INVENTÁRIO JUDICIAL
VERIFICAÇÃO DO PASSIVO
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
Sumário

I – No processo de inventário, quanto ao passivo relacionado pelo cabeça-de-casal, podem os restantes interessados no inventário impugnar a sua existência e/ou o seu montante, sendo a sua verificação efectuada nos termos do art. 1106.º do Código de Processo Civil.
II – Quanto ao passivo não relacionado pelo cabeça-de-casal, o mesmo pode ser reclamado pelos credores respectivos até à conferência de interessados, caso em que a sua apreciação poderá ter lugar nesta conferência, em conformidade com o disposto no artigo 1111.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
III – Cabendo ao juiz decidir (seja porque há impugnação de passivo relacionado pelo cabeça-de-casal, seja porque não há acordo em conferência de interessados quanto a passivo reclamado pelo credor respectivo), aquele deve apreciar a existência e montante do passivo quando a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados, conforme dispõe o art. 1106.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
IV – Caso os documentos não permitam concluir com segurança nem pela existência, nem pela inexistência da dívida, a decisão do juiz não pode ser a do não reconhecimento, ou do reconhecimento, da existência da dívida, mas a remessa das partes para os meios comuns, de acordo com o princípio geral do art. 1093.º do Código de Processo Civil.
V – A falta de resposta à reclamação à relação de bens tem apenas um efeito cominatório semi-pleno, pelo que não pode considerar-se admitido por acordo o facto da inexistência de uma dívida, invocado na reclamação, quando tal dívida foi relacionada pelo cabeça-de-casal na relação de bens.

Texto Integral

Processo nº 1341/22.1T8VNG.P1
(Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia – Juiz 2)

Relatora: Isabel Rebelo Ferreira
1º Adjunto: Carlos Portela
2ª Adjunta: Ana Vieira

*
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I AA requereu, no Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, em 17/02/2022, a instauração de inventário para partilha dos bens das heranças abertas por óbito de BB, falecida em 20/10/1994, e de CC, falecido em 26/08/2021, indicando-se a si como cabeça-de-casal, tendo a sua designação sido confirmada por despacho de 09/03/2022.
O cabeça-de-casal prestou compromisso de honra por escrito e apresentou relação de bens.
Das declarações de cabeça-de-casal constantes do requerimento inicial e dos restantes elementos constantes dos autos resulta que os inventariados foram casados segundo o regime de comunhão geral de bens, tendo deixado dois filhos, o requerente e cabeça-de-casal e DD, ambos casados segundo o regime de comunhão de adquiridos à data do óbito da mãe e do óbito do pai.
Na relação de bens apresentada, o cabeça-de-casal relacionou os seguintes bens:
“BENS PROPRIOS DE BB
BENS MÓVEIS
Verba 1
Uma aliança em ouro amarelo, com o valor de 25.00€
Verba 2
Uma aliança em ouro branco, com o valor de 25.00€
Verba 3
Brincos curtos em ouro, com o valor de 50.00€
Verba 4
Brincos compridos em ouro, com o valor de 75.00€
Verba 5
Pendente em ouro com fundo vazado, com o valor de 75.00€
Verba 6
Pendente em ouro com libra no interior, com o valor de 100.00€
BENS PROPRIOS DE CC
ATIVO
DINHEIRO
Verba 7
A quantia de quatro mil setecentos e noventa euros e sete cêntimos, em conta bancaria à ordem no banco Banco 1..., S.A., com o numero de conta ... (IBAN ...) 4.790,07€
Verba 8
Uma aliança em ouro amarelo, com o valor de 25.00€
Verba 9
Uma aliança em ouro branco, com o valor de 25.00€
Verba 10
Relógio de bolso, com o valor de 75.00€
Verba 11
4/24 do Jazigo de família de duas campas, na ... Secção do Cemitério Novo do Cemitério ... da freguesia ... (doc 2), com o valor de 500.00€
BENS IMOVEIS
Verba 12
Prédio urbano, destinado a habitação, composto por casa de dois pavimentos, sito na Rua ..., da união de freguesias ... e ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na Segunda Conservatória do Registo de Vila Nova de Gaia sob o número ... de ..., inscrito na matriz sob o artigo urbano ... da referida união de freguesias (doc. 3 e 4), com o valor patrimonial de 79.668,91€
Verba 13
Prédio rustico composto por pinhal, sito no lugar ..., na união de freguesias ... e ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na Segunda Conservatória do Registo de Vila nova de Gaia sob o numero ... de ..., inscrito na matriz sob o artigo rustico ... da referida união de freguesias (doc. 5 e 6), com o valor patrimonial de 8.17€
BENS COMUNS DO CASAL
BENS IMOVEIS
Verba 14
Prédio urbano, destinado a habitação, composto por casa de três pavimentos, sito na Rua ..., da união de freguesias ... e ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na Segunda Conservatória do Registo de Vila nova de Gaia sob o numero ... de ..., inscrito na matriz sob o artigo urbano ... da referida união de freguesias (doc. 7 e 8), com o valor patrimonial de 145.914,58€
Verba 15
Prédio rustico composto por leira a mato, denominado de ..., sito nos limites do lugar de ..., na união de freguesias ... e ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na Segunda Conservatória do Registo de Vila Nova de Gaia sob o numero ... de ..., inscrito na matriz sob o artigo rustico ... da referida união de freguesias (doc. 9 e 10), com o valor patrimonial de 25.77€
PASSIVO
Verba 1
(eliminada por despacho de 09/03/2022)
Verba 2
Benfeitorias realizadas no prédio urbano acima identificado sob a verba 12 pelo herdeiro AA (doc.12) que o mesmo reclama apenas se a referida verba 12 não lhe for adjudicada, no valor total de 95.554,57€”
Citado o interessado DD, o mesmo apresentou o requerimento de 12/05/2022, no qual apresentou reclamação à relação de bens, reclamando nos seguintes termos:
A) Dinheiro
O cabeça de casal não relaciona o montante de 10.000,00€ que o reclamante entregou ao decesso CC na sequência de contrato promessa de partilha e divisão de coisa comum celebrado 20/11/2000 no escritório dos Drs EE e FF.
Esta montante deverá ser relacionado e atualizado de acordo com os índices de inflação publicados pelo INE.
B) Crédito por benfeitorias:
O cabeça de casal não relaciona as benfeitorias levadas a efeito pelo aqui reclamante e esposa, no imóvel relacionado sob a ver Nº 14, que consistiram:
Construção nas artes de trolharia, eletricista, picheleiro, serralharia e carpintaria, canalizações de água quente e fria, passeios e muros de vedação
Este prédio existia edificado apenas na arte de pedreiro, tendo o casal do reclamante efectuado e pago as seguintes obras e aquisição de todos os materiais: (…)
Exclusão do passivo da verba 2 do passivo
O reclamante não aceita a realização de quaisquer benfeitorias levadas a efeito pelo cabeça de casal no prédio identificado sob a verba nº 12. (…)”.
Indicou, para o efeito, meios de prova: perícia para avaliação das benfeitorias cujo relacionamento reclama e rol de testemunhas.
Nada tendo sido dito pelo cabeça-de-casal, foi proferido despacho, em 07/11/2022, nos seguintes termos:
«No âmbito do deduzido incidente de reclamação à relação de bens, o cabeça de casal não respondeu.
Julga-se, pois, por isso, que não é impertinente, nem dilatória a realização da avaliação pedida pelo interessado reclamante.
Notifique o cabeça de casal para se pronunciar quanto ao objecto indicado pelo reclamante.
Na próxima conclusão indique a secção perito.»
Depois de notificado deste despacho, por requerimento de 14/11/2022, o cabeça-de-casal veio responder à reclamação e indicar prova, o que foi considerado extemporâneo por despacho de 06/01/2023 [“Através do despacho com a referência 438394637 determinou-se o cumprimento do n.º 1 do artigo 1105º, do Código de Processo Civil. Este despacho foi cumprido no dia 06.07.2022. Entre 16.07 e 31.08 decorreram férias judiciais e acautelado o n. 5 do artigo 139º, do Código de Processo Civil, quando, no despacho com a referência 441934654, de 07.11.2022, se disse que «No âmbito do deduzido incidente de reclamação à relação de bens, o cabeça de casal não respondeu.», há muito havia terminado o prazo de 30 dias para que o cabeça de casal respondesse à reclamação à relação de bens. Por isso, julga-se que é extemporânea a resposta do cabeça de casal de 14.11 e os documentos que a instruem. Notifique.”].
Foi ordenada e realizada perícia tendo por objecto o indicado pelo reclamante.
Junto o respectivo relatório, foi proferido o seguinte despacho, em 04/10/2023: “Considerando o teor da perícia realizada no âmbito do incidente de reclamação à relação de bens, notifique o interessado reclamante para que, no prazo de dez dias, esclareça se continua a pretender a inquirição das testemunhas por si indicadas.”.
O reclamante, por requerimento de 13/10/2023, aduziu: “Face ao teor do douto despacho de fls. – Refª 444027375 – e o relatório Pericial de fls. afigura-se ao requerente a desnecessidade de inquirição das testemunhas arroladas.
Pelo que, atenta a procedência da Reclamação do aqui interessado, deverá o cabeça de casal apesentar Nova Relação de Bens.”.
Após, foi proferido o despacho de 08/12/2023, no qual se decidiu julgar a reclamação à relação de bens improcedente quanto à primeira e à terceira questões colocadas pelo reclamante e procedente quanto à segunda questão, determinando-se “que se acrescente verba ao passivo da herança com aquele valor”.
Deste despacho veio o interessado reclamante DD interpor recurso (requerimento de 22/12/2023), tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«1º - Vem o presente recurso do douto despacho que indeferiu parcialmente a reclamação à Relação de Bens apresentada pelo cabeça de casal, no que tange à omissão da quantia de 10.000,00€ adiantada pelo recorrente ao inventariado e relacionada com contrato-promessa de partilha e divisão de coisa comum celebrado com ele, contrato esse que depois não foi concretizado em definitivo, bem assim do pretenso crédito do cabeça de casal por benfeitorias por ele levadas a efeito em prédio da herança;
2º - O recorrente deduziu reclamação à Relação de Bens infirmando e provando, mesmo documentalmente, que o recorrido não efetuou quaisquer benfeitorias em prédio da herança, juntando documentos não impugnados
3º - O recorrido não apresentou qualquer resposta à reclamação apresentada pelo recorrente relativamente à factualidade por este elencada na reclamação apresentada;
4º - Não tendo sido apresentada resposta pelo cabeça de casal à reclamação contra a relação de bens, têm-se por admitidos os factos da reclamação nos termos gerais (art. 549 e 574º, do CPC, com a consequente obrigação de relacionar os bens objeto da reclamação.”.
5º - A morte do inventariado não extingue as dividas por ele contraídas que permanecem para além do seu óbito, agora como dividas da herança;
6º - Apesar do ónus da prova caber ao recorrido no que concerne à pretensa realização de benfeitorias, a verdade é que o recorrente provou documentalmente que tais benfeitorias foram efetuadas pelo autor da herança e por ele reclamadas no inventário a que se procedeu por óbito dos seus sogros e, muito menos, o recorrido provou o valor das mesmas;
7º - A falta de resposta à reclamação contra a Relação de Bens tem efeitos cominatórios, à luz do disposto no artº 549º, 574º, e 1106º, do CPC
8º - O douto despacho recorrido, viola o disposto nos artºs 342º,1 e 2, 2024º e 2025º, do CC e ainda o disposto nos artºs 3º, 3,549º,574º, 1106º do CPC sendo que o valor admitido de 95.554,57€ pretensamente despen[di]do pelo cabeça de casal é arbitrário, está impugnado e não foi provado.
Pelo exposto e pelo mais que doutamente será suprido, deve merecer provimento o presente recurso e, consequentemente revogado o douto despacho recorrido, mantendo-se integralmente o teor da Reclamação à relação de Bens, excluindo do seu passivo as benfeitorias pretensamente efetuadas pelo recorrido e acrescentado ao passivo a verba de 10.000,00€ adiantada ao autor da herança pelo casal do recorrente por efeito do contrato promessa de partilha e divisão de coisa comum, cujo contrato prometido não foi ultimado ou, quando assim se não entenda, o que se não espera, serem as referidas verbas relacionadas como litigiosas.
Assim se decidindo, far-se-á Justiça.».
O cabeça-de-casal não apresentou contra-alegações.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II - Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), é uma única a questão a tratar:
a) reclamação à relação de bens na parte em que visa a inclusão da quantia de € 10.000,00 e a exclusão da verba nº 2 do passivo.
**
Apreciemos, então, sendo a factualidade relevante a que consta do relatório antecedente, resultante da análise do processo.
O presente inventário foi instaurado em 17/02/2022, sendo-lhe aplicável o regime jurídico resultante do Código de Processo Civil, com a redacção que decorre da Lei nº 117/2019, de 13/09.
Nos termos do art. 1097º, nº 3, als. c) e d), do C.P.C., o cabeça-de-casal deve apresentar a relação de todos os bens sujeitos a inventário e a relação dos créditos e das dívidas da herança.
E de acordo com o disposto no art. 1098º, nºs 2, 3 e 7, do C.P.C., os bens que integram a herança devem ser especificados por meio de verbas pela seguinte ordem: direitos de crédito, títulos de crédito, valores mobiliários e demais instrumentos financeiros, participações sociais, dinheiro, moedas estrangeiras, objectos de ouro, prata e pedras preciosas e semelhantes, outras coisas móveis e, por fim, bens imóveis; os créditos e as dívidas são relacionados em separado, com identificação dos respectivos devedores e credores, devendo as benfeitorias efectuadas por terceiros em prédio da herança ser descritas como dívidas, quando não possam, sem detrimento, ser levantadas por quem as realizou.
Os restantes interessados, por sua vez, podem, além do mais, apresentar reclamação à relação de bens e impugnar os créditos e as dívidas da herança, nos termos do art. 1104º, nº 1, als. d) e e), do C.P.C..
No caso concreto, no que respeita à reclamação quanto à verba nº 2 do passivo, não há dúvidas de que se trata de uma impugnação quanto a uma dívida da herança, posto que está em causa uma alegada benfeitoria efectuada por um terceiro (que no caso até é um herdeiro) num prédio da herança.
E quanto à reclamação com vista à inclusão do montante de € 10.000,00?
À primeira vista, poder-se-ia pensar estar-se perante a pretensão de relacionação de um bem da herança, atenta até a epígrafe aposta pelo interessado reclamante de “dinheiro”.
Porém, visto o que é efectivamente reclamado, verifica-se que assim não é.
Com efeito, o que o reclamante pretende é que seja relacionado “o montante de 10.000,00€ que o reclamante entregou ao decesso CC na sequência de contrato promessa de partilha e divisão de coisa comum celebrado 20/11/2000”, e que o seja “atualizado de acordo com os índices de inflação publicados pelo INE”.
Ora, considerando que os bens da herança são aqueles que realmente existem no património do autor da sucessão à data da abertura da sucessão, que corresponde à data do óbito (cfr. arts. 2024º e 2031º do C.C.), e verificando-se que essa exacta quantia já não existia nessa data (como decorre do montante relacionado na verba nº 7) e que, aliás, não é isso que o interessado reclama, posto que pretende que seja indicado um valor actualizado de acordo com os índices da inflação, o que sempre seria uma ficção e coisa diferente do montante que ainda existisse no património do seu falecido pai, temos de concluir que a reclamação não se dirige a um bem concreto e determinado e realmente existente na herança, mas a uma dívida da herança.
Quer dizer, o que o reclamante, ora recorrente, efectivamente reclama é uma dívida do seu pai, decorrente do facto de lhe ter entregado uma determinada quantia no âmbito de um contrato promessa que foi celebrado, relativamente ao qual, aparentemente, não terá sido celebrado o contrato prometido – e daí a pretensão de relacionação do montante actualizado de acordo com os índices de inflação.
Temos, assim, como assente que em ambas as situações está em causa uma impugnação quanto ao passivo, num caso por relacionação indevida e noutro caso por falta de relacionação.
Ora, quanto ao passivo, a lei prevê:
- que o mesmo seja relacionado pelo cabeça-de-casal, podendo os restantes interessados no inventário impugnar a sua existência e/ou o seu montante (arts. 1097º, nº 3, al. d), 1098º, nº 3, e 1104º, nº 1, al. e), todos do C.P.C.);
- que o mesmo, não sendo relacionado pelo cabeça-de-casal, possa ser reclamado pelos credores respectivos até à conferência de interessados (cfr. art. 1088º do C.P.C.).
Na primeira situação a verificação do passivo é efectuada nos termos do art. 1106º do C.P.C., na segunda situação a apreciação poderá ter lugar na conferência de interessados em conformidade com o disposto no art. 1111º, nº 3, do C.P.C.. E, neste caso, ainda que alguma reclamação tenha sido apresentada antes, porque até à conferência podem ser apresentadas outras reclamações de outros credores, sendo adequado que tudo seja decidido de uma só vez nesta ocasião, isto é, no momento final para apresentação de reclamações pelos credores.
Neste sentido, veja-se João Espírito Santo, O inventário judicial: genealogia, recodificação e regime geral, in Revista de Direito Comercial, “liber amicorum”, págs. 278 a 283 e 299 a 302, disponível para consulta, e onde consultámos, na Internet, em https://www.revistadedireitocomercial.com/o-inventario-judicial-genealogia-recodificacao-e-regime-geral). Igualmente indicando o caso previsto no art. 1088º do C.P.C. como exemplo de situação de apreciação do passivo a submeter à conferência de interessados, veja-se António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, Vol. II, 2ª ed., Almedina, pág. 627.
Deste modo, no que concerne às concretas reclamações em causa, verifica-se que:
- quanto ao montante de € 10.000,00, a relacionar com actualização dos índices de inflação, está em causa uma situação de passivo não relacionado pelo cabeça-de-casal que é reclamado pelo credor respectivo;
- quanto às benfeitorias relacionadas, está em causa uma situação de passivo relacionado pelo cabeça-de-casal, mas impugnado pelo outro interessado no inventário (são apenas dois os interessados no presente inventário, o cabeça-de-casal e o reclamante).
Assim, quanto a esta situação aplicam-se as regras de verificação do passivo previstas no art. 1106º do C.P.C., e quanto à primeira situação, a mesma deverá ser apreciada na conferência de interessados, em conformidade com o que dispõe o art. 1111º, nº 3, do C.P.C., pretendendo-se que os interessados aí cheguem a acordo quanto à questão.
Se não houver acordo dos interessados, caberá ao juiz decidir, aplicando-se a esta situação o mesmo princípio de apreciação do passivo que decorre do art. 1106º, nº 3, do C.P.C..
No art. 1106º do C.P.C. prevê-se a tramitação da verificação do passivo nos casos das dívidas que são relacionadas pelo cabeça-de-casal:
- consideram-se reconhecidas as que não sejam impugnadas pelos interessados directos (nº 1);
- se todos os interessados se opuserem ao reconhecimento da dívida, o juiz deve apreciar a sua existência e montante quando a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados (nº 3);
- se houver divergências entre os interessados acerca do reconhecimento da dívida, aplica-se o disposto no nº 1 relativamente à quota-parte dos interessados que a não impugnem e quanto à parte restante observa-se o disposto no nº 3 (nº 4).
Cabendo ao juiz decidir (seja porque há impugnação de passivo relacionado pelo cabeça-de-casal, seja porque não há acordo em conferência de interessados quanto a passivo reclamado pelo credor respectivo), ou os documentos que se encontrem juntos permitem com segurança verificar a questão da existência da dívida ou não permitem, caso em que o juiz remeterá as partes para os meios comuns, onde poderão produzir todas as provas que entenderem relevantes ao caso – a apreciação dos documentos não serve apenas para decidir que a dívida existe, também serve para decidir que a mesma não existe sempre de acordo com o referido princípio: “a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados”.
Assim, caso os documentos não permitam concluir com segurança nem por uma coisa, nem por outra, a decisão do juiz não pode ser a do não reconhecimento da existência da dívida, mas a remessa das partes para os meios comuns, de acordo com o princípio geral do art. 1093º do C.P.C..
Revertendo ao caso concreto, é então de concluir que, tratando-se em ambos os casos de passivo (dívidas) da herança, a decisão a proferir no inventário não pode ser de improcedência da reclamação (o que equivale ao não reconhecimento da dívida no primeiro caso e ao reconhecimento da dívida, no segundo caso), como foi decidido no despacho recorrido.
Quanto ao montante de € 10.000,00 mais a actualização, que constitui dívida não relacionada, reclamada pelo credor respectivo, a questão tem de ser remetida para apreciação na conferência de interessados, seguindo-se a tramitação supra referida consoante venha a existir, ou não, acordo dos dois interessados.
Quanto à dívida de benfeitorias a favor do cabeça-de-casal, que foi relacionada como verba nº 2, a questão tem de ser apreciada de acordo com os documentos existentes nos autos, na medida em que, havendo apenas mais um interessado para além do cabeça-de-casal, a impugnação do reclamante equivale à situação de oposição por parte de todos os interessados prevista no nº 3 do art. 1106º do C.P.C..
Até porque, para além de essa situação não se aplicar ao passivo, que tem o regime específico previsto nos arts. 1106º e 1111º, nº 3, do C.P.C., a falta de resposta à reclamação, ao contrário do referido pelo recorrente, não tem um efeito cominatório pleno, mas semi-pleno, posto que, de acordo com o disposto nos arts. 574º, nº 2, e 587º, nº 1, do C.P.C. (aplicáveis por força do art. 549º, nº 1, do C.P.C.), os factos não impugnados só se consideram admitidos por acordo se não estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se for admissível confissão sobre eles ou se não se tratar de factos que só possam ser provados por documento escrito (cfr. Acs. da R.P. de 22/04/2024, com o nº de proc. 1020/22.0T8MTS-A.P1, e de 08/04/2024, com o nº de proc. 6305/12.0TBMAI-B.P1, Ac. da R.E. de 13/10/2022, com o nº de proc. 2814/21.9T8STR-A.E1, e Acs. da R.G. de 16/05/2024, com o nº de proc. 172/22.3T8CBT-A.G1, de 15/06/2023, com o nº de proc. 1851/19.8T8CHV-B.G1, e de 23/03/2023, com o nº de proc. 2203/21.5T8GMR.G1, todos publicados em www.dgsi.pt).
Ora, no caso, tendo a dívida sido relacionada pelo cabeça-de-casal, existe já uma posição expressa da parte deste no processo, no sentido da existência da dívida, ou seja, o facto alegado pelo reclamante, de que a dívida não existe, está em oposição com a posição anteriormente expressa pelo cabeça-de-casal, pelo que não pode considerar-se admitido por acordo [cfr. Ac. da R.E. de 13/10/2022, já referido: “estando em causa a falta de resposta pelo cabeça de casal à reclamação quanto à relação de bens, o efeito cominatório semipleno (…) circunscreve-se à factualidade nova alegada na reclamação deduzida, desde que não se mostre antecipadamente impugnada em função da posição assumida pelo cabeça de casal no requerimento inicial ou na relação de bens apresentada” – sublinhado nosso]
Há, pois, que averiguar se os documentos existentes no processo permitem decidir com segurança sobre a verba do passivo reclamada.
Considerando a não admissão dos documentos juntos pelo cabeça-de-casal com os requerimentos de 14 e 17/11/2022 pelo despacho de 06/01/2023, não impugnado pela parte, que com ele se conformou (e que assim passou a ter força obrigatória dentro do processo, nos termos do disposto no art. 620º, nº 1, do C.P.C., fazendo caso julgado formal), verifica-se que os documentos existentes no processo são unicamente os que foram juntos pelo cabeça-de-casal com o requerimento inicial e pelo reclamante com a reclamação.
Com a reclamação foi junta uma cópia de documentos respeitantes ao processo de inventário nº ..., por óbito de GG, no qual foi relacionado como verba nº 2 um prédio urbano, destinado a habitação, sito no lugar ..., ..., Vila Nova de Gaia, não descrito na Conservatória e inscrito na matriz predial urbana sob o art. ..., e como verba nº 5 o passivo constituído por benfeitorias efectuadas pelos ora inventariados neste mesmo prédio, “constituídas pela totalidade da construção e da casa destinada a habitação nele efectuada e construída”. O reclamante alega que este prédio é o mesmo da verba nº 12 ora relacionado e pertenceu aos pais da primeira inventariada, por morte de quem se procedeu ao referido inventário, embora não junte quaisquer documentos comprovativos destes factos.
Com o requerimento inicial, para além do mais, foram juntas certidão do registo predial da verba nº 12 (documento 3 da relação de bens), da qual consta que a descrição data de 27/06/2006 e que este imóvel estava inscrito na matriz sob o art. ... e foi adquirido pelo segundo inventariado por partilha de herança, sendo “sujeitos passivos” HH e mulher GG, e a caderneta predial urbana do imóvel da verba nº 12 (documento 4 da relação de bens), da qual consta que teve origem no art. ... e que se trata “dum prédio que sofreu alterações”, dele constando uma fórmula de cálculo do novo valor patrimonial em face da existência de uma ampliação do imóvel, tendo o Mod. 1 do IMI sido entregue em 24/07/2006, e foi junto um documento intitulado “Declaração” (documento 12), do qual consta que CC declara ter dado autorização ao seu filho AA e à esposa para fazerem obras no imóvel onde os três habitam, que corresponde ao imóvel da verba nº 12, tendo sido pagas por estes na totalidade. Descrevem-se ainda as diversas obras, de diversas artes, que terão sido realizadas, e os valores pagos, por cheques, que aí são discriminados.
Na decisão recorrida justificou-se a improcedência da reclamação unicamente porque “a circunstância de, à data de tal processo de inventário, o inventariado ter efectuado benfeitorias, não obsta a que tenham sido posteriormente realizadas outras obras, motivo pelo qual não consegue de tal modo o reclamante provar que as benfeitorias constantes da relação de bens deste processo não existem”.
Quer dizer, entendeu-se que o reclamante não provou que as benfeitorias não existem, como se sobre o mesmo existisse um ónus de prova dessa não existência.
Sucede, porém, que, como se viu, não há propriamente um ónus da prova no processo de inventário, nem sobre o cabeça-de-casal de demonstrar que a dívida existe, nem sobre o reclamante de demonstrar que a dívida não existe. Tem é que existir prova documental, seja qual for a sua proveniência (junta por uma ou outra parte), que permita concluir com segurança por essa existência ou inexistência, o que será declarado se assim suceder. Não sendo a prova documental suficiente, não há qualquer consequência de qualquer falta de prova para qualquer das partes no próprio processo do inventário, antes há lugar à remessa destas para os meios comuns.
No caso, efectivamente resulta dos documentos que o imóvel da verba nº 2 do anterior inventário é o mesmo da verba nº 12 do presente inventário, tendo havido benfeitorias construídas pelos ora inventariados no imóvel, consistentes na construção da casa edificada no terreno, sendo esta a ampliação que vem referida na caderneta predial.
É certo que, como se diz na decisão recorrida, este facto não obsta a que tenham sido realizadas obras posteriores no imóvel, agora pelo cabeça-de-casal, eventualmente por necessidade de manutenção do mesmo (como parece resultar da referida “declaração”).
Porém, o documento junto pelo cabeça-de-casal não é por si só suficiente para o concluir, até porque o mesmo constitui uma simples cópia, não se encontra completo, faltando a folha das assinaturas (que será a pág. 5), não descrimina os concretos trabalhos que foram efectuados e foi impugnado pelo reclamante (cfr. requerimento de 21/11/2022 – embora por referência à junção de documentos não admitida pelo tribunal, o documento impugnado é exactamente o mesmo que havia sido junto com o requerimento inicial, embora com páginas diferentes juntas) – sendo que a impugnação de um documento pode determinar a dedução do incidente de impugnação da genuinidade de documento ou de ilisão da autenticidade ou da força probatória de documento (consoante se trate da situação do art. 444º ou do art. 446º do C.P.C.). E acaso seja impugnada a autoria da assinatura, há que verificar pelo documento original e completo se houve ou não reconhecimento notarial das assinaturas, com consequências ao nível do ónus da prova, nos termos dos arts. 374º, nº 2, e 375º do Código Civil.
Perante o sucedido, afigura-se-nos que não resta senão concluir que o exame dos documentos apresentados não permite com segurança resolver a questão da existência ou não existência da dívida relacionada como verba nº 2 do passivo, devendo os interessados ser remetidos nesta parte para os meios comuns, nos termos do disposto no art. 1093º, nº 1, do C.P.C..
Conclui-se, portanto, que merece provimento, embora apenas parcialmente, o recurso interposto pelo reclamante, nos termos analisados.
*
Em face do resultado do tratamento da questão analisada, é de concluir pela obtenção de provimento parcial do recurso interposto pelo interessado reclamante, com a consequente alteração da decisão recorrida, remetendo-se a apreciação da questão colocada na alínea A) da reclamação para a conferência de interessados em conformidade com o art. 1111º, nº 3, do C.P.C., e remetendo-se os interessados para os meios comuns, nos termos do art. 1093º, nº 1, do C.P.C., quanto à existência, ou não, da verba nº 2 do passivo relacionado na relação de bens.
***
III - Por tudo o exposto, acorda-se em conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo interessado reclamante e, em consequência, remeter a apreciação da questão colocada na alínea A) da reclamação para a conferência de interessados e remeter os interessados para os meios comuns quanto à existência, ou não, da verba nº 2 do passivo relacionado na relação de bens.
**
Custas da apelação pelo recorrente na proporção do seu decaimento, que, tendo em conta o resultado do recurso, se considera ter ocorrido na proporção de 3/5 (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
*
Notifique.
**
Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.):
………………………………
………………………………
………………………………
*
datado e assinado electronicamente
*
Porto, 10/10/2024
Isabel Ferreira
Carlos Portela
Ana Vieira