Nos presentes autos/embargos de terceiro a modificação da decisão de facto pela Relação, no que se reporta ao alegado contrato de arrendamento, não é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, tendo em conta que os seus poderes cognitivos não incluem o controlo dos poderes da Relação baseados em meios de prova sujeitos à livre apreciação, como é o caso, do documento particular em causa cujo conteúdo foi impugnado.
ACORDAM NESTE SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (2ª SECÇÃO)
I. 1. Panorama Jubilante, embargada nos presentes autos que foram movidos por Catchfusion, Unipessoal, Lda, por apenso à ação executiva instaurada pela primeira contra AA e BB, interpôs recurso da sentença proferida pelo Juízo de Execução ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, que julgou o incidente de embargos de terceiro totalmente procedente e, consequentemente «reconheceu a existência do contrato de arrendamento invocado pela embargante no qual esta última figura como arrendatária, bem como a sua manutenção na ordem jurídica, impedindo a entrega do locado livre de pessoas e bens».
2. Na presente acção, deduzida por apenso à acção executiva onde foi penhorado o imóvel em causa nos presentes autos, a embargante alegou que: “é uma sociedade comercial que se dedica ao fabrico, comércio, revenda, distribuição, montagem, importação e exportação de carpintaria e mobiliário, projetos de arquitetura, design de interiores, entre outros, e que no âmbito daquela sua atividade comercial e porque precisava de espaço para o exercício da mesma, tomou de arrendamento o prédio urbano sito em Vale ..., ..., em ..., no dia 1 de outubro de 2019, contrato que foi celebrado pelo prazo de 25 anos e que teve início no dia 1 de outubro de 2019. Mais alegou que a renda foi fixada em 350,00€ mensais e que realizou investimentos avultados no imóvel para ali poder exercer a sua atividade, o que explica as condições estabelecidas no contrato de arrendamento, e, ainda, que só teve conhecimento da penhora do imóvel arrendado no dia 11 de outubro de 2019.”
3. Os embargos foram recebidos e foi determinada a suspensão da instância executiva quanto ao imóvel penhorado naqueles autos.
4. Notificados a exequente e os executados, apenas a primeira contestou, impugnando a existência e validade do contrato de arrendamento invocado pela embargante.
5. Foi proferido despacho saneador e realizada a audiência de julgamento, após o que foi proferida a seguinte sentença - parte decisória:
“-…-
Dispositivo
- Face ao exposto, decide-se julgar totalmente procedente, por provado, o incidente de embargos de terceiro deduzido e, em consequência, decide-se reconhecer a existência do contrato de arrendamento invocado, no qual figura como arrendatária a embargante, e a manutenção do contrato de arrendamento na ordem jurídica, impedindo a entrega do locado livre de pessoas e bens.
-…-”
6. A embargada/exequente apelou daquela sentença, tendo a Relação proferido o seguinte acórdão – parte decisória:
“-…-
DECISÃO
Em face do exposto, acordam em julgar procedente a apelação e, em conformidade:
1) Revogam a decisão recorrida;
2) Julgam totalmente improcedentes, por não provados, os embargos de terceiro.
Sem custas na presente instância recursiva porquanto a apelante procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso processual e não há lugar ao pagamento de custas de parte porque não houve resposta às alegações de recurso.
-…-”
7. Daquele acordão veio a embargante recorrer/revista para o STJ, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
A. A 1.ª instância, e bem, deu como provado em 4.1.7 que “o prédio indicado no objecto do litígio está arrendado desde 1 de Outubro de 2019 à Embargante.”
B. Fundamentou, e bem a 1.º Instância, que “o sétimo ponto factual assentou na conjugação da cópia do contrato de arrendamento junta aos autos com os comprovativos relativos ao imposto de selo, igualmente juntos aos autos. Ademais, o arrendamento foi confirmado por CC, que, ainda que parte interessada no desfecho da causa, por ser executada, referiu este aspecto de forma que se afigurou isenta, por perentória e clara. Os documentos juntos pela exequente, designadamente edital e fotografias do imóvel, não contrariam esta conclusão, já que, como CC referiu, o locado destinava-se ao armazenamento de materiais, não tendo de estar lá alguém para o efeito. Mesmo DD, Agente de Execução, autora do edital e das fotografias, admitiu como possível a actividade de armazenamento no imóvel.”
C. “A Embargada não impugnou a genuinidade do documento, isto é, não pôs em causa que as assinaturas apostas no referido contrato fossem, pelo lado do senhorio, a de AA e, pelo lado da Arrendatária Catchfusion, Unipessoal, Lda. a de EE, gerente da Embargante.”
D. O que significa que o contrato de arrendamento objecto dos presentes autos faz prova plena da sua existência e, por conseguinte, a parte que queira atacar a existência ou validade do negócio jurídico está onerada com o ónus da prova.
E. Aqui verifica-se uma contradição insanável no Acórdão recorrido quando afirma que “o referido documento faz prova plena da sua formação e proveniência porquanto a sua genuinidade não foi posta em causa pela embargada, …”
F. Foi a Recorrida que alegou que o imóvel não era utilizado, tentando criar uma convicção de um negócio abusivo e não pretendido pelas Partes (só desconhecíamos que a Recorrida era parte no contrato de arrendamento como aparenta ser no Acórdão da Relação).
G. De acordo com o n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil “àquele que invocar um direito cabe fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado.”
H. Qual a prova que a Recorrida fez dos factos que alegou? Nenhuma…
I. Mas mais, ignorou a Relação de Évora o disposto no artigo 347.º do Código Civil.
J. Verifica-se, ainda, a obscuridade na decisão quando a Relação de Évora pretende exigir que, para a verificação da existência do arrendamento, se se provasse a existência de consumos de água e electricidade.
K. Pois bem, esta interpretação, a admitir-se, viola expressamente o disposto no artigo 1022.º do Código Civil, na medida em que este normativo não exige tais contratos colaterais para demonstrar a existência do arrendamento.
L. Ignorou a Relação de Évora o disposto no artigo 347.º do Código Civil, quando refere que “a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto, sem prejuízo de outras restrições especialmente determinadas na lei.”
M. Face ao exposto, o Acórdão Recorrido viola o disposto no n.º 1 do artigo 342.º e artigo 347.º, todos do Código Civil, motivo pelo qual, deve ser revogado e substituído por outro que confirme a decisão da 1.ª Instância.
N. Se a Recorrida queria alegar a nulidade do contrato teria que, por uma questão de litisconsórcio necessário, intentar a acção contra a aqui Recorrente e contra os senhorios, o que não fez, logo o presente Acórdão viola o direito, designadamente, o n.º 1 do artigo 33.º do Código de Processo Civil.
O. A força plena do contrato de arrendamento e respectivo teor, foi desrespeitada pelo Acórdão recorrido, conquanto que não existe nenhum facto nos autos que demonstrem que o contrato de arrendamento é simulado ou que a locação não é real.
P. A Recorrida não fez prova do dolo nem da negligência.
Q. Como bem refere o Tribunal da Relação de Évora, o contrato de arrendamento não foi impugnado, faz prova plena, motivo pelo qual, impendia sobre a Recorrida a prova dos factos e não à Recorrente, motivo pelo qual, também por esta razão deve ser revogado o Acórdão recorrido por violar o disposto no n.º 1 do artigo 33.º, n.º 1 do artigo 342.º e artigo 347.º, 368.º todos do Código Civil e ser substituído por outra que confirme a decisão da 1.ª instância.
Assim, nestes termos, deve dar-se provimento à presente revista, devendo ser revogado o Acórdão recorrido por violar o disposto no n.º 1 do artigo 342.º e artigo 347.º, 368.º, todos do Código Civil, confirmando-se a decisão da 1.ª instância.
8. Contra-alegou a recorrida/embargada, concluindo, deste modo:
- Salvo o devido respeito por opinião diversa, o recurso da Embargante/Recorrente carece de qualquer fundamento, ao contrário do alegado pela recorrente, o alegado contrato de arrendamento foi impugnado, dele não se retira qualquer prova legal plena nos termos dos artigos 376.º, 358.º e 360.º do Código Civil, tão pouco caberia à ora recorrida a prova da inexistência, invalidade, nulidade, ineficácia, inoponibilidade do alegado contrato de arrendamento à execução, antes sim cabia à Embargante/Recorrente o ónus probatório de demonstrar que a penhora, a apreensão ou entrega judicialmente ordenada e a incidir sobre determinados bens ofende direitos que ele tem sobre esses mesmos bens, merecedores de tutela. (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo n.º 2586/15.4T8LOU-B.P1).
- O Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, ora recorrido, não merece qualquer censura ou reparo, tão pouco, ao contrário do alegado pelo recorrente, violou o disposto no n.º 1 do artigo 33.º, n.º 1 do artigo 342.º e artigo 347.º, 368.º todos do Código Civil, o Douto Acórdão ora recorrido fez justiça, pelo que o recurso da Embargante/Recorrente carece de todo o fundamento de facto e de Direito.
Nestes termos, deve ser negado provimento ao recurso e mantida a douta decisão recorrida.
II. O recurso para o STJ foi devidamente admitido como sendo de revista, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo – artº 671º do CPC.
III. APRECIANDO E DECIDINDO
Thema decidendum
- Em função das conclusões do recurso temos que:
A recorrente/embargante pugna pela revogação do acórdão recorrido, que não reconheceu a sua qualidade de arrendatária do imóvel penhorado na acção principal/executiva e, em conformidade, julgou improcedente os presentes embargos de terceiro, ao contrário do que acontecera, em sede de 1ª Instância.
IV. DOS FACTOS
A) Provou-se que:
1 - O prédio urbano sito em Vale ..., ..., ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..15 e ..16 da dita freguesia está descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob a descrição .43/......19 da freguesia de ....
2. - O prédio acima descrito está registado, por aquisição, em nome de AA.
3. Sobre o prédio em causa está registado através da AP. .62 de 2013/12/05, hipoteca a favor da Caixa Económica Montepio Geral para garantia do crédito exequendo.
4. O crédito exequendo foi cedido ao exequente.
5. Sobre o prédio em causa está registada, através da AP. .90 de 2021/09/10 a penhora dos autos principais.
6. Os presentes embargos de terceiro deram entrada a 10 de novembro de 2021.
7. O prédio indicado no objeto do litígio está arrendado desde 1 de outubro de 2019 à embargante (por decisão da Relação transitou para os factos não provados).
8. A embargante teve conhecimento da penhora a 11 de outubro de 2021.
B) Não se provou que:
- O prédio indicado no objeto do litígio está arrendado desde 1 de outubro de 2019 à embargante.
V. DO DIREITO
A questão central a dirimir reside no valor probatório material documento junto pela embargante, tendo em vista provar o arrendamento do imóvel penhorado na acção executiva, em relação à qual estes autos correm por apenso – cfr. ponto III / thema decidendum.
Sobre o tema escreveu-se no acórdão recorrido:
“(…)
Os embargos de terceiro constituem um incidente através do qual quem não é parte no processo vem defender-se de uma ingerência indevida na respetiva esfera jurídica. Dito de outro modo, os embargos de terceiros constituem um meio de defesa contra os atos executivos e cautelares de apreensão de bens.
Quando deduzidos na pendência de uma instância executiva para pagamento de quantia certa, como sucede no caso sub judice, a penhora – ato executivo contra o qual o terceiro embargante reage – implica que o executado perca a posse efetiva sobre aquele bem.
Nos termos do disposto no artigo 342.º n. º 1, do CPC, se a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou de entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.
O terceiro embargante não pode ser executado, exequente, cônjuge citado por força do disposto no art. 786.º, n.º 1, ou credor reclamante.
Até à Reforma de 1995-1996, os embargos constituíam um estrito meio de defesa da posse, mas atualmente os embargos de terceiro constituem um meio de defesa também de qualquer direito incompatível com a realização da diligência ou do respetivo âmbito. Ou seja, atualmente, os embargos de terceiros podem ser deduzidos com um de dois fundamentos: ou o terceiro alega que é possuidor, beneficiando da titularidade do direito nos termos do qual possui, ou alega que é titular de um direito incompatível com a execução que está em curso. Em síntese, os embargos de terceiro deixaram de ser uma estrita ação possessória.
O terceiro embargante tem de alegar e provar a posse sobre o bem ou a titularidade de qualquer direito sobre esse bem incompatível com a realização ou o âmbito da diligência (artigo 342.º/1 do Código Civil).
No caso concreto, a embargante/apelada alegou que “usa” o imóvel penhorado nos autos e que “paga uma contrapartida por essa utilização” ao abrigo de um contrato de arrendamento para fins comerciais outorgado com o proprietário do imóvel. De acordo com a sua alegação seria, pois, titular de um direito pessoal de gozo oponível à exequente. Exequente que é, note-se, titular de um crédito provido de garantia real, concretamente de uma hipoteca que foi registada em data anterior àquela que consta como sendo a data da outorga do contrato de arrendamento (confronte-se certidão de registo predial anexa à petição inicial com a data do contrato de arrendamento junto aos autos).
Sucede, porém, que por força da procedência da impugnação da decisão de facto, e com a consequente transição do ponto de facto provado 4.1.7 para o elenco dos factos não provados, a embargante não logrou demonstrar, como lhe incumbia, que é sequer titular de um direito pessoal de gozo por força de um contrato de arrendamento outorgado entre ela e o(s) proprietário(s) do imóvel penhorado nos autos. O que, por si só, implica a improcedência da pretensão da embargante, sem que haja necessidade de abordar a questão dos efeitos da venda executiva, concretamente se a venda ocorrida em processo executivo de um bem hipotecado destinado à satisfação do crédito exequendo faz caducar o contrato de arrendamento celebrado posteriormente à constituição daquela garantia real (hipoteca).
Em síntese, a apelação é procedente o que implica a revogação da decisão recorrida, julgando-se os embargos de terceiro improcedentes.
(…)”
- Que dizer?
Nada a acrescentar sobre a natureza da oposição à execução deduzida pela embargante – oposição mediante embargos de terceiro – bem como, quanto ao seu enquadramento legal e ao efeito suspensivo da execução no que respeita ao imóvel penhorado – cfr. artºs 342º, 344º e 347º do CPC, e a nível doutrinal, Lebre de Freitas, in, “A Acção Executiva À Luz do Código de Processo Civil de 2013”, em especial fls.325 e 326: “a expressão mesmo contra o locador não tem aplicação aos embargos de terceiro, em que não está e causa a defesa do possuidor em nome alheio em face da pessoa que através dele possui, mas a sua defesa perante o terceiro exequente que, através da penhora, agride o património dela.”
Importa, porém, esclarecer que o raciocínio jurídico expresso no acórdão recorrido, foi precedido da modificação da decisão de facto pela mesma Relação, dando-se como não provada a seguinte factualidade constante do ponto 7 dos factos considerados provados pela 1ª Instância: “7. O prédio indicado no objeto do litígio está arrendado desde 1 de outubro de 2019 à embargante.”
A Relação deu como não provado o discutido arrendamento com estes fundamentos:
“(…)
Diz-se na sentença recorrida que «O sétimo ponto factual assentou na conjugação da cópia do contrato de arrendamento junta aos autos com os comprovativos relativos ao imposto de selo, igualmente juntos aos autos. Ademais, o arrendamento foi confirmado por CC que, ainda que parte interessada no desfecho da causa, por ser executada, referiu este aspeto de forma que se afigurou isenta, por perentória e clara. Os documentos juntos pela exequente, designadamente edital e fotografias do imóvel, não contrariam esta conclusão já que, como CC referiu, o locado destinava-se ao armazenamento de materiais, não tendo de estar lá alguém para esse efeito».
A cópia do contrato denominado “Contrato de Arrendamento para Fins Não Habitacionais” é um documento particular (artigos 362.º, 363.º e 373.º e ss., todos do Código Civil). A embargada não impugnou a genuidade do documento, isto é, não pôs em causa que as assinaturas apostas no referido contrato fossem, pelo lado do senhorio, a de AA e, pelo lado da arrendatária Catchfusion, Unipessoal, Lda., a de EE, gerente da embargante; tão pouco pôs em causa a exatidão do mesmo, isto é, a concordância da cópia do documento com o original. Mas já pôs em causa a relação de correspondência entre o declarado no contrato e a verdade histórica, isto é, a veracidade das declarações de vontade contidas no contrato cuja cópia foi junta aos autos pela embargante. Efetivamente, a embargada/exequente pôs em causa que o prédio penhorado nos autos tivesse sido efetivamente arrendado à embargante e que esta o utilizasse no âmbito da atividade comercial por si desenvolvida.
O referido documento faz prova plena da sua formação e proveniência porquanto a sua genuidade não foi posta em causa pela embargada, mas já não faz prova plena quanto à veracidade intrínseca e validade das declarações nele contidas – cfr. artigo 376.º do Código Civil (…Tomé Gomes, Um Olhar sobre a Prova em Demanda da Verdade no Processo Civil, Revista do CEJ, III-IV, 1995, pp. 127-168.)
Pelo que, quanto à veracidade intrínseca e validade das declarações negociais tinha a embargante de produzir prova que lograsse convencer o tribunal de que efetivamente ocupa e usa o prédio urbano penhorado para o exercício da sua atividade comercial e por força do contrato de arrendamento cuja cópia juntou aos autos. Para além da cópia do contrato de arrendamento, a embargante juntou documento comprovativo da liquidação do imposto de selo, o qual apenas prova a participação do contrato à Autoridade Tributária, não sendo suficiente para demonstrar que a embargante usa efetivamente o prédio penhorado nos autos ao abrigo do contrato de arrendamento participado e que paga uma contrapartida (renda). E o facto é que a embargante não juntou aos autos quaisquer contratos de fornecimento de água e de eletricidade relativos ao alegado locado ou documentos que comprovem o pagamento, por ela, de consumos de água e de eletricidade no alegado locado, os quais revelariam um uso do mesmo; tão pouco juntou aos autos prova documental relativa ao pagamento da renda, concretamente recibos eletrónicos (dada a participação do contrato à Autoridade Tributária) apesar de a própria testemunha CC ter afirmado, em sede de audiência de julgamento, que «o arrendamento está a ser pago mensalmente»; se assim é, perguntamos nós, onde estão os comprovativos do pagamento da renda? Ademais, a embargante não juntou aos autos prova documental (vg. projetos, orçamentos, recibos de pagamento de bens e de serviços) e/ou prova testemunhal que permitisse comprovar a realização de obras de melhoramento previstas no contrato de arrendamento, obras que se realizadas pela arrendatária implicariam uma carência no pagamento das rendas mensais durante o período inicial de 10 anos (como resulta da cláusula terceira do contrato). Não se olvida o depoimento da testemunha CC, mas esta é também ela executada nos autos principais, filha do proprietário do imóvel, não sendo, pois, de desconsiderar o seu interesse no desfecho da ação principal.
Em conclusão, os documentos acima referidos e o depoimento da testemunha supra referida não são suficientes para julgar provada a factualidade enunciada no ponto 4.1.7 dos factos provados, o que implica a procedência da impugnação da decisão de facto, com a transição daquela factualidade para o elenco dos factos não provados.
(…)”
Como se constata a Relação, não contesta a genuinidade do documento particular em causa, ou seja, a sua força probatória formal (artºs 373º e 374º CC), mas questiona o seu conteúdo, por impugnado (artº376ª CC).
Dispõe o artº 376º do CC:
1 – O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.
(…)
Segundo a recorrente/embargante, a recorrida/embargada e exequente não contrariou a prova plena do documento em discussão.
Outro, com vimos, foi o entendimento expresso no acórdão recorrido.
Estabelece o artº 347º do CC:
- A prova plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto dela objecto (…)
O artº 682º do CPC (termos em que julga o tribunal de revista) consagra como regra a distinção entre questão de facto e questão de Direito, reservando o STJ a sua competência na aplicação do Direito aos factos que as instâncias tiverem fixado.
Contudo, como refere Abrantes Geraldes “a lei excepciona os casos previstos no artº 674º nº 3 (CPC): ofensa de lei expressa que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova. Quando, na enunciação da matéria de facto provado, se constate que a(s) instância(s) desrespeitaram norma expressa, o Supremo, por iniciativa própria ou por impulso das partes, deve modificar a decisão e ajustá-la ao preceito imperativo que se mostre violado” – in, Recursos em Processo Civil, 7ª Edição actualizada, pag.504, sendo que de pag.503 a 506 este tema é particularmente analisado do ponto de vista doutrinal e jurisprudencial.
Depois dum longo período de vigência do princípio da oralidade, a reforma de 1995/1996, ao prever o registo ou documentação da prova veio permitir a reapreciação da matéria de facto pela Relação, extensiva, com a reforma de 2013, aos meios de prova sujeitos a livre apreciação do julgador.
Daqui decorre que a Relação tem o poder-dever de formar a sua própria convicção, dentro dos limites da própria impugnação (artº 640º do CPC) cientes que vigora o sistema da apelação restrita.
E foi o que aconteceu, especificando com a necessária fundamentação da modificação operada, ou seja, analisando criticamente a prova carreada, ou não, para os autos, em obediência ao disposto no artº 662º nº 1, e artº 607º nº 4, aplicável ex vi artº 663º nº 2, todos do CPC.
A nível jurisprudencial e relativamente aos poderes do STJ, no que à matéria de facto diz respeito, explicita-se no recente Acórdão do STJ, de 6-2-2024, exarado no pº 3418/18.9LSB.L1.S1: “Ora, como é consabido, não se discutindo “in casu” a violação pela decisão recorrida das regras atinentes a prova vinculada ou prova com força legalmente vinculativa, o Supremo Tribunal de Justiça encontra-se impedido, nos termos do disposto nos artigos 662.º, n.º 4 e 674.º, n.º 3, 1.ª parte, do CPC, de sindicar o acerto da decisão tomada por parte do tribunal recorrido a respeito da impugnação da matéria de facto suscitada em sede de apelação (cfr., entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 16-06-2020, proc. n.º 6791/18.5T8PRT.P1.S1, de 14-01-2020 (proc. n.º 154/17.7T8VRL.G1.S2, de 14-01-2021, proc. n.º 2342/15.1T8CBR.C1.S1 e de 29-09-2022, proc. n.º 499/17.6T8STB.E1.S1). A este propósito, afirmou-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02-06-2020 (proc. nº 3278/16.4T8GMR.G1.S1) que “(...) o STJ não tem poderes para alterar o valor probatório atribuído pelo tribunal da Relação às declarações dos peritos, pois, em processo civil, estamos no domínio de prova sujeita a livre apreciação, não podendo o Supremo Tribunal substituir-se ao tribunal recorrido, nem para valorar de outra forma este meio de prova, nem para ordenar a repetição de novos exames, que substituíssem aqueles que já foram realizados (...)”. A mesma orientação vale para as declarações de partes, prova testemunhal e documentos particulares, cuja reapreciação não pode ser realizada por este Supremo por estar fora dos seus poderes cognitivos, que não incluem o controlo dos poderes da Relação quando esta se baseia em meios de prova de livre apreciação para atingir a sua convicção quanto à necessidade de modificar ou não os factos provados e não provados” – publicitado in www.dgsi.pt.
Pelo que fica dito, não nos cumpre sindicar a factualidade alterada pela Relação.
E não se provando que “o prédio indicado no objeto do litígio está arrendado, desde 1-10-2019, à embargante”, fica traçado o destino destes autos, no sentido da sua improcedência, e prejudicado o conhecimento de quaisquer outras (sub)questões.
Sumariando:
– Nos presentes autos/embargos de terceiro a modificação da decisão de facto pela Relação, no que se reporta ao alegado contrato de arrendamento, não é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, tendo em conta que os seus poderes cognitivos não incluem o controlo dos poderes da Relação baseados em meios de prova sujeitos à livre apreciação, como é o caso, do documento particular em causa cujo conteúdo foi impugnado.
DECISÃO
- Assim e pelos fundamentos expostos, improcede a revista.
Custas pela recorrente/embargante.
Lisboa, 28-5-2024
Afonso Henrique (relator)
Ana Paula Lobo
Fernando Baptista