CLAÚSULAS CONTRATUAIS GERAIS
NEGOCIAÇÃO PRÉVIA
CLÁUSULA PENAL DESPROPORCIONADA
Sumário

I - Ainda quando se apure terem sido objecto de negociação algumas das cláusulas que constituem o núcleo do contrato, não está imediatamente excluída a aplicação ao caso do regime das CCG, desde que se verifique quanto ao contrato individual apreciando que as cláusulas que o integram: a) se desenham como cláusulas pré-elaboradas, existindo disponíveis antes de surgir a declaração que as perfilha; b) apresentam-se rígidas, sem possibilidade de alterações ao regime ou esquema delineado, sem prejuízo de acertamentos pontuais e concretos; c) e podem ser utilizadas por pessoas indeterminadas, quer como proponentes, quer como destinatários.
II - As cláusulas em questão foram objecto de comunicação; os enunciados do contrato e pacto de preenchimento não se apresentam como extensos; têm uma apresentação gráfica adequada, com letra de tamanho normal e espaçada. Os aderentes e garantes são profissionais do ramo de atividade a que respeita o negócio (fornecimento de café a estabelecimentos de venda a retalho deste), tendo, por isso, conhecimentos suficientes para perceber o sentido das cláusulas – o qual, diga-se, é de fácil apreensão. Acresce a demonstração efectiva do conhecimento, que não apenas da cognoscibilidade (para um contraente normalmente diligente), do clausulado questionado.
III - Não existe, portanto, fundamento para que as cláusulas em questão sejam excluídas do texto do contrato em que foram inseridas e aos qual os Recorrentes aderiram.
IV - Encontrando-se uma cláusula inserida nas condições gerais de um contrato padronizado, é sobre a parte que dela pretende prevalecer-se, e de modo exclui-la do regime da LCCG, que incumbe o ónus de prova de que a mesma resultou de negociação prévia entre as partes.
V - Como decorre dos conjugados artºs. 12º e 19º al. c) da LCCG, são proibidas, e como tal nulas, as cláusulas contratuais gerais que “consagrem cláusulas penais desproporcionadas aos danos a ressarcir.”
VI - O conceito de desproporcionalidade de uma cláusula penal deve ser concretizado e aferido, pelo julgador, com base num juízo objetivo e abstrato, e não casuístico, ou seja, independentemente das circunstâncias do caso concreto, tomando em conta o quadro negocial padronizado e específico do sector de atividade em que ocorreu o contrato no qual a cláusula penal foi estipulada, reportando ainda esse juízo ao momento em que a mesma foi estabelecida.
VII - Impõe-se considerar para o efeito a desproporção entre a pena estipulada e os danos então previsíveis (e não os danos concretos/efetivos), não bastando que o valor dessa desproporção seja superior, antes se exigindo que ele seja sensível.
VIII - Ainda quando se tenha concluído pela validade de uma cláusula penal inserida num contrato de adesão (por não ser desproporcionada relativamente aos danos a ressarcir), a mesma pode vir a ser, mesmo oficiosamente, redua, à luz do artº. 812º do Cód. Civil.
IX - Impõe-se já que tal cláusula se apresente manifestamente excessiva (não bastando uma desproporção sensível entre a pena nela inserta e os danos a ressarcir); o juízo sobre a manifesta excessividade da pena deve agora reportar-se ao momento em que ela tenha de se cumprir e ao dano efetivo, que não ao dano previsível.

Texto Integral

Processo nº 785/23.6T8MAI-A.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo de Execução da Maia - Juiz 2

Embargos de Executado

Relatora: Isabel Peixoto Pereira

1ª Adjunta: Francisca Micaela Mota Vieira

2ª Adjunta: Ernesto Nascimento

Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.

Nos autos de execução acima referenciados, vieram os executados A..., Lda., AA e BB deduzir embargos à execução contra si instaurada pela exequente B..., Lda., alegando, em síntese, que: as cláusulas que integram o contrato subjacente ao preenchimento da letra dada à execução são cláusulas contratuais gerais que não foram negociadas nem explicadas e que por isso são nulas; consequentemente, o preenchimento da letra carece de suporte e foi abusivo; a letra é nula dada a ausência de acordo quanto ao seu preenchimento; a cláusula penal fixada é excessiva pelo que não pode ser reclamada; a letra não foi apresentada a pagamento pelo que não é devida.

Concluíram pela extinção da instância executiva.

Contestou a embargada exequente, aduzindo que o contrato celebrado não é um contrato de adesão, tendo sido negociadas as condições do mesmo, não se lhe aplicando as regras das cláusulas contratuais gerais. Sempre a letra exequenda foi preenchida de acordo com a autorização de preenchimento de letras em branco subscrita pelos embargantes, sendo que o montante reclamado resulta do contratualmente fixado para o caso de incumprimento.

Concluiu requerendo a improcedência dos embargos.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença, a qual julgou os embargos totalmente improcedentes.

É dessa decisão que vem interposto o presente recurso, pelos embargantes, que concluem nos seguintes termos:

(…)

Contra-alegou a Recorrida, concluindo pela total improcedência do recurso (ultrapassada que se mostra no despacho que designou data para a decisão a questão da admissibilidade deste, também suscitada), nos termos e com os fundamentos que melhor resultam dos autos.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II.

Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são de fato e de direito as questões a tratar.

As questões que se colocam neste recurso podem ser sintetizadas nos seguintes termos:

1.ª Impugnação da matéria de facto:

- erro de julgamento quanto à prova do facto sob 6 dos havidos como provados;

- impossibilidade de consideração do facto sob 12 daqueles, enquanto facto essencial não oportunamente alegado;

- erro de julgamento, mediante a falta de prova da matéria sob os artigos 7º a 13º da petição dos embargos, os quais têm de haver-se por demonstrados;

2.ª Erro na subsunção quanto às seguintes questões:

- natureza do contrato como de adesão e mediante aplicação do regime respectivo,

- por via da falta de cumprimento dos deveres de informação, da nulidade do clausulado quanto às pretensões executivas e a subscrição do pacto de preenchimento mesmo, a implicar a extinção da execução e, ainda,

- da natureza abusiva da cláusula penal e da redução da quantia exequenda, equitativamente.

Importa, desde logo, caracterizar os factos provados na sentença sob recurso:

1 – A exequente/embargada deu à execução uma Letra de Câmbio, do valor de €103.518,16 (Cento e três, quinhentos e dezoito euros e dezasseis cêntimos), vencida em 18/04/2022.

2 - Tal Letra de Câmbio foi sacada pela Exequente, e aceite pela 1ª Executada e avalizada pelos 2º e 3º Executados.

3 – Em 05/11/2019, Embargantes e Embargada celebraram um contrato de fornecimento de café e sucedâneos, o qual denominaram de “PARCERIA COMERCIAL”.

4 – Por força do qual os Embargantes, obrigaram-se a adquirir à Embargada 2520 kg de café, Marca ..., lote “...”, por um período de 60 meses, o que resulta numa quantia mínima mensal de 42 kg, conforme cláusula primeira do contrato.

5 - Em contrapartida do cumprimento pontual do contrato, a Embargada, concedeu valores, descritos na cláusula terceira do mencionado contrato, valores esses, que resultaram de uma escolha dos Embargantes.

6 – Foram os Embargantes que decidiram a quantidade que se predispuseram a comprar, tal como os bens ou valores que recebem a título de desconto antecipado, bem sabendo estes que quantos mais kg de café se predispuserem a comprar, mais desconto antecipado teriam.

7 - Dos 2.520 kg de café contratados, os Embargantes, apenas adquiriam a quantidade de 135 kg, ocorrendo um diferencial de 2.385 kg.

8 - De acordo com a clausula sexta do contrato, em caso de incumprimento contratual, a Embargada tem direito a receber os kg de café em falta, de acordo com o P.V.P e I.V.A em vigor, sendo este 23%, tendo ainda direito a receber os € 20.000,00 que previamente transferiu para a conta dos Embargantes a titulo de desconto antecipado.

9 - O P.V.P, do café, Marca ..., lote “...”, apresenta-se como no valor de € 28,47 o kg, ao qual acresce I.V.A de 23%.

10 - Como garantia e no pressuposto de cumprimento integral do contrato, os Embargantes, subscreveram uma Letra, juntamente com um Documento de Autorização para Preenchimento de Letras em Branco/ Avalistas, os quais assinaram.

11 – Em 30.11.2021 a embargada remeteu à embargante A..., Lda., a carta junta aos autos como doc. Nº6 com a contestação, a qual foi remetida na mesma data para os embargantes AA e BB.

12 – Previamente à assinatura do contrato referido em 3 os embargantes BB e AA leram o conteúdo do mesmo e dos documentos anexos ao mesmo (facto resultante da discussão da causa)

Não foram havidos como não provados quaisquer factos, sendo que aqueles a cuja prova se reconduzem os recorrentes são os seguintes, por referência ao articulado respectivo:

As cláusulas do contrato subjacente ao preenchimento da letra não resultaram de negociações prévias entre as partes.

São cláusulas gerais e aplicadas aos vários contratos do mesmo tipo que a Exequente celebra com os seus clientes.

Pese embora lhe chame contrato de parceria.

10º São cláusulas criadas pela Exequente para vigorar e todos os contratos de fornecimento de café que celebra, apenas variando o prazo e quantidades de café fornecidas.

11º As cláusulas do contrato nunca foram comunicadas aos executados.

12º Nem lhes foi dada oportunidade de discutir o conteúdo do contrato.

13º O mesmo se passou com os anexos de pacto de preenchimento da letra e de certificação do cumprimento da comunicação das cláusulas, ambos modelos criados pela Exequente sem negociação com os Opoentes, que apenas variam nos elementos de identificação do contraente aderente.


1. Da modificação da matéria de facto

1.1.

Desde logo[1], a alteração da matéria de facto pela Relação, nos termos e para os efeitos do art. 662º do CPC, impõe-se, constituindo-se como um dever do Tribunal de Recurso e não uma faculdade do mesmo, quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas.

Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no CC), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspetos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.

Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico - com força probatória plena - cuja falsidade não tenha sido suscitada (art.ºs 371.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1, ambos do CC), ou quando exista acordo das partes (art.º 574.º, n.º 2, do CPC), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (art.º 358.º, do CC, e art.ºs 484.º, n.º 1 e 463.º, ambos do CPC), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (vg. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos art.ºs 351.º e 393.º, ambos do CC).

Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados).

Sempre: “O atual art.º 662.º representa uma clara evolução [face ao art.º 712.º do anterior CPC] no sentido que já antes se anunciava. Através dos n.ºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e fundar a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis.

(…) Afinal, nestes casos, as circunstâncias em que se inscreve a sua atuação são praticamente idênticas às que existiam quando o tribunal de 1ª instância proferiu a decisão impugnada, apenas cedendo nos fatores de imediação e da oralidade.

Fazendo incidir sobre tais meios probatórios os deveres e os poderes legalmente consagrados e que designadamente emanam dos princípios da livre apreciação (art. 607.º, n.º 5) ou da aquisição processual (art. 413.º), deve reponderar a questão de facto em discussão e expressar de modo autónomo o seu resultado: confirmar a decisão, decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão num sentido restritivo ou explicativo” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, págs. 225-227).

É precisamente esta forma de proceder da Relação (apreciando as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios, e indo à procura da sua própria convicção), que assegura a efetiva sindicância da matéria de facto julgada, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise (conforme Ac. do STJ, de 24.09.2013, Azevedo Ramos, comentado por Teixeira de Sousa, Cadernos de Direito Privado, n.º 44, págs. 29 e segs.).

(…) Contudo, reconhecendo o legislador que a garantia do duplo grau de jurisdiçãoem sede de matéria de facto “nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência”, mas, tão-somente, “detetar e corrigir pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento” (preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro), procurou inviabilizar a possibilidade de o recorrente se limitar a uma genérica discordância com o decidido, quiçá com intuitos meramente dilatórios.

Com efeito, e desta feita, “à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respetivas alegações que servem para delimitar o objeto do recurso”, conforme o determina o princípio do dispositivo (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 228, com bold apócrifo).

Lê-se, assim, no art.º 640.º, n.º 1, do CPC, que, quando “seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.

Precisa-se ainda que, quando “os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados”, acresce àquele ónus do recorrente, “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (al. a), do n.º 2, do art.º 640.º citado).

Logo, deve o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada; e esta última exigência (contida na al. c), do n.º 1, do art.º 640.º citado), “vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente”, devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor enquanto “decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes”, “impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 129, com bold apócrifo).

Dir-se-á mesmo que as exigências legais referidas têm uma dupla função: não só a de delimitar o âmbito do recurso, mas também a de conferir efetividade ao uso do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).

Por outras palavras, se o dever - constitucional (art.º 205.º, n.º 1, da CRP) e processual civil (art.ºs 154.º e 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC) - impõe ao juiz que fundamente a sua decisão de facto, por meio de uma análise crítica da prova produzida perante si, compreende-se que se imponha ao recorrente que, ao impugná-la, apresente a sua própria. Logo, deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respetiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” por si (Ac. da RP, de 17.03.2014, Alberto Ruço, Processo n.º 3785/11.5TBVFR.P1).

Com efeito, “livre apreciação da prova” não corresponde a “arbitrária apreciação da prova”. Deste modo, o Juiz deverá objetivar e exteriorizar o modo como a sua convicção se formou, impondo-se a “identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do Julgador”, e ainda “a menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto” (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 655).

“É assim que o juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)” (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 325).

“Destarte, o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (provado, não provado, provado apenas…, provado com o esclarecimento de que…), de modo a possibilitar a reapreciação da respetiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância” (Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto”, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, 2013, pág. 591, com bold apócrifo).

Dir-se-á mesmo que, este esforço exigido ao Juiz de fundamentação e de análise crítica da prova produzida “exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo Tribunal Superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao ato jurisdicional” (José Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra Editora, setembro de 2013, pág. 281).

É, pois, irrecusável e imperativo que, “tal como se impõe que o tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as que se tenham revelado decisivas)… também o Recorrente ao enunciar os concreto meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa deve seguir semelhante metodologia”, não bastando nomeadamente para o efeito “reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos” (Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto”, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, 2013, pág. 595).

Compreende-se que assim seja, isto é, que a “censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não” possa “assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.

Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão” (Ac. do TC n.º 198/2004, de 24 de março de 2004, publicado no DR, II Série, de 02.06.2004, reproduzindo Ac. da RC, sem outra identificação).

De todo o exposto resulta que o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se de acordo com os seguintes parâmetros: só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo recorrente; sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento; e nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).

Contudo (e tal como se referiu supra), mantendo-se em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta -, precisa-se ainda que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1.ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efetuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1.ª Instância. “Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte” (Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto”, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, pág. 609).

1.2

Assim definidos os termos de apreciação do recurso sobre a matéria de facto, tendo os Recorrentes observado o disposto no art. 640/1 do CPC, vejamos a resposta a dar à questão, começando por dizer, em jeito de enquadramento, que os tribunais não lidam só com realidades inequívocas ou que não suscitam controvérsia. De ordinário, lidam com a dúvida e com realidades esbatidas e discutidas. E é aqui que intervêm a sensibilidade, a experiência e o bom senso do julgador.

Ademais, para além da prova direta, minuciosa e irrefutável do facto; há, assim, que recorrer a prova indireta, através de outros factos (ditos secundários, instrumentais ou probatórios), estes suscetíveis de prova direta, que permitam sustentar juízos de inferência.

Perante o referido princípio da livre apreciação da prova, o tribunal tem liberdade para, em cada caso, considerar suficiente a prova produzida ou para considerar que a mesma é afinal insuficiente e exigir outro meio de prova de maior valor probatório no sentido de ficar convencido da verdade do facto em discussão.

Coloca-se então uma outra questão: a do standard ou padrão de prova, a qual, por sua vez, está relacionada com a questão do ónus da prova ou da determinação do conceito de dúvida relevante para operar a consequência desse ónus.

Sobre esta última, temos como assente que as regras sobre o ónus da prova são regras de decisão e não regras de distribuição propriamente ditas. Tanto assim é que o princípio da aquisição processual (art. 413 do CPC), associado ao princípio do inquisitório em matéria de prova (art. 411/3 do CPC), podem levar a que os factos essenciais constitutivos da causa de pedir ou de uma exceção resultem provados ainda que a parte onerada não consiga produzir prova apta para esse efeito. A propósito, Luís Filipe Pires de Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 15. Dito de outra forma, ter o ónus da prova significa, sobretudo, determinar qual é a parte que suporta a falta de prova de determinado facto e não tanto saber qual é a parte que está onerada com a prova desse mesmo facto. Sem prejuízo, sempre notamos que, conforme ensinam João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, I, Lisboa: AAFDL, 2022, pp. 487-488), tendencialmente há coincidência entre a parte que suporta o ónus da prova e aquela que tem a iniciativa da prova que, assim, tentará, naturalmente, afastar o risco da falta de prova. Na perspetiva inversa, a contraparte sentir-se-á legitimada a uma inação probatória até à prova do facto pela parte onerada. Assim, escrevem estes autores, “o ónus subjetivo implica o ónus objetivo, e vice-versa.”

Neste sentido, o art. 346 do Código Civil e o art. 414 do CPC estabelecem que, na dúvida, o juiz decida contra a parte onerada com a prova.

É aqui que surge a questão do standard da prova que, no dizer de Luís Filipe Pires de Sousa (Direito Probatório cit., pp. 55-56), “consiste numa regra que indica o nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa considerar-se provada, ou seja, possa ser aceite como verdadeira.”

Estando em causa, necessariamente, um juízo de probabilidade, como certeza relativa, esta não se reporta à probabilidade como frequência estatística, mas sim como grau de confirmação lógica que um enunciado obtém a partir das provas disponíveis. Com o que, perante provas contraditórias de um mesmo facto (rectius, afirmação de facto), o julgador deve sopesar as probabilidades das diferentes versões para eleger o enunciado que pareça ser relativamente “mais provável”, tendo em conta os meios de prova disponíveis. Dito de outra forma, “deve escolher-se a hipótese que receba apoio relativamente maior dos elementos de prova conjuntamente disponíveis.”[2]

O importante nesta sede é que a prova produzida tenha a medida bastante para criar no juiz a convicção de que o facto em discussão corresponde à verdade ontológica.

Cabe depois ao juiz deixar transparecer na fundamentação as razões que o levaram a concluir dessa forma. Nesta medida, o standard serve essencialmente como uma orientação para o juiz na produção e na valoração da prova, designadamente na atribuição de um peso específico a cada um dos elementos que a compõem, tudo em ordem à formação da sua convicção. Não é mais que um critério de acordo com o qual deve construir, de forma completa, a justificação da sua decisão sobre a matéria de facto, baseada na solidez epistemológica das provas e dos juízos inferenciais que é necessário fazer para chegar delas até à hipótese de facto.

Como referido no Acórdão da RP de 23.02.2023 (30/21.9T8PVZ.P1), relatado pelo Desembargador Aristides Rodrigues de Almeida, esta é uma regra que “o julgador, com recurso ao bom senso e ao justo equilíbrio das coisas, há-de definir e aplicar caso a caso, em função das exigências de justiça que o mesmo coloca, determinadas a partir de aspetos como o da acessibilidade dos meios de prova, da sua facilidade ou onerosidade, do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados, do relevo do facto na economia da ação.”

Como se salienta no aresto acabado de citar, “a circunstância de um facto ser verosímil ou possível não significa que o mesmo seja verdadeiro, mas o contrário também é correto. A vida diz-nos que por vezes ocorrem factos que eram pouco verosímeis ou não ocorrem factos que além de possíveis eram perfeitamente verosímeis. No entanto, o normal é haver verosimilhança no processo causal gerador de um facto, pelo que a maior verosimilhança do facto torna-o mais provável e a menor verosimilhança menos provável. São as regras da experiência que o determinam. Daí que se possa afirmar a seguinte regra probatória não escrita: quanto mais inverosímil e improvável o facto é, à luz da inteligência que rege os comportamentos humanos e das leis das ciências exatas, normalmente reconduzidas às regras da experiência, mais ou melhor prova deve ser exigida."

Nesta apreciação, há que considerar, quando estejam em causa ações humanas, “que as pessoas movem-se por interesses, motivações, objetivos, propósitos, emoções, impulsos. Estes são resultado do funcionamento do intelecto da pessoa enquanto animal dotado de razão, consciência, identidade pessoal. Nessa medida, perscrutar a realidade de um facto humano ou com intervenção humana é, antes de mais, averiguar a razão que subjaz a essa atuação, que lhe dá origem e a orienta, e, sobretudo, apurar se a mesma é compatível com o quadro de atuação de qualquer outra pessoa nas mesmas circunstâncias. Por isso, um dos elementos decisivos para a formação da convicção do julgador é a verosimilhança dos factos sobre os quais recai a controvérsia, ou seja, a pertinência lógica dos mesmos ao domínio dos acontecimentos humanos que por definição possuem motivações apreensíveis, são norteados pela inteligência humana (no sentido de serem comportamentos orientados para um fim compreensível e delineados por processos intelectualmente aptos, mesmo quando são comportamentos asnáticos) e estão de acordo com o que as regras da experiência nos ensinam ser expectável, corresponder ao devir normal.”

Finalmente, há que dizer, a propósito da prova pessoal, que o processo de formação das memórias é frequentemente condicionado por fatores que as deturpam, ainda que não intencionalmente, podendo levar a relatos não conformes à realidade ontológica. Como se escreve no aresto, “[e]sta circunstância obriga o tribunal a libertar-se da mera literalidade das afirmações e centrar mais a atenção na análise e interpretação da lógica dos acontecimentos relatados, colocados no seu contexto concreto.”


*

Desde logo, infundada a pretensão pelos recorrentes de que seja excluído o facto sob 12 dos provados, porquanto não oportunamente alegado pela parte…

Com efeito, o facto vem a sê-lo, directa e exactamente, o da comunicação ou conhecimento pelos embargantes dos termos ou conteúdo do contrato.

Na contestação, negou a exequente não apenas a natureza de cláusula geral dos segmentos contratuais cuja exclusão vinha pedida, por incumprimento do dever de informação emergente do regime das cláusulas contratuais gerais, como o aduzido desconhecimento pelos embargantes do seu teor… Cfr. artigos 16º, 19º e 38º da contestação… Certo que o enfoque o foi na negociação do clausulado, que não tanto na mera comunicação dos termos deste, como o revela também a selecção dos temas da prova em sede de saneamento e relevantemente o tema sob o ponto 2º… De todo o modo, estando em causa um articulado, ao qual se aplicam, enquanto acto jurídico não negocial, nos termos e para os efeitos do art. 295º do CC, as regras gerais da interpretação do negócio jurídico, é inequívoco que na contestação vem alegado/caracterizado o facto do conhecimento pelos embargantes dos termos ou condições contratuais em causa… Como tal, admissível não apenas a prova, como a aquisição processual dos factos que importam àquele…

É que, como é sabido, o ónus da prova da comunicação dos termos do contrato cabe ao predisponente, nas situações de recurso a cláusulas contratuais gerais, no caso, pois, à embargada[3], com o que a redacção mesma do facto em apreço observa este critério de repartição do ónus probatório, reconduzindo-se outrossim aos factos oportunamente alegados pelos embargantes mesmos (e cujo aditamento pretendem já[4]).

A prova da comunicação efectiva, adequada e esclarecedora ao contraente aderente do conteúdo de uma cláusula contratual geral cabe, nos termos dos artigos 5º, nº 3 e 6º do Dec.lei nº 446/85, de 25 de Outubro, ao contratante que submete àquele a respectiva cláusula. Todavia, previamente à prova de que a comunicação e a informação existiram e foram adequadas, subsiste o ónus, para aquele que se quer fazer valer da violação desses deveres, de alegar a respectiva facticidade, nomeadamente que aderiu ao texto das cláusulas sem que o proponente lhas tivesse comunicado ou prestado os devidos esclarecimentos.

É que, por outro lado, do simples facto de não se provar(em) o(s) facto(s) negativo(s) alegado(s) pelos embargantes (o da falta de comunicação/esclarecimento), sob os artigos 7º a 13º dos embargos, cuja ampliação pretendem, sempre não poderia inferir-se o facto contrário, isto é, de que eles não tinham conhecimento desse clausulado[5].

Sendo que, constituindo manifestamente a violação dos deveres de comunicação e de informação pelo proponente de cláusulas contratuais gerais, um facto impeditivo do direito por ele invocado, sempre os ónus de alegação e de prova (salvo excepcionalmente) incumbem àquele que pretende servir-se dos efeitos de tal violação. Incumbe, na verdade, à parte o ónus de produzir no processo as afirmações necessárias à defesa da sua posição, sendo que a prova pressupõe a alegação do facto que se pretende provar. Ora, se é certo que os arts. 5º, nº 3 (e, por identidade de razão, o 6º) do Dec.lei nº 446/85, de 25 de Outubro, referem que o ónus da prova da comunicação efectiva e adequada cabe ao contratante que submete a outrem as cláusulas contratuais gerais, não pode deixar de se entender que a prova só é passível de ser feita sobre factos alegados.

Donde, previamente à prova de que a comunicação e a informação existiram e foram adequadas, subsiste o ónus, para aquele que se quer fazer valer da violação desses deveres, de alegar a respectiva facticidade, nomeadamente que aderiu ao texto das cláusulas sem que o proponente lhas tivesse comunicado ou prestado os devidos esclarecimentos.

Uma vez feita esta alegação, o ónus da prova passa a caber ao predisponente, com o que a afirmação ou prova do facto sob 12 dos assentes não se reconduz a prova de facto não oportunamente alegado, ainda quando, por via da distinção hoc sensu excepcional (em sede de regime das cláusulas contratuais gerais) entre ónus da alegação e da prova, esteja em causa a prova do contrário de facto oportunamente alegado, como tem de sê-lo pela contraparte…

Carece, pois, de sentido e fundamento legal a alegação da impossibilidade de consideração daquele facto, sem prejuízo já do também convocado erro de julgamento quanto a essa matéria.

De resto, a pretendida ampliação da pronúncia em sede de matéria de facto aos factos alegados pelos embargantes sob os artigos 7º a 13º dos embargos (genericamente, já que alguns deles patentemente inócuos) apenas seria relevante para efeitos de aferição da litigância de má fé pela exequente, a qual, não vindo suscitada no recurso, se queda fora do âmbito de apreciação por este tribunal, com o que desnecessária a apreciação da pretendida amplicação…

Na verdade, estando, desde logo, em contradição com o facto havido como provado sob 12, quedando-se já como questão de direito a de saber se o conhecimento ali havido por provado corresponde ao cumprimento bastante dos deveres de informação, caso haja bem assim de entender-se, do ponto de vista da qualificação jurídica do contrato, estar em causa a aplicação do regime das cláusulas contratuais gerais, aquela matéria (para a hipótese de proceder ainda a impugnação do julgamento de facto quanto aos pontos 6 e 12 dos factos demonstrados) apenas seria susceptível de se reconduzir a um comportamento integrante da litigância de má fé, por dedução de pretensão executiva conscientemente infundada; já que, para a procedência dos embargos, bastante a falta de prova pela embargante do cumprimento dos deveres de informação…

Nessa medida, queda-se inútil ou despicienda a apreciação da impugnação da matéria de facto naquele segmento, que vai referido à alegação da falta de cumprimento da obrigação de informação do clausulado pela predisponente, com o que dela não se conhecerá.

Circunscritos, pois, à apreciação do erro de julgamento quanto aos factos tidos por provados em 6 e 12 da sentença recorrida…

Vejamos, desde logo, a fundamentação da decisão:

«No que concerne a prova documental atendeu-se ao contrato celebrado entre as partes o qual não foi questionado, a letra de câmbio dada à execução e carta de interpelação junta aos como doc. Nº6 com a contestação.

As declarações de parte dos embargantes AA e BB foram esclarecedoras quanto às circunstâncias em que foi celebrado o contrato, tendo o embargante BB referido expressamente que houve conversações prévias à assinatura do contrato e que não foi coagido nem obrigado a aceitar ou a assinar o mesmo, sendo que o que foi negociado foi a entrega de 20 mil euro e a compra de 40 quilos mensais de café, sendo que o resto não foi negociado. Referiu que precisava muito do dinheiro para concluir o negócio em que estava envolvido (pastelaria C...) e por isso teria assinado o contrato de qualquer forma para garantir a entrega do dinheiro, o qual não conseguiria de outra forma porque não teria acesso a crédito bancário. Referiu ainda que leu o contrato antes de o assinar e que assinou a letra em branco e bem assim o documento de autorização de preenchimento da mesma.

As declarações da embargante AA foram algo menos precisas referindo apenas que assinou os contratos e os leu antes de os assinar, não se recordando se o comercial da B... lhes explicou o teor dos contratos e se falaram sobre as consequências do seu incumprimento. Na verdade, as declarações da embargante foram marcadas por sucessivas faltas de memória pois que perante diversas questões a resposta mais frequente que a mesma deu foi que não se recordava.

Por sua vez a testemunha CC, vendedor da B... há 25 anos referiu que era o vendedor de Café no estabelecimento dos embargantes sito na Póvoa de Varzim, mas não foi quem negociou com os mesmos o contrato, o qual já tinha sido assinado e estava em vigor quando começou a visitar o estabelecimento.

Contudo, explicou qual é o procedimento habitual aquando da celebração deste tipo de contratos, sendo que é sempre o cliente quem escolhe como contrapartida por parte da B... de acordo com as suas necessidades: ou um desconto antecipado, ou material, ou mobília, o máquinas. No caso concreto e avaliar pelo que consta do contrato, foi escolhido o desconto antecipado, no valor de 20 mil euros, sendo que o mesmo nunca poderia ser imposto pela B... ao cliente mas só poderia ser opção deste, como, aliás, o próprio embargante confirmou isso mesmo.
Esta testemunha confirmou ainda que habitualmente os termos do contrato são todos explicados aos clientes, que têm oportunidade de lerem os mesmos e obterem todos os esclarecimentos pretendidos, sendo certo que no caso dos autos acredita que tal também se tenha verificado embora não possa garantir uma vez que não esteve presente aquando da negociação e da assinatura do contrato. Mas a verdade é que os próprios embargantes confirmaram terem lido o contrato e todos os documentos anexos ao mesmo antes de os assinarem pelo que seria avisado da parte dos mesmos não os terem assinado se não concordassem ou pelo menos terem pedido explicações ou esclarecimentos sobre o que estavam a contratar. Mas como o próprio embargante reconheceu a sua prioridade era obter uma elevada quantia de dinheiro - 20 mil euros – que de outra forma não conseguiria obter para salvar o seu negócio de pastelaria.»

Ora, ouvida a totalidade da prova produzida em audiência e, decisivamente, conjugadas as declarações das partes com o depoimento da testemunha a que reconduzem os recorrentes, não se afasta a convicção deste tribunal da prova nos termos adquiridos pelo tribunal recorrido.

Assim é que o conhecimento integral[6] pelos recorrentes do teor e consequências do clausulado que releva para os presentes embargos [assim, a obrigação de consumo mínimo de quantidade de café que se constituiu como contrapartida necessária para o financiamento sob a menção a “desconto antecipado” e as consequências do incumprimento desta obrigação, sob o conteúdo da cláusula 6ª do contrato e ainda quanto à possibilidade de preenchimento do titulo de garantia da obrigação emergente do incumprimento do contrato, pela subscrição da autorização do preenchimento de título concomitantemente assinado em branco], mostra-se perfeitamente fundamentado na prova por declarações e documental constante dos autos, a partir agora de juízos de normalidade e regras da experiência comum, quando se considere já a natureza da actividade em apreço e o avultado valor recebido “à cabeça” pelos embargantes… Claro que enfatizaram estes que o “seu” interesse principal vinha a ser o montante ou valor do “desconto antecipado”, na medida em que era “essencial” para a possibilidade financeira do negócio subjacente à exploração do estabelecimento mesmo… Mas isto não torna verosímil, bem ao invés, que tenha determinado o desinteresse ou desconhecimento das obrigações correspondentemente assumidas… Tanto mais quanto entregaram à contraparte um título de crédito em branco e subscreveram um pacto de preenchimento… Na verdade, numa conhecida expressão popular, não apenas “não há almoços grátis”, com o que o valor ou montante do “desconto antecipado” sempre implicaria, para um contratante normal, a aferição cabal das obrigações correspondentemente assumidas; como resultou claro do depoimento da parte que existiu uma preocupação em aferir da razoabilidade do consumo ou gasto de café cuja obrigação de compra assumia (junto do anterior explorador do estabelecimento)… Tudo para dizer que o uso de juízos de normalidade e experiência, a partir dos depoimentos/declarações de parte e da entrega do título de crédito em branco, descaracterizam a falta de consciência das obrigações assumidas e suas consequências indemnizatórias… antes induzindo que a comunicação do clausulado existiu e o foi dos elementos agora postos em causa.

E não altera esta necessária consciência a convicção pelos executados de que lograriam cumprir as quantidades de aquisição a que se vincularam, por via de informações menos honestas que lhes deram (não vinha convocado um qualquer erro ou vício da vontade, muito menos causado pela embargante) ou sequer a relevância decisiva, como referiram, do montante do desconto, nos termos que atestaram, já que necessária e assumidamente cientes que ela tinha um reverso. Nem se compreenderia a assinatura e entrega de um título executivo sem a aferição das obrigações assumidas por essa via, já que em causa o exercício de actividade comercial/profissional.

E nem também o modo como a “negociação” está efectivamente balizada ou limitada (à fixação por acordo das quantidades a adquirir, que determinam automaticamente quer o valor do desconto antecipado, quer o das consequências do inadimplemento), nos termos atestados pela testemunha da Exequente/recorrida a cujo depoimento insistentemente apelam os recorrentes, sem fundamento, altera a prova de que os recorrentes ficaram cientes quer da quantidade que se comprometeram a adquirir, quer das consequências emergentes da falta de cumprimento dessa obrigação, por ser esse afinal o cerne do contrato, também do seu ponto de vista…

Donde, perfeitamente correcta a valoração da prova na decisão recorrida e totalmente improcedente a argumentação dos Recorrentes quanto ao erro na respectiva apreciação…

Cabe julgar, pois, totalmente insubsistente a pretendida alteração da matéria de facto pretendida pelos recorrentes, mantendo-se aquela nos termos decididos pela primeira instância.

Sem prejuízo, impõe-se já uma ampliação desta[7], no sentido que já resulta do que antecede, o da consciência e vinculação pelos embargantes ao teor da cláusula 6ª do contrato e ao pacto de preenchimento… Na verdade, a prova produzida justifica se vá mais longe que o facto sob o ponto 12 traduz, sendo exigível de acordo com uma das possibilidades de enquadramento jurídico da decisão, assim, a da sujeição do contrato em causa ao regime das cláusulas contratuais gerais[8].

Adita-se, consequentemente, àquele, o seguinte segmento: estando cientes aquando da assinatura respectiva da obrigação assumida de consumo mínimo de quantidade de café que se constituiu como contrapartida necessária para o financiamento sob a menção a “desconto antecipado”, como das consequências do incumprimento desta obrigação, sob o conteúdo da cláusula 6ª do contrato e ainda quanto à possibilidade de preenchimento do título de crédito entregue, assinado em branco, para garantia da obrigação emergente do incumprimento do contrato.

Aqui se consigna que, não obstante a matéria da litigância de má fé seja de conhecimento oficioso, dela estamos impedidos de conhecer, por via do âmbito objectivo do recurso.

2.

2.1

Cabe agora apreciar a pretensão dos recorrentes quanto à exclusão do contrato do clausulado que determina das consequências do incumprimento da obrigação de aquisição de quantidades mínimas de café e, subsidiariamente, da redução da cláusula penal acordada e respectivos efeitos em sede de título exequendo.

Já se viu que os Recorrentes, alegam, a um tempo, que tais cláusulas foram redigidas de forma unilateral pela Recorrida e inseridas em contratos a que se limitou a aderir, não lhe tendo sido previamente comunicadas nem explicadas e, a outro, que é excessiva ou abusiva a cláusula penal contratada, com implicações evidentes em sede de execução.

Temos para nós que, efectivamente, face à matéria de facto provada, estamos perante contratos de adesão. No plano jurídico, uma vez que os contraentes são sociedades comerciais, tem aplicação o regime aprovado pelo DL n.º 446/85, de 25.10 (LCG), mais concretamente, em termos de matéria substantiva, os respetivos capítulos I, II, III, IV e as Secções I (Disposições comuns por natureza) e II (Relações entre empresários ou entidades equiparadas) do Capítulo V.

Vejamos, pois, sendo que os embargos o são pela subscritora/aceitante e avalistas do título de crédito entregue para garantia do contrato de fornecimento celebrado.

Dúvidas não haverá que estamos no plano das relações imediatas que são aquelas que são estabelecidas entre os respetivos sujeitos cambiários, isto é sem intermediação de outros intervenientes em razão dum endosso. O contrato de fornecimento garantido com o aceite e avais ora accionados foram negociados de acordo com cláusulas contratuais gerais pré-estabelecidas pela parte credora.

Muito embora os oponentes/recorrentes tenham sido demandados na qualidade de aceitante/subscritor e avalistas de uma letra, título de crédito que, como se sabe, se mostra dotado de literalidade, de autonomia e de abstracção, não se confundindo com um contrato de adesão com cláusulas contratuais gerais, a verdade é que, na base da emissão dessa letra está um contrato entre empresas celebrado mediante recurso a cláusulas contratuais gerais.

No caso concreto, existe claramente entre a exequente (credora cambiária) e os oponentes (aceitante e avalistas), uma relação causal, subjacente ao aceite e aval, por via da qual se estipulou determinado pacto de preenchimento para a letra em branco subscrita pela outorgante do contrato de fornecimento e avalizada pelos co-embargantes.

No caso, estamos no domínio de relações imediatas, mesmo em relação aos oponentes avalistas, pelo que lhes é lícito chamar à colação o não cumprimento do dever de comunicação das cláusulas contratuais gerais integradas no contrato de fornecimento. Neste sentido, por todos, o Ac. STJ de 04-03-2008, P.07A4251, Relator: Moreira Alves, in www.dgsi.pt

As regras próprias dos títulos de créditos não se aplicam no plano das relações imediatas que são aquelas que são estabelecidas entre os respetivos sujeitos cambiários, isto é, sem intermediação de outros intervenientes e, razão de ser do endosso. Nas relações imediatas não é devida proteção à circulação de boa-fé.

Ora, no caso em apreço ainda estamos no domínio das relações imediatas. De facto, a letra não saiu da tríplice esfera da subscritora, da beneficiária e de quem prestou o aval. E se estamos no plano das relações imediatas não há que aplicar as regras próprias dos títulos de crédito, pois não há que dar a devida proteção à circulação de boa-fé.

O princípio da literalidade, segundo o qual a existência e a validade da relação cambiária não podem ser afetadas por via de elementos estranhos aos títulos, apenas tem o seu campo de atuação no domínio das relações mediatas.

No caso, tudo se passa como se a obrigação cambiária de aval deixasse de ser literal e abstrata, passando a relevar o conteúdo da convenção extra-cartular que se celebrou entre as partes.

E “parte” neste caso são também os avalistas e ora oponentes que tiveram intervenção no negócio jurídico que estive na base da subscrição da letra, pois que neles apuseram a sua assinatura, desde logo na qualidade de avalistas da letra subscritas e entregues à fornecedora.

Ora, estando no domínio das relações imediatas, aos oponentes era-lhe lícito chamar à sua defesa a falta de comunicação do clausulado (meios de defesa que se baseiam na relação fundamental).

Com o que convocável o regime das cláusulas contratuais gerais.

Desde logo, vejamos qual o alcance que o legislador pretendeu imprimir ao DL nº 446/85. Como expressamente assinalado no nº 1 do seu artigo 1º, visa este «as cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respetivamente, a subscrever ou aceitar».

Originariamente, o seu âmbito circunscrevia-se às cláusulas dirigidas a uma generalidade de pessoas, que se limitavam a aceitá-las. Previsão que nos remetia tipicamente para a figura dos contratos de adesão. Entretanto, alegadamente para completar o ato de transposição da Diretiva nº 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, iniciado com o DL nº 220/95, de 31 de agosto, o DL nº 249/99, de 7 de julho, acrescentou àquele artigo 1º o seu atual nº 2, passando o diploma a aplicar-se «igualmente às cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pôde influenciar». Como se refere no preâmbulo deste último, “a proteção conferida aos consumidores pela Diretiva nº 93/13/CEE abrange quer os contratos que incorporam cláusulas contratuais gerais, quer os contratos dirigidos a pessoa ou consumidor determinado, mas em cujo conteúdo, previamente elaborado, aquele não pode influir”. O que resulta do artigo 3º, nºs 1 e 2, parágrafo 1º, dessa diretiva. Em sintonia com esta ampliação do alcance do diploma, que deixou de ser apenas aplicável às cláusulas contratuais gerais, a epígrafe do artigo 1º foi também alterada, substituindo-se “cláusulas contratuais gerais” por “âmbito de aplicação”.

A alteração ao diploma teve como objetivo, precisamente, o de abranger todo e qualquer contrato de adesão, ainda que lhes faltasse os requisitos da generalidade e indeterminação, ou seja, de forma a abranger até os contratos de adesão realizados individualmente.

Ainda no âmbito de uma perspetivação genérica do diploma, cumpre chamar a atenção para o facto de que ele visa em primeira linha o controle de cláusulas. Como visto, é por referência à tipologia destas que o âmbito do diploma é definido. É também à patologia das cláusulas que em primeira linha se reportam os mecanismos de correção nele consagrados, propugnando quer a exclusão das que não tenham subjacente uma declaração negocial válida (artigo 8º) quer a declaração de nulidade das contrárias à boa fé (artigos 12º e 15º). Só num segundo plano, meramente consequencial, se vindo a estabelecer, nos artigos 8º, 9º, 13º e 14º, regras para os contratos em que essas cláusulas figuram. Enfatizamos tal particularidade, face à incongruência com que por vezes se pretende estabelecer um desajustado nexo de pertinência, questionando se determinado contrato está ou não abrangido pela disciplina do DL nº 446/85. Quando a resposta é positiva, as consequências não serão relevantes. Mas se equacionar a não aplicação daquela, pode levar a opções erradas. Veja-se, por exemplo, a hipótese do TRL de 27.11.2014 (Teresa Pardal), onde se refere que “apurando-se que foram negociadas as cláusulas que constituem o núcleo do contrato e não se apurando se as outras foram ou não negociadas, não está feita a prova de que se trata de um contrato de adesão, pressuposto da aplicação do DL 446/85 de 25/10, que não lhe é, assim, aplicável”. Esquecendo que este diploma é mais frequentemente chamado à liça precisamente por causa de cláusulas que não constituem esse núcleo. É, pois, conveniente frisar que, embora reconhecendo haver certo tipo de contratos que são mais propícios a conter disposições não negociadas, do que neste diploma em primeira linha se cuida é de cláusulas.

Assim, o contrato em apreço prefigura-se, não obstante se apresente como um contrato individual, como recorrendo a cláusulas contratuais gerais.

A este propósito, respigamos a seguinte passagem de RG 23.09.2023 (1880/22.4T8GMR.G1), relatado por Pedro Maurício: O diploma legal que regula as cláusulas contratuais gerais (Dec.-Lei nº446/85, de 25/10, na redação posterior ao Dec.-Lei nº109-G/2021, de 10/12[3]) não define o que são cláusulas contratuais, limitando-se no seu art. 1º a de­limitar as características que as identificam: a) tratam-se de cláusulas pré-elaboradas, existindo disponíveis antes de surgir a declaração que as perfilha; b) apresentam-se rígidas, independentemente de obterem ou não a adesão das partes, sem possibilidade de alterações; c) e podem ser utilizadas por pessoas indeterminadas, quer como proponentes, quer como destinatários.

Perante tais características, podemos assentar que ao falar de cláusulas contratuais gerais têm-se em vista, em princípio, as cláusulas elaboradas, sem prévia negociação individual, como elemento de um projeto de contrato de adesão, destinadas a tornar-se vinculativas quando proponentes ou destinatários indeterminados se limitem a subscrever ou aceitar esse projeto.

Assim, as cláusulas contratuais gerais podem ser definidas como um conjunto de proposições pré-elaboradas que proponentes ou destinatários indeterminados se limitam a propor ou aceitar. Esta noção básica pode ser decomposta em vários elementos esclarecedores: “(i) as cláusulas contratuais gerais destinam-se ou a ser propostas a destinatários indeterminados ou a ser subscritas por proponentes indeterminados; no primeiro caso, certos utilizadores propõem a uma generalidade de pessoas certos negócios, mediante a simples adesão; no segundo, certos utilizadores declaram aceitar apenas propostas que lhes sejam dirigidas nos moldes das cláusulas contratuais pré-elaboradas; podem, naturalmente, todos os intervenientes ser indeterminados, sobretudo quando as cláusulas sejam recomendadas por terceiros (generalidade); (ii) - as cláusulas contratuais gerais devem ser recebidas em bloco por quem as subscreve ou aceite; os intervenientes não têm a possibilidade de modelar o seu conteúdo, introduzindo, nelas, alterações (rigidez)”.Para que se esteja perante cláusulas contratuais gerais é necessário que se tratem de condições unilateralmente pré-formuladas, ou seja, que se tratem de cláusulas preparadas ou “organizadas” antes da conclusão do contrato, independentemente da forma externa sob a qual tal pré-elaboração se manifesta e de esta pré-elaboração provir do próprio utilizador, de outro sujeito jurídico sob a sua direta incumbência ou ainda de um terceiro. Também é necessário que se tratem de cláusulas pré-elaboradas e dirigidas a uma pluralidade de contratos ou a uma generalidade de pessoas: exige-se que as mesmas sejam destinadas a integrar o conteúdo dos múltiplos contratos a celebrar no futuro, mediante a sua oferta, em massa, ao público interessado (a proposta não pode ser projetada tão-só para a concreta conclusão de um contrato com um sujeito determinado; tem que ser projetada para funcionar como base de um uniforme regulamento jurídico, dirigido a diversificados parceiro negociais). Por último, exige-se a sua imodificabilidade, ou seja, que se tratem de condições cujo conteúdo não possa ser alterado ou negociado, ficando a contraparte sem qualquer poder para interferir na conformação do conteúdo negocial que lhe é proposto.

Concluindo, e como explica Menezes Leitão, “as cláusulas contratuais gerais, que se encontram submetidas ao regime fixado pelo DL nº 446/85, de 25/10…, consistem em situações típicas do tráfego negocial de massas em que as declarações negociais de uma das partes se caracterizam pela pré-elaboração, generalidade e rigidez. Efetivamente, está-se nesses casos perante situações em que uma das partes elabora a sua declaração negocial previamente à entrada em negociações (pré-elaboração), a qual aplica genericamente a todos os seus contraentes (generalidade), sem que a estes seja concedida outra possibilidade que não seja a da sua aceitação ou rejeição, estando-lhes por isso vedada a possibilidade de discutir o conteúdo do contrato (rigidez)”.

A contratação com base em condições ou cláusulas contratuais gerais, previamente elaboradas, a que o cliente se limita a aderir, constitui uma característica da sociedade industrial hodierna, onde rapidamente se impôs como uma forma de negociação imprescindível, porque funcionalmente ajustada às exigências das estruturas de produção e distribuição de bens e serviços: necessidades de racionalização, planeamento, celeridade e eficácia tornaram a contratação com base nestas cláusulas gerais uma forma indispensável de negociação da empresa. À produção e distribuição em massa corresponde necessariamente a contratação em massa, sendo impensável, neste quadro, um processo de negociação tradicional, com os milhares ou milhões de consumidores ou utentes.

Este modelo contratual constitui uma limitação ao princípio da liberdade contratual, previsto do art. 405º do C.Civil, na vertente de liberdade de fixação do conteúdo dos contratos, princípio este que assume primordial importância no modelo de contratação tradicional: neste modelo tradicional o contrato resume-se a um acordo de vontades, consequência da livre negociação entre os contraentes; porém, no modelo negocial das cláusulas contratuais gerais, a contratação não é precedida de qualquer discussão prévia, em ordem à concertação dos interesses de ambos os intervenientes (isto é, com vista à obtenção daquele acordo de vontades também sobre o conteúdo do contrato), mas consiste na apresentação de cláusulas previamente formuladas, unilateralmente no todo ou em parte, por uma das partes, normalmente uma empresa, limitando-se a outra parte a aceitar ou rejeitar tais condições, mediante adesão ao modelo que lhe é apresentado, sem qualquer possibilidade de modificar o ordenamento negocial apresentado: “Teoricamente não há aqui restrições à liberdade de contratar. O consumidor do bem ou serviço, se não está de acordo com as condições constantes do modelo ou impresso elaborado pelo fornecedor, é livre de rejeitar o contrato. Simplesmente esta liberdade seria a liberdade de não satisfazer uma necessidade importante, pois os contratos de adesão surgem normalmente em zona de comércio onde o fornecedor está em situação de monopólio ou quase monopólio. Rejeitar as condições apresentadas, e o que o apresentante não aceita discutir, significa a impossibilidade de satisfazer com outro parceiro contratual a respetiva necessidade. Daí que o particular, impelido pela necessidade, aceite as condições elaboradas pela outra parte, mesmo que lhe sejam desfavoráveis ou pouco equitativas - daí a restrição factual à liberdade de contratar”.

Prosseguindo, acrescentamos que as figuras das cláusulas contratuais gerais e dos contratos de adesão suscitam, no essencial, ao nível substantivo, duas questões: a primeira, situa-se no plano da formação do contrato; o segundo, no da justiça contratual das cláusulas. A propósito, António Pinto Monteiro, “O novo regime jurídico dos contratos de adesão – cláusulas contratuais gerais”, ROA, Ano 62, Volume I, janeiro de 2002, disponível em https://portal.oa.pt/publicacoes/.

Sobre a primeira, importa esclarecer que as cláusulas contratuais gerais per se constituem meros modelos contratuais padronizados e uniformes que, sendo elaborados para uma pluralidade indeterminada de contratos, apenas adquirem relevância jurídica quando são inseridas em contratos de adesão individuais e concretos, mediante a adesão ou a aceitação do destinatário (art. 4.º da LCG). É justamente para assegurar a proteção do aderente logo na fase pré-contratual e de formação do contrato que o legislador prevê uma disciplina especial, fazendo depender a inserção das cláusulas contratuais gerais nos contratos singulares de um dever de as comunicar ao aderente (art. 5.º da LCG), de um dever de informar o aderente sobre o seu conteúdo (art. 6.º da LCG) e da inexistência de cláusulas contratuais especiais prevalecentes (art. 7.º): a inobservância destes deveres é sancionada com a expurgação da cláusula do contrato de adesão celebrado (art. 8.º da LCG), subsistindo este, em princípio, mediante o recurso às normas supletivas e integradoras gerais (art. 9.º da LCG). Compreende-se que assim seja: da infração destes deveres resulta que sobre as cláusulas contratuais gerais não foi estabelecido o mútuo consenso que é pressuposto do acordo e expressão da autonomia da vontade dos contraentes, em especial do aderente.

Sobre o dever de comunicação, diz o art. 5.º/1 da LCG que “[a]s cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las.” O n.º 2 do preceito acrescenta que “[a] comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidades das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efetivo por quem use de comum diligência.”

Esta obrigação de comunicação é expressão do dever de agir de boa fé na formação do contrato, imposto pelo art. 227 do Código Civil. Neste sentido, Joaquim de Sousa Ribeiro (“O princípio da transparência no direito europeu dos contratos”, Direito dos Contratos. Estudos, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 89) escreve que esta conceção, que designa por transparência, se estriba no “princípio comum da boa fé de que constitui uma derivação concretizadora.” De igual modo, Ana Prata (Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 226) escreve que “[é] coessencial à noção de contrato, tal como o foi concebido e permanece, o acordo livre e esclarecido; a boa fé só pode ser invocada na medida em que dela resulta, na fase dos preliminares como na da conclusão do contrato, a obrigação de comunicação, clara e suficientemente informativa, por uma das partes à outra, da integralidade dos elementos constantes da proposta contratual.” Esta ideia está presente em STJ 2.05.2007 (07A1337), relatado por Sebastião Póvoas, onde se pode ler que “[e]ste regime já podia ser detetado nos artigos 227º nº 1 e 232º do Código Civil. Aquele impondo a quem faz uma proposta de contrato, ou quem a recebe, e entra em negociações a seu respeito, a obrigação de diligencia para com a outra parte. Devem as partes comportar se de boa fé (…) sob pena de responsabilidade por culpa in contraendo. O artigo 232º impõe a coincidência entre a aceitação e a oferta relativamente aos elementos essenciais do negócio, sob pena de não conclusão do contrato.

Nas cláusulas contratuais gerais, por constarem de modelos pré-elaborados, a adesão faz se na emissão da proposta e na aceitação do modelo.

Só que para uma perfeita formação da vontade negocial há que garantir ao aderente um conhecimento exato do clausulado, com a comunicação integral, percetível e clara, do projeto negocial.”

Trata-se de uma obrigação de meios, como salientam Almeida Costa / Meneses Cordeiro (Cláusulas Contratuais Gerais. Anotação ao Decreto-Lei n.º 446/85, de 25.10, Coimbra: Almedina, 1993, p. 25), que escrevem: “não se trata de fazer com que o aderente conheça efetivamente as cláusulas, mas apenas de desenvolver, para tanto, uma atividade razoável. Nessa linha, o n.º 2 esclarece que o dever de comunicação varia, no modo da sua realização e na sua antecedência, consoante a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas. Como bitola, refere-se a lei à possibilidade do conhecimento completo e efetivo das cláusulas por quem use de comum diligência. Encontra-se aqui uma afloração do critério geral de apreciação das condutas em abstrato e não em concreto.”

Por outro lado, acrescenta o art. 6.º/1 da LCG, a propósito do dever de informação, que “[o] contraente determinado que recorra a cláusulas contratuais gerais deve informar, de acordo com as circunstâncias, a outra parte dos aspetos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique.” O n.º 2 do preceito acrescenta que “[d]evem ainda ser prestados todos os esclarecimentos razoáveis solicitados.”

Como salienta Ana Prata (Contrato de Adesão cit., p. 278), “[a] separação entre a obrigação de comunicação e a de informação é relativamente forçada ou artificial. No modo como o artigo anterior concebe a primeira vão contidas as informações necessárias à compreensão do conteúdo do contrato”, de modo que o preceito tem importância sobretudo pelo seu n.º 2. De modo semelhante, em STJ 4.05.2017 (1566/15.6T8OAZ.P1.S1), relatado por António Piçarra, afirma-se que os dois deveres são complementares, uma vez que “o objetivo do consentimento esclarecido por parte do aderente só se alcança se as cláusulas lhe tiverem sido adequadamente comunicadas (quanto ao modo e ao tempo da comunicação, por confronto com a complexidade da concreta cláusula, como resulta do disposto no nº 2 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 466/85) e acompanhados das informações exigidas pelas circunstâncias (artigos 6º e 8º, b)), solicitadas ou não pelo aderente.”

Parte-se aqui do princípio de que a mera comunicação das cláusulas é, por vezes, insuficiente para assegurar que a aceitação do aderente foi livre e esclarecida. É o que sucede, de acordo com a lição de Ana Prata (Contratos de Adesão cit., p. 279), quando o teor literal das cláusulas “não permite apreender o seu sentido por uma pessoa de diligência razoável.” Há, na verdade, cláusulas que, pela sua complexidade e pelo seu significado jurídico, não estão ao alcance da generalidade das pessoas, mesmo daquelas que têm preparação jurídica. Outras existem que, pela complexidade tecnológica do bem ou da atividade objeto do contrato, demandam conhecimentos específicos que não estão ao alcance da pessoa média. E existem ainda aquelas cuja interpretação pressupõe a articulação com outras, por vezes colocadas noutras secções do texto do clausulado, sendo ininteligíveis ou ambíguas sem essa tarefa. Existem, finalmente, aquelas que, pela sua especial importância, justificam uma informação especialmente cuidada e completa.

No fundo, do que se trata é do dever, imposto ao predisponente, de fornecer informações mais detalhadas ao aderente, o qual encontra, também, arrimo no princípio da boa fé na fase negociatória previsto no já citado art. 227 do Código Civil. Neste sentido, exige-se, por exemplo, que o predisponente repita “as suas explicações até que sinta que a informação foi bem compreendida. Do mesmo modo, se o devedor da obrigação de informação é um profissional cuja linguagem é isotérica para o cliente, pode ter de simplificar os termos empregados, mesmo deformando um pouco a informação, na condição, bem entendido, de o fazer de forma leal, e prosseguindo apenas o objetivo de fazer com que o cliente tome consciência do alcance da informação.”

Como resulta do que antecede, a imposição do dever de comunicação visa evitar as cláusulas ocultas ou dissimuladas e, bem assim, aquelas que passam facilmente despercebidas. Estão em causa aquelas situações em que os riscos de desconhecimento da totalidade do clausulado por parte do aderente são elevados, seja por este ser extenso ou disperso, seja por ter uma fórmula gráfica que desincentiva a sua leitura, seja por remeter para anexos que não integram o texto contratual, não havendo, portanto, garantias de contratualidade efetiva, mas meramente formal. A sua complementação com o dever de informação visa aquelas cláusulas que são de difícil apreensão em si mesmas e no contexto funcional do negócio, seja por a sua interpretação exigir conhecimentos jurídicos ou técnicos específicos, seja por pressuporem o conhecimento e a conjugação com outras ou remeterem mesmo para escritos que não fazem parte do texto contratual. A título de exemplo, destacamos a situação de STJ 30.10.2007 (07A3048), relatado por Fonseca Ramos, onde se pode ler que “[n]ão é exigível a pessoa analfabeta que domine conceitos jurídicos como mora, cláusula penal, rescisão do contrato e reserva de propriedade, sobretudo se tais conceitos constaram das Condições Gerais, sendo, por isso, mais exigente o dever de informação.”

O campo de atuação destes deveres não pode ser definido em abstrato; antes pressupõe uma análise casuística que tenha em atenção as particularidades da situação concreta – o contexto negocial, o aspeto gráfico do contrato e das próprias cláusulas, o modo como elas foram inseridas no texto, a sua própria redação – o que é indicado pelo segmento “de acordo com as circunstâncias” incluído na redação do n.º 1 do art. 6.º. Não se imporá sempre uma explicação pormenorizada do conteúdo das cláusulas, mas apenas quando a complexidade do conteúdo contratual, a sofisticação do respetivo objeto ou outros fatores façam razoavelmente supor a sua necessidade para garantir que subsistem espaços de dissenso oculto. Entre estes fatores afigura-se que também devem ser incluídos os conhecimentos e a formação do aderente nos casos em que este atua no exercício da sua atividade profissional ou empresarial em negócio para o qual é suposto estar apetrechado.

Do que antecede resulta que não faz sentido a invocação de uma infração aos deveres de comunicação e de informação quando estejam em causa enunciados contratuais de pouca dimensão, cujas cláusulas estão devidamente separadas, numeradas, tituladas, redigidas com letras de dimensão adequada e em termos que são compreensíveis para o aderente médio. Isto ganha ainda mais sentido quando o aderente é um empresário ou um profissional liberal, inserindo-se o contrato na prossecução da sua atividade. Se assim não suceder, o regime das CCG corre o risco de ser transformado numa espécie de panaceia para que o aderente obtenha, mediante a simples alegação de infracção dos deveres, a exclusão das cláusulas que, num dado momento da execução do contrato, ou mesmo depois da cessação deste, não são convenientes para o seu interesse.

A esta luz impõe-se a afirmação de que não basta alegar, em termos genéricos, o não cumprimento das obrigações de comunicação e informação subjacentes aos apontados deveres, jogando com o funcionamento das regras de distribuição do ónus da prova, das quais resulta que o non liquet aproveita ao aderente. Aquele ónus de alegação tem de ser complementado com a descrição das concretas circunstâncias de onde deriva que as cláusulas não foram devidamente comunicadas (v.g., passavam despercebidas num texto denso, com aspeto gráfico que desmotivava a sua leitura) e, bem assim, das que impunham, numa perspetiva razoável, um especial cuidado na explicação do seu sentido e alcance. Neste sentido, RG 14.09.2023 (281/22.9T8CHV-A.G1), relatado por José Carlos Pereira Duarte, onde se escreve que se “as embargantes não alegaram quais os aspectos compreendidos nas cláusulas impugnadas cuja aclaração se justificava” pode, “portanto, presumir-se, que já depois de as terem lido, as mesmas não lhes suscitam dúvidas de compreensão.”

É desde logo por esta razão que a tese dos Recorrentes soçobra. Com efeito, por um lado, as cláusulas em questão foram objecto de comunicação; os enunciados do contrato e pacto de preenchimento não se apresentam como extensos; têm uma apresentação gráfica adequada, com letra de tamanho normal e espaçada. Por outro lado, estamos perante uma situação em que os aderentes e garantes são profissionais do ramo de atividade a que respeita o negócio (fornecimento de café a estabelecimentos de venda a retalho deste), tendo, por isso, conhecimentos suficientes para perceber o sentido das cláusulas – o qual, diga-se, é de fácil apreensão.

Como se constata, entendemos que o Tribunal a quo apreciou devidamente esta questão quando escreveu, na sentença recorrida, que: “visto o contrato em causa diremos que do seu simples exame, estamos perante um contrato perfeitamente vulgar, pouco extenso (oito cláusulas) com cláusulas de compreensão acessível a pessoa normalmente diligente, cuja formalização deixa a descoberto todos os elementos que, dado o seu escopo proteccionista do consumidor, o artº6º do citado DL 359/91 impõe que sejam reduzidos a escrito, nele se não vislumbrando sinal de necessidade de mais completa informação.

Acresce que das oito cláusulas que o compõem pelo menos duas têm um conteúdo adaptado aos intervenientes em concreto, as cláusulas primeira e terceira onde se define a quantidade de café a adquirir e o desconto antecipado a conceder e portanto negociável, sendo as demais de conteúdo simples, vulgarmente existentes em outros contratos que não de adesão.(…)

Ou seja, estamos perante contrato objecto de negociações, composto por apenas oito cláusulas, escritas em letra bem legível e de redacção simples, e perceptível”

E ainda: “Ora, no caso concreto, não podemos olvidar que os embargantes assinaram o contrato livremente, o qual leram previamente como os próprios admitiram, no qual estavam incluídas essas cláusulas, que pela sua clareza e simplicidade eram facilmente compreensíveis, pelo que deveriam, usando da devida diligência, antes de o subscrever, tomar conhecimento do seu conteúdo e obter todos os esclarecimentos que entendessem pertinentes.

Na realidade, lendo as reduzidas cláusulas em causa e a simplicidade do contrato de fornecimento de café verifica-se que não se revestem de particular complexidade, bem como o contrato celebrado, não se vislumbrando que algum dos seus aspetos justificasse alguma aclaração, por dificuldade de entendimento.

Igual raciocino se aplica aos anexos do pacto de preenchimento da letra”.

Acresce, na situação decidenda, a demonstração efectiva do conhecimento, que não apenas da cognoscibilidade (para um contraente normalmente diligente), do clausulado questionado.

Não existe, portanto, fundamento para que as cláusulas em questão sejam excluídas do texto do contrato em que foram inseridas e aos qual os Recorrentes aderiram.

2.2 Vejamos agora a questão da justiça contratual da cláusula que rege quanto à indemnização devida em caso de resolução contratual por inadimplemento do aderente

Desde logo, sob o enfoque de aplicação ao contrato em apreço do regime das CCG, o sistema legal das cláusulas proibidas consiste num princípio geral de controlo (arts. 15 e 16 da LCG) e num extenso catálogo de cláusulas proibidas concretas (arts. 17 a 22).

Aquele princípio geral de controlo repousa na boa fé, conceito aqui usado no seu sentido objetivo, acrescentando-lhe, como diretiva concretizadora, a ponderação dos valores fundamentais do direito em face da situação considerada, designadamente a confiança suscitada nas partes e os objetivos negociais pretendidos (art. 16 da LCG). Ciente de que o controlo ou a sindicância efetiva das cláusulas contratuais gerais seria impraticável caso assentasse exclusivamente num “mandamento jusprivatístico de caráter genérico” (José Engrácia Antunes, Dos Contratos Comerciais cit., pp. 193-194) ou numa “profissão de fé” (Ana Prata, Contratos de Adesão cit., p. 352), o legislador consagrou um catálogo de cláusulas proibidas, que reputou de proibidas e vedadas. O sistema de controlo do conteúdo dos contratos de adesão está, portanto, construído “na base de uma articulação entre o princípio geral da boa fé e uma enunciação de proibições específicas, que funcionam como projeções concretas dessa intencionalidade normativa geral” (José Engrácia Antunes, idem). Daqui decorre que o catálogo legal é meramente exemplificativo, e não taxativo, podendo cláusulas nele não previstas ser consideradas nulas nos termos gerais do art. 15.

A primeira categoria de cláusulas proibidas relevantes – a que aqui nos interessa – diz respeito aos contratos de adesão celebrados entre empresários (ou entidades equiparadas), também eles destinatários da proteção conferida pelo legislador. Parte-se aqui do pressuposto de que em determinados setores ou fases do circuito económico, de que é exemplo a distribuição comercial (José Engrácia Antunes, Dos Contratos Comerciais cit., p. 196), os contratos de adesão são frequentemente utilizados pelas grandes empresas nas suas relações com pequenos e médios empresários, que se encontram em situação de desigualdade do ponto de vista do seu poder económico. No dizer de Almeida Costa / Menezes Cordeiro (Cláusulas Contratuais Gerais cit., p. 38), “[t]rata-se, todavia, de uma proteção que deve ter em conta duas coordenadas: por um lado, tanto os empresários como os que se dedicam a profissões liberais situam-se e movimentam-se numa esfera especializada que, segundo regras de normalidade, conhecem melhor do que os consumidores finais; por outro lado, as atividades empresariais ou similares requerem, no seu desenvolvimento, o dinamismo do tráfico jurídico. Compreende-se, assim, que se haja determinado, para as relações entre empresários ou profissionais liberais, ou entre uns e outros, no plano da sua atividade específica, um regime diferenciado e adaptado.”

Desde logo, sendo que o enquadramento que segue é necessário em qualquer das soluções que se prefiguram possíveis, que melhor se compreenderão infra, quanto à solução da alegada natureza excessiva da cláusula penal,

Nos termos do contrato junto aos autos e relevado nos factos assentes, a co-executada/embargante/recorrente obrigou-se a, periodicamente, adquirir determinadas quantidades de café produzidas/comercializadas pela Autora, as quais se destinavam a ser servidas/consumidas no estabelecimento que explorava. Como contrapartida, a Autora obrigou-se a vender as referidas quantidades.

Estes elementos permitem-nos dizer que as declarações de vontade plasmadas naquele escrito integram o conceito de contrato de concessão comercial.

O contrato de concessão comercial constitui um exemplo daquilo que, na terminologia de Pedro Pais de Vasconcelos (Contratos Atípicos, Coimbra, Almedina, 1995, ps. 59 e ss.), é um contrato socialmente típico, ao qual não corresponde um tipo legal.

É usualmente definido como um contrato-quadro que faz surgir entre as partes uma relação obrigacional complexa por força da qual uma delas, o concedente, se obriga a vender à outra, o concessionário, e esta a comprar-lhe, para revenda, determinada quota de bens, aceitando certas obrigações – em especial no que respeita à sua organização, política comercial e à assistência a prestar aos clientes – e sujeitando-se a um certo controlo e fiscalização do concedente. Esta é a definição de António Pinto Monteiro, Contratos de Distribuição Comercial, 2.ª reimpressão, Coimbra, Almedina, 2004, p. 108. No mesmo sentido, inter alia, o Ac. do STJ de 14.09.2006, processo n.º 06P1271, e o Ac. da RP de 12.10.2006, processo n.º 0630320.

Como contrato-quadro, o contrato de concessão comercial funda uma relação de colaboração estável, duradoura, de conteúdo múltiplo, cuja execução implica, designadamente, a celebração de futuros contratos entre as partes, pelos quais o concedente vende ao concessionário, para revenda, nos termos previamente estabelecidos, os bens que este se obrigou a distribuir. Significa isto que o concessionário, ao contrário do que sucede com o agente, actua em seu nome próprio, adquire a propriedade da mercadoria (compra para revenda), assumindo assim os riscos da comercialização.

Importa agora saber, antes de apreciar da legitimidade dos pedidos dos embargantes, qual o regime legal aplicável a este tipo de contrato que, como se viu, corresponde fundamentalmente a um tipo social.

"A disciplina própria do tipo social resulta (...) de uma prática social reiterada, acompanhada da consciência de que há uma obrigatoriedade em tal prática". Assim, entre outros, Maria Helena Brito, O Contrato de Concessão Comercial, Almedina, Coimbra, 1990, pg. 159, 166-170, 170-173 e 219.

Há, pois, que promover uma determinação e hierarquização das fontes de regulamentação de contratos socialmente típicos.

Deste modo, sempre haverá que partir das cláusulas estipuladas pelas partes no contrato (desde que consideradas lícitas), verificando depois a disciplina própria do tipo social, as normas e princípios estabelecidos na lei para categorias contratuais mais amplas que o tipo, as normas e princípios estabelecidos na lei para os contratos, os negócios jurídicos e as obrigações, as normas derivadas da boa fé contratual, bem assim como a vontade presumível dos contraentes (cfr., Maria Helena Brito, ob. cit., pg. 220 e Paes de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Almedina, Coimbra, 1995, pgs. 324-330).

Centrando a nossa atenção no contrato de concessão, que como vimos é um contrato legalmente atípico, importa agora dizer que este rege-se pelo convencionado pelas partes contratantes e, no que estas não previram, pelas normas gerais dos contratos e, se necessário, pelas normas específicas que regem sobre contratos que com ele apresentem maior analogia.

Como vem sendo entendido, o contrato cuja estrutura apresenta maior analogia com o contrato de concessão comercial é o de agência, regulado pelo DL n.º 178/86, de 3.07, alterado pelo DL n.º 118/93, de 1304.

Esta solução é, aliás, anunciada no exórdio do mencionado diploma, ao referir-se à possibilidade da sua aplicação por analogia, verificando-se a similitude do regime jurídico do contrato a que se reporta aos contratos de distribuição não tipificados como é o caso do contrato de concessão comercial.

Resulta do referido diploma que o contrato de agência é aquele pelo qual uma das partes se obriga a promover por conta de outrem a celebração de contratos de modo autónomo e estável, mediante retribuição, em certa zona ou no âmbito de determinado círculo de clientes (art. 1.º do DL n.º 178/86, de 3.07).

É um contrato oneroso, tendencialmente estável, não necessariamente em regime de exclusividade, em que o agente, por conta do principal, em certa zona geográfica, angaria clientes, promove produtos e, sob acordo especial, celebra contratos.

A diferença entre a posição do concessionário e a do agente ocorre essencialmente porque o primeiro age em nome próprio e por conta própria, auferindo o lucro e assumindo o prejuízo decorrente da sua actividade, e o último age, em regra, em nome próprio e por conta do principal, mediante retribuição de actividade.

A similitude da estrutura do contrato de concessão comercial e de agência justifica que ao primeiro sejam aplicáveis, por analogia, algumas normas do diploma que se reporta ao último, designadamente as relativas à cessação do contrato (art. 10/1 e 2, do Código Civil).

Assim, relevam no contrato de concessão comercial em causa as declarações negociais das partes que envolvem que não contrariem normas imperativas do ordenamento jurídico e, por analogia, com as necessárias adaptações, o referido regime legal previsto para o contrato de agência. A propósito, inter alia, os Acs. do STJ de 14.09.2006 (processo n.º 06P1271) e 15.11.2007 (processo n.º 07B3933), disponíveis em www.dgsi.pt).

Prosseguindo...

No respeitante à agência, dispõe o art. 30 do citado DL n.º178/86, que o contrato de agência só pode ser resolvido por qualquer das partes:

a) Se a outra parte faltar ao cumprimento das suas obrigações, quando, pela sua gravidade ou reiteração, não seja exigível a subsistência do vínculo contratual;

b) Se ocorrerem circunstâncias que tornem impossível ou prejudiquem gravemente a realização do fim contratual, em termos de não ser exigível que o contrato se mantenha até expirar o prazo convencionado ou imposto em caso de denúncia.

Concedente e concessionário podem resolver o contrato apenas com base numa situação de incumprimento das obrigações particularmente grave e reiterada. Não é um qualquer facto, e muito menos um facto insignificante, que pode fundamentar uma resolução do contrato, mas uma actuação que, pela sua natureza e persistência, seja susceptível de abalar a relação de confiança e cooperação que deve existir entre contraentes, afectando, em suma, a subsistência do vínculo contratual (cf. José Alberto Vieira, O Contrato de Concessão Comercial, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, ps. 118 e ss.). Tem que haver como fundamento geral de resolução uma justa causa, ou seja, e nas palavras de Maria Helena Brito (O Contrato cit., p. 227), um facto susceptível de impedir a prossecução do fim de cooperação que o contrato se propõe – a organização da distribuição de produtos, mediante a acção concertada das partes - e de alterar os resultados comerciais que uma das partes podia legitimamente esperar da execução do contrato.

Este regime, ao fazer apelo ao conceito de justa causa, é especial em relação ao que consta do art. 808 do Código Civil, o que se compreende visto estarmos perante contratos dos quais resultam duradoiras: como salienta Baptista Machado (“Contrato de Locação de Estabelecimento Comercial”, CJ, XIV, t. 2, p. 27), o citado art. 808 foi concebido para relações obrigacionais simples, de cumprimento instantâneo e que se extinguem pelo cumprimento – pelo que se não ajusta sem mais às relações contratuais duradouras que já tenham tido início de execução, relações estas que apenas se extinguem pelo decurso do prazo, pela resolução ou pela denúncia.

Podem ainda as partes efectivamente convencionar outros fundamentos, para além dos legalmente enumerados, de resolução do contrato (cf. art. 432/1), afastando por essa via a discussão sobre a gravidade do incumprimento (cf. Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, Coimbra, Almedina, 2005, p. 166).

No contrato dos autos, no que ao caso importa, as partes convencionaram que a ora Autora podia resolver o contrato em caso de incumprimento ou mora no cumprimento de qualquer das obrigações decorrentes do contrato (…), que não seja remediada dentro do prazo de 15 dias a contar da recepção da comunicação escrita que, para o efeito dirigir ao contraente faltoso (§1º da cláusula 8ª do contrato, a fls. 17 dos autos).

Nenhuma cláusula foi estabelecida a prever um fundamento de resolução por parte do Réu diferente dos que estão plasmados na lei – seja na lei geral, seja no art. 30 do DL n.º178/86.

Pois bem...

Como se sabe, a resolução é uma forma de extinção dos contratos por declaração unilateral e condicionada por um motivo previsto na lei ou em convenção (art. 432.º, n.º 1, do Código Civil).

Segundo o art. 436/1 do Código Civil a resolução pode ser feita mediante simples declaração à outra parte – o nosso legislador adoptou o sistema declarativo dos §§ 349 do BGB e 80,2, do ZBG, afastando a necessidade, como princípio geral, de uma intervenção constitutiva do tribunal, exigida pelos sistemas resolutivos francês, espanhol e italiano.

Enquanto declaração negocial receptícia, a resolução tem de chegar ao conhecimento dos seus destinatários, o que no caso também ficou demonstrado.

Violado o contrato ou perturbada que seja a execução do mesmo ou da sua base negocial, de tal modo que afecte seriamente o interesse de uma das partes, isso será fundamento para resolver o contrato, extinguindo, assim, a relação obrigacional que lhe está subjacente. Esse direito de resolução poderá resultar de quatro tipos de situações de inadimplência, todas elas tendo em comum a natureza de incumprimento definitivo: a de impossibilidade parcial e definitiva não imputável ao devedor (Artº 793/2 do CC.), a de impossibilidade total e definitiva imputável ao devedor (Artº 801/2 do mesmo Código), a de impossibilidade parcial e definitiva imputável ao devedor (Artº 802 do CC.) e a de mora, sempre que esta se venha a converter em incumprimento definitivo (Artº 808/1 do CC.).

Tal direito potestativo extintivo depende de um fundamento factual de inadimplemento suficientemente grave (gravidade essa aferida, objectivamente, ao interesse do credor, tendo em conta a extensão da inexecução e a importância da obrigação violada no contexto da relação contratual visada), quando não gizado, ele mesmo, sobre a convenção expressa ou tácita das partes, fundada em cláusula resolutiva, em condição resolutiva ou em termo essencial absoluto ou relativo.

Nos termos do Artº 432/1 do CC., é admitida a resolução do contrato fundada na lei ou em convenção. Admite este preceito, portanto, a resolução convencional, facultando às partes, de acordo com o princípio da autonomia da vontade, o poder de expressamente, por convenção, atribuir a ambas ou a uma delas o direito de resolver o contrato quando ocorra certo e determinado facto (v.g. não cumprimento ou não cumprimento nos termos devidos, segundo as modalidades estabelecidas, de uma obrigação). Ora, na hipótese de incumprimento definitivo ou absoluto duma prestação ou de parte dela, para que esse incumprimento seja suficientemente precisado e determinado, bastará em regra indicar essa modalidade. Sobre esta matéria consultem-se, por todos, Baptista Machado, Pressupostos da Resolução por Incumprimento, in “João Baptista Machado - Obra Dispersa”, Vol. I, 1991, 126 e ss. e RLJ 118, 278/279, nota (9); Brandão Proença, A Resolução do Contrato no Direito Civil, 1996, 108 e ss.; Antunes Varela, Das Obrigações em geral, II, 1990, 264 e ss.; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 1984, 468 e ss.; Pereira Coelho, Direito Civil, Lições, 1977, 161 e ss., e Vaz Serra, Resolução do Contrato, BMJ 68, 1957.

Ainda sem a necessidade de consideração do “regime especial” do contrato de agência, temos entendido que, no caso de contratos dos quais resultem obrigações duradoiras, como é o caso do que foi celebrado entre Autora e a 1ª Ré, o esquema legal sumariamente caracterizado supra, quanto ao incumprimento definitivo da obrigação que se constitui como fundamento de resolução, deve encontrar algumas especialidades.

A questão é a de saber se, verificada a omissão (como facto consumado) do cumprimento de um dever ou obrigação contratual, a situação de inadimplência se pode qualificar como simples situação de mora, a que seja aplicável o regime desta, e nomeadamente o previsto no art. 808.º do Código Civil; ou se a violação reiterada do dever contratual pode legitimar a resolução, independentemente do processo de emprazamento admonitório do art. 808.º. Tenha-se presente que a resolução fundada em violação do contrato não afasta o direito à indemnização – art. 801.º, n.º2, e 1223.º, ambos do Código Civil.

Esta questão logo nos remete para uma outra: a de saber se a resolução por justa causa nas relações contratuais duradouras não se apresenta como figura bem diversa da resolução subsequente à conversão da mora em cumprimento definitivo (art. 808.º). Diversa quanto aos seus pressupostos e fundamentos, entenda-se.

Como refere Baptista Machado, in ob. cit, pg. 27, que seguimos de perto, “pensamos que o art. 808.º foi concebido para relações obrigacionais simples, de cumprimento instantâneo, e que se extinguem pelo cumprimento – pelo que não se ajusta sem mais às relações contratuais duradoiras que já tenham início de execução, relações estas que se extinguem pelo decurso do prazo, pela resolução ou pela denúncia.” Como salienta HAARMANN, apud Baptista Machado, ob cit., pg. 27, nota de rodapé 14, “a possibilidade da extinção da relação obrigacional duradoira pela denúncia (e pela resolução) ou pelo decurso do prazo distingue uma relação duradoira de uma simples relação de troca (Austauschverhältins).

Para o esclarecimento bastará pôr em evidência a distinção entre resolução fundada em justa causa e a resolução na sequência do emprazamento adminatório a que se refere o art. 808.º

Conforme refere Baptista Machado, ob. cit, pg. 27, “para tanto, começaremos por estabelecer como premissa maior uma tese de todo irrecusável. Todas as relações contratuais duradouras são susceptíveis de resolução por justa causa, sendo esta uma das características típicas do seu regime. Assim é, quer essa resolução esteja (sempre) prevista na Lei (como acontece no nosso Código Civil), quer não esteja.” Com certa razão anota Galvão Telles, Direito das Obrigações, 5.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1986, pg. 432, que a norma do n.º2 do artigo 801.º do Código Civil está deslocada do ponto de vista sistemático: ela deveria constar da divisão precedente, pois a sua doutrina é aplicável ao cumprimento defeituoso. De todo o modo, o nosso legislador resolve em parte esta deficiência no título dos contratos em especial, já prevendo a resolução em hipótese de vícios da prestação (art. 1222.º), já permitindo a resolução por justa causa de todos os contratos duradoiros.”

Ora, a apreciação de uma violação contratual positiva como fundamento de resolução (como justa causa) nestas relações obrigacionais duradouras é feita à luz do conceito de inexigibilidade: pergunta-se se é exigível que o contraente cumpridor continue imperativamente vinculado ao contrato, continue ligado ao vínculo duradoiro ao contraente infiel, não obstante este último ter abalado a confiança contratual daquele, ter fundamentado um justo receio de que continuará a ser menos leal, desleal ou infiel aos seus deveres contratuais, a criar conflitos e a perturbar os planos de vida da sua contraparte.

Esta não exigibilidade tem obviamente a ver com o valor sintomático da violação imputável ao contraente infiel, tem a ver com o prognóstico de risco e com a frustração do fim do contrato, olhado este na sua economia complexiva. Donde resulta com plena evidência que o seu ponto de vista – que é, por via de regra, o ponto de vista da resolução por justa causa – transcende de longe o problema e o carácter episódico da simples mora quanto a uma prestação singular. Não é o interesse nesta prestação que está em causa, mas a justificada falta de interesse do lesado na continuação do contrato. Trata-se de julgamento a fazer, pois, em plano completamente distinto. Nesse sentido cfr. a anotação de Baptista Machado na RLJ, Ano 118, pg. 281.

Postos de lado os casos em que o credor perde o interesse na prestação em consequência da mora, no citado art. 808.º tem-se justamente em vista esse carácter episódico da mora, que pode ainda ser purgada, sem outras consequências que não sejam os danos moratórios. Daí que se justifique o emprazamento admonitório, como teste à vontade e à capacidade de prestar do devedor. O que não impede ainda assim que, dadas as particulares circunstâncias da economia complexiva do contrato, uma só mora quanto a uma prestação periódica não possa ser de per si fundamento (justa causa) de resolução. Mas, em tais casos, haverá de entender-se que, na particular economia do negócio, o prazo se deve ter por estabelecido com o sentido de prazo subjectivamente essencial. De salientar é que o processo de intimação admonitória do mencionado art. 808.º pressupõe precisamente a não essencialidade do prazo e, portanto, o carácter menos significativo, a escassa importância da mora relativamente ao interesse do credor. Por outro lado, a violação do contrato representada pelo atraso no cumprimento de uma prestação tem mero carácter episódico. Daí que só possa conduzir eventualmente ao direito de resolução mediante aquele procedimento especial de emprazamento admonitório que põe à prova a vontade e a capacidade de cumprir do devedor.

Assim, atenta a circunstância de o direito de resolução por justa causa (das relações contratuais duradoiras) haver de ser apreciado em função da inexigibilidade, também por aqui se vê como os pressupostos desta resolução e os da resolução subsequente ao processo de interpelação admonitória do referido art. 808.º se situam em planos completamente distintos.

Neste último caso, visa-se desonerar o credor do inconveniente de ficar indefinidamente à espera da prestação e permite-se-lhe clarificar prontamente a situação, de modo a, designadamente, sem receio de ter de vir a receber a mesma prestação em duplicado, poder celebrar um contrato de cobertura para satisfação das necessidades que o levaram a celebrar o anterior contrato. No primeiro caso, bem ao contrário, visa-se permitir ao contraente fiel desligar-se (para futuro) de uma contraparte que justificadamente perdeu a confiança. Não é apenas a conduta em si mesma considerada, nas suas consequências ou danos imediatos (daí que se afirme, com razão, que a gravidade do inadimplemento não pode ser comedida pela importância do dano sofrido pela contraparte, antes deve ser apreciada no contexto complexivo do contrato – Giovanni Judica, Risoluzione per Inadempimto, Rivista di Diritto Civile, Ano 29, 1983, Parte II, pg. 186), que é ponderada para o efeito, mas antes o seu valor sintomático no contexto da relação duradoira concreta: a perda de confiança que acarreta, o estado de tensão litigiosa que cria, o prognóstico que fundamenta relativamente à insegurança e ao risco de perturbação do funcionamento futuro da relação contratual.

Seria contrário à justiça ter uma das partes de permanecer sujeita ao contrato depois de a outra o violar. Por isso a lei dando expressão a essa exigência da equidade, vem em socorro do contraente ofendido outorgando-lhe o direito de rescindir o contrato.

Transpondo as considerações precedentes para o caso dos autos, temos que a falta de cumprimento da obrigação de adquirir os produtos a que se obrigou, pela sua reiteração, que demonstra não estarmos perante um incumprimento episódico, configura, nos termos gerais de direito, uma situação de justa causa de resolução do contrato (cfr, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31/01/07, processo 0627148, n.º convencional JTRP00040010, Relator Dr. Emídio Costa, disponível para consulta em www.dgsi.pt).

A resolução tem, em regra, efeito retroactivo, sendo equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico. No caso, essa retroactividade foi excluída, precisamente mediante a cláusula que se reporta à definição das indemnizações a satisfazer pelo inadimplemento, a cláusula 6ª aprecianda, que patenteia que as partes não pretenderam, em caso de resolução, que o contrato “desaparecesse”: a resolução produz efeitos para futuro (ex nunc).

É então chegado o momento de vermos as consequências derivadas do incumprimento por facto imputável á co-executada, como é de presumir, nos termos do art. 799º do CC.

Incumprido o contrato, tem a exequente o direito a imputar na esfera jurídica da contratante e inadimplente e na dos garantes da obrigação, mediante subscrição e entrega de título de crédito, os prejuízos que sofreu. O crédito indemnizatório é cumulável com o pedido de resolução (cf., a propósito, Brandão Proença, A Resolução do Contrato no Direito Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1996, ps. 183 e ss..). Tendo havido resolução, está em causa, em princípio, o interesse contratual negativo ou de confiança. Por outras palavras, a indemnização devida pela resolução do contrato é a do prejuízo que o credor teve com o facto de ter celebrado o contrato. Está em causa o prejuízo que ele não sofreria, se o contrato não tivesse sido celebrado (cf. art. 908). A indemnização visará colocar o credor na situação em que se encontraria se não houvesse celebrado o contrato e não na situação em que se encontraria se o contrato fosse cumprido.

Mas situações há, em função da qualidade do credor e das características do contrato celebrado, em que o interesse contratual negativo e o interesse contratual positivo acabam por coincidir, em que as oportunidades perdidas com a celebração não diferem dos interesses insatisfeitos com a inexecução.

Em tese, pois, não é proibido ou ilegítimo que a indemnização corresponda ao interesse contratual positivo.

No quadro dos desenvolvimentos mais recentes da doutrina e da jurisprudência, é de considerar, em tese, admissível a cumulação da resolução do contrato com a indemnização dos danos por violação do interesse contratual positivo, não alcançados pelo valor económico das prestações retroativamente aniquiladas por via resolutiva, sem prejuízo da ponderação casuística a fazer, à luz do princípio da boa fé, no concreto contexto dos interesses em jogo, mormente em função do tipo de contrato em causa, de modo a evitar situações de grave desequilíbrio na relação de liquidação ou de benefício injustificado por parte do credor lesado.

No actual panorama da jurisprudência sobre tal problemática, afigura-se mais curial prosseguir por via dessa ponderação de caso a caso, sem a condicionar, de forma apriorística, ao critério abstrato de regra-exceção[9].

Para tanto, é de considerar, em síntese, que:

a) – Do preceituado no artigo 801.º, n.º 2, do CC, no respeitante à ressalva do direito a indemnização, em caso de resolução de contratos bilaterais, nenhum argumento interpretativo substancialmente decisivo se pode extrair no sentido de excluir o direito de indemnização pelos danos positivos resultantes do incumprimento definitivo desde que não se encontrem cobertos pelo aniquilamento resolutivo das prestações que eram devidas;

b) – Por isso mesmo, impõe-se equacionar a solução na perspetiva da finalidade e função da resolução, enquadrada no plano mais latitudinário do programa negocial, multidimensional, envolvente e da relação de liquidação em que, por virtude dessa resolução, se transfigura a relação contratual originária;

c) – Nesse quadro, deve ser reconhecido o primado do princípio geral da obrigação de indemnizar o credor lesado, consagrado no artigo 562.º do CC, segundo o método da teoria da diferença acolhido pelo artigo 566.º, n.º 2, do mesmo diploma, como escopo fundamental reintegrador dos interesses atingidos pelo incumprimento do contrato;

d) – Nessa medida, tendo em conta a “diversidade ontológica” da invalidade e da resolução, deve ser relativizada a eficácia retroativa atribuída a esta pelos artigos 433.º e 434.º, n.º 1, por equiparação aos efeitos daquela estatuídos nos artigos 289.º e 290.º do CC, em termos de salvaguardar a vertente da tutela ressarcitória (a par da tutela restituitória ou recuperatória), quanto aos danos positivos resultantes do incumprimento que serviu de fundamento à mesma resolução e não abrangidos pela obliteração resolutiva das prestações que eram devidas, assim se ressalvando a finalidade da resolução (que se tem por restrita) a que se refere a parte final do citado artigo 434.º, n.º 1;

e) – Consequentemente, ao contraente fiel, perante o incumprimento definitivo imputável ao outro contraente, assistirá a faculdade de optar, em simultâneo, pela resolução do contrato de forma a libertar-se do respetivo dever típico de prestar ou a recuperar a prestação já por si efetuada, e pelo direito a indemnização dos danos decorrentes daquele incumprimento não satisfeitos pelo valor económico das prestações atingidas pela resolução;

f) – Todavia, em caso de resolução, poderá ser ainda assim desatendida a indemnização pelos danos positivos, quando esta revele desequilíbrio grave na relação de liquidação ou se traduza em benefício injustificado para o credor, ponderado, à luz do princípio da boa fé, o concreto contexto dos interesses em jogo, atento o tipo de contrato em causa, sem prejuízo, nessas circunstâncias, do direito a indemnização em sede do interesse contratual negativo nos termos gerais.

No caso, as partes convencionaram as consequências indemnizatórias, para o caso de resolução por incumprimento, conforme cláusula 6ª do contrato, para a qual nos remetemos agora e novamente.

Estas cláusulas prevê o modo de cálculo do montante da indemnização em caso de incumprimento resolutório das obrigações contratuais recíprocas.

Estamos aqui, indiscutivelmente, perante cláusula penal compensatória, legalmente estribada no art. 810/1 do CC.

Com efeito, diz-se cláusula penal a convenção através da qual as partes fixam o montante da indemnização a satisfazer em caso de eventual inexecução do contrato. Trata-se de uma liquidação da indemnização feita a forfait, visto não se saber ainda qual o valor real dos prejuízos nem mesmo se eles se virão a produzir. Essa liquidação pode ter como objecto quer os prejuízos derivados do incumprimento definitivo do contrato, quer os que resultam da simples mora. A primeira diz-se cláusula penal compensatória; a segunda, cláusula penal moratória.

Como se sabe a cláusula penal (indemnizatória) constitui uma liquidação convencional antecipada dos prejuízos em caso de inexecução do contrato. Na situação de incumprimento, se estipulada uma cláusula penal, a indemnização corresponderá ao valor pactuado, a não ser que haja lugar à sua redução, face ao disposto no art. 812, ou seja convencionado o ressarcimento do dano excedente, nos termos do art. 811/2, e é para esta última situação que se limita o valor da indemnização, nos termos do n.º 3 deste preceito, que não tem a ver com o valor da pena, quando não é pactuada a indemnização pelo dano excedente.

Esta, embora não tenha uma função coercitiva ou de compulsão ao cumprimento, acaba por produzir também esse efeito, na medida em que alerta o devedor para os riscos que corre em caso de inexecução do contrato e, por isso, estimula o cumprimento voluntário das obrigações assumidas.

Refira-se que, conforme vem sendo defendido pela doutrina e pela jurisprudência mais recente, as partes, à luz do princípio da liberdade contratual (artº. 405º do C. Civil) tanto podem atribuir à cláusula ou cláusulas penais fixadas no contrato várias daquelas funções, como inclusive que ela só desempenhe uma delas. (Cfr., entre outros, o prof. Pinto Monteiro, in “O duplo controlo de penas manifestamente excessivas em contratos de adesão, RLJ, Ano 146º, págs. 308/310”, Acs. Do STJ de 27/09/2011 (proc. nº. 81/1998.C1.S1 e de 27/01/2015, proc. 3938/12.9TBPRD-A.P1S1, disponíveis em www.dgsi.pt).

Posto isto, e compulsando o teor da referida cláusula (penal), da sua leitura extrai-se que ela se apresenta com uma função de natureza indemnizatória.

A cláusula penal, como uma pré-fixação da indemnização, prevista no n.º 1 do artigo 810, constitui uma forma de liquidação prévia dos danos e dispensa o credor, em caso de inadimplemento, de recorrer à indemnização que ela substitui. E, perante uma tal cláusula, o devedor fica inibido de demonstrar que os danos sofridos pelo credor foram, efectivamente, inferiores ao montante pré-convencionado, não estando, todavia, impedido de provar a inexistência de danos ou a sua insignificância, quando comparados com a pena, para afastar o cumprimento dessa cláusula ou peticionar a sua redução, respectivamente. E recai sobre o devedor o ónus da alegação e prova da inexistência ou da insignificância dos prejuízos consequência da inexecução do contrato (artigo 342/2). A cláusula de pré-fixação inverte o ónus da prova quanto à existência ou dimensão dos danos efectivamente sofridos, com vista à redução da pena ou ao seu afastamento.

No que tange, pois, ao controlo do conteúdo da cláusula penal de acordo com o regime geral do Código Civil,

É a concepção da pena como indemnização fixada a forfait, invariável, com o fim de evitar os inconvenientes e incertezas da liquidação judicial dos prejuízos que condiciona a intervenção fiscalizadora do tribunal a um excesso manifesto (Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, Coimbra, Almedina, 1990, p. 463). A cláusula penal só deve ser reduzida quando se mostrar manifestamente excessiva, caso contrário frustrar-se-ia a vantagem da mesma enquanto indemnização predeterminada. Não é qualquer excesso ou desproporção entre o dano e a pena que motiva a redução mas o excesso manifesto, apurado em concreto. Só em face dos prejuízos realmente sofridos, se conclui ou não que a cláusula é excessiva ou exorbitante e, em consequência, pela sua redução de acordo com a equidade.

Assim sendo, existindo danos ou não se demonstrando a sua inexistência ou a sua insignificância, embora não sendo estabelecido limite (artigo 812/1), a redução (sem elementos de facto que a suportem) equitativa da pena não poderá conduzir a um resultado equivalente à irresponsabilidade do devedor, isentando-se este de qualquer indemnização.

O controlo da cláusula penal, em face do disposto nos arts. 812 e 334, tem lugar essencialmente no momento em que é exigida a pena, quando é exercido o direito, que nessa altura o valor se mostre manifestamente excessivo, mesmo que ao ser pactuado esse valor, o credor não tenha agido com qualquer intuito abusivo ou aproveitando-se da dependência ou fraqueza do devedor ou, nessa altura, apuradas as circunstâncias e na previsão feita pelas partes, a pena não se revelasse gravosa ou desproporcionada ao dano previsível decorrente de eventual inexecução do contrato. Além do controlo da validade da cláusula em que se estipula a pena, outro pode ter lugar quando o credor exerce o direito àquela. Segundo Pinto Monteiro (Cláusula Penal e Indemnização, Coimbra, Almedina, 1990, p., p. 722), “o poder de redução judicial, conferido pelo art. 812, insere-se neste segundo tipo de controlo, o qual não prejudica, também nesse aspecto, uma sindicância com base em princípios de alcance geral, como o da boa fé e do abuso do direito, que pode levar a ter de se concluir, na circunstância concreta, pela ilegitimidade do exercício do direito à pena, nos termos do art. 334.

Como se refere no Ac. da RP de 27.01.2005 (processo n.º 0437281), disponível em www.dgsi.pt, que neste ponto seguiremos de perto, data venia, com a norma do art. 334 não se pretende, em certas circunstâncias, suprimir ou extinguir o direito, mas apenas impedir que o seu titular use dele numa direcção ilegítima, manter o seu exercício em moldes adequados a um salutar equilíbrio de interesses, requerido pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito; pretende-se que, em certas circunstâncias concretas, um direito não seja exercido por forma a ofender gravemente o sentimento de justiça dominante na sociedade. A censura do abuso do direito visa evitar o exercício anormal, em termos reprováveis, do direito próprio, só formalmente adequado ao direito objectivo.

À verificação do exercício abusivo do direito não é necessário que o agente tenha consciência do seu procedimento ser abusivo: basta que o seja na realidade, mas exige-se que o abuso seja manifesto, que o sujeito de direito ultrapasse de forma evidente ou inequívoca os limites contidos na estrutura da norma que confere o direito.

Quanto já ao controlo de conteúdo por via do regime legal das CCG.

As cláusulas proibidas estão agrupadas em duas classes ou tipos: as cláusulas absolutamente proibidas (art. 18 da LCG) e as cláusulas relativamente proibidas (art. 19 da LCG). A diferença entre elas reside no seguinte: enquanto as primeiras são sempre vedadas em contratos de adesão, sendo a sua inserção sancionada com a nulidade (art. 12 da LCG), as segundas podem ser ou não vedadas, consoante o juízo de valor que sobre elas for realizado à luz do quadro negocial no seu conjunto.

Desde logo, não vindo convocada directa e imediatamente a disciplina das cláusulas contratuais gerais que regem quanto ao conteúdo proibido destas, a alegação dos recorrentes quanto à natureza excessiva da cláusula 6ª do contrato pode lograr sustentação legal com base no disposto no artigo 19.º, c), do citado diploma, que estatui que são proibidas, consoante o quadro negocial padronizado, as cláusulas contratuais gerais que consagrem cláusulas penais desproporcionadas aos danos a ressarcir[10].

A acima citada cláusula, ao estabelecer o valor de uma indemnização no caso de cessação do contrato, define-se efectivamente, como se viu, como uma cláusula penal de fixação antecipada da indemnização: no contrato, fixa-se desde logo o valor que há de ser pago pela contraparte, numa determinada situação, não tendo de se averiguar se esse valor corresponde aos danos que foram efetivamente sofridos pelo respetivo credor (artigo 810.º, n.º 1, do C. C.).

Ora, para se aferir se a cláusula contratual em causa é relativamente proibida, não podendo ser invocada pelas partes que celebraram o contrato, importa determinar se, num quadro geral[11], previsível e de acordo com o que será expectável, o valor que se fixa a título de indemnização é desproporcionado em relação ao valor dos danos que serão expectáveis. Ou seja, se o valor da indemnização, ponderando o tipo de contrato que está em causa e o que sucede com o seu fim, se pode considerar exagerado e desproporcionado em relação aos danos que poderiam advir do fim do contrato.[12]

No fundo, importa determinar se esse valor, a ser recebido, in casu, pela Exquente, atentaria contra as regras de boa-fé, devendo assim ser impedido o seu recebimento.

Nada consta do registo cláusulas contratuais gerais abusivas.

Não é agora uniforme o critério jurisprudencial convocado para a decisão da questão que nos ocupa.

Numa certa perspectiva, que vem a ser, aparentemente, a sufragada pelos recorrentes, será pela redução equitativa da cláusula penal que se poderá atingir a conformidade da mesma, não havendo elementos em abstrato que permitam concluir que a mesma é desproporcionada. É ainda a argumentação da Recorrida, quanto à concessão do “desconto antecipado”, sendo que que a quebra injustificada do contrato irá sempre gerar prejuízos, imprevisíveis no seu montante que assim ficam salvaguardados com a dita cláusula penal.

Se, em concreto, a cláusula se revelar desproporcionada, pode sempre aplicar-se o disposto nos artigos 811.º, nºs. 2 e 3 e 812.º, do C. C..[13]

Já o S. T. J., no seu Acórdão de 19/09/2019, rel. Acácio das Neves, conforme consta do registo cláusulas contratuais gerais abusivas[14], entende que, como tem sido entendimento dominante na jurisprudência, a cláusula deve ser considerada nula quando a prestadora recebe o valor dos serviços que acaba por não prestar.

Adiante-se que a referida cláusula está sujeita ao regime das Cláusulas Contratuais Gerais (LCCG).

Com efeito, encontrando-se uma cláusula inserida nas condições gerais de um contrato padronizado, é sobre a parte que dela pretende prevalecer-se, e de modo exclui-la do regime da LCCG, que incumbe o ónus de prova de que a mesma resultou de negociação prévia entre as partes…

Incontroverso é, pela leitura dessas condições, que estamos perante um contrato padronizado, pelo menos no que concerne às mesmas, resultando de uma pré-formulação unilateral da predisponente/aqui A. E, na verdade, a A. não logrou provar – num ónus que lhe é imposto pelo nº. 3 do artº. 1º da LCCG, aprovada pelo DL nº. 446/85, de 25/10, com as várias alterações que foram introduzidas posteriormente, pois que é ela que pretende prevalecer-se nesta ação do seu conteúdo) - que tais condições gerais do contrato, e muito particularmente aquela aqui em discussão (a 6ª nelas inseridas), tivessem sido objeto de negociação prévia entre as partes. (cfr. nesse sentido ainda, entre outos, o Ac. do STJ de 21/06/2016, proc. 2683/12.0TJLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt). Tal ónus não resulta cumprido na situação decidenda. Assim é que a matéria apurada justifica o conhecimento integral pelos contratantes do clausulado e a opção negociada pelo valor/quantidade de café a adquirir. Não já a negociação prévia da cláusula penal, a qual resulta sê-lo mediante predeterminação pela Exequente.

Como decorre dos conjugados artºs. 12º e 19º al. c) da LCCG são proibidas, e como tal nulas, as cláusulas contratuais gerais que “consagrem cláusulas penais desproporcionadas aos danos a ressarcir.”

Já supra concluímos também, estarmos na presença de uma cláusula penal (com uma função de natureza indemnizatória).

Estando perante um conceito indeterminado, coloca-se a questão de saber em que termos deve ser aferido esse conceito de desproporcionalidade das cláusulas penais?

Vem hoje, entre nós, constituindo entendimento claramente prevalecente (quer na doutrina, quer na jurisprudência) que esse critério deve ser aferido e encontrado com base num juízo objetivo e abstrato, e não casuístico, ou seja, independentemente das circunstâncias do caso concreto, tomando em conta o quadro negocial padronizado, e específico do sector de atividade em que ocorreu o contrato no qual a cláusula penal foi estipulada, reportando esse juízo ao momento em que a cláusula penal foi estabelecida, e nessa medida devendo considerar-se para o efeito a desproporção entre a pena estipulada e os danos então previsíveis e não os danos concretos/efetivos.

Não resistimos, para ilustrar o que acabamos de dizer, em, numa súmula, citar o prof. Pinto Monteiro (in última “Ob. cit., pág. 311”), que, a esse respeito, discorre: «(…) A este respeito, a jurisprudência revela que se tem decidido, e bem, que é um juízo objectivo e abstracto que se deve fazer, pois é em face do “quadro negocial padronizado” que há que decidir. Não há aqui que ter em conta as circunstâncias concretas, antes os interesses típicos do círculo de contraentes que habitualmente participam na espécie de negócio em causa, naquele especial sector de actividade negocial.» Voltando mais à frente (pág. 313), o insigne Mestre a reafirmar: «(…) É que como, temos dito, o juízo sobre a desproporção deve fazer-se em abstracto e, por isso, reportar-se ao momento em que a cláusula penal é estabelecida, devendo considerar-se, para esse efeito, a desproporção entre a pena estipulada e os danos previsíveis. (…). »

Em reforço do afirmado, cite-se ainda Ana Filipa Morais Antunes (in “Comentário à Lei das Cláusulas Contratuais Gerais, 2013, págs. 294/295”), quando escreve: «(…) A proibição de utilização destas cláusulas nos contratos singulares pressupõe um juízo valorativo suplementar, a realizar em face do tipo de contrato, do quadro negocial típico abstracto ou do ramo ou sector der atividade negocial. A referência “ao quadro negocial padronizado” não é uma remissão, pois, para uma análise de tipo casuístico, para as circunstâncias individuais de cada contrato singular. Pelo contrário, nesta valoração – a realizar pelo julgador – vai implicado um juízo abstracto, em que se justifica ponderar, para além do tipo negocial, a natureza do bem a prestar, a situação do mercado no sector em que o negócio se integra, o ramo económico, a natureza de consumidor ou de empresário e, nas relações mercantis, o estádio de produção ou comercialização e a dimensão empresarial. (…) Nesta medida, não está em causa um modelo de decisão assente em critérios de justiça individual e do caso concreto, como sucede na decisão segundo a equidade, por essa razão mais permeável à insegurança jurídica.»

E por fim, citemos ainda, a tal propósito, os profs. Mário Júlio de Almeida Costa e António Menezes Cordeiro (in “Cláusulas Contratuais Gerais, 1991, - em anotação ao Decreto-Lei nº. 444/85, de 25 de Outubro - pág. 47”) quando afirmam «(…) Com vista a facilitar a tarefa concretizadora, a lei fornece o critério para a determinação da natureza excessiva das cláusulas penais: a desproporção entre as reparações que elas imponha e os danos a ressarcir. Observe-se, porém, que o qualificativo «desproporcionadas» não aponta para uma pura e simples superioridade das penas preestabelecidas em relação ao montante dos danos. Pelo contrário, deve entender-se, de harmonia com as exigências do tráfico e segundo um juízo de razoabilidade, que a hipótese em análise só ficará preenchida quando se detectar uma desproporção sensível.»

Apontando no sentido que se deixou expendido, vide, entre outros, ainda, ao nível da doutrina, o prof. Sousa Ribeiro (in “Responsabilidade e garantia em cláusulas contratuais gerais, Estudos de homenagem ao Prof. Doutor Ferrer Correia, vol. IV., especial Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 1997, págs. 241 e ss. e 283 e ss.”), Nuno Manuel Pinto Oliveira (in “Ob. cit., págs. 165/176”), o prof. Menezes Cordeiro (in “Tratado de Direito Civil, Vol. II, parte geral, pág. 450”), e, ao nível da jurisprudência, os Acs. do STJ de 20/09/2020, in “CJ, Acs. do STJ, Ano XXVIII, Tomo III, pág. 31 e ss.”, de 28/03/2017, in “CJ, Acs. do STJ, Ano XXV, Tomo 1, pág. 136”, e de 21/03/2006, in “CJ, Acs. do STJ, Ano XIV, Tomo 1, pág. 146”).

Tendo presente o que se deixou exposto, e considerando,

O teor da cláusula e sua natureza (função indemnizatória);

O tipo de contrato em que se mostra inserida (contrato de fornecimento de café em estabelecimento aberto ao público, a retalho);

O ramo de atividade a que se dedica a predisponente;

O estabelecimento e montante do “desconto antecipado”, com relevo na economia do contrato e equilíbrio das prestações, uma vez que constituindo-se como uma entrega imediata pela predisponente, cuja amortização estava directamente dependente ou conexa à quantidade a adquirir:

Desde logo, não é seguro afirmar que a pena estabelecida é de montante desproporcionado ou exorbitante em relação aos danos a ressarcir. Sequer se dispõe, por falta de informação do que sucede com contratos do mesmo tipo, dessa referência para afirmar a desproporcionalidade da pena convencionada.

A exequente tem mais a ganhar com o cumprimento (no planeamento da sua actividade comercial, na visibilidade que lhe dá a publicidade do produto comercializado pelo período contratual acordado, na habituação do cliente aos produtos da Autora e consequente fidelização, nos lucros decorrentes das vendas nos termos do contrato e, por fim, na poupança decorrente da ausência de litígios) do que com o incumprimento, mesmo em consideração das penas convencionais previstas, de satisfação onerosa (sabidamente de pagamento raramente voluntário e, daí, a necessidade do recurso a uma acção com os custos inerentes) e incerta.

Na hipótese do contrato ser cumprido pontualmente, a exequente venderia (pelo menos) a quantidade acordada de café, com os lucros inerentes, e obteria publicidade do seu nome e produto pelo período contratual, o que é relevante num mercado aberto e de forte concorrência. Com a contratação, a exequente não visava apenas a venda da quantidade de café acordada, mas também a promoção do seu produto, o incremento das vendas e a fidelização do cliente. Perante o incumprimento do contrato, este objectivo ficou por alcançar.

Por outro lado, a exequente investiu na 1ª executada, designadamente nas negociações prévias e na concessão de uma contrapartida financeira, amortizável à medida da aquisição dos produtos a que a 1ª executada se vinculou. Com a conduta daquela, não só se frustraram os ganhos, como se ameaçam perdidos os investimentos feitos, bem como os benefícios que adviriam da visibilidade das marcas comercializadas se o contrato tivesse sido pontualmente cumprido.

Se não tivesse investido no contrato em causa, a exequente não teria despendido, sem proveito, numa contrapartida a favor da 1ªembargante/executada, mediante a entrega de dinheiro. Com esse valor poderia ter angariado outro cliente que lhe proporcionaria (ou poderia proporcionar) o lucro esperado da parte da 1ª outorgante. Não teria feito despesas, que são normais, em pessoal para promoção e realização das tarefas administrativas para a conclusão do contrato nem outras despesas como as necessárias à satisfação dos seus direitos por via do incumprimento. E são esses os danos expectáveis ou normais. E, neste âmbito, os factos não permitem afirmar que os previsíveis danos são desproporcionais em relação ao valor da pena acordada, como também não se pode, de acordo com essa factualidade, concluir-se que a exequente não correu riscos, nomeadamente por falta de investimento, ou que a pena acordada é desproporcionada, manifestamente excessiva face aos prejuízos a indemnizar.

A Autora sofreu ou pode sofrer outros danos, não ressarcíveis pela mera disponibilidade da mercadoria que a 1ª executada deveria comprar, para realizar outros negócios. Não se esqueça desde logo, na economia do contrato, o valor do “desconto antecipado”, sendo que ao menos os juros remuneratórios daquele se constituem como um factor a atender, para além da devolução em singelo da quantia entregue, sem qualquer contrapartida.

Ora, perante a conjugação e ponderação do tudo o que se deixou exposto, somos levados a concluir que a cláusula penal consagrada na sobredita cláusula 6ª, inserta nas condições gerais do contrato, não se mostra (abstratamente) desproporcionada (e pelo menos de forma bastante sensível) no que concerne aos danos a ressarcir (resultantes da falta de compra da quantidade de café acordada).

É que não está em causa a frustração pura e simples da possibilidade do lucro adveniente das projectadas vendas, ao contrário do que aduzem os recorrentes. Nessa medida, inexiste paralelo com a situação versada no citado Acórdão do STJ e relativa à ausência de prestação de serviços.

E daí que tal cláusula não seja proibida e como tal nula.


*

Pode, finalmente, suscitar-se, ainda, a questão de saber se a referida cláusula penal pode ser reduzida, pretensão de resto expressamente formulada pelos recorrentes.

Na verdade, nada impede (tal como vem constituindo entendimento prevalecente) que, não obstante se ter concluído pela validade cláusula penal (por não ser desproporcionada) que a mesma possa vir a ser, (mesmo oficiosamente), reduzida, à luz do artº. 812º do Cód. Civil. (Neste sentido, vide, por todos, o prof. Pinto Monteiro, in última “Ob. cit., págs. 313/315” e bem como ainda in “Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, Coimbra Editora, 1985, págs. 141/142”, Nuno Manuel Pinto Oliveira (in Cláusulas Acessórias Ao Contrato – Cláusulas de Exclusão e de Limitação do Dever de Indemnizar, Cláusulas Penais – 2ª. ed., Almedina,, págs. 160/163”, e Ac. do ST de 12/05/2016, proc. 72/14.0TTOAZ.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

Na verdade, dispõe-se, além do mais, no nº. 1 daquele preceito legal que “A cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva (…).”

Abordando tal problemática, o referido insigne Pinto Monteiro (in O duplo controlo de penas manifestamente excessivas em contratos de adesão, RLJ, Ano 146º, págs. 313/314”), discorreu assim (num entendimento que perfilhamos):

«(…) Pergunta-se: poderá ela, a pena, num segundo momento, vir a ser reduzida, por aplicação do disposto no art. 812.º, apesar de o contrato ser de adesão?

Entendemos que sim (…). É que, como temos dito, o juízo sobre a desproporção da pena deve fazer-se em abstracto e, por isso, reportar-se ao momento em que a cláusula penal é estabelecida, devendo considerar-se, para esse efeito, a desproporção entre a pena estipulada e os danos previsíveis. Sendo a pena desproporcionada a esses danos, é nula; caso contrário, é valida.

Mas isso não significa que, sendo a cláusula penal válida, não possa a pena vir depois a ser reduzida, por aplicação do disposto no art. 812.º, se ela vier a revelar-se “manifestamente excessiva”, em concreto, em face do incumprimento, tendo em conta, para este efeito, não só os danos efectivamente causados como também os demais factores a ter em consideração para apurar se a pena “é manifestamente excessiva” e no respeito da equidade (que neste segundo momento já será de ter em conta).

É que o juízo sobre a manifesta excessividade da pena deve fazer-se, não relativamente ao momento em que ela foi estipulada - diversamente do que sucede com o juízo sobre a desproporção da pena -, mas ao ter de cumprir-se. E não é o dano previsível que conta, antes o prejuízo efectivo. (…). »

Por fim, e esse respeito, não resistimos ainda em citar o mesmo autor (agora in Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, Coimbra Editora, 1985, págs. 141/142), quando afirma “O novo Código Civil veio, finalmente, permitir ao tribunal a redução equitativa de penas manifestamente excessivas (art. 812.º), respeitando, porém, a natureza de soma invariável (forfaitaire) – própria da cláusula penal -, pois os termos em que a redução é permitida mostram que só em circunstâncias excepcionais, em face de penas abusivas e iníquas, é que o tribunal poderá atenuá-la. Doutra forma, anular-se-ia a cláusula penal, quando, do que se trata, é apena de evitar abusos, traduzidos em penas manifestamente excessivas ou injustificadas.»

Tendo presente o que se deixou expendido, e transpondo-nos para o caso em apreço, e considerando:

Que o que se deve agora ter em conta é o dano efetivo; (no juízo a formular sobre a manifesta excessividade da pena);

Que o dano no caso se reporta não à frustração do lucro adveniente da total falta de cumprimento pelos embargantes das obrigações que assumiram, mas à evicção da totalidade das finalidades já apontadas (de publicidade, comercial/de concorrência - fidelização e planeamento da actividade da predisponente) que, de resto, justificam a “antecipação do desconto”, em termos de este se constituir como um quase financiamento à actividade comercial alheia, cuja amortização é a compensar, precisamente, mediante a efectiva venda dos produtos comercializados;

Que o incumprimento do acordado é substancial e se iniciou logo numa fase inicial do contrato,

somos lavados concluir - na conjugação e ponderação de tudo o que se deixou exposto - que a cláusula penal consagrada na sobredita cláusula 6ª. (e correspondente pena dela resultante) não se mostra, in casu, manifesta ou ostensivamente excessiva.

E sendo assim, não se justifica a sua redução.

III.

Termos, pois, em que, perante o que se deixou exposto, se nega provimento à apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelos Recorrentes.

Notifique.


Porto, 10 de Outubro de 2024
Isabel Peixoto Pereira
Francisca Vieira [Declaração de voto:
Concordando com a deliberação encontrada pela maioria do coletivo, não subscrevo o segmento da fundamentação do acórdão na parte em que qualifica o contrato dos autos como um contrato de concessão comercial.
O contrato de concessão comercial, inserido na vasta categoria de contratos de distribuição comercial é um contrato-quadro que dá origem a uma relação jurídica complexa e duradoura. Torna-se necessário para considerar existente um contrato de concessão comercial que do acordado entre as partes resultem os seguintes elementos: 1.a promoção dos produtos por parte do concessionário; 2. a integração do concessionário na rede de distribuição do concedente, obrigando-se o concessionário a observar determinados deveres emergentes da sua integração na rede de distribuição do concedente tendo por finalidade criar e disciplinar uma relação jurídica de colaboração estável e duradoura entre as partes, cuja execução se traduz na celebração futura entre as partes, de sucessivos contratos de compra e venda; 3.a obrigação de comprar ao concedente, para revenda, com caráter duradouro, dos bens produzidos ou distribuídos pelo concedente; 4. a assunção de determinadas obrigações no tocante à política comercial e à assistência a prestar aos clientes, sujeitando-se a um certo controlo e fiscalização.
Como resulta da factualidade provada, a exequente, aqui embargada e recorrida e a sociedade-executada, aqui co-embargante e recorrente, celebraram entre si, um contrato, comercial, juridicamente inominado, junto com o requerimento executivo, o qual, como emerge do programa negocial nele estabelecido, envolve segmentos próprios do contrato-promessa, mas também da prestação de serviços, do contrato de fornecimento, do comodato e da compra e venda de café, em exclusividade em relação à sociedade embargante-compradora.
E da factualidade provada não resulta verificado um dos elementos característico e relevantíssimo do contrato de concessão comercial: “a sujeição do concessionário a certas obrigações destinadas a assegurar a sua integração na rede de distribuição do concedente, em matérias tais como a organização empresarial, a política promocional e comercial, a assistência pós-venda”.
Assim, porque no caso presente, a factualidade provada não revela essas notas de controlo e fiscalização e de sujeição à política comercial do concedente, afigura-se-me que o contrato dos autos não consubstancia um contrato de distribuição na modalidade de concessão comercial, mas apenas, um simples contrato de fornecimento.]
Ernesto Nascimento
_______________________
[1] Aqui se segue, de muito perto, data venia, o Acórdão da Relação de Guimarães de 9.11.2023 (2984/22.9T8GMR.G1), relatado pela Juíza Desembargadora Maria João Matos, na base de dados da dgsi.
[2] Luís Pires de Sousa (Direito Probatório cit., p. 61)
[3] Por todos, distinguindo exemplarmente entre ónus de alegação e ónus da prova, os Acórdãos da Relação de Lisboa de 20.12.2022, no processo 2679/22.3T8LSB.L1-7 e o já longínquo, mas lapidar, Acórdão do STJ de 24.02.2005, 04B4826, ambos acessíveis na base de dados da dgsi.
[4] Anote-se que nenhuma das partes veio suscitar, na sequência da notificação do despacho saneador, a insuficiência dos temas da prova, sendo certo que, conexo com os temas 1 e 2 da prova, não deixou de se constituir como objecto de prova, como decorre ta totalidade das inquirições ouvidas, a questão do conhecimento e comunicação aos embargantes dos termos do contrato outorgado (imbricada é certo, pela discussão primeira, com a investigação quanto à existência de negociação particular do clausulado cuja exclusão vem pedida)… Nessa medida, resulta claro da audiência de julgamento que se constituiu como objecto relevantíssimo, nuclear, da prova efectivamente produzida, a questão do conhecimento pelos embargantes dos termos do negócio efectivamente acordado, muito decisivamente quanto ao clausulado cuja exclusão vinha pedida.
[5] Constitui orientação uniforme da jurisprudência. Ver, como mero exemplo, Ac. STJ de 10/10/2002, no Proc. 2667/02 da 7ª secção (relator Oliveira Barros).
[6] À questão de saber se realidades de natureza psicológica podem ou não integrar realidades de facto, tem a jurisprudência do STJ dado resposta positiva, considerando que “factos são não só os acontecimentos externos, mas também os estados emocionais e os eventos do foro interno, psíquico”, como se escreve STJ 17.12.2019 (756/13.0TVPRT.P2.S1), relatado por Maria da Graça Trigo. O que sucede é que a sua apreensão não pode ser feita de forma direta, como explica Michele Taruffo, La Prueva des los Hechos, 2.ª ed., Madrid: Trotta, 2005, p. 166, quando escreve que “[q]uando o facto juridicamente relevante é verdadeiramente um facto psíquico (não redutível ou reconduzível a uma declaração), quase nunca é determinado diretamente. O verdadeiro objeto do conhecimento do juiz, pelo contrário, são indícios que tendem a ser recolhidos em esquemas tipificados, sob a premissa de que esses indícios típicos produzem com razoável segurança a determinação do facto psíquico em questão, ao qual a norma atribui consequências normativas. No entanto, é muito discutível a ideia de que, realmente, nestas situações, o juiz determina a verdade ou a existência de um facto psíquico interno da mesma forma que determina presuntivamente um facto material do qual não tem prova direta. Em vez disso, o que acontece é que o juiz conhece apenas indícios que se encaixam num esquema típico e, com base nesse conhecimento, considera subjacente o pressuposto de facto que se está a tentar determinar. Dizer que, neste caso, estamos perante uma determinação indireta, mas tipificada do facto psíquico é talvez uma complicação formal inútil. É provavelmente mais realista pensar que esse facto psíquico não é realmente determinado; é antes substituído por uma constelação de indícios que são tipicamente considerados equivalentes a ele e que representam o verdadeiro objeto da determinação probatória. Em resumo, o facto psíquico interno não existe como objeto de prova e a sua definição normativa é apenas uma formulação elíptica cujo significado se reduz às circunstâncias específicas do caso concreto.”
[7] Sem desrespeito outrossim pela vinculação deste tribunal à sua esfera de cognição, pela delimitação objetiva resultante das conclusões do recurso e remetendo-nos para o que já se explicitou no texto quanto à admissibilidade de prova quanto ao conhecimento do clausulado pelos recorrentes.
[8]Na verdade, verificados os pressupostos legais desta: a) incidir a ampliação da decisão da matéria de facto sobre matéria indispensável, assim matéria essencial para a prova dos factos constitutivos do direito da exequente, a saber, a “inclusão” no conteúdo do contrato da cláusula que justificou o preenchimento do título executivo; b) estarem em causa factos que são complemento ou concretização dos que as partes oportunamente alegaram c) factos que resultam da instrução da causa, produzida a prova respectiva mediante audiência contraditória.
Quanto agora ao segmento sob b), para que não se suscitem dúvidas sob o âmbito da alegação pelas partes, caberá ainda notar que a alegação pelos embargantes (precisamente sob os artigos 7º a 13º da petição) reveste alguma natureza conclusiva… Assim é que assumindo imediatamente o objecto da norma convocada: “a ausência do conhecimento do conteúdo”, ao invés de uma descrição circunstanciada das circunstâncias da celebração do contrato que a revelariam ou permitiriam concluir (falta de entrega dos termos do contrato, assinatura de cruz, extensão e complexidade do contrato, cláusulas após a assinatura, etc… Já a contestação, com o enfoque assinalado, reconduzia-se ao circunstancialismo do contrato, mediante o acordo relativo à quantidade de café a adquirir e correspondente “desconto antecipado”… Ambas as alegações tendo como pressupostos a (des)aplicação do regime legal das cláusulas contratuais gerais.
Ora, o art. 607/4 do CPC, nos termos do qual o tribunal só deve responder aos factos que julga provados e não provados, exclui a pronúncia, nesta sede, sobre questões de direito, sendo que, tradicionalmente, se englobam neste conceito, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos, os quais são, no dizer de Helena Cabrita, A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra: Coimbra Editora, 2015, pp. 106-107, “ aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo desde logo em si mesmos a decisão da própria causa” ou, dito de outro modo, aqueles que se fossem considerados provados ou não provados levariam a que toda a ação ficasse resolvida, em termos de procedência ou improcedência, com base nessa única resposta.
A título de exemplo, cita-se STJ de 28.09.2017 (809/10.7TBLMG.C1.S1), relatado por Fernanda Isabel Pereira, no qual se entendeu que, “[m]uito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria suscetível de ser qualificada como questão de direito.”
Este entendimento estrito tem sido objeto da crítica da doutrina, em especial de Miguel Teixeira de Sousa, “Anotação ao Acórdão do STJ de 28.9.2017, processo n.º 809/10.7TBLMG.C1.S1”, Blog IPPC, Jurisprudência 784 , https://blogippc.blogspot.com/ [17.10.2023] (O autor retomou o tema em no escrito “Factos conclusivos": já não há motivos para confusões!”, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2023/06/factos-conclusivos-ja-nao-ha-motivos.html), que, a propósito, escreve que, “[e]nquanto no CPC/1961 se selecionavam, no modo interrogativo (primeiro no questionário e depois da base instrutória), factos carecidos de prova, hoje enunciam-se, no modo afirmativo, temas da prova (cf. art. 596.º CPC). Tal como estes temas não têm de (e, aliás, nem podem, nem devem) ser enunciados fora de qualquer enquadramento jurídico, também a resposta do tribunal à prova realizada pela parte não tem de ser juridicamente asséptica ou neutra (…)
A chamada "proibição dos factos conclusivos" não tem hoje nenhuma justificação no plano da legislação processual civil (não importando agora discutir se alguma vez teve). Se o tribunal considerar provados os factos que preenchem uma determinada previsão legal, é absolutamente irrelevante que os apresente com a qualificação que lhes é atribuída por essa previsão. (…) Assim, também ao contrário do entendimento comum, há que concluir que o tema da prova não é mais do que o enunciado do objeto da prova. A referida "proibição dos factos conclusivos" também não corresponde às modernas correntes metodológicas na Ciência do Direito, que não se cansam de referir que a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito é totalmente artificial, dado que, para o direito, apenas são relevantes os factos que o direito qualificar como factos jurídicos. Para o direito, não há factos, mas apenas factos jurídicos, tal como, para a física ou a biologia, não há factos, mas somente factos físicos ou biológicos. Os factos são sempre um Konstrukt, pelo que os factos jurídicos são aqueles factos que são construídos pelo direito. Em conclusão: o objeto da prova não pode deixar de ser um facto jurídico, com todas as características descritivas, qualitativas, quantitativas ou valorativas desse facto.”
Da nossa parte, entendemos que é preferível um entendimento eclético.
Com efeito, ainda na vigência do CPC de 1961, o mesmo STJ notou, em Acórdão de 13.11.2007 (07A3060), relatado por Nuno Cameira, que “[t]orna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infração desta proibição com o considerar tal tipo de juízos como não escritos.” E acrescentou que “não pode perder se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas.”
Já no âmbito do CPC de 2013, o STJ, em Ac. de 22.03.2018 (1568/09.1TBGDM.P1.S1), relatado por Abrantes Geraldes, considerou que a inexistência no CPC de 2013 de um preceito como o do art. 646/4 do CPC de 1961 “não pode deixar de ter implicações no que concerne à atual metodologia no que concerne à descrição na sentença do que constitui matéria de facto e matéria de direito.” Escreveu-se ali que “[n]o que concerne à decisão sobre a matéria de facto provada e não provada, não será indiferente nem o modo como as partes exerceram o seu ónus de alegação, nem a forma como o juiz, na audiência prévia ou em despacho autónomo, enunciou os temas da prova, tarefas relativamente às quais foram introduzidas no CPC importantes alterações que visaram quebrar rotinas instaladas e afastar os efeitos negativos a que conduziu a metodologia usualmente aplicada no âmbito do CPC de 1961 (…) A matéria de facto provada deve ser descrita pelo juiz de forma mais fluente e harmoniosa do que aquela que resultava anteriormente da mera transcrição do resultado de respostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados que usualmente preenchiam os diversos pontos da base instrutória do CPC de 1961 (…)”
O relator deste Acórdão, Conselheiro António Abrantes Geraldes, renovou este entendimento na sua obra Recursos em Processo Civil (7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, pp. 354-355), ao escrever que, em resultado da modificação formal da produção de prova em audiência, que passou a ter por objeto temas de prova, e da opção da integração da decisão da matéria de facto no âmbito da própria sentença, “deve existir uma maior liberdade no que concerne à descrição da realidade litigada, a qual não deve ser imoderadamente perturbada por juízos lógico-formais em torno do que seja matéria de direito ou matéria conclusiva que apenas sirva para provocar um desajustamento entre a decisão final e a justiça material do caso (...) A patologia da sentença neste segmento apenas se verificará, em linhas gerais, quando seja abertamente assumida como matéria de facto provada pura e inequívoca matéria de direito…”
Sem prejuízo, como salientado no Acórdão da Relação de Guimarães de 11.11.2021 (671/20.1T8BGC.G1), relatado por Raquel Batista Tavares, “não obstante subscrevermos uma maior liberdade introduzida pelo legislador no novo (atual) Código de Processo Civil, entendemos que não constituem factos a considerar provados na sentença nos termos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil os que contenham apenas formulações absolutamente genéricas e conclusivas, não devendo também constituir “factos provados” para esse efeito as afirmações que “numa pura petição de princípio assimile a causa de pedir e o pedido”… De facto, se a opção legislativa tem subjacente a possibilidade de com maior maleabilidade se fazer o cruzamento entre a matéria de facto e a matéria de direito, tanto mais que agora ambos (decisão da matéria de facto e da matéria de direito) se agregam no mesmo momento, a elaboração da sentença, tal não pode significar que seja admissível a “assimilação entre o julgamento da matéria de facto e o da matéria de direito ou que seja possível, através de uma afirmação de pendor estritamente jurídico, superar os aspetos que dependem da decisão da matéria de facto”.
Deste modo, tendo presente que a linha divisória entre o facto e o direito não é linear, tudo dependendo, no dizer de Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, Coimbra: Almedina, 1982, p. 270, “em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa: o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são, assim, flutuantes”, há sempre que verificar se o facto, mesmo com uma componente conclusiva, não tem ainda um substrato relevante para o acervo que importa para uma decisão justa.
Na verdade, como se salienta em STJ 14.07.2021 (19035/17.8T8PRT.P1.S1), relatado por Júlio Gomes, citando um outro aresto do mesmo Tribunal, este de 13.11.2007, “torna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infração desta proibição com o considerar tal tipo de juízos como não escritos.
Aliás, não pode perder-se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar-se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas”
Isto sem esquecer que, como refere a declaração de voto da Conselheira Luísa Geraldes a STJ 28.01.2016 (1715/12.6TTPRT.P1.S1), “ainda que relativamente a alguns deles se pudesse afirmar a sua natureza conclusiva, nem assim se justificava a eliminação pura e simples, de tais pontos de facto, devendo a Relação fazer uso dos poderes conferidos enquanto Tribunal de instância que conhece da matéria de facto, ao abrigo do preceituado no artigo 662.º do CPC.” É, precisamente, nesta sede que se insere a matéria acrescentada, nos termos em que o foi.
Ainda quando os factos conclusivos estejam diretamente relacionados com o thema decidendum, apenas são a desconsiderar quando impeçam ou dificultem de modo relevante a percepção da realidade concreta, seja ela externa ou interna, ditando simultaneamente a solução jurídica, normalmente através da formulação de um juízo de valor. Certo estar o objeto da acção total ou parcialmente dependente do significado real das expressões técnico-jurídicas utilizadas (falta de conhecimento), há que concluir que não estamos perante matéria de direito e que tais expressões podem ser submetidas a prova e integrar a decisão sobre matéria de facto, embora com o significado vulgar e corrente e não com o sentido técnico-jurídico que possa colher-se nos textos legais. Desejavelmente, caberá concretizar ou factualizar o circunstancialismo real encerrado na expressão, o que este tribunal fez na hipótese decidenda.
[9] A síntese é já do Acórdão do STJ de 15.02.2018, no processo 7461/11.0TBCSC.L1.S1, na base de dados da dgsi.
[10] Sendo tal proibição de conhecimento oficioso. Por todos, o Acórdão desta secção de 09.03.2023, 14550/22.4T8PRT.P1, na base de dados da dgsi.
[11] Para o que não há que estabelecer relação com os danos efectivamente sofridos nem com o incumprimento contratual concreto, para subsumir qualquer cláusula penal ao referido preceito.
[12] Explicada agora a necessidade do excurso quanto ao contrato em apreço.
[13] Com o regime acima aventado, a apelar já a uma desproporcionalidade manifesta.
[14] http://www.dgsi.pt/jdgpj.nsf/f1d984c391da274c80257b820038a5b4/0b7489f44c1d7315802584a8003d16df/$FILE/652_16.0T8SNT.pdf