisso – estes, por inerência, característicos de qualquer processo negocial sério -, e da universalidade e da celeridade - como fatores essenciais da eficácia dos procedimentos de recuperação.
2. No âmbito da regular tramitação do procedimento, depois da submissão do plano de recuperação à votação dos credores o AJP apresenta nos autos o resultado da votação. Concluindo pela aprovação do Plano, deve acompanhar aquele documento de “parecer fundamentado sobre se o plano apresenta perspetivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa ou de garantir a viabilidade da mesma.” (art. 17º-F, nº 6). Nos termos do art. 17º-F, nº 7, nos 10 dias seguintes [o] juiz decide se deve homologar o plano de recuperação ou recusar a sua homologação, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras previstas no título ix, em especial o disposto nos artigos 194.º a 197.º, no n.º 1 do artigo 198.º e nos artigos 200.º a 202.º, 215.º e 216.º, e aferindo: a) Se o plano foi aprovado nos termos do n.º 5; b) Se, no caso de classificação dos credores em categorias distintas, nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 17.º-C, os credores inseridos na mesma categoria são tratados de forma igual e proporcional aos seus créditos; c) Se, no caso de classificação dos credores em categorias distintas, nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 17.º-C, as categorias votantes discordantes de credores afetados recebem um tratamento pelo menos tão favorável como o de qualquer outra categoria do mesmo grau, e mais favorável do que o de qualquer categoria de grau inferior; d) Que nenhuma categoria de credores, a que alude a alínea d) do n.º 3 do artigo 17.º-C, pode, no âmbito do plano de recuperação, receber nem conservar mais do que o montante correspondente à totalidade dos seus créditos; e) Se a situação dos credores ao abrigo do plano é mais favorável do que seria num cenário de liquidação da empresa, caso existam pedidos de não homologação de credores com este fundamento; f) Se aplicável, que qualquer novo financiamento necessário para executar o plano de reestruturação não prejudica injustamente os interesses dos credores; g) Se o plano de recuperação apresenta perspetivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa ou de garantir a viabilidade da mesma.
A eficácia universal que a lei consagra ao Plano de Recuperação aprovado por maioria legal depende da sua homologação por sentença transitada em julgado. É nesta fase que o PER assume eminente natureza judicativa, antes de mais através da verificação e controlo do resultado da votação quando a respeito sejam suscitadas questões controvertidas ou existam questões prejudiciais ao seu apuramento. Se o resultado for de aprovação do Plano, cumpre conhecer dos eventuais pedidos de recusa de homologação do Plano e, em qualquer caso, aferir oficiosamente da legalidade do procedimento por referência às normas imperativas que o regulam e da legalidade do Plano por referência às medidas por ele previstas e às informações que o mesmo deve conter nos termos do art. 17º-F, nº 1. Nesse desiderato, e por força da remissão para as normas do processo de insolvência reguladoras do Plano de Insolvência ou Recuperação, cumpre sindicar a existência de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas imperativas aplicáveis ao conteúdo, nos termos do art. 215º, sendo que na aferição do que é o não negligenciável importará indagar se o vício é suscetível de interferir com a boa decisão da causa, ou seja, se interfere ou não com a justa salvaguarda dos interesses protegidos ou a proteger, nomeadamente no que respeita à tutela devida à posição dos credores. Nas palavras de Catarina Serra, [v]iolação não negligenciável é aquela e apenas aquela que importe uma lesão grave de valores ou interesses juridicamente tutelados, isto é, uma lesão de tal modo grave que nem em atenção ao princípio da recuperação e aos interesses associados a este, o juiz pode deixar de recusar-se a homologar o plano, inviabilizando com isso a recuperação. Está implícito na norma o dever de o juiz proceder a uma ponderação entre o interesse da recuperação e os interesses que sejam, em concreto, visados pela norma violada com vista a decidir se, em homenagem ao primeiro a violação pode ser negligenciada.”[12]Em suma, violações de procedimento, de formalidades e/ou de conteúdo do plano, que têm como efeito a produção de um resultado ilegal ou proibido por lei e que, a verificarem-se, devem ser alvo do poder-dever oficioso de controlo e sindicância jurisdicional do procedimento e do plano se e depois de aprovado pelos credores.[13]
Com as alterações introduzidas pela Lei nº 9/2022, ao referido controlo de legalidade a al. g) do nº 7 do art. 17º-F introduziu o controlo judicial do mérito do Plano através da sindicância da sua adequação para evitar a insolvência da empresa e garantir a sua viabilidade, a aferir por recurso a critério de razoabilidade. Trata-se de um juízo, não de legalidade, mas de cariz técnico e económico no sentido de aferir, pela positiva, se o Plano é financeira e economicamente viável por referência à situação que visa prevenir – a incursão da devedora numa situação de insolvência atual[14]. “[N]ão estamos a apreciar factos, mas a realizar juízos estritamente técnicos sobre cenários empresariais concretos, atuais e futuros (…).”[15] Apreciação que é necessariamente casuística, por referência às concretas condições em que a devedora se apresenta e ao cenário produtivo que projeta ao longo da execução do plano em ordem à demonstração da sua capacidade para obter os recursos líquidos necessários à satisfação do passivo nos termos propostos pelo Plano aprovado pelos credores, e da capacidade de gerar as receitas necessárias à simultânea satisfação dos custos gerados pelo exercício da(s) atividade(s) económica(s) que se propõe prosseguir – em suma, o impacto das medidas do Plano sobre o passivo consolidado e no gerado pela sua manutenção em atividade, sempre sob o esteio da priorização da recuperação e da proporcionalidade e adequação das medidas previstas pelo plano no confronto entre o interesse do devedor na sua recuperação, e a “prossecução do interesse público ligado ao funcionamento da economia e à satisfação dos interesses do coletivo de credores”[16].
3. Revertendo ao caso, para além da transcrição dos arts. 17º-F, nº7, 194º, 195º, 196º, nº 1, al. a), 215º e 216º, imediata e sucessivamente seguida da transcrição de sumários de 3 acórdãos, a decisão assentou a recusa de homologação do Plano na não verificação do requisito previsto pela citada al. g) do nº 7 do art. 17º-F – por não apresentar perspetivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa -, conclusão que fundamentou nos seguintes dados e considerações:
i) em fevereiro de 2023 a devedora procedeu à alienação de património imobiliário e as informações contabilísticas juntas não permitem uma análise atualizada da situação patrimonial reditícia e financeira da empresa, nem prever a evolução futura relativa à sua viabilidade, nem aferir das vantagens para os credores de um cenário de liquidação; as informações contabilísticas juntas aos autos reportam apenas até ao final do ano de 2022 e os valores do ativo não corrente e corrente que neles constam, de cerca de €5.600.000,00 e €1.000.000,00, estão desfasados da realidade da situação patrimonial descrita no plano, que apresenta um ativo de cerca de €500.000,00;
ii) a devedora não se pautou pela boa fé porque alienou património em fevereiro de 2023, cessou atividade no mês seguinte (março de 2023), nessa situação em julho de 2023 apresentou-se a PER, e nesse período gerou nova dívida perante a Autoridade Tributária e a Segurança Social, agravando o seu passivo;
iii) a devedora está em situação de insolvência atual, que é revelada pela ausência de atividade, pelos capitais próprios negativos em valor que ascendem a €11.044.314,08, e pela confissão em sede de requerimento inicial de que não dispõe de liquidez e, também em sede do próprio plano, de que não dispõe de crédito bancário;
iv) a proposta de pagamento aos credores assenta numa eventual e não demonstrada obtenção de rendimentos de atividades sem qualquer base factual, que não se enquadram no objeto social da empresa e imporão uma alteração do mesmo; e numa previsão de exploração de novos estabelecimentos em estações de metro, incluindo em quiosques que ainda não existem e em estações de metro que ainda não estão em funcionamento, além de que nenhum elemento concreto foi apresentado que permita prever que os mesmos possam vir a ser licenciados à devedora;
v) o não pagamento das rendas dos alugueres de equipamentos desde abril de 2023, conforme alegado pela credora Liqui.do, S.A., suscita duvidas quanto à capacidade de assumir o cumprimento de contratos de locação futuros que lhe permitam a exploração dos seus estabelecimentos, já instalados ou a instalar.
Em sede de fundamentação a sentença recorrida mais qualificou de ‘excessiva, desproporcionada ou desrazoável’ a vinculação dos credores aos termos da reestruturação do passivo propostos pelo Plano, qualificação que não se reconduz ao requisito da al. g) do nº 7 do art. 17º, mas que a sentença também não reconduziu a qualquer vício de conteúdo do Plano por violação de regra ou princípio imperativo de Direito, designadamente, da igualdade (art. 194º), da proporcionalidade ou da proibição de excesso ou de sacrifício injustificado dos credores que, de resto, não foram invocados por qualquer credor, sequer nos termos particulares do best interest test (melhor interesse) do credor requerente da não homologação[17]previsto na al. e) do nº 7 do art. 17º que, como aqui consta, não é de conhecimento oficioso[18]. Neste segmento a sentença recorrida limitou-se a reproduzir a medida do perdão prevista para os créditos comuns (50%) e os termos e prazo de pagamento do remanescente (5% em 60 meses após um ano de carência, e o restante em 90 prestações), mas não os enquadrou, contextualizou ou confrontou com quaisquer outros elementos ou considerações suscetíveis de expor o raciocínio lógico subjacente àqueles juízos conclusivos com vista à sua justificação que, de resto, não se vislumbra, designadamente, por referência aos bens de devedora identificados no plano – cujo valor de liquidação sequer seria suficiente para pagamento dos créditos laborais inscritos na lista -, aos meios libertos de exploração ou outras receitas previstas no Plano por eventualmente permitirem o cumprimento dos créditos em termos mais favoráveis aos credores do que o proposto pela devedora - o que é afastado pelos valores dos mapas previsionais elaborados pela recorrente -, ou às medidas mais favoráveis previstas para outros credores – que apenas ocorre quanto aos créditos do Estado, para os quais o Plano prevê pagamento em prestações mensais iguais e sucessivas (ao longo de 150 a AT e de 60 a SS) sem qualquer perdão nem período de carência que prevê para os créditos comuns mas que se justifica pela natureza indisponível dos créditos públicos, no sentido de a sua regularização estar condicionada a limites de valores e prazo imperativamente previstos.
No demais, a fundamentação da sentença recorrida reconduz-se a (i) falta de informação, (ii) (iii) verificação de situação de insolvência da devedora, e (iv) (v) ausência de viabilidade do plano ou, mais rigorosamente, da possibilidade razoável de evitar a insolvência da devedora e permitir a sua viabilização.
(i) Na sentença recorrida é realçada a ausência de informação contabilística referente ao ano de 2023. É certo que, de acordo com o Sistema de Normalização Contabilística, a contabilidade é obrigatória para as sociedades comerciais (cfr. art. 3º, nº 1 do Decreto Lei nº 158/2009 de 13.07 que aprovou o SNC), e tem como objetivo obter de forma verdadeira a posição financeira da empresa e o resultado das suas operações para compreensão da respetiva situação e adoção das necessárias medidas à garantia da respetiva sustentabilidade em cada momento da sua vida ao longo dos contextos económico e financeiros que atravessa. Tal obrigação decorre ainda do estatuído nos artigos 1º e 17º, nº 3 do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas e, para efeitos fiscais, destina-se a permitir a determinação e controlo do lucro tributável das pessoas coletivas. Assim, a contabilidade deve estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respetivo setor de atividade e refletir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo através do lançamento dos respetivos documentos de suporte nas contas a que respeitam e que, no termo do exercício, vai permitir o apuramento dos saldos de cada rubrica e a elaboração do balanço que integra as demonstrações financeiras do exercício a apresentar em sede de prestação e depósito de contas. Para além da vertente da fiscalidade tributária, pretende-se que a contabilidade seja fonte de informação de toda a atividade comercial da empresa a que respeita, para assim proporcionar informação acerca da real posição financeira e dos resultados das operações da empresa, informações que são úteis não só aos investidores, fornecedores e trabalhadores, mas imprescindíveis também aos próprios administradores e aos credores, máxime no âmbito dos procedimentos insolvenciais e pré-insolvenciais, para permitir o enquadramento e melhor compreensão da situação da devedora e das possibilidades de maximização da satisfação do passivo através da liquidação do ativo ou do exercício da atividade.
Porém, ainda que assim seja, ultrapassada a apreciação da repercussão dessa falta na fase liminar de admissão do procedimento, o elenco das informações mínimas que o Plano deve conter e que agora constam previstas no art. 17º-F, nº 1[19], a al. b) apenas impõe “a descrição da situação patrimonial financeira e reditícia da empresa no momento da apresentação da proposta do plano de recuperação, indicando, nomeadamente, o valor dos ativos, e fazendo uma descrição da situação económica da empresa, descrição que não se impõe seja cumprida, nem tão pouco se basta, com a junção de documentos contabilísticos[20] e que, no caso, a recorrente cumpriu com mais ou menos relato nos termos acima resumidamente descritos em 16. e 18., incluindo a indicação do valor dos bens e direitos de que é proprietária/titular. Valor e bens que não têm que coincidir, e poucas vezes coincidem, com os valores e bens inscritos e contabilizados como ativo posto que, para além de este conceito abranger ativos não físicos, intangíveis e não monetários (como por exemplo, o goodwiil), o seu âmbito não tem como critério o direito de propriedade sobre os bens, antes abrange todos os recursos controlados pela entidade como resultado de acontecimentos passados e do qual se espera que para esta fluam benefícios económicos futuros, o que abrange bens alheios detidos pela empresa, bem como investimentos incorporados em bens alheios que, cessada a fruição pela empresa, revertem para o proprietário[21] e que, por isso, não são abrangidos pelo princípio da responsabilização patrimonial previsto pelo art. 601º do Código Civil. Acresce que, conforme alegado nos autos pela recorrente e por credores, em 2023 a recorrente procedeu à transmissão dos seus imóveis e ao trespasse dos respetivos estabelecimentos; e conforme reserva do ROC às contas do exercício de 2021, o valor de cerca de €3.750.000,00 inscrito no ativo (e que no balancete de 2022 consta sob a conta 45, investimentos em curso) corresponde a investimento realizado em exercícios anteriores mas sem retorno. Factos que justificam a divergência entre o valor do ativo inscrito no balancete de 2022 e os parcos bens/valores com que a recorrente se apresentou a PER. Relativamente à descrição da situação financeira e reditícia, em consonância com a declarada ausência de atividade a partir de março de 2023 e da sua retoma apenas em janeiro de 2024, e tendo presente que a ultima versão do Plano foi apresentada em 15.01.2024, releva a informação contida no quadro da demonstração do cash-flow reproduzido sob o ponto 20, de ausência de receitas provenientes do exercício da atividade comercial da recorrente no ano de 2023 (sendo que a única receita ali inscrita provém da venda de ativos pelo valor de €85.000,00 ali – e só ali - referida ), e a informação contida no quadro descritivo dos valores de amortização da dívida, do qual consta que em 2023 as únicas saídas de dinheiro da devedora, no valor total de €80.000,00, correspondem ao pagamento de vencimentos e acordos em atraso (€40.000,00), fornecimento de serviços externos (FSE, €15.000,00), e serviços críticos actividade[22] (€25.000,00).
A decisão mais aponta a falta de informação necessária à previsão da evolução futura relativa à viabilidade da devedora, fundamento que remete para a informação que a versão final do plano de recuperação deve conter, nos termos previstos pela al. h) do art. 17º-F, nº1 – entre outra, pelo menos (…) Os fluxos financeiros da empresa previstos, incluindo designadamente plano de investimentos, conta de exploração previsional e demonstração previsional de fluxos de caixa pelo período de ocorrência daqueles pagamentos, especificando, fundamentadamente, os principais pressupostos subjacentes a essas previsões e o balanço pró-forma, em que os elementos do ativo e do passivo, tal como resultantes da homologação do plano de recuperação, são inscritos pelos respetivos valores. Neste âmbito surpreende-se a falta do balanço pró-forma ou previsional referente ao período de execução do plano, sendo que, como é realçado por Fátima Reis Silva, “[e]stes elementos são extremamente importantes porque permitem verificar a fiabilidade das previsões e serão relevantes para a avaliação da viabilidade do plano.”[23] Com efeito, o balanço é o documento das demonstrações financeiras que apresenta a posição financeira de uma empresa no final de determinado período de tempo (exercício económico) e fornece informação detalhada sobre os seus ativos (o valor investido na empresa), passivos (obrigações da empresa perante terceiros) e capital próprio (a situação ou o património liquido da empresa, correspondente à diferença entre os seus ativo e passivo) de uma empresa e que, precisamente, permite avaliar a sua saúde financeira e, assim, integra o conteúdo mínimo exigido pelo art. 17º-F, nº 1 enquanto elemento para sindicar a viabilidade do próprio Plano[24]. Nesse sentido, acórdão desta secção de 21.05.2024 acima citado: “1 - A formulação do nº2 do art. 195º do CIRE indica que os elementos enunciados nas várias alíneas constituem um conteúdo mínimo imperativo do plano de insolvência, sendo que a falta de algum ou alguns desses elementos, com a possível exceção dos elementos referidos nas atuais alíneas a) e i), se o plano for, ainda assim, admitido, votado e aprovado, é causa de não homologação nos termos do art. 215º do CIRE – trata-se da violação não negligenciável de regra aplicável ao conteúdo do plano. (…). 5 – O plano de investimentos, a conta de exploração previsional (demonstração de resultados previsional) e a demonstração previsional de fluxos de caixa previstos na al. d) do nº2 do art. 195º do CIRE têm que abranger todo o período de ocorrência dos pagamentos previstos no plano.(…). 7 – A exigência do balanço pró-forma, igualmente constante da al. d) do nº2 do art. 195º do CIRE, possibilita a aferição pelos credores de se as medidas propostas são suficientes para afastar a situação de insolvência atual da devedora e em que medida.”
Questão – de cumprimento de um conteúdo mínimo de informação devida conter no Plano - que se apresenta em estreita relação com o dever de aferição judicial da perspetiva razoável de o Plano evitar a insolvência da empresa, sendo que dos termos em que o legislador o previu – pela positiva – resulta que o ónus da demonstração da viabilidade do plano recai sobre o devedor[25], no que se enquadra a imposição de uma exposição de motivos indicativa das razões pelas quais o devedor assim o entende, nos termos previstos pela al. j) do nº 7 do art. 17º-F, que serve também para formação esclarecida do sentido de voto dos credores.
Ónus cujo cumprimento não se reconduz a uma prova no sentido estrito do termo, mas ‘apenas’ a uma justificação assente em dados objetivos, ainda que previsionais, da qual a viabilidade resulte como uma possibilidade razoável. De resto, não se vislumbra outro grau de convicção ou critério de decisão compatível com o devir descrito pelo Plano posto que, por natureza, é integrado por previsões/prognósticos de desempenho que só o devir do tempo pode ou não confirmar. Como é referido por Luis Campos[26] - a propósito dos critérios que deverão presidir à apreciação judicial do melhor interesse do credor, mas com inteira pertinência no juízo sobre o mérito do plano -, “[o] processo de insolvência e o PER são processos urgentes e que decorrem de forma célere, não havendo espaço para qualquer diligência de produção de prova, pelo que apenas será possível juntar documentos que atestem os factos invocados (…). A impraticabilidade de diligências de produção de prova concede ao Tribunal uma margem maior de liberdade na apreciação dos factos alegados e dos documentos que, eventualmente, venham a ser juntos. Liberdade que não pode ser sinónimo de discricionariedade, pois a atividade jurisdicional de apreciação dos factos é limitada pelas regras da lógica, ciência e experiência comum. (…). . A maior plausibilidade só acontecerá se conseguir alegar factos concretos que, pela sua natureza evidente (não necessitando de prova) ou pela prova apresentada, sejam suficientes para demonstrar que não correspondem à verdade os factos constantes do plano ou para afastar a máxima da experiência comum ou os critérios de racionalidade económica que o devedor tenha seguido para alcançar a conclusão do caráter benéfico do plano, tornando mais improvável a tese deste. (…). O Tribunal não poderá recusar a homologação do plano sem que fique, efetivamente, convencido da maior plausibilidade da tese do credor discordante, sob pena de impedir, injustificadamente, a concretização do desiderato legal da recuperação do devedor.//(…)//(…) é necessário que cada interveniente processual cumpra o ónus a seu cargo e que, em situações de dúvida, seja privilegiado o devedor, porque é essa a filosofia de um processo de recuperação, enquanto processo “in favor debitoris”. Não existindo esta postura de privilégio em situações de dúvida, o critério do “melhor interesse dos credores” [que aqui substituímos pelo requisito da perspetiva razoável da viabilidade do Plano] deixará de ser um mecanismo de proteção do credor discordante face à vontade da maioria, para ser um mecanismo de bloqueio de qualquer reestruturação.”
Sem prejuízo de se impor que as previsões contidas no Plano se baseiem em critérios de racionalidade económica, que o julgador deverá assumir pela positiva, exceto se as premissas do plano de negócios se apresentarem como manifestamente irreais e/ou inexequíveis à luz do senso e regras de experiência comum, o que não ocorre relativamente aos termos em que a recorrente projeta desenvolver e expandir a sua atividade através da obtenção do licenciamento de novos estabelecimentos em quiosques que ainda não existem e em estações de metro que ainda não estão em funcionamento, relevando a favor da previsão da recorrente o histórico da sua atividade e das relações com o fornecedor da sua principal mercadoria (Jogos da Santa Casa da Misericórdia), bem como o facto de já na pendência destes autos esse licenciamento já lhe ter sido concedido para pelo menos duas lojas no metro, e autorizada a comercializar produtos dos Jogos da Santa Casa da Misericórdia na qualidade, que mantém, de sua mediadora. Assim, o raciocínio a fazer é o inverso do exposto na sentença recorrida - nenhum elemento concreto foi apresentado que permita prever que os estabelecimentos projetados pela recorrente não lhe venham a ser licenciados.
Como elemento coadjuvante na formulação do juízo de mérito do Plano que, como se referiu, é de natureza financeira e económica, de forma igualmente inovadora o procedimento passou a impor ao AJP a elaboração de Parecer a esse respeito que, nessa fase (pós votação), só cumprirá o seu papel de auxiliar da justiça e a finalidade processual para que aquela peça foi pensada se a conclusão por ele expressada assentar em factos ou dados concretos convocados para a justificar, não através de genéricos e lacónicos chavões, mas através de um enquadramento técnico e económico que, na medida do possível e no essencial, ‘troque por miúdos’ as bases e o alcance das previsões apresentadas pela devedora. Mas, como é realçado por Fátima Reis Silva[27], o elemento principal de avaliação é o próprio objeto da avaliação, o plano e elementos de junção obrigatória, à cabeça, as informações previsionais previstas na já citada al. h) do nº 1 do art. 17º-F.
Analisadas as informações previsionais contidas no Plano – nas quais, como já se apontou, não constam os balanços previsionais, falta que obsta à aferição do valor do ativo e da evolução dos capitais próprios da devedora ao longo do período da execução do Plano -, desde já se adianta que dos fluxos financeiros compilados na previsão das receitas e dos resultados resulta infirmada a adequação do Plano para evitar a insolvência e garantir a viabilidade da devedora.
Conforme quadros que se reproduziram em sede de fundamentação de facto, nos mapas previsionais o plano indica os valores anuais de EBITDA, os valores anuais a pagar aos credores (amortizações), e os valores dos resultados-cash flows por ano e acumulados.
Para contextualização do que se analisa, o EBITDA - "Earnings Before Interest, Taxes, Depreciation and Amortization", que em português corresponde a resultado antes de juros, impostos, amortizações e depreciações - é um indicador utilizado na análise financeira que mede a eficiência operacional de uma empresa, independentemente da sua política de amortizações e depreciações, do montante de encargos com a dívida financeira, das suas receitas financeiras e da política fiscal. Corresponde ao resultado operacional do negócio, da atividade a empresa, desconsiderando a forma como os ativos são financiados e depreciados. Numa fórmula mais simples, e conforme consta demonstrado no Plano, corresponde ao balanço diferencial entre as receitas geradas pela atividade no período e as despesas correntes por esta geradas – o valor das receitas geradas pela venda das mercadorias e pelos serviços prestados, deduzido do valor do custo dessas mercadorias e das despesas operacionais da atividade (recursos humanos, rendas, fornecimento de serviços externos, ‘back office’, e investimento).
O cash-flow ou fluxo de tesouraria corresponde ao fluxo do dinheiro, o que entra (inflows) e sai (outflws) de uma empresa num período de tempo específico, que constitui um indicador de extrema importância na gestão da dinâmica da empresa porque fornece uma visão realista e atual da empresa e permite rapidamente avaliar se dispõe ou não de liquidez para cumprir pontualmente os compromissos nas datas dos seus vencimentos, e, por isso, o principal critério de aferição e caracterização da situação de insolvência, conforme previsto no art. 3º, nº 1. O cash-flow operacional ou de exploração permite aferir se a atividade produtiva está ou não a gerar fluxos positivos.
Reportando às demonstrações previsionais contidas no Plano e acima transcritas, nos 3 primeiros anos da execução do plano (2024, 2025 e 2026) a recorrente prevê EBITDA nos valores positivos de €87.764,00, €218.765 e €370.554,00, e amortizações do serviço de dívida objeto do PER nos valores de, respetivamente, €354.413,00, €362.272 e €405.000,00. Conforme definições acima expostas, a estes valores de EBITDA e amortizações apenas podem corresponder valores de cash-flow operacional sucessivamente negativos de €270.649,00 (2024), €143.507 (2025), e €34.446,00 (2026), sendo que no Plano constam valores de cash flows positivos de €5.000,00 e €92.764,00 para os anos de 2023 e 2024. Porém, constata-se que estes resultam da inclusão e consideração de receita proveniente de venda de ativos (em 2023) nos valores de €85.000,00 e €265.000,00, venda que surge completamente descontextualizada posto que não lhe é feita qualquer referência na parte descritiva/expositiva do plano, além de que a relação de bens que neste identificou é composta apenas pelos 4 estabelecimentos através dos quais se propôs prosseguir a sua atividade comercial, e por veículos, ½ sobre imóvel sito em Vinhais, e direitos de crédito objeto de execução que, no total, ascendem a cerca de €15.000,00. Neste cenário, a recorrente não assenta a receita proveniente da venda de ativos em dados objetivos ou objetiváveis que a justifiquem, nem apresenta qualquer justificação para a proveniência da mesma, pelo que não pode considerar-se como previsão atendível, fiável.
Para os anos de 2025 e 2026 o Plano indica cash flow operacional positivo de €121.493,00 para o ano de 2025, e negativo de €34.446,00 para o ano de 2026. Ora, mesmo considerando as receitas provenientes da venda inscritas nos anos de 2023 e 2024 e os valores do cash flow acumulado que daquelas decorrem, o valor positivo para 2025 só pode tratar-se de lapso de escrita posto ser evidente que o EBITDA no valor de €218.765,00 não permite pagar o valor de €362.272,00, cifrando-se a diferença negativa em €143.597,00. Nos primeiros anos em referência, o único valor previsional do cash flow que no plano surge corretamente calculado corresponde ao indicado para o ano de 2026, negativo de €34.446,00 (€370.554-€405.000).
Daqui resulta que, mesmo com a redução do seu passivo e do prolongamento do prazo do seu pagamento, nos três primeiros anos da sua execução a recorrente não dispõe nem iria dispor de meios para o seu cumprimento por ausência de meios libertos em valores suficiente para o efeito. Ou seja, o Plano aprovado estaria votado ao incumprimento logo nos primeiros 3 anos da sua execução, revelando de forma inexorável a sua inaptidão para evitar a situação de tesouraria deficitária característica da situação de insolvência, na qual a recorrente indubitavelmente se encontra e, ainda que assim não fosse, na qual incorreria logo nos primeiros 3 anos da execução do plano. Constatação que, para além da referida ausência de liquidez para fazer face às amortizações do passivo consolidado pela totalidade dos valores previstos no plano para cada um desses 3 primeiros anos (2024 a 2026), surge reforçada pelo afirmado nas alegações de recurso da devedora, de que “Actualmente, o negócio da Recorrente liberta já margem suficiente para liquidar os compromissos com pessoal, fornecedores correntes, com excepção dos senhorios dos espaços” (conclusão XXXIII, subl. nosso). O que equivale a dizer que nos últimos seis meses (de janeiro de 2024, data em que a recorrente afirma ter reiniciado a atividade em 3 dos 4 estabelecimentos que afirma deter, a julho de 2024, data da apresentação das alegações) a recorrente não gerou receitas suficientes para fazer face a todos os seus encargos operacionais e que, por isso, a sua manutenção em atividade tem importado na criação de novo passivo vencido e não pago por ausência de liquidez para o efeito.
Do cenário que a própria recorrente descreve decorre que os resultados e desempenhos económicos positivos revelados nas demonstrações de resultados previsionais não só não correspondem à realidade dos fluxos financeiros gerados pela atividade que atualmente mantém – posto que, contrariamente ao que descreveu nos mapas previsionais, não cumpre as rendas devidas[28] e, por isso, sequer gera liquidez suficiente para satisfação das despesas correntes do exercício em curso -, como são insuficientes para fazer face ao serviço da dívida objeto do PER nos termos aqui aprovados – que, relembre-se, inclui créditos laborais emergentes do despedimento de 10 trabalhadores já no decurso do PER, e dívida ao Estado superior a €2.600.000,00 - encontrando-se por isso em situação de insolvência atual e não meramente iminente, que se mantém não obstante a reestruturação do passivo nos termos que propôs, sendo certo que no fracionamento dos valores em dívida ao Estado - que, nos primeiros 5 anos da execução do Plano, cumula pagamentos à Autoridade Tributária e à Segurança Social -, a recorrente estava condicionada pelo numero de prestações e valor mínimo das mesmas nos termos legalmente previstos para regularização de dívidas daquela natureza (sob pena de ineficácia da medida proposta relativamente ao Estado, conforme solução que nesses casos tem vindo a ser aplicada pelos tribunais).
Situação de insolvência que se manifesta no facto de manter dívida à Autoridade Tributária no valor de cerca de €2.600.000,00 desde que requereu o primeiro PER em 2017 até à instauração do presente, o que - independentemente dos factos tributários de que emergem, do tipo ou natureza dos tributos em dívida, ou da data em que os mesmos foram liquidados -, só pode significar uma de duas situações: ou a recorrente não cumpriu o plano de pagamentos da dívida à AT previsto no Plano aprovado e homologado no PER de 2017 ou, se como a recorrente alega, até à instauração destes autos cumpriu cerca de €520.000,00[29] da dívida objeto daquele Plano, então, conforme foi alegado pelo Ministério Público, não procedeu ao pagamento da dívida fiscal corrente ou liquidada nesse mesmo período. Qualquer uma das hipóteses é reveladora de situação de insolvência.
Situação de insolvência que é ainda ostensivamente revelada pela manifesta superioridade do seu passivo sobre o ativo (à razão de cerca de €35M para €16M em 2017, e à razão de cerca de €13M para €6M em 2022) e pelo facto de, como a própria recorrente alega, para fazer face a passivo financeiro em situação de incumprimento[30] ter procedido à alienação de todo o seu património imobiliário valioso (restou direito sobre metade do único imóvel que identificou nos autos e avaliou em cerca de €5.000,00)[31] e, entre 2017 e fevereiro de 2023, todos os seus estabelecimentos (que no PER de 2017 referiu serem 23 de venda ao publico e 9 de revenda) e, não obstante a liquidação da quase totalidade dos seus bens, manter cerca de €13.000.000,00 de passivo e sem recursos próprios ou alheios para o cumprir[32] nem possibilidade para os gerar durante, pelo menos, 9 meses, período durante o qual, no seguimento do trespasse dos seus estabelecimentos, cessou de facto a sua atividade. Ausência de liquidez que a recorrente também manifestou no requerimento inicial deste PER ao alegar que, com exceção da dívida à AT, no demais o Plano não estava a ser cumprido.[33]
Situação de insolvência que é implicitamente confirmada por Contabilista Certificado na declaração a que alude o art. 17º-A, nº 2 junta com o requerimento inicial e que subscreveu em 18.07.2023[34] ao afirmar ali que a recorrente não se encontra em situação de insolvência por considerar “O âmbito do acordo de reestruturação que a Sociedade pretende negociar e viabilizar junto dos seus credores”, sendo certo que o juízo técnico de não insolvência que nessa declaração se pretende é por referência à situação atual da devedora e não à situação em que a mesma ficará com o Plano visado apresentar. Note-se que na certificação legal de contas do exercício de 2021, subscrita em 19.01.2023, sob a epígrafe “Incerteza material relacionada com a continuidade” o ROC da recorrente referiu que, para além do capital próprio negativo de cerca de €13M, “o fundo de maneio é também negativo no montante de 6.367 milhares de euros.”, sendo que o fundo de maneio é o montante necessário para que uma empresa consiga assegurar o normal financiamento da sua atividade, uma espécie de ‘almofada financeira’ para que mantenha a capacidade de assegurar a liquidez a curto prazo. Mais referiu o ROC que “[o] business plan apresentado no âmbito do PER pela casa-mãe, prevê a recuperação de resultados e o acordo alcançado com o principal banco financiador prevê igualmente a melhoria da posição financeira através do reforço do capital próprio (aumento de capital/prestações suplementares) a realizar pelos actuais acionistas. (…)”, reforço que não terá passado do plano das intenções posto que da certidão comercial da recorrente não consta registo de aumento de capital posterior a 2021, do balancete de 2022 não constam inscritas prestações suplementares, e no Plano apresentado nestes autos não é feita qualquer referência a previsão de aumento de capital ou de realização de prestações suplementares.
Refira-se porém que, não obstante se confirmar a situação de insolvência atual da recorrente invocada pela sentença recorrida[35], não é a constatação da sua verificação que em si mesmo determina e fundamenta a não homologação do Plano[36][37], mas apenas enquanto reveladora da inaptidão do Plano para a evitar - no caso, mais rigorosamente, para a cessar -, e/ou para garantir a viabilidade económica da devedora.
Inaptidão que os elementos disponibilizados e alegados nos autos pela própria devedora reforçam por deles resultar a inviabilidade económica do plano de negócios com o qual se propôs reiniciar e prosseguir atividade para simultânea satisfação do passivo corrente e do passivo consolidado nos termos previstos pelas medidas de reestruturação aprovadas por maioria legal de credores.
Inviabilidade (económica e financeira) que é reforçada pelo histórico da gestão do ativo e do passivo levada a cabo pela recorrente desde pelo menos 2016, mais concretamente, pela venda da sede da empresa “sob a forma de dação em pagamento ao credor hipotecário” (conforme consta referido no Plano do PER de 2017) e pela alienação dos seus imóveis e estabelecimentos, uma e outra para satisfação de passivo à Banca, ao fornecedor Jogos da Santa Casa da Misericórdia e à Segurança Social[38], o que, “pela incapacidade séria de ajustar os atuais meios libertos operacionais a um compromisso de serviço da dívida exequível” (conforme consta referido no Plano de 2017, mais não revela que foi só por recurso à via da liquidação do seu património, incluindo o seu ativo produtivo, que a recorrente logrou obter liquidez para pagar grande parte da sua dívida bancária (note-se que em 2016/2017 a CEMG detinha crédito de cerca de €21M sobre a recorrente).
Com o que se conclui pelo acerto da sentença recorrida e, consequentemente, pela improcedência do recurso.
V– Decisão
Em face de todo o exposto, os juízes desta secção acordam em:
- Julgar a apelação improcedente, com consequente manutenção da decisão recorrida.
- Condenar a recorrente em 1 UC de taxa de justiça pela indevida apresentação de documentos com as alegações.
- Condenar a recorrente nas custas da apelação.
Lisboa, 15.10.2024
Amélia Sofia Rebelo
Isabel Fonseca
Nuno Teixeira
_______________________________________________________ [1] Diploma ao qual reportam todas as normas doravante citadas sem outra indicação expressa. [2] Esta subscrita pelo credor Radar da Sorte, Lotarias e Jogos, Ldª. [3] Votaram a favor os credores BTO Concept Net, Ldª (€32.210,60), Novo Banco, SA (€59.427,65), Radar da Sorte (€9.621.410,40), R. Pena, Arnaut & Assoc., RL (€24.153,01) .
Votaram contra os credores … (€11.829,28), AT (€2.581.719,02), BCP (€57.447,02), ISS (€21.470,93), Liqui.do, SA (€13.842,94), … (€23.364,17), Vintagepink, Ldª (€31.638,33) [4] Cfr. acórdão do STJ de 30.11.2023. [5] Estabelecem que: 1 - No caso de pluralidade de fundamentos da ação ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respetiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação. 2 - Pode ainda o recorrido, na respetiva alegação e a título subsidiário, arguir a nulidade da sentença ou impugnar a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto, não impugnados pelo recorrente, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas. [6] Sobre a delimitação do objeto do recurso nos termos enunciados vd. acórdão proferido nesta sessão no processo nº 25546/23…, relatado por Fátima Reis Silva e no qual são adjuntos a aqui relatora e o 2º adjunto. [7] J. Castro Mendes e M. Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. II, AAFDL 2020, p. 133. [8] Não se determina o desentranhamento dos documentos rejeitados por consubstanciar ato inútil (artigo 130º do Código de Processo Civil). [9] Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 39/XII apresentada pelo Governo na Assembleia da Republica em 02.01.2012, que deu origem à Lei nº 16/2012 de 20.04 pela qual se procedeu à sexta alteração ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março. [10] Preâmbulo do DL 79/2017 de 30.06. [11] Prevê que “Os devedores, incluindo as entidades jurídicas e, se o direito nacional assim o previr, as pessoas singulares e os grupos de sociedades, deverão poder dispor de um regime de reestruturação que lhes permita enfrentar as suas dificuldades financeiras numa fase precoce, quando for provável que será possível evitar a sua insolvência e garantir a viabilidade da empresa. O regime de reestruturação deverá estar disponível antes de o devedor ser declarado insolvente nos termos do direito nacional, ou seja, antes de o devedor preencher as condições do direito nacional necessárias para iniciar um processo de insolvência coletivo que, normalmente, implica a inibição total do devedor e a nomeação de um síndico. A fim de evitar o recurso abusivo aos regimes de reestruturação, as dificuldades financeiras do devedor deverão indicar uma probabilidade de insolvência e o plano de reestruturação deverá ser capaz de impedir a insolvência do devedor e de assegurar a viabilidade da empresa.” [12] Lições de Direito da Insolvência, Almedina, p. 474. [13] Afigura-se-nos que na apreciação sobre eventual violação de regras procedimentais e/ou de normas reguladoras ou aplicáveis ao plano e, na positiva, do caráter negligenciável ou não negligenciável da violação, o diagnóstico diferencial entre uma e outra estará em estreita dependência com a perspetiva ou natureza do critério informador da apreciação/decisão: ou assumindo uma via de cariz pedagógico e/ou moralizador, assente e fundamentada em princípios ou regras imperativas enquanto valores em si mesmo a tutelar; ou, partindo daqueles princípios (que se impõem como incontornável ponto de partida), assumindo uma via de cariz pragmática e teleológica, assente na apreciação, caso a caso, quer do impacto/relevância/peso do vício na elaboração ou na aprovação do Plano, quer do impacto que a ausência de Plano é apta a produzir na esfera jurídica dos credores que, necessariamente, passa pelo impacto na esfera jurídica da devedora. [14] Sobre a matéria vd. Fátima Reis Silva, As novas funções do juiz no processo especial de revitalização (PER) – depois da Lei nº9/2022 de 11.01, em Revista Julgar nº 50, pg. 113 e ss.; e Joana Santos, Controlo Judicial da Viabilidade do Plano de Recuperação, em VI Congresso de Direito da Insolvência, pg. 45 e ss. [15] Joana Santos, ob. cit., p. 55. [16] Acórdão da Relação de Guimarães de 20.02.2014, proferido no âmbito do processo nº 3617/13.OTBBRG.G1, disponível na página da dgsi. [17] Apreciação casuística assente na comparação entre a situação em que o credor ficará com o plano e a situação em que ele previsivelmente ficaria sem o plano, sendo que nos termos daquela norma, a alternativa de referência circunscreve-se o cenário de liquidação da empresa e o princípio da responsabilização do património do devedor de acordo com a ordem de preferência de pagamento legalmente prevista. Com efeito, perante a incapacidade do devedor cumprir a dívida nos termos do contrato que celebrou com o credor, no que respeita ao passivo objeto do PER não se pode pretender comparar a situação que para o credor resulta do plano com a situação de que beneficiava à luz desse contrato, que já não pode ser cumprido e que, por isso mesmo, e por força do seu não cumprimento pontual, já se desviou das condições de pagamento por aquele previstas e em vigor, pretendendo-se com o processo de recuperação a sua alteração (vd. Luis Campos, O melhor interesse dos credores, em Revista de Direito da Insolvência, nº 6, 2022, p. 10 e ss.). [18] Opção que, na tradição do art 216º, nº 1, al. a), tem correspondência com o art. 10.° n.° 2 da Diretiva 2019/1023, que só admite a intervenção do Tribunal para analisar o "teste do melhor interesse dos credores” "se o plano de reestruturação for objeto de pedido de não homologação com esse fundamento. [19] Como é realçado por Fátima Reis Silva, no âmbito das alterações introduzidas pela Lei nº 9/2022 de 11.01, [o] legislador optou por regular diretamente os elementos a juntar pelo devedor, juntamente com o plano de recuperação, eliminando a anterior remissão para o art. 195º do CIRE.” (ob. it., p. 121). Regulação que fez em estreita correspondência com o art. 8º, nº 1 da Diretiva. [20] Nesse sentido, e ainda que por referência plano de insolvência e ao art. 195º, nº 2, acórdão desta secção de 21.05.2024, relatado por Fátima Reis Silva e subscrito pelo aqui 2º adjunto no processo 18752/23.8T8LSB-E.L1: “4 – A descrição da situação patrimonial, financeira e reditícia do devedor, prevista na al. b) do nº2 do art. 195º do CIRE não se satisfaz com a junção dos (sintéticos) documentos de prestação de contas, havendo que juntar uma descrição sobre a situação patrimonial (o património da sociedade), a situação reditícia (os rendimentos, o retorno que a sociedade gera) e a situação financeira (quanto se gasta e quanto se ganha) ao tempo da apresentação da proposta de plano.” [21] Cfr. §§ 52 a 58 da Estrutura Concetual do Sistema de Normalização Contabilística, e Normas Contabilísticas e de Relato Financeiro (NCRF) 6 e 7. [22] Com grande probabilidade corresponderão ou abrangerão os custos associados à instauração e atividade desenvolvida nos autos pela devedora, incluindo a elaboração das versões do Plano de Recuperação apresentadas nos autos. [23] Ob. cit, p. 122. [24] Nesse sentido, acórdão desta secção de 21.05.2024 acima indicado: “1 - A formulação do nº2 do art. 195º do CIRE indica que os elementos enunciados nas várias alíneas constituem um conteúdo mínimo imperativo do plano de insolvência, sendo que a falta de algum ou alguns desses elementos, com a possível exceção dos elementos referidos nas atuais alíneas a) e i), se o plano for, ainda assim, admitido, votado e aprovado, é causa de não homologação nos termos do art. 215º do CIRE – trata-se da violação não negligenciável de regra aplicável ao conteúdo do plano. (…).5 – O plano de investimentos, a conta de exploração previsional (demonstração de resultados previsional) e a demonstração previsional de fluxos de caixa previstos na al. d) do nº2 do art. 195º do CIRE têm que abranger todo o período de ocorrência dos pagamentos previstos no plano.” [25] Divergindo assim do critério do best interest, que exige a alegação e demonstração de factos concretos que permitam a apreciação comparativa dos efeitos produzidos pelos dois cenários que aquele pressupõe [26] Ob. citada. [27] Em Plano(s) de recuperação – As alterações da Lei nº9/2022 – em especial o juízo de viabilidade, disponível em https://caaj.justica.gov.pt/Portals/27/Ficheiros/AJ/2022/forma%C3%A7%C3%A3o/Novo%20dever%20de%20apreciar%20a%20viabilidade%20do%20plano%20de%20insolv%C3%AAncia%20(Juiz%20F%C3%A1tima%20Reis%20Silva).pdf?ver=GMVbU5p1QBiIBiLiEB5VUg%3D%3D [28] Custo que nos mapas previsionais inscreveu no valor de €58.410,00 para o ano de 2024. [29] Cfr. conclusão XLVI, da qual consta que “Desde o primeiro PER até ao presente, a Recorrente liquidou à Autoridade Tributária o valor de 526.774€, tendo conseguido reduzir a dívida perante aquela credora.” [30] Conforme consta dos factos assentes, da ata da assembleia geral nº 64 de 20.01.2023 consta que o conselho de administração da recorrente comunicou que para ultrapassar a situação difícil da empresa passa pelo trespasse de um numero significativo de lojas para permitir reduzir de forma significativa o seu passivo, tendo os acionistas deliberado ratificar aas operações de trespasse de lojas realizadas em 2022, que abrangeu as seguintes: Estabelecimento de Braga, Estabelecimentos do Porto – S. Bruno e Cedofeita, Estabelecimento Aveiro, (…) Viseu, (…) Coimbra, (…) de Setúbal, (…) de Faro, (…) de Alvalade (…) de Benfica (…) de Moscavide (…) na Rua da Vitória (…) na Costa da Caparica (…) Cova da Piedade e (…) em Castelo Branco.” [31] Para além do que surge alegado no âmbito dos autos, na conclusão VIII a recorrente alegou que “Em Fevereiro de 2023, a Recorrente deu em pagamento à credora “Radar da Sorte” todos os seus imóveis (à excepção de um terreno de valor quase nulo), pelo seu valor comercial, num total de €2.683.555,00 (activo considerado na referida informação contabilística de 2022 no valor de 1,378 M€. [32] Nos arts. 42º e 43º do requerimento inicial a recorrente alega expressamente que não dispõe de liquidez imediata para cumprir as suas dívidas e para cumprir o anterior plano de revitalização, e não conseguiu obter entradas de capital. [33] Cfr. arts. 25º e 33º do requerimento inicial. [34] Não obstante a renuncia ao cargo de CC da recorrente em março de 2023 e de o ter retomado apenas em março de 2024. [35] E que, independentemente de na pendência do PER ter ou não constituído novo passivo – como foi alegado pelo MP e negado pela recorrente - a situação de insolvência da recorrente surge sobejamente demonstrada, não só pelo elevadíssimo montante do passivo vencido (cerca de €13M) em confronto com a cessação da sua atividade comercial no ano de 2023 e a ausência de recursos para pagamento dos direitos laborais dos trabalhadores que na pendência do PER cessaram os respetivos contratos (e que corresponderão aos inscritos na lista de créditos), mas também pela manifesta superioridade do passivo sobre o ativo (revelada pelo valor de capitais próprios negativos de cerca de €13M inscrito no balancete de 2022), pelo atraso superior a 9 meses na aprovação e depósito das contas de 2022 (posto que notificada para as juntar, em março de 2024 a devedora declarou que não estavam concluídas), e pelo incumprimento generalizado nos últimos seis meses de rendas de qualquer tipo de locação (cfr. arts. 3º, nº 3 e 20º, nº1, als. a) ou b), g) e h). [36] Tanto mais que o art. 17º-F, nº 1, al. b) parece afastar essa possibilidade, e de outra forma não se justificaria a exigência da descrição da situação patrimonial, financeira e reditícia no momento da apresentação da proposta do Plano. [37] Sem prejuízo da eventual pertinência da análise e cotejo da maioria da aprovação do plano com os termos do próprio Plano - posto que o PER prevê fórmulas de contabilização distintas para além da prevista no processo de insolvência – afigura-se-nos carecer de sentido, justificação e utilidade práticas rejeitar a homologação de um Plano de recuperação aprovado pelos credores pelo ‘simples’ facto de a devedora evidenciar uma situação de insolvência já que, na ausência de outro fundamento para a não homologação, essa decisão em PER só teria o ‘dom’ de ‘obrigar’ a devedora a submeter novamente o plano à aprovação dos credores e à homologação do tribunal no âmbito do processo de insolvência. [38] Da referida certificação legal das contas de 2021 consta que “Durante o exercício de 2022, a C... Procedeu também a uma redução do passivo junto do Instituto de Gestão Financeira Social e junto do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, com fundos provenientes do trespasse de alguns estabelecimentos.”