ESCUSA
PARTICIPAÇÃO CRIMINAL
ADVOGADO
OFENSA AO NOME E HONRA
Sumário

Nos termos da al. g) do nº. 1 do art. 120.º do CPC, a existência, na situação em apreço, de uma participação criminal formulada pelo juiz relativamente a advogado que representa o autor noutro processo, constitui a materialização de uma inimizade que atingiu um nível de relevância ou gravidade, conducente à justificação e deferimento de um pedido de escusa nesse outro processo.

Texto Integral

I. O Sr. Juiz de Direito “A”, a exercer funções no Juízo de Família e Menores de Ponta Delgada – Juiz “X” veio requerer, ao abrigo do estabelecido no artigo 119.º do CPC, seja dispensado de intervir no Processo nº. (…)/24.2T8PDL (divórcio sem consentimento do outro cônjuge).
Para tanto invocou, em suma, que:
- No referido processo, o autor está representado pela Advogada, Dra. (…);
- Na sequência da tentativa de conciliação realizada no dia 05-04-2022, no âmbito do processo de divórcio sem consentimento do outro cônjuge que correu termos pelo referido Juízo sob o n.° (…)/22.6T8PDL, a Senhora Advogada, enquanto Patrona da aí autora, subscreveu nos autos um requerimento (datado de 11-04-2022), e de cujo teor ressalta a imputação de factos que põem em causa o nome e honra do Sr. Juiz, não correspondendo à verdade;
- O Sr. Juiz apresentou, nessa decorrência, participação criminal contra ambas, atentas as imputações feitas.
- A situação relatada, associada à exiguidade do meio insular em referência (dimensão geográfica da Ilha de São Miguel), será de molde a justificar a escusa.
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II. Conhecendo:
Pretende o requerente ser dispensado de intervir nos autos identificados, através do presente pedido de escusa.
Nos termos plasmados no n.º. 1 do artigo 119.º do CPC, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos, no artigo 120.º do CPC e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.
O juiz natural, consagrado na Constituição da República Portuguesa, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves. E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas.
O TEDH – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).
Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.
O pedido de escusa terá por finalidade prevenir e excluir situações em que possa ser colocada em causa a imparcialidade do julgador, bem como, a sua honra e considerações profissionais.
Efetivamente, não se discute se o juiz irá ou não manter a sua imparcialidade, mas, visa-se, antes, a defesa de uma suspeita, ou seja, o de evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade.
A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.
O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de Justiça.
Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.
Com efeito, os motivos sérios e válidos atinentes à imparcialidade de um juiz terão de ser apreciados de um ponto de vista subjetivo e objetivo.
No caso em apreço, o Sr. Juiz vem invocar, entre o mais, que, em razão da imputação de factos que considera ofensivos do seu nome e honra e que entende não corresponderem à verdade, procedeu à apresentação de participação criminal contra a autora de outro processo e sua advogada, a qual é advogada do autor do processo relativamente ao qual requer a escusa.
O motivo explanado indicia, desde logo, a existência de alguma animosidade entre o Sr. Juiz e a advogada do autor, o que, em termos objetivos e subjetivos, é suscetível de colocar em causa, a imparcialidade e a independência do julgador, criando-lhe desconforto no desempenho da sua função de administração da justiça e podendo levantar suspeitas quanto à sua imparcialidade.
Não é só a imparcialidade do Sr. Juiz que poderia ser colocada em causa, mas também, a desconfiança sobre si, por banda das partes envolvidas no processo, ou seja, o poder gerar a ideia de que poderia não ser imparcial nas suas decisões, tudo conjugado com a dimensão geográfica da Ilha, onde todos se conhecem e convivem entre si.
Ora, nos termos da al. g) do nº. 1 do art. 120.º do CPC., a existência, na situação em apreço, de uma participação criminal, constitui a materialização de uma inimizade que atingiu um nível de relevância ou gravidade, conducente à justificação e deferimento de um pedido de escusa.
Os pedidos de escusa pressupõem situações excecionais, o que é o caso, tratando-se, aliás, de situação paralela à que, noutros processos, já justificou a concessão de escusa de intervenção do Sr. Juiz.
Assim e sem mais considerandos, entendo existir motivo justificado para que o Sr. Juiz seja dispensado de intervir no processo.
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III. Face ao exposto, defiro o pedido de escusa de intervenção do Sr. Juiz “A” no âmbito do Processo nº. (…)/24.2T8PDL (divórcio sem consentimento do outro cônjuge).
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 11-09-2024,
Carlos Castelo Branco.
(Vice-Presidente, com poderes delegados – cfr. Despacho 2577/2024, de 16-02-2024, pub. D.R., 2.ª Série, n.º 51/2024, de 12 de março).