EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PENSÃO DE ALIMENTOS
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Sumário

1 – No contexto do incidente de exoneração do passivo restante, em que se impõe aos credores um sacrifício adicional, não se negando que um pai deve, enquanto obrigação natural, ajudar a sustentar o seu filho maior que desse sustento necessite, impõe-se o respeito pelas regras aplicáveis.
2 - Estando o devedor declarado insolvente, a obrigação de prestação de alimentos é regulada nos termos dos arts. 84º e 93º do CIRE, não sendo correta a consideração do respetivo eventual beneficiário como membro do agregado familiar para o efeito de fixação do rendimento disponível.

Texto Integral

Acordam as Juízas da Secção de Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa

1. Relatório
A…, apresentou-se à insolvência, com pedido de exoneração do passivo restante, alegando encontrar-se em situação de insolvência atual.
A insolvência da requerente foi declarada por sentença de 08/04/2024.
Foi dispensada a realização de assembleia de apreciação do relatório.
A Sra. Administradora da Insolvência, no relatório previsto no art. 155º do CIRE, fez constar nada ter a opor à concessão do benefício da exoneração do passivo restante.
Nenhum dos credores se pronunciou quanto à concessão do benefício da exoneração do passivo restante.
Por decisão do tribunal de 01/07/2024, foi decidido deferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, fixando-se como rendimento da insolvente tido por minimamente digno ao sustento da mesma a “quantia correspondente a um salário mínimo nacional, acrescido de ½ do salário mínimo nacional.”
Inconformada com a parte da decisão respeitante à fixação do montante do rendimento disponível, apelou a insolvente pedindo a revogação do despacho recorrido, e a sua substituição por outra que fixe a título de rendimento indisponível da recorrente 2 salários mínimos nacionais e formulando as seguintes conclusões:
“1ª- O presente recurso é interposto do despacho que fixou o rendimento indisponível, da Recorrente, em um salário mínimo nacional e meio.
2ª- Na petição inicial a Recorrente alegou que:
-Está desempregada.
-Vive com os seus dois filhos numa casa comprada pela sua filha, e pela qual esta paga uma prestação mensal de 816,00 euros.
-As despesas do agregado familiar são as da alimentação, higiene, pessoal e para a casa, transportes e despesas médicas, as de telecomunicações, em que paga 51.00 euros, pelo pacote MEO; as despesas de gás; em que uma bilha de 120,00 euros lhes dá para dois meses e meio, de eletricidade, de cerca de 25,00 euros mensais, porque têm direito à tarifa social.
- A sua filha R… trabalha como terapeuta de acupunctura, a recibos verdes, sem rendimentos fixos, sendo a mãe da Recorrente, que não vive consigo, quem contribui para o pagamento da prestação da casa que era, inicialmente, de 400,00 euros e que, com a subida das taxas de juro, aumentou para 800,00 euros.
3ª- No despacho o Tribunal deu como provado que a Recorrente se encontra divorciada e a residir com dois filhos, T…, nascido no dia 07/11/2009, e R…, nascida no dia 04/10/2000, em casa comprada por esta.
4ª- -Na fixação do rendimento indisponível deve o Tribunal reger-se pelo respeito do princípio, constitucionalmente consagrado, da dignidade da pessoa humana, pretendendo-se que não seja posta em causa a sobrevivência digna do alimentando (artigos 1.º da Constituição da República Portuguesa e 1.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem).
5ª- O artigo 2003.º, nº 1 do Código Civil refere que:
“1 — Por alimentos entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário.
Ora o agregado familiar da Recorrente é composto por três pessoas.
a) Por rendimento disponível entende-se o conjunto de todos os rendimentos que provenham, a qualquer título, ao devedor (artigo 239.º, n.º 3, do CIRE).
b) Excetuam-se, no entanto, os rendimentos razoavelmente necessários para o “sustento minimamente digno” do devedor e do seu agregado familiar, que hão de ter como limite máximo o valor de três vezes o salário mínimo nacional.
c) Por “sustento minimamente digno” considera-se o limite mínimo do que seja razoável para uma vida condigna do devedor e do seu agregado familiar.
d) Em suma, na base da concessão do rendimento indisponível deve estar o conceito de sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional — cfr. o artigo 239.º, n.º 3, al. b) -i), do CIRE.
6ª- O despacho recorrido viola o disposto naquela norma legal, pois põe em causa o sustento minimamente digno da Recorrente, e do seu agregado familiar.
7ª- Atendendo à constituição do agregado familiar da Recorrente, que é constituído por três pessoas, entende a Recorrente que só a fixação do rendimento indisponível, em dois salários mínimos, poderá assegurar o sustento, minimamente digno, da Recorrente e do seu agregado familiar.
8ª- O Despacho recorrido viola os artigos 1.º da Constituição da República Portuguesa e 1.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e o disposto no artigo 239.º, n.º 3, al. b) e i), do CIRE., pois põe em causa o sustento minimamente digno da Recorrente e do seu agregado familiar.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido por despacho de 06/08/2024 (ref.ª 437616873).
Cumpre apreciar.
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2. Objeto do recurso
Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art. 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
Consideradas as conclusões acima transcritas a única questão a decidir é a da fixação do montante relativo ao sustento minimamente digno da devedora, para os efeitos da exoneração do passivo restante.
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3. Fundamentos de facto:
O Tribunal de 1ª instância proferiu a seguinte decisão relativa à matéria de facto:
1º A insolvente encontra-se divorciada e a residir com dois filhos, T…, nascido no dia 07/11/2009, e R…, nascida no dia 04/10/2000, em casa comprada por esta.
2º Encontra-se inscrita no Centro de Emprego do Sul Tejo desde 23/01/2024, na situação de desempregada à procura de novo emprego, não auferindo subsídio de desemprego.
3º Não possui bens imóveis ou bens móveis.
4º O passivo da insolvente ascende ao montante total de 147.647,27€.
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Com relevo para a decisão do presente recurso, mostram-se ainda assentes, com base nos termos dos autos, nos documentos juntos ao processo e na ausência de impugnação por parte dos interessados, os seguintes factos:
5 – A recorrente apresentou-se à insolvência e, no requerimento inicial indicou que:
- vive com os seus dois filhos em casa comprada pela sua filha pela qual esta paga uma prestação de € 816,00;
- as despesas do agregado são as despesas de alimentação, higiene, pessoal e casa, indicando o valor de € 51,00 mensais para telecomunicações, gás de 120 € para cada dois meses e meio e € 25,00 mensais de transportes;
- A sua filha R… trabalha como terapeuta de acupunctura, a recibos verdes, sem rendimentos fixos, sendo a mãe da requerente, que não vive consigo, quem contribui para o pagamento da prestação da casa.
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4. Apreciação do mérito do recurso:
A exoneração do passivo restante é um instituto introduzido, de forma inovatória, em 2004, pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, e que confere aos devedores pessoas singulares uma oportunidade de começar de novo – o fresh start.
Nos termos do disposto no art. 235.º do CIRE: «Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.»
“A principal vantagem da exoneração é a libertação do devedor das dívidas que ficaram por pagar no processo de insolvência, permitindo-lhe encetar uma vida nova.”[1]
É, antes de mais, uma medida de proteção do devedor mas que joga com dois interesses conflituantes: a lógica de segunda oportunidade e a proteção imediata dos interesses dos credores atuais do insolvente.
Não esqueçamos que o processo de insolvência «…tem como finalidade a satisfação dos credores…» como se prescreve logo no art. 1º do CIRE. Este instituto posterga essa finalidade em nome não apenas do benefício direto (exoneração e segunda oportunidade) do devedor, mas de uma série de interesses de índole mais geral: a possibilidade de exoneração estimula a apresentação tempestiva dos devedores à insolvência, permite a tendencial uniformização entre os efeitos da insolvência para pessoas jurídicas e pessoas singulares e, em última análise, beneficia a economia em geral, provocando, a contração do crédito mas gerando maior responsabilidade e responsabilidade na concessão do mesmo.[2]
Essa tensão entre dois interesses opostos, reflete-se, mas várias normas que regulam a exoneração, desde logo na opção do nosso legislador pelo regime do earned start, ou reabilitação (por contraposição ao fresh start puro), ou seja, fazendo o devedor passar por um período de prova e concedendo o benefício apenas se o devedor o merecer.
É também o modelo eleito a nível europeu, como resulta da Diretiva 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2019 (sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas)[3], transposta entre nós pela Lei nº 9/2022 de 11 de janeiro, e que, em matéria de exoneração ou perdão, na linguagem da diretiva, previu o acesso ao perdão total da dívida aos empresários, deixando aos Estados a opção de o aplicar aos consumidores (cfr. considerando 21), após um prazo não superior a três anos, possibilitando a reserva a devedores de boa-fé e à verificação do cumprimento de determinadas condições – cfr. arts. 20º a 24º da diretiva, em especial o artigo 22º.
A ponderação destes interesses contrapostos deve ser considerada como guião para a interpretação das normas dos arts. 235º e ss. do CIRE, como resulta, entre outros, do Ac. STJ de 02-02-2016 (Fonseca Ramos – 3562/14) e TRP de 15-09-2015 (José Igreja de Matos – 24/14)[4], entre as quais o art. 238º.
Estabelece o art. 239º nº3 do CIRE que integram o rendimento disponível do devedor, a ceder ao fiduciário durante o período de cessão de rendimentos:
«…todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
(…)» (sublinhado nosso).
Razoavelmente necessário e sustento minimamente digno são conceitos indeterminados a preencher pelo juiz, com apelo ao conceito fundamental de dignidade humana, consagrado nos arts. 1º e 26º da Constituição da República Portuguesa.
Temos que ter presente, no momento da fixação do rendimento disponível que estaremos, porque ultrapassada a decisão liminar, ante um devedor de boa-fé (a inexistência desta levaria, idealmente, na economia normativa, ao indeferimento liminar do pedido[5]) e que jogar a sua dignidade com o sacrifício que vai ser imposto aos seus credores implica um sacrifício da sua parte: “com esta afirmação pretende-se dizer que o devedor insolvente não deve manter o mesmo nível de vida anterior, devendo sacrificar-se numa medida razoável perante os factos apresentados ao juiz; mas o devedor também não deve ser penalizado como se fosse culpado pela sua insolvência.”[6]
A determinação da medida do sacrifício razoável tem levado à indagação da existência de um limite mínimo, não determinado por lei.
O legislador estabeleceu apenas o limite máximo do sustento minimamente digno, fixando-o no triplo do salário mínimo nacional/regional – valor que pode, fundamentadamente, ser excedido.
O limite mínimo, que não foi objetivado no preceito, deve situar-se no montante equivalente a um salário mínimo nacional, valor de referência em sede de penhora, nos termos do art. 738.º, nº3 do CPC, por similitude de razões, sem que isso signifique ser esse valor o critério base de aferição do que seja a quantia razoavelmente necessária para o sustento minimamente digno do devedor. 
Na verdade, e tal como referido no Ac. TRL de 09/04/2013 (Isabel Fonseca – 4595/11) “mal se compreenderia que o legislador estabelecesse em sede de insolvência parâmetros de composição dos interesses dos credores versus do insolvente, substancialmente diferentes daqueles que regem a ação executiva, sabendo-se, como se sabe, que a insolvência mais não configura senão uma execução universal (art. 1º).”
Como refere criticamente Ana Filipa Conceição, tem sido afirmada a ideia de que um salário mínimo nacional por insolvente é um mínimo de sobrevivência adequado, quando a lei impõe, rigorosamente uma averiguação casuística[7].
Concordamos com o raciocínio mas não podemos deixar de frisar que, e seguindo a linha condutora do Ac. STJ de 02-02-2016, citado acima, o que é muitas vezes decidido é que o salário mínimo nacional é o limiar mínimo abaixo do qual não deve passar-se, no exato sentido de que não poderá nunca, sejam quais forem as condições do insolvente e do seu agregado, fixar como sustento minimamente digno do devedor menos que um salário mínimo por devedor, nomeadamente rejeitando que o Rendimento Social de Inserção possa cumprir esse papel – cfr. também os Acs. TRC de 06/07/2016 (Falcão de Magalhães - 3347/15), TRE de 04/12/14 (Cristina Cerdeira - 1956/11), TRP de 22/05/19 (Maria Cecília Agante - 1756/16), TRL de 27/02/18 ou TRP de 16/09/14 (Maria Amália Santos – 1940/12).
Refira-se, também que é recorrente a menção à falta de prova de elementos que permitam uma apreciação mais casuística, o que justificará, que, por um lado se busque um limiar mínimo abstrato e, por outro, que esse limiar mínimo venha tantas vezes a ser fixado.
Finalmente, e com o Ac. TRP de 16/09/14 (Maria Amália Santos – 1940/12), dada a tensão entre interesses contrapostos que no instituto se fazem sentir, diremos que não tem apoio legal a tese de que o rendimento mínimo necessário para o sustento do devedor seja sempre o das despesas por ele suportadas[8]. Em alguns casos poderá ser, noutros nem tanto, mas sempre sem aderirmos à tese de que há que proceder a uma adequação comportamental punitiva pelo facto de ter chegado a uma situação de insolvência.
No nosso caso concreto temos uma insolvente, sem rendimentos, que vive com uma filha maior e um filho menor, em casa da primeira, cujo pagamento (prestação mensal), é suportado por terceiro (a mãe da requerente).
A recorrente, sem arguir nulidade da decisão referiu na motivação que o despacho recorrido não contém qualquer fundamentação, o que não tem qualquer correspondência com a decisão recorrida.
O tribunal considerou «Posto isto, e considerando a necessidade de assegurar à Insolvente um sustento mínimo condigno, que corresponde a assegurar as despesas de alimentação, vestuário no mínimo indispensável, e alojamento, mas também ponderado que a concessão, a final, da exoneração do passivo restante apaga todas as dívidas, decorridos os três anos, permitindo um novo começo, o que implica que o insolvente tenha que suporta um esforço que não pode implicar a manutenção de um nível de vida superior ao que tinha e, em não raros casos, deverá mesmo implicar uma alteração negativa, quando o nível de vida anterior tenha contribuído para a situação de insolvência, e tendo ainda em consideração os indicadores de sobrevivência da OCDE (vide, entre outros, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12 de março de 2013, prolatado no processo n.º 1254/12.5TBLRA), determino que, durante o período de cessão, de três anos contados desde o encerramento do presente processo de insolvência, o rendimento disponível que a insolvente venha a auferir mensalmente se considere todo cedido à Fiduciária ora nomeada, com exclusão da quantia correspondente a um salário mínimo nacional, acrescido de ½ do salário mínimo nacional.»
Ou seja, e atendendo à fundamentação aduzida, o tribunal considerou um agregado familiar de duas pessoas, a requerente e o filho menor, o que se alcança mediante o rendimento indisponível fixado e a referência aos indicadores de sobrevivência da OCDE.
A recorrente vem defender a fixação em dois salários mínimos nacionais, apontando que o agregado familiar é composto por três pessoas, atenta a noção legal de alimentos e o mínimo de sobrevivência tal como vem sendo entendido e aplicado pela jurisprudência.
Tal como frequentemente acolhido nos nossos tribunais, a denominada “escala de Oxford”, tem servido de referência, mas não de modelo exato. É um ponto de referência, uma escala de equivalência que pode servir como padrão, mas que não afasta a necessidade de apuro casuístico – ver neste sentido, entre outros, o Ac. TRC de 21/01/2020 (Maria João Areias - 49/15) ou o Ac. TRG de 17/05/2018 (António Barroca Penha – 4074/17), ou TRL de 11/10/2016 (Carla Câmara – 1855/14).
Tendemos a concordar com o uso da escala para determinar a capitação dos rendimentos de um agregado familiar como um patamar mínimo: na maioria dos casos a atribuição do índice 100 ao 1º adulto, 0,7 ao 2º adulto e 0,5 por cada criança corresponderá, fazendo coincidir o índice 100 à retribuição mínima mensal garantida, o vulgarmente designado salário mínimo nacional, ao patamar mínimo de sobrevivência com respeito pela dignidade.
O facto de a filha maior da devedora, viver com a mesma não implica que deva ser efetuada a capitação por agregado familiar nos termos referidos.
Juridicamente a obrigação de sustento dos filhos apenas se verifica durante a menoridade e, após a maioridade nos termos do art. 1880º do CC (enquanto não houver maioridade económica por não completude de formação profissional).
Pais e filhos, porém, são obrigados naturais dada a previsão do nº2 do art. 1874º do CC – existe, reciprocamente, um dever de assistência entre pais e filhos que se mantém toda a vida.
O que corresponde à maioria das situações de facto – os pais ajudam os filhos e os filhos ajudam os pais – os laços e a afetividade assim o explicam, e explicam que neste caso a filha ajude a mãe, recebendo-a na sua casa.
Mas no presente contexto, em que estamos a impor aos credores da insolvente um sacrifício adicional, não se negando a realidade da vida, ou seja, que um pai deve, mesmo enquanto obrigação natural, ajudar a sustentar o seu filho que desse sustento necessite, impõe-se o respeito pelas regras aplicáveis.
Estando a devedora declarada insolvente a obrigação de prestação de alimentos é regulada nos termos dos arts. 84º e 93º do CIRE, não sendo correta a consideração do beneficiário como membro do agregado familiar[9].
Contar com um filho maior (e produtivo) para o efeito de fixação das despesas para a finalidade de fixação do rendimento disponível é sacrificar os credores sem qualquer fundamento legal.
Até porque o dever de assistência é recíproco e sobre os familiares em economia comum recai também a obrigação de comparticipar nas despesas que provoquem ou agravem.
Assim, temos a considerar, tal como o fez o tribunal recorrido, um agregado familiar composto pela devedora e pelo seu filho menor.
Assim, no caso concreto, a medida da exclusão do rendimento disponível para cessão efetuada pelo tribunal recorrido é correta e foi efetuada no respeito pelas regras legais e pela dignidade do devedor e do seu agregado familiar atendível, devendo manter-se a exclusão do rendimento disponível do montante correspondente a 1,50 da retribuição mínima mensal garantida[10], nestes termos improcedendo integralmente a apelação.
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A apelante, porque vencida, suportará integralmente as custas do presente recurso sem prejuízo do beneficio de apoio judiciário e do deferimento previsto no art. 248º nº1 do CIRE – arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil.
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5. Decisão
Pelo exposto acordam as juízas desta Relação em julgar integralmente improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante, sem prejuízo do diferimento previsto no nº1 do art. 248º do CIRE e do benefício de apoio judiciário.
Notifique.
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Lisboa, 15 de outubro de 2024
Fátima Reis Silva
Manuela Espadaneira Lopes (que efetua declaração de voto nos termos abaixo constantes)
Teresa de Sousa Henriques
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Declaração de voto: Não obstante o decidido no Acórdão por mim relatado no processo 433-20.6T8BRR.L1 desta Relação, no qual entendi que "Tendo ficado provado que a insolvente vive em economia comum com um filho maior de idade, o qual se encontra desempregado e sem meios suficientes para prover ao seu sustento e considerando os deveres gerais de assistência e auxílio entre pais e filhos, deve o mesmo integrar o conceito de agregado familiar (da devedora) para efeitos do disposto no artº 239º, nº3, b), subal. i), do CIRE.", voto o presente acórdão porquanto in casu a filha maior de idade da apelante/devedora, embora não tenha rendimentos fixos, encontra-se a trabalhar.
Manuela Espadaneira Lopes
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[1] Catarina Serra in Lições de Direito da Insolvência, Almedina, Abril de 2018, pg. 560.
[2] Neste sentido Catarina Serra, local citado, pgs. 562 e 563.
[3] Texto disponível in https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32019L1023&from=PT
[4] Todos disponíveis em www.dgsi.pt, como os demais citados sem referência.
[5] Neste sentido ou seja, de que o conjunto de requisitos ou condições de acesso à exoneração previstos no art. 238º do CIRE se destinam a comprovar a boa-fé do devedor Ana Filipa Conceição in A jurisprudência portuguesa sobre exoneração do passivo restante”, Julgar Online, junho de 2016, pg. 11.
[6] Local citado na nota anterior, pg. 12.         
[7] Local citado na nota 5, pg. 12.
[8] No mesmo sentido, entre outros os Acs. TRP 12/04/2021 (Pedro Damião Cunha - 2221/20), TRC de 04/02/2020 (Barateiro Martins - 2614/19) ou TRC de 14/01/2020 (Maria João Areias - 2037/19).
[9] Neste exato sentido Ac. TRP de 24/09/2020 (Paulo Duarte Teixeira – 4303/18).
[10] Ou seja, em 2024, € 1.230,00,