APRESENTAÇÃO DE PROVA DOCUMENTAL
JUNÇÃO TARDIA
OCORRÊNCIA POSTERIOR
Sumário

I - As causas de nulidade da sentença ou do despacho são as taxativamente enumeradas no n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, o qual não contempla a violação do princípio de igualdade.
II - De acordo com o disposto no artigo 423.º do Código de Processo Civil, a apresentação de prova documental é permitida nos seguintes momentos:
a) Regime regra: com o articulado respectivo, sem cominação de qualquer sanção – n.º 1;
b) Regime de excepção:
i) Até 20 dias antes da data da realização da audiência final, mas, neste caso, a parte apresentante é sancionada em multa, excepto se provar que não pôde oferecer o documento com o articulado respectivo – n.º 2;
ii) Posteriormente ao prazo fixado no n.º 2, ficando, nesta hipótese, a sua admissibilidade condicionada ao facto de a apresentação do documento cuja junção é requerida não ter sido possível até àquele momento ou cuja apresentação se torne necessária por virtude de ocorrência posterior.
III - A parte que apresente documentos tardiamente, ao abrigo da faculdade conferida pelo n.º 3 do artigo 423.º, deve logo alegar e provar a verificação de alguma das circunstâncias nele previstas, devendo, com o requerimento da sua apresentação, oferecer os respectivos meios de prova.
IV - Invocada a “impossibilidade da prévia apresentação” ou a verificação de “ocorrência posterior”, o seu fundamento haverá de ser apreciado segundo critérios objectivos e de acordo com padrões de normal diligência.
V - As declarações de parte ou o depoimento de uma testemunha prestadas na audiência final não constituem circunstância passível de integrar o conceito de ocorrência posterior de forma a justificar a junção tardia de documentos.
VI - O exercício dos poderes inquisitórios do juiz não pode ser usado para colmatar toda e qualquer falta das partes a respeito da apresentação tempestiva dos meios de prova.

Texto Integral

Processo n.º 650/22.4T8VLG-B.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo Local Cível de Valongo – Juiz 1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO

Na acção declarativa com processo comum em que são Autores AA e BB e Réus A..., Lda. e B..., Unipessoal, Lda., sendo C..., S.A. e D..., S.A. intervenientes principais, no decurso da audiência de julgamento e estando a ser inquirida a testemunha CC, pelos Autores foi requerida a junção aos autos de prova documental (mensagens de telemóvel trocadas entre a testemunha e a Autora), tendo a Ré A..., Lda., por sua vez, requerido a junção de todas as mensagens existentes.

A tal não se opuseram a Ré B... e a C..., S.A., tendo D..., S.A. manifestado oposição ao requerido.

Foi então proferido o seguinte despacho: “Conforme decorre do despacho de 14-12-2023, a existência das referidas mensagens não é algo que os autores não tivessem conhecimento, até porque, como decorre do requerimento em análise, tais mensagens foram enviadas para a autora, que a elas respondeu.

Assim sendo o ora requerido terá que ser apreciado como prova documental, o que, face ao disposto no artigo 436.º do C.P.C., não pode ser admitido por extemporaneidade.

Notifique”.

Inconformados com tal decisão, dela interpuseram os Autores recurso de apelação para esta Relação, findando as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1. Vem o presente recurso interposto do douto Despacho proferido no âmbito dos presentes autos em sessão de audiência de discussão e julgamento de 26 de fevereiro de 2024, na firme convicção que o Despacho aqui em recurso tem por base uma errada e insuficiente qualificação jurídica, a qual vai em sentido bem diferente daquele que Vossas Excelências elegerão, certamente, como mais acertada.

2. O objeto do presente recurso é a impugnação do Despacho proferido pelo Tribunal a quo em 26 de fevereiro de 2024, mediante o qual a Mm.ª Juiz a quo indeferiu o requerimento de junção aos autos de mensagens de texto trocadas entre a Autora e a testemunha CC, à data dos factos em apreço nos autos, apesar de, e face ao depoimento prestado por esta testemunha, a junção de tais mensagens se afigurar deveras importante para a descoberta da verdade material.

3. É firme convicção dos Recorrentes que o Despacho ora recorrido é baseado numa errada aplicação das regras, normas e princípios de Direito e da fundamentação que lhe foi subjacente.

4. No dia 26/02/2024, atento o depoimento prestado pela testemunha CC, a Mandatária dos Autores apresentou, em sede da audiência de discussão e julgamento, o requerimento de junção aos autos das referidas mensagens.

5. Na sequência de tal requerimento foi proferido pela Mm.ª Juiz a quo o Despacho recorrido, nos termos do qual indeferiu o requerido pela Ilustre Mandatária dos ora Recorrentes, nos seguintes termos:

“Conforme decorre do despacho de 14-12-2023, a existência das referidas mensagens não é algo que os autores não tivessem conhecimento, até porque, como decorre do requerimento em análise, tais mensagens foram enviadas para a autora, que a elas respondeu.

Assim sendo o ora requerido terá que ser apreciado como prova documental, o que, face ao disposto no artigo 436.º do C.P.C, não pode ser admitido por extemporaneidade. »

6. Na sequência de tal despacho foi ainda assim requerida, pela mandatária dos Autores, a reapreciação do mesmo e a eventual reforma do despacho recorrido, o que foi indeferido pelo Tribunal a quo.

7. Na verdade, a testemunha CC, por diversas vezes, não só referiu a aludida troca de mensagens escritas com a A., como, quando questionado em relação a diversos aspetos, solicitou ao Tribunal se seria possível aceder a essas mensagens e ler as mesmas, o que foi inviabilizado pelo Tribunal recorrido.

8. Saliente-se que, a junção das mensagens trocadas entre a testemunha CC e a Autora relativamente à procura de um terreno e à venda da moradia para que havia sido contratada a 1.ª Ré A..., Lda. já se havia revelado importante, no nosso entendimento, para a descoberta da verdade material, na sequência do depoimento de parte da A. prestado na sessão de audiência de discussão e julgamento de 29/11/2023, uma vez que esta ao longo do seu depoimento refere que sempre manteve contacto com o Sr. CC, bem como, com a Sra. DD.

9. Em face disso, os AA. requereram, em 14/12/2023, através do requerimento apresentado sob a Ref.ª 47418534, a junção de tais mensagens sob doc. nº 1, por tal junção se afigurar importante para a boa descoberta da verdade material e auxiliar na decisão de mérito a proferir no âmbito da presente lide.

10. Todavia, tal requerimento foi objeto de um despacho de indeferimento proferido em 19/01/2024, ao que foi acrescentado pelo Tribunal recorrido que não se vislumbrava fundamento para ordenar a sua junção ao abrigo do disposto no artigo 436.º do Código de Processo Civil.

11. Todavia, e seguindo um tratamento diferente, na sessão de audiência de discussão e julgamento de 26 de fevereiro de 2024, anteriormente à prestação do depoimento suprarreferido pela Testemunha CC (Colaborador da 1ª Ré e testemunha comum a todos os Intervenientes Processuais), e após inquirição da testemunha DD (Colaboradora da 1ª Ré e testemunha comum a todos os Intervenientes Processuais), mas em circunstâncias absolutamente idênticas, a Mm.ª Juiz a quo determinou a junção de emails trocados entre a referida testemunha, na qualidade de diretora comercial da 1ª Ré e a 2ª Ré, em 2021, emails esses também já conhecidos e que podiam ter sido juntos designadamente aquando da Contestação apresentada por parte da 1ª Ré A..., Lda., por considerar a sua junção necessária aos esclarecimentos da verdade.

12. Na verdade, tal despacho surge após ter sido requerido, oralmente, pelo mandatário da D..., S.A.. que o fosse, sendo que, em face do requerido pela Interveniente Processual D..., S.A., a Mmª. Juiz a quo concedeu essa possibilidade, solicitando à testemunha DD, a exibição ao Tribunal de tais emails.

13. Em face disso, após análise, e sem que antes houvesse concedido a oportunidade a todos os intervenientes processuais para se pronunciarem, proferiu o despacho de admissão suprarreferido em que determinou a junção aos autos de tais documentos e notificou, meramente, os presentes do referido despacho.

14. Em face do exposto, é manifesta a dualidade de posições e decisões proferidas pelo Tribunal a quo perante situações idênticas (por um lado, a junção de emails trocados entre a diretora comercial da 1ª Ré e a 2ª Ré e, por outro lado, a junção de mensagens escritas trocadas entre a A. e o vendedor da 1ª Ré), e requerimentos idênticos (o dos AA. ditado para a ata e o da Interveniente Principal D... S.A. apresentado oralmente em sede de audiência de discussão e julgamento).

15. Em face do supra exposto, cumpre-nos concluir que não se vislumbra qual a razão para a prolação do Despacho ora em crise que indeferiu o requerimento dos AA., ora Recorrentes, quanto à junção das requeridas mensagens escritas aos autos que, designadamente na sequência do depoimento de parte da A. e do depoimento da testemunha CC, se afiguram de todo pertinentes e relevantes para a descoberta da verdade material.

16. Assim sendo, os ora Recorrentes, jamais poderão concordar com a argumentação expendida pela Mm.ª Juiz a quo no despacho ora colocado em crise, no que concerne ao indeferimento do requerimento de junção de tais mensagens, trocadas entre a A. e a testemunha CC, aos presentes autos.

17. Posto isto, entendem os Recorrentes que deveria ter ser deferido o requerimento de junção das mensagens de texto aos autos, conforme requerido pelos AA., em nome da descoberta da verdade material.

18. Ora, a prova documental requerida em sede de audiência de discussão e julgamento de 26/02/2024, pela Ilustre Mandatária dos Autores, ora Recorrentes, não é mais do que, desde logo, o meio de prova por excelência que, fruto de depoimento prestado por testemunha, se afigurou deveras relevante a sua junção aos autos, pelo que, não se concebe como é que não foi admitida a junção das aludidas mensagens, rejeitando o digníssimo Tribunal a quo um importante meio de prova documental para comprovação dos factos alegados pelos Autores e ainda mencionados pela testemunha CC, no seu depoimento.

19. No entanto, saliente-se que, ao contrário, é de toda a pertinência referir que, após inquirição da testemunha DD, pela Mm.ª Juiz a quo foi proferido despacho no sentido de determinar a junção aos autos de emails que foram referidos e mencionados no depoimento da testemunha ao longo da sua inquirição.

20. Em face do exposto, e também por se afigurar deveras importante para o esclarecimento da verdade material no âmbito dos presentes autos, e tendo a testemunha CC prestado depoimento demonstrando interesse na visualização e confrontação com as mensagens que remeteu à Autora, ora Recorrente, tal como sucedeu com a testemunha DD, não se compreende, como é que uma situação idêntica mereceu uma apreciação oposta pelo Tribunal, ao indeferir essa visualização e confrontação.

21. Circunscreve-se a questão a saber se o Tribunal, num mesmo momento processual, garantiu um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no uso de meios de prova, ao qual estaria obrigado, o que nos parece, salvo melhor opinião, que não.

22. Assim sendo, salvo o devido respeito, despacho ora colocado em crise é deveras censurável e passível de recurso, com todas as consequências legais daí decorrentes.

23. Mediante a prolação do despacho ora posto em crise é manifesta a violação por parte do Tribunal a quo dos vários princípios norteadores do Direito Processual Civil português, nomeadamente os princípios da igualdade das partes, da descoberta da verdade material, da colaboração e do inquisitório.

24. Desta forma, e salvo o devido respeito, que é muito e bem devido, a Mm.ª Juiz a quo indeferiu a utilização de um meio de prova importante, requerido pelos Autores, ora Recorrentes, que se veio a revelar imprescindível para a demonstração de factos relevantes para o desfecho da presente lide, na sequência da prova produzida em audiência de discussão e julgamento.

25. Assim sendo, releva referir que, dos princípios enformadores do Estado de direito decorre a garantia do processo justo ou equitativo (fair trial), em conformidade com o artigo 20.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, pelo que o processo justo sempre será aquele que permite uma correta aplicação da lei a factos verdadeiros, e para atingir este resultado, é necessário satisfazer algumas condições organizativas e atender a alguns direitos das partes e às finalidades que devem ser prosseguidas no processo.

26. O direito à prova é assim é um direito fundamental processual, do qual os ora Recorrentes, não prescindem, tendo a instrução por objeto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova, tal como resulta da letra do artigo 410.º do Código de Processo Civil.

27. Nessa consonância, o princípio do inquisitório adquire plena eficácia na fase da instrução do processo, constituindo um poder-dever que se impõe ao juiz com vista ao apuramento da verdade material e à justa composição do litígio.

28. Dentro dos limites do objeto da causa, a instrução da causa não está limitada aos factos alegados pelas partes e o julgador deve considerar os factos instrumentais que surjam da discussão contraditória.

29. Desta feita, e também por decorrência do princípio geral da descoberta da verdade material, que sobressai do disposto nos artigos 411.º e 436.º, do CPC, é permitido ao Juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer, e designadamente, ordenar a junção de documentos ao processo, que repute de relevante utilidade para esse efeito.

30. E é também neste contexto que se entende o disposto no artigo 6.º, do C.P.C., no qual se consagra, à luz do princípio do inquisitório e da oficialidade, um Dever de Gestão Processual, aí se prescrevendo, designadamente, que cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.

31. Assim sendo, o princípio do inquisitório está inserto no domínio da prova dos factos, tendo o juiz o poder-dever de aferir da veracidade dos factos, na busca da verdade material.

32. Com efeito, o princípio do inquisitório consagrado no art. 411.º, do C.P.C., caracteriza-se por permitir que o Tribunal investigue e esclareça os factos relevantes para a apreciação da ação.

33. À revelia do consagrado neste princípio, a Mm.ª Juiz a quo profere o despacho ora recorrido, não realizando o necessário juízo de prognose quanto à pertinência do meio probatório requerido.

34. No entanto, e face a uma identidade de circunstâncias, fruto do depoimento prestado por uma outra testemunha, a Testemunha DD, e do requerimento de junção de documento aos autos pela D..., S.A., decidiu, no entanto, a Mm.ª Juiz a quo determinar oficiosamente a junção desse documento aos autos, que poderia também ter sido junto em momento processual anterior e não o foi.

35. Ora, no nosso entendimento, a junção das aludidas mensagens de texto requerida pelos Autores, aqui Recorrentes, enquanto prova documental, demonstra-se deveras importante e imprescindível à boa decisão da causa, uma vez que do depoimento prestado pela testemunha CC se retira a conclusão de que a confrontação com tais elementos se revelava fundamental para a aferição dos factos alegados pelas partes, bem como, da exatidão do depoimento e razão de ciência da testemunha.

36. Assim sendo, o Juiz deve diligenciar pelo apuramento da verdade e a justa composição do litígio, sendo que tal poder-dever emerge e justifica-se independentemente da vontade das partes na realização das diligências/produção de meios de prova (e/ou da tempestividade dessa iniciativa ou de uma qualquer pretensão nesse sentido).

37. O critério firmado no art. 411.º do C.P.C. coloca a questão ao nível da necessidade das diligências probatórias para o apuramento da verdade e para a justa composição do litigo, sendo que verificado o pressuposto da necessidade, o juiz, nos termos da lei, tem o dever de agir.

38. Apenas assim existirá o fair trial e a igualdade das partes.

39. A imparcialidade do Tribunal implica pois que este órgão não pode tomar partido por nenhuma das partes, devendo tratá-las, durante todo o processo com completa igualdade, tal como consagra o artigo 4.º do CPC., sendo que a parte tem, portanto, o direito a que, perante o Tribunal, a sua posição processual tenha o mesmo valor que a da sua contraparte.

40. É nisso que consiste o princípio da igualdade de armas das partes, que se concretiza na possibilidade de cada uma delas se pronunciar sobre tudo o que for relevante para a decisão da causa e de utilizar todos os meios admissíveis para se defender de um pedido ou contrariar uma alegação da contraparte.

41. Ora, daqui facilmente se retira a conclusão de que a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo, ao indeferir o requerido pelos Autores, aqui Recorrentes, em sede de audiência de discussão e julgamento, com todo o respeito, violou de forma crassa o princípio da igualdade das partes, originando desigualdade entre elas.

42. Desta feita, conclui-se que foi assim violado o princípio da igualdade das partes, quanto ao uso de meios de prova e defesa pelos Autores, aqui Recorrentes, pelo que, no nosso entendimento, mal andou ainda o Tribunal a quo, uma vez que, de igual modo, violou a Mm.ª Juiz o princípio da cooperação, consagrado no artigo 7.º do CPC.

43. A cooperação e a boa-fé processual são deveres que impendem sobre os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes ao nível da condução e da intervenção no processo judicial.

44. Em face do exposto, ao contrário do que resulta do despacho recorrido, e ao abrigo de todos os princípios supramencionados, afigura-se importante a junção aos autos do requerido pelos Autores, aqui Recorrentes, carecendo assim, de qualquer fundamento, o indeferimento da junção aos autos das aludidas mensagens escritas pelo Tribunal a quo, por ser inadmissível tal decisão.

45. Isto posto, consideramos que, a este respeito, violou o despacho recorrido o disposto nos artigos 4.º, 5º, nº 2, al. a), 6º, 7.º, 410º, 411.º, 423º, nº 3 e 436.º do Código de Processo Civil, arts. 341º e 362º do Código Civil e art. 20º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa.

46. Assim sendo, e mostrando-se, desde logo, violado o princípio da igualdade de armas e da igualdade das partes, preconizado pelo artigo 4.º do CPC, a decisão é nula, o que, desde já, se requer seja declarado, com as legais consequências.

47. Face ao exposto, não se podendo conformar, de forma alguma, os ora Recorrentes, com a douta decisão em crise, entendem estes que, em face do direito aplicável, a única decisão possível seria o deferimento da junção aos autos da prova documental (mensagens escritas trocadas entre a A. e a testemunha CC, à data dos factos em apreço nos autos) requerida pelos Autores, aqui Recorrentes, nos seus exatos termos e pelas razões já supra explanadas, com as consequências legais daí decorrentes, o que se requer.

Termos em que deve revogar-se o despacho recorrido, proferido pelo Tribunal a quo em 26/02/2024 em sede de audiência de discussão e julgamento, no que concerne ao indeferimento da junção aos autos de prova documental requerida pelos Autores, aqui Recorrentes, designadamente as mensagens escritas trocadas entre a A. e a testemunha CC, à data dos factos em apreço nos autos, e, em sua substituição, ser proferido Despacho que defira a junção aos autos de tal documento, assim se fazendo inteira JUSTIÇA!”.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, no caso dos autos cumprirá apreciar:

- se o despacho recorrido é nulo;

- admissibilidade da junção em audiência da prova documental requerida pelos Autores, ora apelantes.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

Os factos/incidências processuais a atender para o conhecimento do objecto do recurso são os narrados no relatório introdutório.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

1. Nulidade da decisão.

Sustentam os recorrentes nas suas conclusões recursivas que a decisão que impugnam é nula por violar “...o princípio da igualdade de armas e da igualdade das partes, preconizado pelo artigo 4.º do CPC”, requerendo que essa nulidade seja declarada “...com as legais consequências”.

Importa, por isso, indagar se a decisão em causa está afectada pelo denunciado vício.

Dispõe o n.º 1 do artigo 615.º do aludido diploma:

“É nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.

A nulidade da sentença - ou de despacho[1] - constitui vício intrínseco da decisão, desde que ocorra alguma das circunstâncias taxativamente previstas no artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, que, pela sua gravidade, comprometem a sentença ou o despacho qua tale.

Como o n.º 1 do artigo 668.º do anterior diploma, também o n.º 1 do artigo 615.º do actual Código de Processo Civil contém uma enumeração taxativa das causas de nulidade da sentença[2], nelas não se inserindo o designado erro de julgamento, que apenas pode ser atacado por via de recurso, quando o mesmo for legalmente admissível[3].

Não prevê o normativo citado a violação do princípio da igualdade insistentemente invocado pelos recorrentes – a qual, de resto, não se verifica, como adiante se explicará -, sendo que, reitera-se, o mesmo tem natureza tabelar ou taxativa, não consentindo outras causas de nulidade para além das nele enumeradas, o que, porventura, poderá explicar a circunstância de os recorrentes omitirem a sua convocação.

Improcede, consequentemente, a conclusão argumentativa dos recorrentes quanto à denunciada nulidade da decisão de que recorrem.

2. Da junção dos documentos requerida pelos Autores, ora recorrentes, em audiência.

Com o presente recurso, interposto da decisão que indeferiu o requerimento dos Autores de junção aos autos, no decurso da audiência de julgamento, de mensagens de texto trocadas entre a Autora e a testemunha CC, pretende-se ajuizar da oportunidade legal da junção em causa e legalidade da decisão que indeferiu a pretendida junção.

Sob a epígrafe Momento da apresentação, o artigo 423.º do Código de Processo Civil, inserido no Capítulo II, Prova por Documentos, define o quadro legal quanto à oportunidade da apresentação de documentos.

Prevê o normativo em causa:

1 - Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.

2 - Se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.

3 - Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior”.

Retira-se do mencionado preceito que a apresentação de prova documental é permitida nos seguintes momentos:

a) Regime regra: com o articulado respectivo, sem cominação de qualquer sanção – n.º 1;

b) Regime de excepção:

i) Até 20 dias antes da data da realização da audiência final, mas, neste caso, a parte apresentante é sancionada em multa, excepto se provar que não pôde oferecer o documento com o articulado respectivo – n.º 2;

ii) Posteriormente ao prazo fixado no n.º 2, ficando, nesta hipótese, a sua admissibilidade condicionada ao facto de a apresentação do documento cuja junção é requerida não ter sido possível até àquele momento ou quando apresentação se torne necessária por virtude de ocorrência posterior.

Para além da tempestividade da apresentação do documento, a sua admissibilidade exige que o mesmo revele pertinência em relação ao objecto da acção ou do procedimento processual, permitindo o artigo 443.º do Código de Processo Civil ao juiz que mande retirar do processo e restituir ao apresentante os documentos impertinentes[4] ou desnecessários, condenando ainda a parte que os juntou em multa processual.

No caso em apreço, porquanto os documentos, cuja junção foi negada aos recorrentes, não foram apresentados com a petição inicial, nem no prazo permitido pelo n.º 2 do citado 423.º, há que indagar se concorre alguma das circunstâncias previstas no n.º 3 do referido normativo, ou seja,
- se a apresentação de tais documentos não foi possível até àquele momento; ou

- se a apresentação dos documentos em causa se tornou necessária por virtude de ocorrência posterior.

Em qualquer das aludidas circunstâncias, únicas que, excepcionalmente, consentem a apresentação de documentos para além do limite temporal previsto no n.º 2 do artigo 423.º, a parte que os apresente deve logo alegar e provar a verificação de alguma das mencionadas circunstâncias, devendo, com o requerimento da sua apresentação, oferecer os respectivos meios de prova[5].

Vem-se igualmente entendendo[6] que, invocada a “impossibilidade da prévia apresentação” ou a verificação de “ocorrência posterior”, o seu fundamento haverá de ser apreciado segundo critérios objectivos e de acordo com padrões de normal diligência, para a qual aponta o artigo 487.º, n.º 2 do Cód. Civil.

No que especialmente se refere ao primeiro dos aludidos fundamentos, tem-se considerado[7] que a expressão legal “documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento” deve ser entendida no sentido de que, ultrapassado o limite temporal definido no nº 2 do artigo 423º, apenas são admitidos documentos cuja junção não tenha sido possível, atenta a verificação de um impedimento que não pôde ser ultrapassado em devido tempo, ou quando se trate de documentos objectiva ou subjectivamente supervenientes, isto é, que apenas foram produzidos ou vieram ao conhecimento da parte depois daquele momento.

Na sequência do depoimento prestado em audiência pela testemunha CC, requereram os Autores, “por se revelar deveras importante para a boa descoberta da verdade material a junção aos autos e eventual confrontação das mensagens trocadas desde o dia 29 de agosto de 2020 até 14 de janeiro de 2021 entre o senhor CC, entre a testemunha CC e a Autora relativamente à procura de um terreno e à venda da moradia para que havia sido contratada a A...”, o que foi recusado pelo despacho aqui sindicado.

Para além de não se vislumbrar a pertinência dos documentos cuja junção foi requerida, que não é objectivada no requerimento então formulado, também os Autores não alegaram e, menos ainda demonstraram, a impossibilidade da sua apresentação em momento anterior.

Resta equacionar se o depoimento da identificada testemunha prestado no decurso da audiência final poderá configurar o conceito de “ocorrência posterior” enquanto circunstância prevista na última parte do n.º 3 do artigo 423.º do Código de Processo Civil.

Em contributo para o esclarecimento do conceito indeterminado em análise, precisa Abrantes Geraldes[8] que o mesmo “não respeitará, por certo, a factos que constituam fundamento da ação ou da defesa (factos essenciais, na letra do art. 5.º), pois tais factos já hão de ter sido alegados nos articulados oportunamente apresentados ou, pelo menos, por ocasião da dedução de articulado de aperfeiçoamento (art. 590º, n.º 4). Tão pouco respeita a factos supervenientes, pois a alegação desses factos deve ser acompanhada dos respetivos documentos, sendo esse o meio da sua entrada nos autos (art. 588º, n.º 5). Portanto, no plano dos factos, a ocorrência posterior dirá somente respeito a factos instrumentais ou a facto relativo a pressupostos processuais (…). Por outro lado, não deve confundir-se esta figura com regimes específicos de junção de documentos, nomeadamente para instruir a impugnação de testemunhas (art. 515º) ou a contradita (art. 522º), bem assim a impugnação da genuinidade de documento (art. 445º, nºs 1 e 2) ou a ilisão da autenticidade ou da força probatória de documento. O sentido destas e doutras disposições é o de evitar que, por meios artificiosos, sejam introduzidos no processo documentos para além do momento fixado pelo legislador ou segundo critérios diversos dos definidos para tal (…), ou seja, não podem criar-se artificialmente eventos ou incidentes cujo objetivo substancial seja tão só o de inserir nos autos documentos que poderiam e deveriam ser apresentados em momento anterior, sob pena de frustração do objetivo disciplinador fixado pelo legislador e, assim, da persistência de uma prática que se quis assumidamente abolir.”.

E daí entender a jurisprudência que a junção de documentos que se “tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior”, se destina à prova ou contraprova de factos ocorridos após o termo do prazo de previsto no nº 2 do artigo 423º e que a apresentação não se torna necessária em virtude de ocorrência posterior quando uma das partes ou uma testemunha, no decurso das suas declarações ou do seu depoimento, faça alusão a um facto contrário ao pretendido pelo apresentante do documento.

E compreende-se que assim seja porquanto a necessidade de junção ou não de documentos reporta-se sempre aos factos integrados nos temas de prova, visando a sua prova ou contraprova.

Desta forma, as declarações de parte ou o depoimento de uma testemunha prestadas na audiência final não constituem circunstância passível de integrar o conceito de ocorrência posterior de forma a justificar a junção tardia de documentos.

Com efeito, se perante um depoimento testemunhal, que incidisse sobre a matéria de facto dos temas da prova, pudessem, sem mais, ser apresentados documentos com o propósito de contrariar a credibilidade do mesmo, então estaríamos, “a deixar entrar pela janela o que não se quis deixar entrar pela porta”. E, de resto, de forma mais vantajosa para a parte, que assim nem teria de pagar qualquer multa. Note-se que a razão de ser da não previsão de pagamento da multa no n.º 3 do artigo 423.º do CPC é precisamente a de que não se justifica sancionar a parte por algo que a ultrapassa: trata-se de apresentar um documento que não tinha podido obter até àquele momento ou um documento cuja junção não era necessária, mas passou a ser. Portanto, em nosso entender, a “ocorrência posterior” não se pode bastar com uma mera intenção de contrariar a força probatória de documentos juntos aos autos com os articulados ou de descredibilização do depoimento de testemunha (aliás, para isto também existe a contradita.

Isso não invalida, naturalmente, que o juiz não possa no decurso da audiência ordenar oficiosamente a junção de documentos quando os tenha por pertinentes ou necessários à descoberta da verdade material acerca da matéria que nos autos se discute.

Dispõe actualmente o n.º 1 do artigo 6.º do Código de Processo Civil: “Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adoptando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável”.

Por sua vez, determina o artigo 411.º do mesmo diploma, que consagra o princípio do inquisitório, que “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.

À semelhança do que já sucedia na vigência do Código de Processo Civil de 1961, mesmo antes da reforma de 1995/1996, o juiz continua a dispor de amplos poderes de iniciativa oficiosa, incluindo determinar a junção de documentos ao processo, quer estejam em poder da parte contrária, de terceiro ou de organismo oficial[9].

Trata-se de uma clara manifestação do princípio do inquisitório, tudo sem prejuízo das regras do ónus de alegação dos factos essenciais e da prova[10].

Pode ler-se no acórdão desta Relação de 11.01.2021[11]: “A dinâmica evolutiva do processo civil tem-se afirmado no confronto dialéctico entre dois princípios que na aparência se contradizem – dispositivo e inquisitório – com sucessivas cedências do primeiro e prevalência do segundo, com vista à realização do verdadeiro desiderato do processo, afirmado nos artigos 8º, nº 1 e 411º do CPC: o apuramento da verdade e a justa composição do litígio.

Uma das linhas mestras do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro – que alterou o artigo 645º, nº 1 do CPC de 1961, atribuindo-lhe uma redacção igual à do artigo 526º, nº 1 do CPC actual (inquirição por iniciativa do tribunal) –, tal como definidas no seu preâmbulo, era a de privilegiar a decisão de fundo sobre a decisão meramente formal, através de uma atitude mais interventiva do Juiz – cfr. Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro: “Garantia de prevalência do fundo sobre a forma, através da previsão de um poder mais interventor do juiz, compensado pela previsão do princípio de cooperação, por uma participação mais activa das partes no processo de formação da decisão.”

Nas palavras do legislador de 1995 cabia ao processo civil procurar a verdade material, em vez de se privilegiarem aspectos formais, que não assumem verdadeira importância perante o objectivo de boa aplicação do Direito Substantivo ao caso concreto – cfr. citado diploma legal: “Ter-se-á de perspectivar o processo civil como um modelo de simplicidade e de concisão, apto a funcionar como um instrumento, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo, e não como um estereótipo autista que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo.”

De notar, que quando o legislador fala em verdade material quer significar como sendo a absoluta correspondência entre afirmações sobre factos e a realidade dos mesmos através da produção da prova. Esta verdade material, será ou tenderá a ser, aquela “verdade processual”, que os diversos meios de prova permitam apurar.,

Como referem A. Geraldes/ P. Pimenta/Luís Sousa[...], o artigo 411º do CPC faz apelo à realização de diligências probatórias que importem a justa composição do litígio, cumprindo ao juiz exercitar a inquisitoriedade, preservando o necessário equilíbrio de interesses, critérios de objectividade e uma relação de equidistância e de imparcialidade.

Afirmando, noutro ponto das suas anotações, que, apesar da rigidez para que o art. 423.º do CPC (Prova Documental) parece apontar, “em parte associada ao princípio da auto-responsabilidade das partes, o mesmo não pode deixar de ser compatibilizado com outros preceitos ou com outros princípios que justificam a iniciativa oficiosa do tribunal na determinação da junção ou requisição de documentos que, estando embora fora daquelas condições, sejam tidos como relevantes para a justa composição do litígio, à luz, pois, de um critério de justiça material, cabendo realçar em especial o princípio do inquisitório consagrado no art. 411º e concretizado ainda no art. 436º”[...]”.

Se é certo que o juiz tem a obrigação de ordenar as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer, esses poderes/deveres inquisitórios não são ilimitados quanto à determinação de provas: “Se fosse este o alcance, então teríamos de admitir que as partes estavam dispensadas de indicar provas, já que o juiz tinha o dever de procurá-las, de diligenciar, por exemplo, quem residia nas imediações onde ocorreram os factos para verificar se alguém os tinha constatado, ou procurar entre familiares e amigos das partes as possíveis provas que poderiam existir e, claro está, as contraprovas[12].

Segundo Paulo Pimenta, “o equilíbrio do nosso quadro legal resulta da intersecção das duas dimensões: por um lado, o ónus da iniciativa probatória das partes; por outro, o poder-dever do juiz em sede instrutória. Daqui resulta o seguinte: jamais as partes podem encontrar naquele poder-dever um pretexto para negligenciarem a sua iniciativa probatória; jamais o juiz pode ver naquela iniciativa probatória um alibi para a sua própria inércia. O critério firmado no art. 411º coloca a questão ao nível da necessidade das diligências probatórias para o apuramento da verdade e para a justa composição do litigo. Verificando-se o pressuposto da necessidade, o juiz tem um dever oficial de agir. Não se verificando o pressuposto, inexistirá aquele dever”.

Como refere o acórdão da Relação do Porto de 23.04.2020[13], subscrito enquanto adjunta pela aqui relatora, “Não obstante esta possibilidade/dever de iniciativa instrutória do juiz, como manifestação do princípio do dispositivo, as provas devem, em princípio, ser requeridas pelas partes e no momento processual em que tal lhes é facultado, já que é de cada uma delas a defesa do interesse que visa acautelar no processo, tendo o ónus de demonstrar os factos cujo efeito a favorece.

Como expõe Paulo Pimenta[13], “(…) não deve ser confundido aquilo que é próprio do princípio do inquisitório, em que a actuação do juiz é vinculada desde que se convença da necessidade de certa diligência probatória, com uma pretensa auto-responsabilidade das partes em sede probatória”. A atividade que o juiz desenvolve no exercício dos poderes conferidos pelo citado art.º 411º há de ter em mira a prevalência da verdade material sobre uma verdade meramente formal, e a justa composição do litígio, mas não pode deixar de ter presente os ónus que a lei especialmente impõe às partes, o que se torna evidente nas situações em que seria uma ofensa a estes imperativos que o juiz oficiosamente determinasse a realização de meios de prova que a parte, a quem incumbia a sua apresentação, não o tivesse feito nas condições em que o deveria ter efetuado.

Na ação declarativa comum, é dever das partes juntar os documentos, apresentar o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova com os respetivos articulados (art.ºs 423º 552º, nº 2 e 572º, al d), do Código de Processo Civil). Depois dessa fase, poderá haver alteração do requerimento probatório e aditamento ou alteração ao rol de testemunhas apenas nas condições previstas no art.º 598º do mesmo código, entre elas, quanto ao requerimento probatório, na audiência prévia quando a ela haja lugar nos termos do disposto no artigo 591º ou nos termos do disposto no nº 3 do art.º 593º, ambos do Código de Processo Civil.

Dos princípios da igualdade, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes resulta que, caso não indiquem os meios de prova nos respetivos articulados quando tal lhes é legalmente imposto, com observância dos prazos perentórios a que estes estão sujeitos, ocorre preclusão desse direito. É incontroverso que fora dos prazos e momentos previstos na lei não podem as partes apresentar os seus requerimentos probatórios.

O dever de oferecer os meios de prova de que dispõem, nos respetivos articulados, ou seja, no ato em que cada uma das partes desenvolve a sua argumentação e formula a sua pretensão, tem razões óbvias: traz coerência, inteligibilidade e sustentabilidade à argumentação, e permite à parte contrária avaliar melhor a sua consistência e viabilidade, assim como a necessidade e a medida da sua oposição, no exercício do contraditório.

Os documentos podem ainda ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado (nº 2 do art.º 423º do Código de Processo Civil). Depois deste limite temporal, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tomado necessária em virtude de ocorrência posterior (nº 3 do mesmo preceito legal).

Este regime, algo rígido e simultaneamente flexível, tem ainda uma válvula de escape na norma do citado art.º 411º, justificada pela necessidade de dar prevalência à realização da justiça material. Mas, o dever investigatório do juiz, fora das condições do exercício do ónus das partes requererem e apresentarem os meios de prova no prazo ou no momento próprio, não pode obliterar aquele regime especificamente prescrito para esse efeito e, em igualdade, para ambas as partes (a apresentação do requerimento probatório nos tempos e lugares devidos).

O princípio do inquisitório não impõe ao tribunal o dever de acolher toda e qualquer pretensão instrutória de uma das partes em qualquer momento e condição formulada, e menos ainda que, oficiosamente, sob a invocação da relevância dos meios que aponta, lhe faculte a produção de qualquer prova que tempestivamente podia e devia ter oferecido e deixou de requerer, prejudicando com isso o regime especificamente prescrito para esse efeito e, em igualdade, para ambas as partes.

Expende-se no acórdão da Relação do Porto de 4.6.2013[...]: “Com efeito, só em concreto, seja por via da dinâmica da produção da restante prova produzida em sede própria (maxime em audiência de julgamento), e sob contraditório, ou por via de sugestão de qualquer das partes, nessa mesma sede e sob o mesmo contraditório, haverá o tribunal de averiguar da utilidade ou necessidade da produção de outros meios de prova para além dos oportunamente produzidos ou requeridos pelas partes. Só em concreto, isto é, nas concretas circunstâncias da actividade instrutória desenvolvida conforme tempestivamente proposto pelas partes, é que o tribunal poderá considerar a necessidade de outros meios de prova, que se revelem necessários "ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio". E isso, poderá até acontecer no decurso da audiência de julgamento, ou até antes, se, na situação concreta, o tribunal entender antecipadamente ser essencial à realização desses objectivos a produção de qualquer meio de prova que as partes não requereram.”[...]

Não esqueçamos que nos encontramos perante um processo de partes, em que impera o dispositivo quanto à alegação da matéria de facto e quanto ao ónus da prova, com julgamento segundo um critério de legalidade; não é um processo de jurisdição voluntária em que o legislador privilegia a intervenção do tribunal, pela oficiosidade dos atos[...], sem vinculação à observância rigorosa do direito aplicável, designadamente do direito processual”

De acordo com Lopes do Rego[14], “o exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal pressupõe que as partes cumpriram minimamente o ónus que sobre elas prioritariamente recai de indicarem tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus probatório lhes assiste - não podendo naturalmente configurar-se como uma forma de suprimento oficioso de comportamentos grosseira ou indesculpavelmente negligentes das partes”.

Já assim também o lembrava o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.05.2002[15] ao referir que “o exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal não serve para suprir comportamentos negligentes das partes”, pressupondo “que estas cumpriram minimamente o ónus que sobre elas recai de indicarem as provas de que pretendem socorrer-se”.

E do acórdão da Relação de Lisboa de 6.06.2019[16] retira-se: “...o Código de Processo Civil contém diversos preceitos legais que permitem “equilibrar” o regime consagrado no art. 423.º do CPC (e outros limites temporais/preclusões relativos a diversos meios de prova; veja-se, por exemplo, no caso da prova testemunhal, o disposto no art. 508.º do CPC), em que assume preponderância a consagração do princípio do inquisitório, no art. 411.º do CPC: “Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lício conhecer.”

Assim, o Tribunal pode oficiosamente realizar ou ordenar uma qualquer diligência probatória (incluindo no tocante à prova documental), ao abrigo dos princípios do inquisitório e da cooperação, desde que a considere necessária ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio (artigos 7.º, 411.º e 417.º do CPC).

Desta forma, quando se justifique, é possível, convocando estes normativos, obviar a eventuais iniquidades decorrentes dos mecanismos de preclusão, assim ficando assegurado o direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efetiva e a um processo equitativo (artigos 20.º da CRP e 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem).

Reconhecendo este equilíbrio, veja-se Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, afirmando que, apesar da rigidez para que o art. 423.º do CPC parece apontar, “em parte associada ao princípio da autoresponsabilidade das partes, o mesmo não pode deixar de ser compatibilizado com outros preceitos ou com outros princípios que justificam a iniciativa oficiosa do tribunal na determinação da junção ou requisição de documentos que, estando embora fora daquelas condições, sejam tidos como relevantes para a justa composição do litígio, à luz, pois, de um critério de justiça material, cabendo realçar em especial o princípio do inquisitório consagrado no art. 411º e concretizado ainda no art. 436º” – obra citada, pág. 501.

Mas, naturalmente, não poderá o referido princípio ser usado para colmatar toda e qualquer “falta” das partes a respeito da apresentação dos meios de prova, pois se assim fosse estaria a fazer-se do mesmo uma interpretação normativa e aplicação prática em colisão com outros importantes princípios, do processo civil e até constitucionais, mormente o dispositivo, a igualdade das partes, a independência do tribunal e a imparcialidade do juiz (20.º e 62.º da CRP)”[17].

No decurso da inquirição da testemunha DD pela Sr.ª Juiz que presidia à audiência de julgamento foi proferido o seguinte despacho: “Uma vez que a testemunha faz alusão no seu depoimento a emails que se seguiram (na mesma data) ao email junto como documento n.º 7 da contestação da ré B..., Unipessoal, Lda., para que se possa ter acesso ao teor integral dessas comunicações, e uma vez que foram objeto das declarações desta testemunha, o tribunal determina, ao abrigo do disposto no artigo 436.º do C.P.C., a sua junção aos autos, por se revelarem necessários aos esclarecimentos da verdade.

Notifique”.

Fê-lo no exercício dos poderes inquisitórios que a lei lhe reconhece e nos termos a que antes se fez referência.

Não usou da mesma faculdade relativamente aos documentos cuja junção viria a ser requerida pelos Autores.

E nada na lei lhe exigia que o fizesse. Bastaria que não atribuísse relevância aos documentos em causa, que entendesse que nenhum contributo ofereciam para a descoberta da verdade material para que não determinasse tal junção.

Da mesma forma e por idêntica razão, a circunstância de ter ordenado antes a junção de determinados documentos no decurso da inquirição de uma testemunha não legitima o entendimento de que deva admitir a junção tardia e injustificada de outros documentos requeridos por uma das partes.

Não houve violação de qualquer princípio de igualdade desde logo porque distintas são as situações em confronto: num caso, houve junção de documentos por iniciativa oficiosa da Sr.ª Juiz, que exerceu os seus poderes inquisitórios, por os reputar com relevância para a descoberta da verdade; no outro, não ordenou a junção dos documentos apresentados pelos Autores por desconsiderar, para aquele efeito, a sua relevância, e indeferiu a sua junção a requerimento dos Autores por tardia e injustificada.

Tratam-se, pois, de realidades distintas, que, por isso, não reclamavam igualdade de tratamento.

Por conseguinte, não se configurando, em concreto, preenchidas nenhuma das circunstâncias excepcionais previstas no n.º 3 do artigo 423.º do Código de Processo Civil, estava vedada aos Autores, ora recorrentes, a possibilidade de juntarem aos autos documentos no decurso da audiência final, pelo que não merece qualquer reparo a decisão recorrida que indeferiu tal junção.

Improcede, consequentemente, o recurso, com confirmação do decidido.


*

Síntese conclusiva:

………………………………

………………………………

………………………………


*

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas – pelos apelantes, nos termos do disposto no artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

Notifique.


Porto, 10.10.2024

Acórdão processado informaticamente e revisto pela 1.ª signatária.
Judite Pires
Isoleta de Almeida Costa
Paulo Dias da Silva
__________________
[1]
[2] Cf. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil anotado”, vol. V, pág. 137.
[3] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 686.
[4] Sendo a pertinência do documento avaliada em função da sua relação com os factos que integram o objecto de instrução, de forma a que se possa entre ambos a relação funcional a que alude o artigo 341.º do Código Civil.
[5] Neste sentido, cfr. acórdãos da Relação de Lisboa de 22.10.2014 (processo nº 681/13.5TTLSB.L1-4), de 6.12.2017 (processo nº 3410/12.7TCLRS-.l1-6), de 25.09.2018 (processo nº 744/11.1TBFUN-D.L1-1) e de 4.06.2020 (processo nº 9854/18.3T8SNT-A.L1-2); acórdão da Relação de Coimbra de 24.03.2015 (processo nº 4398/11.7T2OVR-A.P1.C1) e acórdão da Relação de Guimarães de 23.05.2019 (processo nº 1345/18.9T8CHV-A.G1), todos em www.dgsi.pt.
[6] Cfr. acórdãos da Relação de Coimbra de 18.11.2014 (processo nº 628/13.9T8GRD.C1) e de 24.03.2015 (processo nº 4398/11.7T2OVR-A.P1.C1) e acórdão da Relação de Lisboa de 25.09.2018 (processo nº 744/11.1TBFUN-D.L1-1), todos em www.dgsi.pt.
[7] Abrantes Geraldes et al., Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª edição, Almedina, pág. 520.
[8] Obra citada, pág. 520.
[9] Actuais artigos 429.º, 432.º e 436.º do Código de Processo Civil.
[10] Artigo 5.º do Código de Processo Civil e artigos 342.º e seguintes do Código Civil.
[11] Processo n.º 549/19.1T8PVZ-A.P1, www.dgsi.pt.
[12] Acórdão da Relação de Coimbra de 12.03.2019, proc.º 141/16.2T8PBL-A.C1, www.dgsi.pt.
[13] Processo n.º 6775/19.6T8PRT-A.P1, www.dgsi.pt.
[14] Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª edição, 2004, Almedina.
[15] Processo 02A1605, www.dgsi.pt.; em idêntico sentido, cfr. acórdão da Relação do Porto de 2.10.2006, www.dgsi.pt.
[16] Processo 18561/17.3T8LSB-A.L1-2, www.dgsi.pt.
[17] Em idêntico sentido, cfr. ainda citado acórdão da Relação de Lisboa de 25.09.2018 (processo nº 744/11.1TBFUN-D.L1-1).