ESCUSA
IMPARCIALIDADE
JUIZ
PRATICANTE DESPORTIVO
FEDERAÇÃO
CLUBE DESPORTIVO
DIREITO ASSOCIATIVO
Sumário

1. O motivo fundamentador da escusa deve ser de tal modo relevante que, objetivamente, pelo lado não apenas do destinatário da decisão, mas também, do homem médio, possa ser entendido como suscetível de afetar, na aparência, a garantia da boa justiça, por poder ser visto externamente e adequado a afetar – gerar desconfiança – sobre a imparcialidade.
2. Só circunstâncias de facto, concretas e definidas, que evidenciem que os valores da imparcialidade e da isenção do julgador correm perigo, é que justificam que se abra mão da regra do juiz natural, por tais factos se revelarem, objetivamente, denunciadores de que aquele juiz natural deixou de oferecer claras garantias de imparcialidade e de isenção.
3. A circunstância de a Sra. Juíza de Direito ser federada na ré, uma federação desportiva (pessoas colectivas constituídas sob a forma de associação sem fins lucrativos que, englobando clubes ou sociedades desportivas, associações de âmbito territorial, ligas profissionais, se as houver, praticantes, técnicos, juízes e árbitros, e demais entidades que promovam, pratiquem ou contribuam para o desenvolvimento da respectiva modalidade, preencham, cumulativamente, os requisitos previstos no artigo 2.º do D.L. n.º 248-B/2008, de 31 de dezembro), não constitui motivo bastante para se poder considerar que existe motivo, sério e que com gravidade, justifique o deferimento da escusa solicitada, pois, nenhuma circunstância particular da relação associativa mantida entre a Sra. Juíza e a federação ré, se denota relativamente às invocações da mesma, que reconduz - tal relação - apenas ao momento da inscrição.
4. Também não configura tal motivação fundada e séria a circunstância de a Sra. Juíza “jogar” em campos de golfe dos autores desde há uns meses a esta parte, sendo que, tal utilização foi determinada pelas razões explanadas pela Sra. Juíza e, a mesma, não se mostra com quaisquer carateres diferenciadores particulares dos demais utilizadores de tais instalações clubísticas.

Texto Integral

I. A Sra. Juíza de Direito “A”, a exercer funções no Juízo Local Cível de Oeiras – J“X” do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, veio apresentar pedido de escusa de intervenção no processo n.º (…)/22.4T8OER, ao abrigo do disposto no art. 119, n° 1 parte final do CPC, invocando, em suma, que:
- Nesse processo são autores CLUBE DE GOLFE (…), CLUBE DE GOLFE (…), (…) CLUBE DE GOLF, CLUBE DE GOLFE (…) e (…) SPORT CLUBE e ré, a FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE GOLFE;
- O processo tem corrido os seus termos, estando agendada, a primeira diligencia de julgamento para o dia 18.09, a segunda para o dia 25.09 e a terceira para 01.10 de 2024, visando o processo a anulação de deliberações sociais;
- É federada (n° (…)), mas nunca (salvo o acto de inscrição, ocorrido por intermédio do clube (…)) teve qualquer contacto, intervenção ou outro, quer directa, quer indirectamente com aquela;
- Acresce que, até à data infra identificada, nunca jogou em nenhum dos campos geridos pelas Autoras, razão pela qual entendeu não haver razão para apresentar qualquer pedido de dispensa de intervenção na causa (suspeição);
- No início de 2024, o Clube que frequentava informou que iria encerrar, mas desconhecendo quando tal ocorreria, pelo que, tendo mantido os preços, não foi renovada a inscrição junto da ré, razão pela qual, a signatária se apresenta naquela como inactiva, desde 1.01.2024, tendo continuado a frequentar apenas aquele espaço, em Oeiras;
- Em finais de Junho/início de Julho, o campo de golfe do Clube (…) fechou as suas portas, tendo a signatária tido necessidade de, para continuar a sua actividade lúdica, jogar noutros campos (pagando a sua frequência como "inactiva"), o que fez, tendo jogado, com o seu companheiro noutros campos, os quais, correspondem a dois campos pertencentes aos Autores;
- Não conhece nenhuma das testemunhas, não teve qualquer interacção com as mesmas (salvo eventualmente no campo, mas do qual, a existir, não ter qualquer memória); e
- Embora entenda que o exercício da sua imparcialidade não está em causa - uma vez que não tem nem nunca teve qualquer intervenção junto da Ré (salvo a necessidade de ser federada para jogar) nomeadamente no âmbito da suas Assembleias, e a sua actividade junto das Autores, se circunscrever ao exercício da actividade-lúdica de jogar golfe, pagando o respectivo valor para o efeito - por razões de transparência formula o pedido de dispensa.
*
II. Visa a requerente ser dispensada de intervir nos autos identificados, através do presente pedido de escusa.
Nos termos plasmados no n.º. 1 do artigo 119.º do CPC, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos, no artigo 120.º do CPC e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.
O artigo 32.º, n.º 9, da Constituição da República proclama que “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”. Assim se consagra, como uma das garantias do processo, o princípio do juiz natural ou legal, cujo alcance é o de proibir a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para decidir um caso submetido a juízo, em ordem a assegurar uma decisão imparcial e justa.
Num Estado de Direito, a decisão jurídica de conflitos deve sempre fazer-se com observância de regras de independência e de imparcialidade, o que é uma exigência do direito de acesso aos tribunais, consignado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.
De todo o modo, podendo ocorrer situações desvirtuosas da observância de tais princípios, o legislador previu instrumentos ou mecanismos que garantem a imparcialidade e a isenção do juiz, também tutelados pela Constituição (cfr. artigos 203.º e 216.º), como pressuposto objetivo da sua perceção externa pela comunidade, onde se incluem os impedimentos, as suspeições, as recusas e as escusas.
A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.
Tal é sublinhado em inúmeros textos internacionais.
O TEDH – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).
Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.
O pedido de escusa terá por finalidade prevenir e excluir situações em que possa ser colocada em causa a imparcialidade do julgador, bem como, a sua honra e considerações profissionais.
Efetivamente, não se discute se o juiz irá ou não manter a sua imparcialidade, mas, visa-se, antes, a defesa de uma suspeita, ou seja, o de evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade.
Nesta linha, a Comissão para os Direitos Humanos das Nações Unidas, em abril de 2003, adotou a resolução 2003/43, com vista à observância pelos Estados-Membros dos Princípios de Bangalore para a Conduta Judicial.
Entre esses Princípios conta-se o da Imparcialidade, aí enunciado do seguinte modo: “A imparcialidade é essencial para o bom desempenho da função judicial. Aplica-se não apenas à própria decisão, mas também ao processo de decisão.”.
Na concretização de tal princípio tem sido considerado, em particular, que:
“(…) 66. Um juiz deve estar disponível para decidir as questões submetidas ao tribunal.
No entanto, para proteger os direitos dos litigantes e preservar a confiança do público na integridade do judiciário, haverá ocasiões em que o impedimento/escusa será necessário/a.
Por outro lado, o impedimento/escusa frequente pode trazer desfavor público ao tribunal e ao juiz pessoalmente, e impor cargas excessivas aos colegas do juiz.
Os litigantes podem ter a impressão de que podem escolher o juiz que decidirá o seu caso, o que seria indesejável.
Um juiz deve, portanto, organizar seus assuntos pessoais e comerciais de forma a minimizar o potencial de conflito com os deveres judiciais.
67. O potencial para conflito de interesses surge quando os interesses pessoais do juiz (ou daqueles que lhe são próximos) conflituem com o seu dever de julgar imparcialmente.
A imparcialidade judicial diz respeito à imparcialidade de facto e à imparcialidade na perceção de um observador razoável.
Em questões judiciais o teste do conflito de interesses deve incluir tanto os conflitos reais entre os próprios interesses do juiz e o dever de julgamento imparcial, quanto às circunstâncias em que um observador razoável possa razoavelmente apreender um conflito (…)” (cfr. Comentário aos referidos Princípios de Bangalore para a Conduta Judicial, consultado em A Vida Privada do Magistrado – Contributos para uma Reflexão; CEJ, Lisboa, Março 2021, p. 29 e ss.).
Também, no Compromisso Ético dos Juízes Portugueses de 2009 (texto consultado em Ética e Deontologia Judiciária, Tomo I, CEJ, Lisboa, 2014, p. 403 e ss.), a imparcialidade é aí enunciada como “o atributo fundamental dos juízes e da função judicial, que visa garantir o direito de todos os cidadãos ao julgamento justo e equitativo”, implicando os seguintes princípios, também aí estabelecidos:
“1. No exercício da função judicial, os juízes são imparciais, accionando os mecanismos de escusa nas situações que possam gerar dúvidas sobre a sua imparcialidade, observando as regras do processo que garantem a igualdade e o contraditório e repudiando todas as formas de discriminação.
2. Os juízes rejeitam a participação em actividades extrajudiciais que ponham em causa a sua imparcialidade e que contendam ou possam vir a contender com o exercício da função ou que condicionem a confiança do cidadão na sua independência e na imparcialidade da sua decisão.”.
No Comentário aí desenvolvido quanto a tal princípio é expendido, nomeadamente, que: “3. O juiz é livre de participar em qualquer actividade cívica desde que a mesma não seja susceptível de comprometer a sua imparcialidade ou de prejudicar o exercício da actividade jurisdicional. Em especial, o juiz abstém-se de aderir a organizações colectivas e de participar em debates públicos, sempre que, segundo a apreciação de uma pessoa razoável, bem informada, objectiva e de boa fé, isso possa perturbar a imagem de imparcialidade ou independência relativamente a questões susceptíveis de vir a ser submetidas aos tribunais.
O juiz não integra organizações que exijam aos aderentes a prestação de promessas de fidelidade ou que, pelo seu secretismo, não assegurem a plena transparência sobre a participação dos associados”.
O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de Justiça.
Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.
Todavia, o juiz natural, consagrado na Constituição da República Portuguesa, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves. E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da concreta avaliação das circunstâncias invocadas.
“Devem ser criteriosas as possibilidades de afastar o juiz natural, quer como judex inhabilis, quer como judex suspectus conquanto, pela sua importância e dignidade, a regra do juiz natural está expressamente consagrada no art.º 6.º, § 1.º, da C.E.D.H., enquanto elemento central da noção de fair trail, e só pode ser derrogada, em casos excecionais, para dar satisfação bastante e adequada, em conformação de direitos, a outros princípios de relevo semelhante, como sejam os da independência dos tribunais e da imparcialidade dos juízes. Impõe-se, pela sua solenidade, importância e valor basilar, que a derrogação do princípio do juiz natural e o questionamento da sua idoneidade ou imparcialidade apenas possam ser postos em crise – como a lei exige – ante motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, não podendo, por isso, ser usado de forma desadequada, enviesada ou como expediente processual de retardamento ou entorpecimento do processo, ou como forma de diminuição da posição do julgador” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20-03-2024, Pº 2897/19.1T9VFR-A.P1, rel. JOSÉ QUARESMA).
Com efeito, os motivos sérios e válidos atinentes à imparcialidade de um juiz terão de ser apreciados de um ponto de vista subjetivo e objetivo.
No n.º 1 do artigo 120.º do CPC consagram-se diversas situações em que ocorre motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, nomeadamente:
a) Se existir parentesco ou afinidade, não compreendidos no artigo 115.º, em linha reta ou até ao 4.º grau da linha colateral, entre o juiz ou o seu cônjuge e alguma das partes ou pessoa que tenha, em relação ao objeto da causa, interesse que lhe permitisse ser nela parte principal;
b) Se houver causa em que seja parte o juiz ou o seu cônjuge ou unido de facto ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta e alguma das partes for juiz nessa causa;
c) Se houver, ou tiver havido nos três anos antecedentes, qualquer causa, não compreendida na alínea g) do n.º 1 do artigo 115.º, entre alguma das partes ou o seu cônjuge e o juiz ou seu cônjuge ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta;
d) Se o juiz ou o seu cônjuge, ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta, for credor ou devedor de alguma das partes, ou tiver interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a uma das partes;
e) Se o juiz for protutor, herdeiro presumido, donatário ou patrão de alguma das partes, ou membro da direção ou administração de qualquer pessoa coletiva parte na causa;
f) Se o juiz tiver recebido dádivas antes ou depois de instaurado o processo e por causa dele, ou se tiver fornecido meios para as despesas do processo;
g) Se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários.
De todo o modo, o magistrado tem de traduzir os escrúpulos ou as razões de consciência em factos concretos e positivos, cujo peso e procedência possam ser apreciados pelo presidente do tribunal (assim, Alberto dos Reis; Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I, p. 436).
O pedido será apresentado antes de proferido o primeiro despacho ou antes da primeira intervenção no processo, se esta for anterior a qualquer despacho.
Quando forem supervenientes os factos que justificam o pedido ou o conhecimento deles pelo juiz, a escusa será solicitada antes do primeiro despacho ou intervenção no processo, posterior a esse conhecimento (n.º 2 do artigo 119.º do CPC).
Definindo a lei que o Juiz não é livre de, espontaneamente e sem motivo, declarar a sua potencial desconfiança em relação ao conflito de interesses a dirimir na ação, o legislador logo se preocupou em identificar os casos em que razões de ética jurídica impõem que ele não deva intervir em determinada causa e condensadas no princípio de que não pode ser levantada contra o Juiz da causa a mais ténue desconfiança orientada no sentido de que, o juízo que vai fazer sobre a questão posta pelas partes, poderá estar envolto em interesses sombrios e difusos e, por isso, passível de estar eivado de imperfeições que condicionem a sua liberdade de decisão.
Ou seja: Para que o julgador seja dispensado de intervir no processo – do qual é o natural juiz – é imperioso que se verifique um conjunto de circunstâncias, concretamente aferidas, que, ante a sua gravidade e seriedade, sejam perentórias no sentido de se mostrarem adequadas e gerar desconfiança sobre a imparcialidade e isenção do julgador, só neste caso se podendo temer que, a manutenção da sua intervenção no processo, corra o risco de se considerar suspeita.
“Para tanto, foi preciso estabelecer um regime legal que fizesse o necessário equilíbrio entre um possível posicionamento de puro absentismo - declarar a sua parcialidade para se eximir ao julgamento de um intrincado litígio (era este um sistema possível nas Ordenações, porquanto permitia que o juiz fosse afastado do pleito desde que, mesmo sem adiantar qualquer razão, mediante juramento asseverasse a sua suspeição) - e a situação, deveras desprestigiante, de o Juiz ter de esperar que algum dos litigantes viesse trazer este dado ao Tribunal, circunstancialismo que ele já havia conjecturado e ao qual nunca poderia deixar de dar o seu assentimento” (assim, a decisão do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2004, Pº 329/04-1, em http://www.dgsi.pt).
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III. Importa referir que, no caso em apreço, a Sra. Juíza vem consignar que é federada na Federação Portuguesa de Golfe, ré no processo de que é titular, mas que, com tal parte não teve outra relação, que não, a de inscrição, não tendo tido intervenção junto de tal entidade, nomeadamente, no âmbito das suas Assembleias.
Relativamente às autoras, a Sra. Juíza identifica que – pelas razões que explana – passou a jogar em finais de Junho/início de Julho (do corrente ano) com o seu companheiro em campos que pertencem aos autores do processo que lhe foi distribuído, salientando que, “a sua actividade junto das Autores, se circunscreve(…) ao exercício da actividade-lúdica de jogar golfe, pagando o respectivo valor para o efeito (…)”.
A jurisprudência tem assinalado, de forma constante e consistente, que para sustentar a escusa do juiz é necessário verificar:
- Se a intervenção do juiz no processo em causa corre o risco de ser considerada suspeita;
- Se essa suspeita ocorre por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, “para o que deverão ser indicados factos objetivos suscetíveis de preencher tais requisitos, a analisar e ponderar segundo as circunstâncias de cada caso concreto, de acordo com as regras da experiência comum e com “bom senso”” (assim, o Acórdão do STJ de 13-04-2023, Pº 16/23.9YFLSB-A, rel. MARIA DO CARMO SILVA DIAS).
E, tem-se também assinalado que “a dimensão subjetiva não basta à afirmação da garantia. Releva, também, e cada vez mais com acrescido reforço, uma perspectiva objetiva, que é consequencial à intervenção no direito processual, com o suporte de um direito fundamental, de um conceito que não era, por tradição, muito chegado à cultura continental: a aparência” (cfr. Acórdão do STJ de 13-04-2005, Pº 05P1138, rel. HENRIQUES GASPAR).
Conforme se concluiu neste aresto: “A gravidade e a seriedade do motivo hão-de revelar-se, assim, por modo prospectivo e externo, e de tal sorte que num interessado - ou, mais rigorosamente, num homem médio colocado na posição do destinatário da decisão possam razoavelmente suscitar-se dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão. As aparências são, neste contexto, inteiramente de considerar, quando o motivo invocado possa, em juízo de razoabilidade, ser considerado fortemente consistente («sério» e grave») para impor a prevenção.”.
O motivo invocado como fundamentador da escusa deve, pois, ser de tal modo relevante que, objetivamente, pelo lado não apenas do destinatário da decisão, mas também, do homem médio, possa ser entendido como suscetível de afetar, na aparência, a garantia da boa justiça, por poder ser visto externamente e adequado a afetar – gerar desconfiança – sobre a imparcialidade.
“O prisma a que se tem de atender para escusa do juiz não é o particular ponto de vista do requerente, mas à situação objectiva que possa derivar de uma determinada posição do juiz em relação ao caso concreto ou a determinado sujeito ou interveniente processual, em termos de existir um risco real de não reconhecimento público da sua imparcialidade”.
Em suma: “O critério essencial a apreciar no pedido de escusa, “na perspetiva da “imparcialidade objetiva” em que as aparências são de considerar, é o de que haja um motivo que, a avaliar de forma exigente e em função das circunstâncias objetivas do caso, em juízo de razoabilidade na consideração do “homem médio” que se revê num poder judicial imparcial e independente, seja tido como sério e grave para impor a prevenção do perigo de que a intervenção do juiz seja encarada com desconfiança e suspeita, pelo público em geral e, particularmente, pelos destinatários das decisões” (assim, o Acórdão do STJ de 23-11-2023, Pº 16017/21.9T8LSB-C.L1-A.S1, rel. JORGE GONÇALVES).
Só circunstâncias de facto, concretas e definidas, que evidenciem que os valores da imparcialidade e da isenção do julgador correm perigo, é que justificam que se abra mão da regra do juiz natural, por tais factos se revelarem, objetivamente, denunciadores de que aquele juiz natural deixou de oferecer claras garantias de imparcialidade e de isenção (nesta linha, sem preocupações de exaustão, são de referenciar os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20-10-2010, Pº 140/10.8YFLSB, rel. SANTOS CABRAL, de 28-11-2019, Pº 186/17.5GCTVD.L1-A.S1, rel. FRANCISCO CAETANO, de 15-02-2023, Pº 16/20.0GALLE.E1-A.S1, rel. ANA BARATA BRITO, de 01-03-2023, Pº 122/13.8TELSB-BQ.L1-A.S1, rel. ERNESTO VAZ PEREIRA e de 04-05-2023, Pº 13/23.4YFLSB-A, rel. ERNESTO VAZ PEREIRA, do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-01-2018, Pº 66/16.1T9ACB-A.C1, rel. VASQUES OSÓRIO, do Tribunal da Relação de Évora de 07-02-2017, Pº 175/16.7YREVR, rel. MARIA LEONOR BOTELHO, do Tribunal da Relação de Guimarães de 16-03-2009, Pº 438/07.2PBVCT-L.G1, rel. CRUZ BUCHO, de 19-11-2018, Pº 690/17.5PAVNF.G1, rel. JORGE BISPO e de 27-01-2020, Pº 39/08.8PBBRG-K.G1, rel. PAULO SERAFIM).
Pouco importa a impressão subjectiva das partes sobre se o juiz é, ou se tornou, parcial; o que importa averiguar é se tal se extrai com objectividade de factos concretos, inequívocos e concludentes, pois que, conforme se disse no Acórdão do TRE de 13-08-2014, Pº 874/12.2TBSLV-E.E1, rel. CANELAS BRÁS) “impressões e opiniões, todos as podem ter, e cada um fica com as suas”.
Conforme se referiu na decisão individual do Presidente do Tribunal da Relação do Porto de 23-01-2020 (Pº 9452/18.1T8PRT-A, rel. ATAÍDE DAS NEVES, inédito):
“Não bastará para tanto a verificação de uma circunstância subjectivamente impressiva para o julgador ou para o destinatário da decisão, assim como não bastará a existência de qualquer preconceito, em si vazio de sentido atendível, que de alguma forma possa induzir àquele perigo.
Importará, pois, que os motivos sejam em si inequivocamente susceptíveis de, aos olhos do cidadão médio, que representa o tipo medianamente instruído e não preconceituoso, assim como dotado de um nível médio de capacidade crítica, serem interpretados e entendidos como susceptíveis de afectar, na aparência, a garantia de saudável distanciamento, isenção e imparcialidade do julgador e, assim, afectar a boa imagem dos tribunais e da administração da justiça, numa ideia simples - que tais factos possam obiectivamente gerar perigo de parcialidade e desconfiança”.
Ora, neste sentido, nenhuma das circunstâncias referidas pela Sra. Juíza releva para afastar a regra da determinação – aleatória – do juiz natural.
Por um lado, a circunstância de a Sra. Juíza ser federada junto da ré numa atividade lúdica (jogadora de golfe) não constitui motivo, sério e grave, de se poder suspeitar, objetivamente, de falta de imparcialidade da Sra. Juíza, relativamente à lide do processo que lhe foi distribuído.
Em situação muito semelhante àquela que se mostra apresentada – em que estava em causa a invocação pela magistrada judicial aí requerente de escusa, a quem foi distribuído processo de natureza criminal, nomeadamente, com a invocação de que era sócia há cerca de duas décadas do clube arguido, com quotas pagas, que era titular de bilhete de época para jogos nacionais, que era casada com Juiz Desembargador que, além de reunir características semelhantes, é titular de acções da respectiva SAD - pensamos serem inteiramente válidas as considerações expostas no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-04-2023 (Pº 832/23.1YRLSB-9, rel. BRÁULIO MARTINS) que conheceu de tal pretensão. Conforme aí se expendeu:
“(…) Estamos (…), essencialmente, no âmbito das “circunstâncias ou contingências de relação” com o interessado (arguido) B, do qual a requerente é adepta (…).
Antes de mais, devemos afirmar com clareza e de forma assertiva que as prosaicas e comezinhas paixões do “ludopédio” (que também assaltam o ora relator, reconhece-se) não se alcandoram, nem podem alcandorar, ao elevado patamar da consciência ética em que se insere a decisão jurisdicional (…).
Além disso, se esta inclinação afetiva clubística tivesse a potencialidade de abalar a primordial imagem de imparcialidade de que goza o julgador perante os intervenientes no processo e perante a comunidade em geral, então, também a preferência afetiva clubística rival em relação aos intervenientes no processo levaria ao mesmo desfecho: ou seja, até um simpatizante (nem necessita de ser sócio) do C ou do D, por exemplo, não teria condições objetivas de imparcialidade para julgar os autos em que se deduziu o incidente, no qual o arguido é o B, uma vez que, muito provavelmente, nutre forte antipatia pelo clube rival. E sendo o gosto pelo futebol e a paixão clubística algo de tão disseminado entre nós, mesmo entre os juízes, seria, provavelmente, difícil encontrar um julgador futebolisticamente assético. Igualmente, se assim fosse, um juiz que perfilhe uma ideologia política de direita não estaria em condições de julgar uma causa em que interviesse, um partido do quadrante político de esquerda, ou um outro que fosse cristão católico não estaria em condições de julgar um conflito entre a igreja de Roma e a comunidade muçulmana ou entre aquela igreja e um particular ateu.
Muito menos alguém pensará que um juiz não aplicará uma sanção acessória como a que está em causa nos autos, só porque quer ir ao estádio ver um ou dois jogos de futebol, fazendo assim render o seu investimento num bilhete anual, ou que reduzirá a coima a aplicar para não desvalorizar as ações de que o seu cônjuge é titular, ou só porque gosta muito daquele clube – ao contrário do que se tem propalado por vários meios e modos, temos para nós que os portugueses em geral têm em muito boa conta a imparcialidade e seriedade dos seus juízes, e que só a questionam quando ocorrem motivos absolutamente ponderosos, não sendo esse o caso presente.
(…) Compreende-se o pedido da Exma. Sr.ª Juiz requerente, se tivermos presente o recente alarido por causa de um processo também mediático, que envolveu o B, e que alguém, pessoa individual, quis dar a entender que a filiação clubística do julgador influenciou a sua decisão – isso não poderá, todavia, condicionar, nem condiciona, estamos certos, quem tem a elevada responsabilidade de decidir os processos em causa e de apreciar os pedidos de escusa.
(…)”.
Igualmente, na já citada decisão individual do Presidente do Tribunal da Relação do Porto de 23-01-2020 (Pº 9452/18.1T8PRT-A, rel. ATAÍDE DAS NEVES) se enfrentou, de forma magistral, a temática em apreço, tecendo-se, então, as seguintes considerações que, em tudo, se mostram de aplicar à situação invocada pelo escusante e com as quais concordamos, pelo que, as perfilhamos (sendo de realçar os trechos infra evidenciados e sublinhados):
“(…) Será que este circunstancialismo objectivo (ser sócio há mais de 50 anos, ser “Águia de Ouro e ter “Red Pass” com lugar cativo) e também subjectivo (ser um apaixonado pelo Benfica) é determinante do deferimento da escusa requerida pelo Ilustre Juiz?
Depois de uma reflexão séria que sempre nos cumpre, afigura-se-nos que a resposta negativa é a mais acertada.
Com efeito, a mera circunstância de o requerente ser sócio do Benfica há mais de 50 anos, a ponto de ser detentor do cartão “Águia D'Ouro”, que o clube lhe atribuiu mercê de tal antiguidade, não pode significar uma estreita ligação entre o Juiz e o seu Clube, que só por isso de todo inexiste, estando vedado a quem quer que seja daí retirar a conclusão que a sua imparcialidade e isenção como juiz possa estar minimamente em perigo.
De facto, são centenas de milhares os sócios do Benfica (já em 2014 o Clube tinha 270.000 sócios, considerado o maior número de adeptos do Mundo), sendo seguramente muitos milhares os detentores do cartão “Águia de Ouro”, sendo o Senhor Juiz apenas mais um nesse universo alargado, não deixando por isso de ser (…) um desconhecido ou um não conhecido dos órgãos societários e desportivos ou de quem pessoalmente os integra, inexistindo qualquer tipo de relacionamento pessoal, nem amizade nem inimizade, de onde não se pode antever qualquer vinculação especial com o Clube.
O Senhor Juiz requerente é um sócio do Benfica, que embora o seja há mais de 50 anos e em face disso tenha merecido a homenagem subjacente à atribuição do cartão “Águia de Ouro”, prestada pelo clube de forma impessoal, só com base no critério da antiguidade de sócio, um critério de aplicação automática, assente na circunstância objectiva do passar dos anos e das décadas, não sendo, como tal, alguém especialmente conhecido das pessoas representativas do Clube ou que integram os seus órgãos ou desportivos.
É associado (ou sócio) desde os 8 anos de idade, assim aconteceu e assim acontece, apenas por sua vontade e desejo de assim continuar.
Dessa qualidade de mero associado (…), não resulta qualquer estreitamento de relação com o todo universal que o Clube constitui, nem com qualquer das personalidades, mais ou menos mediáticas, que representam o Clube perante o público em geral, do qual se possa extrair, em termos objectivos e seguros, que os seus deveres de imparcialidade e isenção se encontram, mercê dessa ligação, poderão ficar afectados ou sequer minimamente em perigo.
O Senhor Juiz é, no universo de sócios do Benfica, apenas mais um adepto, que até já tem o emblema Águia de Ouro e que tem lugar cativo, nada de anormal, nem nada de mais para o vulgar aficcionado pelo seu Clube de Futebol, podendo até ser um “doente” pelo seu Clube.
Mas no mundo do seu clube, no imenso espaço do Benfica, como todo o respeito, não passa de um anónimo, ninguém do Clube o conhece, nem ele conhecer seja quem for, assim é, pois se não fosse o diria (…).
Quer isto dizer, como sócio (…) e como detentor de Red Pass para lugar cativo, não se relaciona pessoalmente com qualquer personalidade conotada com os corpos dirigentes do clube.
O Senhor Desembargador (…) frequenta o Estádio da Luz anonimamente, ali usando (…) o seu lugar cativo que entendeu por bem comprar, como qualquer outro sócio pode fazer (…).
De facto, ponderando esta qualidade de sócio, anónimo e fervoroso, mesmo antigo e com lugar cativo, nem o cidadão comum, medianamente informado e culto, poderá, afirmar ou sequer cogitar que este Senhor Juiz se encontra fragilizado na sua veste de julgador de uma acção em que o Clube é parte, que este Senhor Juiz está afectado na sua isenção e imparcialidade.
Se o fizer, fá-lo por preconceito ou por mera e infundada desconfiança!
(…)
Como referiu em 4 de Outubro de 2018, no seu discurso de posse o Senhor Presidente do Supremo tribunal de Justiça António Joaquim Piçarra, “... os Juízes terão de acompanhar as evoluções sociais e apartar-se de quaisquer preconceitos ou pré-juízos culturais retrógrados, garantindo o seu olhar imparcial e isento sobre cada caso concreto. Contudo, tal caminho é e deverá ser sempre acompanhado de total independência e liberdade de convicção/decisão do julgador, devidamente objetivada e fundamentada. E se os Tribunais/Juízes não devem ser alheios aos clamores da comunidade, neste como noutros temas, não podem ficar manietados e privados da possibilidade de formular juízos prudentes e livres sobre os mesmos, cedendo acriticamente à superficialidade de alguma pressão mediática. Também aqui se deve dizer: o juiz tem que ser íntegro, corajoso e prudente em todas as decisões, pois a justiça faz-se, umas vezes contra, outras a favor daquele clamor.”
E refere mais tarde que “Sobre o juiz incumbe o dever de respeitar sempre os direitos fundamentais e o princípio da igualdade, no quadro do regime legal vigente, mas também o de saber ouvir e dialogar para aprender a comunicar a sua decisão, a fim de, correctamente, elucidar os respectivos destinatários directos e a comunidade em geral sobre o seu real sentido e as suas premissas. “A compreensão do que é decidido pela comunidade, particularmente nas matérias em que a opinião pública mais detém a sua atenção, é essencial para a aceitação social das decisões judiciais e, por consequência, para o prestígio da justiça e para a pretendida pacificação social.”
(…) O que nos interessa é ter muito claro que a circunstância de o Senhor Juiz, que é adepto fervoroso do Benfica, titular de Águia de Ouro e com Red Pass para o seu lugar cativo, não é mais do que um adepto do coração, mas o facto de ser do coração não lhe tolhe a razão, não quebra a sua imparcialidade e a sua isenção como Juiz.
Isenção e imparcialidade que sempre caracterizou o Senhor Juiz ao longo da sua vida de mais de 30 anos consecutivos como Magistrado, e que, mais do que uma qualidade, faz parte do seu carácter como pessoa, como homem e como Julgador, podemos afirmá-lo com segurança.
A integridade de um Magistrado não se pode considerar abalada por circunstâncias desta natureza, não pode resultar da uma mera aparência, uma aparência epidérmica, de superfície, que apenas num longinquamente formal e puramente teórico e preconceituoso, quiçá amedrontado, pode ter alguma leitura.
O Magistrado é por natureza e por vocação um cumpridor de um múnus muito próprio, sendo por princípio e também por experiência, detentor de uma capacidade muito específica, a de dirimir os conflitos sociais, de forma distanciada sem ser fria, de forma serena sem deixar de ser viva, de forma discreta sem deixar de ser atenta, e de forma isenta e imparcial, como equidistância, com prudência e com bom senso.
São todos estes atributos aqueles que o Senhor Desembargador (…), embora pedindo escusa - e bem o fazendo porque adepto da absoluta transparência, proclama para a sua carreira, como Juiz íntegro e imparcial que sempre foi e que (…) e estamos nós certos de que assim será, também neste pleito não corre perigo de deixar de ser.
(…) É isto que o cidadão médio, atento, crítico, inteligente e informado, sem preconceitos espúrios, seguramente compreende, a especificidade ético-funcional de um Juiz, a sua capacidade e profundidade de carácter, estruturante da sua missão, a limpeza de alma que lhe confere o são distanciamento pessoal dos interesses cuja ponderação lhe é solicitada, uma postura que, mais do que uma forma de estar, é uma forma de ser.
É neste modo de ser da Magistratura e neste modo de estar dos Magistrados que o cidadão médio acredita, não se deixando impregnar e inquinar na sua sensibilidade e na sua cidadania por fenómenos absolutamente excepcionais, que eventualmente - e sublinhamos eventualmente - possa tocar cada uma das classes profissionais, sem excluir, por princípio, a Magistratura.
(…) Ou seja, de todo o circunstancialismo objectivo exposto não é possível concluir, de minimis, a verificação de motivo ponderoso, sério e grave, que de alguma forma possa inquinar a imagem de imparcialidade e isenção do Senhor Juiz, também não resultando minimamente evidenciado qualquer estado de dúvida aceitável, que possa criar mácula e forte verosimilhança de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.
(…) Ou seja, o Senhor Juiz, que é um Magistrado reconhecidamente trabalhador e dotado de elevado mérito funcional e também pessoal, de carácter impoluto, está intimamente preparado para decidir o pleito em questão, sem constrangimentos de ordem alguma, dessa forma afirmando a integridade de julgador, que sempre foi seu apanágio.
Isto assim afirma, quando diz que a sua imparcialidade nunca estará em causa, mesmo confessando-se um apaixonado pelo Clube, um fervoroso adepto, que “chora” as derrotas e rejubila com as vitórias.
Nada mais natural que assim seja, para todos nós que conhecemos e também vivemos emocionadamente muitos desafios de Futebol, sem que isso signifique que a nossa razão e o nosso discernimento correm perigo, como pessoas sensatas e inteligentes que somos ou devemos ser, que percamos o sentido do equilíbrio, da prudência e do bem senso.
Ou que, como Juízes, sem que com isso percamos o sentido da correcta ponderação dos factos e das regras e princípios de direito àqueles aplicáveis.
O Juiz é por natureza um decisor íntegro, imparcial e isento, só existindo perigo de o deixar de ser quando se verificar motivo ponderoso, sério e grave que coloque em perigo tal carapaça ou robustez.
E esse motivo não se verifica pelas circunstâncias aduzidas, estamos disso seguros, assim no-lo informam os ditames e as regras da experiência comum e o sentido de transparência da administração da justiça, inexistindo o perigo de favorecimento de uma das partes em detrimento da outra.
Diremos, a Imparcialidade do juiz, mais do que um seu dever ético-funcional, é um direito do cidadão, garantido, como acima referimos, pela lei, pela Constituição e pala Convenção Europeia do Direitos Humanos.
Assim como a independência do poder judicial também é um direito dos cidadãos e não uma mera prerrogativa dos Juízes, assim o afirmou Montesquieu aquando da concepção do princípio ou Teoria da Separação de Poderes.
E se não pode existir Estado de Direito sem separação de poderes e independência do Poder Judicial, também o mesmo se pode afirmar se não existir um poder Judicial estruturalmente isento e imparcial.
O Juiz só é independente porque é por natureza imparcial, nunca podendo descurar destes atributos que constituem o seu ADN e a sua missão tão importante nas sociedades actuais em que tantos interesses difusos se movem, quantas vezes de forma sibilina, a que o Juiz não pode deixar de estar atento e preparado para dar a resposta legalmente adequada.
Concluímos, pois, que as circunstâncias objectivas acima identificadas não constituem, repetimos, motivo ponderoso, sério e grave, para que se possa entender que existe qualquer verosimilhança de quebra de imparcialidade ou isenção do Senhor Desembargador para julgar a causa que lhe foi “naturalmente” distribuída (…)”.
Transpondo estas considerações para a situação em apreço, verifica-se que, a circunstância de a Sra. Juíza de Direito ser federada na ré, uma federação desportiva (“pessoas colectivas constituídas sob a forma de associação sem fins lucrativos que, englobando clubes ou sociedades desportivas, associações de âmbito territorial, ligas profissionais, se as houver, praticantes, técnicos, juízes e árbitros, e demais entidades que promovam, pratiquem ou contribuam para o desenvolvimento da respectiva modalidade, preencham, cumulativamente, os seguintes requisitos:
a) Se proponham, nos termos dos respectivos estatutos, prosseguir, entre outros, os seguintes objectivos gerais:
i) Promover, regulamentar e dirigir a nível nacional a prática de uma modalidade desportiva ou de um conjunto de modalidades afins ou associadas;
ii) Representar perante a Administração Pública os interesses dos seus filiados;
iii) Representar a sua modalidade desportiva, ou conjunto de modalidades afins ou associadas, junto das organizações desportivas internacionais, bem como assegurar a participação competitiva das seleções nacionais;
b) Obtenham o estatuto de pessoa colectiva de utilidade pública desportiva.”. – cfr. artigo 2.º do D.L. n.º 248-B/2008, de 31 de dezembro), não constitui motivo bastante para se poder considerar que existe motivo, sério e que com gravidade, justifique o deferimento da escusa solicitada.
De facto, importa evidenciar que nenhuma circunstância particular da relação associativa mantida entre a Sra. Juíza e a federação ré, se denota relativamente às invocações da mesma, que reconduz tal relação apenas ao momento da inscrição.
Também não configura tal motivação fundada e séria a circunstância de a Sra. Juíza “jogar” em campos de golfe dos autores desde há uns meses a esta parte.
Por um lado, tal utilização foi determinada pelas razões explanadas pela Sra. Juíza. Por outro lado, tal utilização não se mostra com quaisquer carateres diferenciadores particulares dos demais utilizadores de tais instalações clubísticas.
As circunstâncias aludidas pela Sra. Juíza não se afiguram, pois, de molde a constituir, sob qualquer ponto de vista (não conhecendo a mesma, aliás, as testemunhas do processo), um motivo sério e grave, que possa fazer perigar a imparcialidade do julgador que, aliás, o requerente manifesta não estar – e não está, com toda a certeza – em causa.
Os pedidos de escusa pressupõem situações excecionais em que pode questionar-se sobre a imparcialidade devida ao julgador, o que, em face do referido, entendemos não se patentear no caso.
*
IV. Pelo exposto, desatende-se a pretensão de escusa em apreço formulada pela Sra. Juíza de Direito “A”.
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 12-09-2024,
Carlos Castelo Branco.
(Vice-Presidente, com poderes delegados – cfr. Despacho 2577/2024, de 16-02-2024, D.R., 2.ª Série, n.º 51/2024, de 12 de março).