Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
CONCORRÊNCIA
RECURSO PENAL
EFEITO SUSPENSIVO
PRESTAÇÃO DE CAUÇÃO
Sumário
I. No quadro da aplicação do regime do n.º 5 do art. 84.º do Novo Regime Jurídico da Concorrência aprovado pela Lei n.º 19/2012, de 08 de Maio, na sua versão originária, eram requisitos de atribuição de efeito suspensivo a recurso e da fixação de caução: a) o oferecimento para realizar tal prestação e b) a existência de um quadro fáctico gerador da convicção de a execução da decisão poder causar ao requerente prejuízo considerável; II. Não tem suporte normativo a proposta interpretativa no sentido de que a caução tenha como finalidade relevante, ao nível da fixação do seu valor concreto (aparentemente exclusiva, face à construção das alegações de recurso) a de «garantir que não está em causa um intuito meramente dilatório»; III. O disposto no n.º 1 do art. 75.º do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro que institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo circunscreve o conhecimento do Tribunal de recurso à matéria de Direito, ficando aberto ao Impugnante apenas o escasso nicho de petição admitido pelo n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal aplicável ex vi do disposto no n.º 1 do art. 41.º do referido RGCO.
Texto Integral
Acordam na Secção de Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa:
*
I. RELATÓRIO
Foi proferida nos autos em que se gerou o presente recurso, em que é requerente AUCHAN RETAIL PORTUGAL, S.A. com os sinais identificativos constantes dos autos, decisão «sobre o incidente de prestação de prestação de caução para atribuição de efeito suspensivo ao recurso de impugnação intentado pela Recorrente Auchan», com seguinte conteúdo: Assim sendo e em face do exposto, decido fixar efeito suspensivo ao recurso intentado pela Recorrente Recorrente Auchan Retail Portugal, S.A., ficando a atribuição deste efeito suspensivo condicionada à efectiva prestação de caução, na modalidade de garantia bancária autónoma, tendo como beneficiário o presente tribunal, pelo valor correspondente a 50% (cinquenta porcento) do valor da coima única cominada pela AdC nestes autos e à demonstração nos autos da prestação dessa caução no prazo máximo de 30 (trinta) dias.
O Tribunal «a quo» descreveu os pontos que considerou mais relevantes dos autos em que ocorreu a prolação dessa decisão nos termos que, acto contínuo, se enunciam: No âmbito dos presentes autos a Recorrente Auchan Retail Portugal, SA veio requerer a atribuição de efeito suspensivo ao recurso de impugnação judicial, oferecendo-se para prestar caução, no valor de 5% do valor da coima cominada (coima de € 2.660.000,00), mediante garantia bancária. Para demonstrar os requisitos legalmente impostos para o efeito, alegou, em suma, que o mero valor da coima é significativo do elevado prejuízo que a sua execução derivaria para si. Para além disso, invoca que tem contra si a correr termos vários processos, em que figura como autoridade administrativa a AdC, com coimas que perfazem na sua globalidade € 50.574.000,00. Remete ainda para o estudo de um auditor externo sobre o impacto do pagamento da coima e da prestação de caução para a Recorrente. Defende não ter liquidez suficiente para fazer face ao pagamento imediato da coima e cumprir com as obrigações assumidas. A Recorrente não arrolou testemunhas em sede do presente incidente – (...)
É daquela decisão que vem o presente recurso interposto por AUCHAN RETAIL PORTUGAL, S.A., que alegou e apresentou as seguintes conclusões: Do efeito suspensivo – erro na apreciação dos pressupostos de direito A. Em 15 de junho de 2022 a Autoridade da Autoridade da Concorrência (“AdC”) adotou uma decisão condenatória, fixando o montante da coima aplicável à Visada Auchan em € 2.660.000 (dois milhões e seiscentos e sessenta mil euros). B. A Auchan interpôs recurso da decisão da AdC, que ainda se encontra pendente no Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (“TCRS”). C. Nos termos do n.º 5 do artigo 84.º da Lei da Concorrência, o visado pode requerer, ao interpor o recurso, que o mesmo tenha efeito suspensivo quando a execução da decisão lhe cause prejuízo considerável e se ofereça para prestar caução em substituição, ficando a atribuição desse efeito condicionada à efetiva prestação de caução no prazo fixado pelo tribunal. D. A Auchan requereu a atribuição de efeito suspensivo ao recurso de impugnação judicial, oferecendo-se para prestar caução mediante garantia bancária, que permitisse evitar um prejuízo considerável para a Recorrente. E. A proposta da Auchan não mereceu nenhum reparo concreto da AdC – principal interessada no pagamento da coima – ou do Ministério Público. F. A Decisão recorrida dá como provado, e bem, que o pagamento imediato de uma coima no valor global de EUR 2.660.000 representaria um prejuízo considerável para a Recorrente. G. Determinou então o efeito suspensivo do recurso mediante a prestação de caução. H. Não obstante, o TCRS determinou que a Recorrente prestasse, em 30 dias úteis, uma caução de valor correspondente a 50% da coima aplicada pela AdC, ou seja no montante de EUR 1.330.000. I. Antes de mais o Tribunal a quo não concretiza o conceito de “prejuízo considerável”. J. Por outro lado, o Tribunal também não considerou todos os critérios que devem balizar o montante de caução a ser atribuído K. Acontece que a introdução na Lei da Concorrência de 2012 do efeito meramente devolutivo como regra, e da caução como forma de obter o efeito suspensivo, ocorre num contexto e com uma finalidade específicos e documentados: garantir que não está em causa um intuito meramente dilatório. L. Sem se pretender entrar agora no debate sobre a bondade constitucional e alcance prático da medida, parece claro que o critério que deverá nortear o intérprete do momento de avaliar a adequação e proporcionalidade da caução. M. De facto, e sem prejuízo do extenso debate que dividiu o Tribunal Constitucional sobre o mérito e compatibilidade do n.º 5 do artigo 84.º da Lei da Concorrência com a Constituição, sempre existiu algum consenso relativamente aos objetivos prosseguidos pelo legislador. N. Como bem se referia no Acórdão (em Plenário) n.º 776/2019 (processo n.º 1378/17): “Quer a previsão do efeito meramente devolutivo do recurso, quer a possibilidade de reformatio in pejus têm por objetivo desincentivar à apresentação de recursos judiciais injustificados, com propósitos meramente dilatórios”. O. Mais se acrescenta neste acórdão: “Objetivo [evitar efeitos meramente dilatórios] que, desde logo, foi expresso na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 45/XII, que esteve na origem da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio [atual Lei da Concorrência]”. P. E com igual propósito, refere ainda aquele aresto: “no ponto 6 do parecer da Autoridade da Concorrência sobre essa Proposta, refere-se à necessidade de introduzir «incentivos que limitem a utilização do recurso como prática puramente dilatória, tais como a eliminação do efeito suspensivo do recurso em termos de coimas»”. Q. A própria AdC referia (cf. alegações citadas no Acórdão TC n.º 173/2020, processo n.º 202/18): “O efeito devolutivo da interposição do recurso consagrado em vários regimes contraordenacionais específicos, em desvio do regime geral das contraordenações e coimas, representa a intenção do legislador de conferir maior eficácia aos poderes sancionatórios das respetivas entidades reguladoras, limitando a interposição de recursos sem fundamento, com intuito meramente dilatório”. R. Faz-se notar que a AdC e o Ministério Público, de forma manifestamente coerente, não se opuseram à proposta de caução apresentada pela Auchan. S. Daqui que tenha concluído o Tribunal Constitucional no mais recente acórdão sobre a inconstitucionalidade daquela norma (n.º 173/2020) que “nada obsta, como se afirmou anteriormente, a que a prestação de caução seja feita no montante e pela forma que o Tribunal entender adequados, tomadas em devida consideração as particularidades do caso, as circunstâncias do impugnante e a função de garantia da caução”. T. Nessa medida, o Tribunal deveria ter avaliado que valor se revelava suficiente para garantir que não existe um intuito meramente dilatório com a interposição do recurso e sem gerar um prejuízo considerável à Recorrente. U. Não foi este o juízo desenvolvido na decisão e que acaba por conduzir a um resultado manifestamente desproporcional como se revelará infra. V. Considerando os objetivos prosseguidos pela norma, parece inequívoco que uma caução de valor correspondente, no máximo, a 5% da coima cominada, i.e. cerca de EUR 133.000 (apenas para o presente processo, tendo as cauções já prestadas atingido muitos milhões de euros) constitui um montante suficientemente elevado para garantir que o recurso não tem um intuito meramente dilatório – sem deixar também de se apresentar já como uma garantia de pagamento da potencial coima. W. Por outro lado, os prejuízos para a Recorrente resultantes da emissão de uma garantia bancária, que implica prestações periódicas regulares, serão tanto maiores quanto mais se prolongar o Processo. Pelo que esta não tem qualquer incentivo no adiamento injustificado de uma decisão final. X. Nestes termos, deverá entender-se que, sem prejuízo da bondade inerente ao juízo realizado pelo TCRS, o mesmo parte de facto, e como amplamente referido de forma expressa na Decisão, de uma premissa errada ao não considerar todos os critérios necessários para a determinação do montante da caução. Y. Não é possível concluir, sem antes se determinar a revogação daquela Decisão, que o Tribunal alcançaria exatamente o mesmo resultado se tivesse incorporado no seu juízo o objetivo principal, no caso específico da Lei da Concorrência, de determinar a existência ou inexistência de um intuito meramente dilatório do recurso. Z. Resta assim requerer a revogação da Decisão do TCRS por violação do n.º 5 do artigo 84.º da Lei da Concorrência, quando interpretado em conformidade com os artigos 20.º e 32.º da CRP. Do valor da caução – erro sobre os pressupostos de facto e violação da tutela jurisdicional efetiva AA. O TCRS deu como provado que o pagamento imediato da coima no montante de EUR 2.660.000 resultaria num prejuízo considerável para a Auchan. BB. Com maior relevo, o Tribunal a quo também concluiu que poderia existir uma violação do direito da Auchan a uma tutela jurisdicional efetiva se o montante da garantia bancária a prestar a título de caução correspondesse ao montante da coima em causa. CC. Acresce que, como é dado como provado pelo Tribunal a quo, encontram-se pendentes no TCRS os recursos interpostos pela Auchan relativamente aos seguintes processos de contraordenação da AdC (todos com origem nas mesmas diligências de busca e apreensão e todos alicerçados na apreensão de correspondência eletrónica que daí resultou): − PRC/2017/7 e PRC/2017/1, que determinaram a referida coima em cúmulo jurídico de EUR 22 250 000,00 (vinte e dois milhões, duzentos e cinquenta mil euros); − PRC/2017/13, em que foi fixada uma coima de EUR 3 463 000,00 (três milhões, quatrocentos e sessenta e três mil euros); − PRC/2017/5, em que foi fixada uma coima de EUR 2 981 000,00 (dois milhões, novecentos e oitenta mil euros); − PRC/2017/8, em que foi fixada uma coima de EUR 1 290 000,00 (um milhão, duzentos e nove mil euros); − PRC/2017/4, em que foi fixada uma coima de EUR 4 400 000,00 (quatro milhões e quatrocentos mil euros); − PRC/2017/11, em que foi fixada uma coima de EUR 16 190 000,00 (dezasseis milhões, cento e noventa mil euros) ; DD. Aos quais se acrescenta a coima aplicada no presente processo e no Processo PRC/2017/6, que foi fixada no montante de EUR 660,000 (seiscentos e sessenta mil euros) . EE. O que perfaz, nesta data, um total de coimas aplicadas no valor EUR 56.719.910 (cinquenta e seis milhões, setecentos e dezanove mil, novecentos e dez euros). FF. Usando a mesma medida da presente decisão (que parte de uma premissa errada, como se viu), a Auchan poderá ter de prestar cauções em montante superior a 28 milhões de euros, o que simplesmente não será comportável para a empresa – e põe em causa o seu direito à tutela jurisdicional efetiva, como de resto reconhecido pelo Tribunal. GG. O TCRS determinou a prestação de uma caução correspondente a 50% da coima cominada em todos os processos de que a Recorrente tem conhecimento até ao momento, a saber, 184/19.4YUSTR-D, 49/22.2YUSTR, 91/22.3YUSTR, 44/22.1YUSTR e 161/22.8YUSTR. HH. A Recorrente já emitiu garantias bancárias correspondentes a um montante total até EUR 17.151.000. II.Acrescentando uma caução correspondente a 50% do valor da coima no âmbito presente processo (i.e. EUR 1.330.000), o valor total a prestar pela Auchan a título de cauções ascenderia a EUR 18.481.000. JJ. Isto quando, segundo a própria decisão recorrida, uma caução de EUR 2.660.000 seria capaz de pôr efetivamente em causa a atividade económica da empresa o seu direito à tutela jurisdicional efetiva. KK. Como poderá o TCRS considerar que a emissão de uma garantia bancária de EUR 2.660.000 representa um “elevado sacrifício financeiro para a Recorrente, pois poderia colocar em causa a sua operacionalidade e, por essa via, fixar uma caução de tal montante acaba por se traduzir numa violação do seu direito a uma tutela jurisdicional efectiva”, porém que acrescentar agora uma garantia bancária de EUR 1.330.000 às cauções já prestadas, perfazendo um total de EUR 18.481.000.? LL. Não se poderá dizer simplesmente que ao Tribunal apenas cabia decidir sobre aquele processo. MM. Não só não parece que o TCRS se pudesse refugiar num argumento formal dessa natureza, atento o pleno conhecimento face aos demais processos, como a premissa de que se partiu para desenvolver um juízo de proporcionalidade não foi a correta, por não considerar todos os critérios necessários. NN. Parece assim evidente que, ao concluir que a contratação de uma garantia no valor de EUR 2.660.000 poderia pôr efetivamente em causa a atividade económica da empresa e o direito à tutela jurisdicional efetiva, e mesmo assim insistir numa caução de montante correspondente a 50% da coima, o douto Tribunal parece optar por não considerar as decisões referentes ao montante da caução a prestar (que deu como provadas) e as garantias bancárias efetivamente emitidas por conta dos restantes processos. OO. Entende-se que estes factos deveriam ter sido obrigatoriamente considerados na análise. Caso contrário não se estará a determinar o impacto real na situação económica da visada nem qual o verdadeiro prejuízo que poderá advir de determinado montante da caução. PP. Verifica-se assim, primeiramente, que a decisão recorrida não considerou, como devia, se o recurso teria um intuito meramente dilatório. QQ. Por outro lado, não podia deixar de ter incorporado na sua valoração - desde logo na análise do impacto da caução na situação económico-financeira da Visada - os montantes de garantias bancárias já emitidas por conta dos demais processos, atingindo, na presente data, o montante de EUR 17.151.000 e os montantes das cauções referentes aos restantes processos que correm termos junto do TCRS com montantes de cauções que podem ultrapassar 28 milhões de euros se o Tribunal continuar a usar a mesma métrica. RR. Parece evidente que a continuação da determinação de cauções correspondentes a 50% do valor da coima aplicada terá o potencial efeito cumulativo de comprometer a capacidade operacional da Auchan, como assente na Decisão recorrida e, consequentemente, violaria o seu direito a uma tutela jurisdicional efetiva. SS. Estes factos não poderiam ter deixado de ser ponderados pelo Juiz a quo, pelo que a Decisão, também neste ponto, parece resultar de um erro sobre os pressupostos de facto. TT. Nesse sentido, de modo a garantir a correta aplicação e interpretação da norma contida no n.º 5 do artigo 84.º da Lei da Concorrência requer-se a revogação da Decisão do TCRS de modo a permitir, a final, que a Auchan preste uma caução no valor correspondente a 5% da coima. Determinação da caução - falta de fundamentação do quantum UU. Uma leitura atenta do Despacho recorrido parece revelar uma intenção honesta da Juiz a quo em apresentar um juízo de proporcionalidade e adequação da caução face às finalidades em causa. VV. Não obstante, verifica-se, de facto, que a Juiz partiu de uma premissa errada para avaliar a possibilidade de decretar o efeito suspensivo (como acima se detalhou na secção II); e não optou por não considerar também todos os factos que deu como provados e os que eram do seu conhecimento no momento de fazer uma ponderação sobre a adequação e proporcionalidade da caução determinada (como acima se detalhou na seção III). WW. Finalmente, parece também evidente que a Decisão não é suficientemente clara e não apresenta fundamentação bastante que permita a qualquer empresa destinatária apreender a razão para o Tribunal alcançar um valor de 50% para o valor da caução (nos casos em que foi proposta uma garantia bancária). XX. O simples facto de todas as visadas serem destinatárias de decisões idênticas (tendo sido fixado para todas uma caução em valor de 50%), mais tendo o Tribunal (e este Juízo) aplicado a mesma medida em todos os processos que correm termos no TCRS de que a Visada tem conhecimento até ao momento (acima citados), sugere imediatamente um vício de raciocínio, porquanto são empresas que apresentam situações económicas e financeiras bastante distintas (quanto a níveis de endividamento, risco financeiro, exposição financeira, cash flow, investimento, resultados, etc.), e os montantes das coimas aplicadas em cada processo são também bastante distintos, como de resto dado como provado pelo Tribunal a quo. YY. Não é apresentada qualquer explicação adicional que permita à Auchan compreender, em concreto, como se alcançou aquele valor de 50%. ZZ. Aliás refere o douto Tribunal que: a) “[N]ão existe risco de dissipação do património da Auchan nem do grupo a que pertence” b) A caução prestada pela Auchan no âmbito do processo 184/19.4YUSTR-D “resultou na diminuição inevitável da sua capacidade de se financiar junto de terceiros, já fragilizada.” c) “a capacidade do grupo internacional Auchan e do grupo nacional Auchan virem em auxílio da visada Auchan, é potencialmente limitada” d) Relativamente aos rácios de autonomia financeira, “constata-se que os mesmos são baixos, oscilando entre os 4,1% em 2016 e os 4,2% em 2020”, quando, segundo as melhores práticas deveria situar-se entre 15% e 20%. Este facto “poderá originar dificuldades por parte do Grupo na obtenção de financiamento e/ou produtos colaterais, junto de entidades bancárias.” e) A emissão de da garantia bancária de montante correspondente a EUR 2.660.000, “reduz a capacidade existente e já residual, do Grupo Auchan, para a contratação de: garantias bancárias exigíveis como normal garante de execução de contratos de fornecimentos de bens e serviços, estabelecidos com entidades públicas e/ou privadas; financiamentos bancários necessários à satisfação das necessidades de CAPEX, prevista em plano de investimento, considerados pela Gestão da AP como essenciais para a manutenção, nos valores históricos dos últimos 3 anos, da operação em Portugal.” AAA. Contudo, limita-se a concluir que será “adequado, justo e proporcional, fixar o montante da caução no valor de 50% correspondente ao valor da coima cominada à Recorrente Auchan”. BBB. A Decisão falha assim em justificar porque deverá, tendo em conta a situação concreta da Auchan, a caução corresponder a 50% da coima aplicada pela AdC. CCC. Por outro lado, a decisão não esclarece cabalmente o que se entende por prejuízo considerável. DDD. De acordo com a Jurisprudência do Tribunal Constitucional um prejuízo considerável não se confunde com a “insuficiência de recursos” ou incapacidade absoluta para pagamento da coima (ou caução). EEE. Pelo que não bastaria afirmar que uma caução correspondente a 50% da coima pode ser paga pela Recorrente. FFF. Na verdade, a decisão não contém, uma valoração concreta ou expressão do itinerário cognoscitivo do Tribunal para alcançar a conclusão de que, mais uma vez e também neste caso, 50% (de um montante de coima claramente distinto face aos demais processos) se revela adequado. Essa ponderação simplesmente não foi feita e nisso consiste desde logo o vício da decisão recorrida. GGG. Na verdade, teria de se avaliar, entre outros, os custos imediatos da prestação de uma caução de determinada modalidade e montante, “consoante as circunstâncias do caso concreto” e se tal constitui um prejuízo considerável, em todas as suas dimensões, e que afeta a tutela jurisdicional efetiva da Recorrente. Teria ainda de se avaliar o efeito cumulativo das várias cauções já prestadas. HHH. Como se observou, a análise das circunstâncias do caso concreto obrigaria a que se tivesse em conta os montantes de cauções determinadas pelo TCRS noutros processos com implicações óbvias e diretas na esfera económica da Recorrente. III. Acrescenta-se, quanto ao critério do impacto na situação financeira da Visada, que o Tribunal Constitucional, no Acórdão citado, defende ”a observância, na determinação da medida da coima, da situação económica do visado, de forma a impedir prejuízos cuja reparação não se satisfaça com a eventual restituição da quantia paga”. JJJ. Ora, verifica-se que os custos da prestação de caução sob a forma de uma garantia bancária – que ascenderão às centenas de milhares de euros por ano (sujeitos a um potencial de agravamento devido à atual subida das taxas de juro) – nunca serão restituídos em caso da absolvição da instância. Ou seja, são prejuízos que nunca serão compensados e serão maiores quanto mais se prolongar o Processo. KKK. Tendo em conta o defendido pelo Tribunal Constitucional e aplicando-o ao presente caso, verifica-se que não está em causa na determinação do prejuízo considerável apenas uma análise do montante a pagar e da capacidade de o pagar. LLL. O TCRS deveria ter ponderado além do montante dos encargos com as Garantias Bancárias, o especial facto de esses montantes nunca serem restituídos, em qualquer circunstância, contrariamente a outras modalidades de caução em que há uma restituição do total do montante pago. MMM. Acresce que apesar de o Tribunal considerar que o pagamento imediato da coima cominada poria em causa a capacidade operativa da empresa e o direito à tutela jurisdicional, ignora que a soma da caução agora exigida às demais cauções já pagas supera largamente o montante daquela coima. NNN. Deverá então concluir-se que, por um lado, o exercício de valoração da caução proposta já se encontrava inquinado (nos termos acima referidos), sendo agora agravado pela falta de fundamentação. OOO. De facto, não é possível a qualquer intérprete dilucidar a razão para o valor concreto ser 50%, e não 40%, ou 30% ou os 5% ora propostos pela Auchan. PPP. Não pode ser assim, sendo evidente o vício de falta de fundamentação. QQQ. Nestes termos, verifica-se que a determinação do montante concreto da caução a prestar pela Auchan não se encontra fundamentada, o que gera necessariamente a invalidade da Decisão por vício de falta de fundamentação (em violação do n.º 5 do artigo 97.º e do n.º 2 do artigo 374.º ambos do CPP, e do artigo 154.º do CPC, considerando a natureza do incidente). Nestes termos, e nos melhores de direito que V.Exas. doutamente suprirão, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência: 1. Deverá a Decisão recorrida ser revogada por erro sobre os pressupostos de direito, em violação do n.º 5 do artigo 84.º da Lei da Concorrência (e do artigo 154.º do CPC e do n.º 2 do artigo 374.º do CPP), ao evitar ponderar todos os critérios necessários para a determinação da caução, desde logo a garantia de que o Recurso não terá um intuito meramente dilatório; 2. Deverá a Decisão recorrida ser revogada por erro sobre os pressupostos de facto, em violação do n.º 5 do artigo 84.º da Lei da Concorrência (e do artigo 154.º do CPC e do n.º 5 do artigo 97.º e do n.º 2 do artigo 374.º ambos do CPP), ao não considerar no exercício de ponderação efetuado um conjunto de factos relevantes do pleno conhecimento funcional do TCRS ou de natureza pública e notória. 3. Deverá a Decisão recorrida ser revogada por manifesta falta de fundamentação, atenta a manifesta omissão de qualquer explicação, ainda que concisa, que permita apreender as razões que levaram o TCRS a fixar o valor concreto da caução em 50% do valor da coima (e que corresponderá a EUR 1.660.000).
O Ministério Público respondeu ao recurso concluindo: A decisão recorrida permite discernir por que razão o TCRS fixou à visada a caução de 50% do valor da coima aplicada pela AdC. Em face do exposto o recurso deverá improceder, assim se fazendo Justiça.
Foi colhido o visto do Ministério Público junto deste Tribunal.
Lançados os vistos legais dos Membros do Colectivo, cumpre apreciar e decidir.
Dado que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes (cf. o n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal aplicável ex vi do disposto no n.º 1 do art. 41.º do RGCO) – sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – são as seguintes as questões a avaliar: 1. Deverá a Decisão recorrida ser revogada por erro sobre os pressupostos de Direito, em violação do n.º 5 do artigo 84.º da Lei da Concorrência (e do artigo 154.º do CPC e do n.º 2 do artigo 374.º do CPP), ao evitar ponderar todos os critérios necessários para a determinação da caução, desde logo a garantia de que o Recurso não terá um intuito meramente dilatório? 2. Deverá a Decisão recorrida ser revogada por erro sobre os pressupostos de facto, em violação do n.º 5 do artigo 84.º da Lei da Concorrência (e do artigo 154.º do CPC e do n.º 5 do artigo 97.º e do n.º 2 do artigo 374.º ambos do CPP), ao não considerar no exercício de ponderação efetuado um conjunto de factos relevantes do pleno conhecimento funcional do TCRS ou de natureza pública e notória? 3. Deverá a Decisão recorrida ser revogada por manifesta falta de fundamentação, atenta a manifesta omissão de qualquer explicação, ainda que concisa, que permita apreender as razões que levaram o TCRS a fixar o valor concreto da caução em 50% do valor da coima (e que corresponderá a EUR 1.660.000)?
II. FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentação de facto
Foi considerado provado com relevo para a decisão do incidente apreciado: 1. No âmbito do presente processo, a AdC proferiu decisão condenatória, em sede da qual, decidiu nos seguintes termos, designadamente: “Declarar que a Auchan Retail Portugal, SA, ao participar numa prática concertada de fixação de preços de venda ao público no mercado nacional de distribuição retalhista de base alimentar por um período de sete anos consecutivos, entre 13 de janeiro de 2011 e 13 de Fevereiro de 2017, praticou uma contra-ordenação às regras da concorrência, nos termos e para os efeitos da alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 19/2012 e da alínea a) do n.º 1 do artigo 101.º do TFUE, punível com coima, nos termos e para os efeitos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 68.º da Lei n.º 19/2012, fixando-se a coima que lhe é aplicável em € 2.660.000,00 (…), nos termos do disposto no artigo 69.º da Lei n.º 19/2012.” 2. Encontram-se pendentes os recursos da Recorrente relativamente aos processos de contra-ordenação PRC/2017/7, PCR/2017/1, relativos a decisões da AdC que impuseram coimas de € 10.790.000 e € 14.200.000, respectivamente, tendo sido aplicada à Recorrente uma coima única no valor de € 22.250.000, bem como recursos das decisões da AdC nos processos PCR/2017/13, PCR/2017/5, PCR/2017/8, PCR/2017/4 e PCR/2017/11, que resultaram em coimas no valor de € 3.463.000,00, € 2.981.000,00 e € 1.290.000, € 4.400.000,00 e € 16.190.000,00, sendo que em sede dos dois primeiros processos foi determinada pelo tribunal a prestação de uma caução, mediante garantia bancária no valor de 50% do valor dessa coima única, para efeitos de atribuição de efeito suspensivo ao recurso de impugnação; 3. Pese embora o Grupo Auchan, com referência a 31dez20, não possua dívida financeira, para com entidades bancárias, constata-se a já existência de uma exposição financeira, potencial, no montante global de M € 52,5, inerente a garantias bancárias. 4. O incremento das responsabilidades financeiras potenciais, assumidas no âmbito da contratação da garantia bancária em análise, reduz a capacidade existente e já residual, do Grupo Auchan, para a contratação de: garantias bancárias exigíveis como normal garante de execução de contratos de fornecimentos de bens e serviços, estabelecidos com entidades públicas e/ou privadas; de empréstimos bancários, necessários à satisfação das necessidades de CAPEX, prevista em plano de investimento, considerados como essenciais para a manutenção da operação em Portugal, nos valores históricos dos últimos 3 anos; 5. O grupo Auchan a nível internacional tem uma capacidade de endividamento limitada, tendo um rating emitido pela Standard & Poor’s de BBB-, o que dificulta o aumento de endividamento ao nível internacional para o envio de fundos para Portugal; 6. A Auchan tem vindo a perder quota de mercado, mantendo-se actualmente como o quinto grande distribuidor (em seis) em Portugal; 7. Em 28 de Fevereiro de 2021, a quota de mercado diminuiu para 5,6%, face a uma cota de mercado de 6% em igual período de 2020; 8. Para reforçar a sua continuidade no mercado, a Auchan terá de reforçar os seguintes investimentos: abertura de novas lojas; modernização das lojas actuais, reforçar a atractividade (redução de preços, aumento de promoções), investir em equipamentos, instalações e automação das infra-estruturas do backoffice do comércio electrónico, cujas vendas têm tido um crescimento significativo; 9. Os consumidores enfrentam dificuldades financeiras, derivadas da conjectura actual, com impactos negativos nas vendas; 10. A Auchan viu o seu negócio de venda de combustíveis ser afectado negativamente durante do período de pandemia; 11. O Grupo Auchan em Portugal apresenta a seguinte composição: - Auchan Portugal, SA (AP): holding do Grupo Auchan, em Portugal, com a competência e responsabilidade de gestão das suas subsidiárias as quais têm por missão a de exercer o comércio, por grosso e a retalho e a indústria de géneros alimentícios e outros artigos compreendidos no ramo de hipermercados e supermercados, bem como representações, agências e comissões, a compra, venda, compra para revenda, construção, locação, exploração e administração de imóveis destinados à instalação de hipermercados, supermercados, centros comerciais e ainda de imóveis destinados a escritórios e à habitação; - Auchan Retail Portugal, SA: constituída em 1991, é a empresa do Grupo Auchan responsável pela exploração, em Portugal, de: (i) 31 hipermercados; (ii) 4 supermercados; (iii) 30 lojas de proximidade MyAuchan; e (iv) 29 gasolineiras; e - Auchan Gestão de Marcas, SA: constituída em 2014, é a empresa responsável pela gestão das marcas “Auchan”; 12. A gestão do Grupo Auchan, em Portugal, é efectuada numa óptica de grupo económico por parte da AP, como são indicadores: (i) a existência de órgãos sociais comuns; (ii) o apuramento e pagamento de impostos, em Portugal, através do RETGS - Regime especial de tributação dos grupos de sociedades, ou seja, a matéria colectável é apurada tendo por base o “lucro consolidado” obtido pelas 3 empresas acima referidas. 13. Aquando da obtenção de crédito e/ou de garantias bancárias, junto de entidades financeiras, as análises de risco efectuadas têm por base a informação financeira consolidada (Grupo Auchan), considerando-se assim que, as demonstrações financeiras consolidadas apresentadas pela Auchan Portugal, SA, traduzem a efectiva operação global do Grupo em Portugal; 14. Em 2020, a Auchan Portugal SA alcançou um volume de negócios consolidado de M€ 1.449 (M€ 1.473 em 2019), montante que se traduz num decréscimo de M€ 23,7 (1,6%), face ao registado em 2019; 15. Os principais gastos operacionais da AP respeitam ao custo das mercadorias vendidas e aos gastos com o pessoal, com um peso de 75% e 12% do volume de negócios em 2020, respectivamente; 16. Em 2020, os fornecimentos e serviços externos tiveram um peso, nos gastos operacionais da actividade do Grupo, de aproximadamente 9% face ao volume de negócios registado em 2020; 17. Em 2020, o EBITDA reportado pela Auchan Portugal apresentou um decréscimo de 15% (cerca de M€ 13,7), face aos valores registados em 2019; 18. Contudo, o EBITDA recorrente (negócio), no período em análise, apresentou valores estáveis, ascendendo este rácio a M€ 74,5 no exercício de 2020; 19. O Resultado Líquido do Período, atribuível aos accionistas, ascendeu nos dois últimos exercícios a M€ 35,7 (2020) e a M€ 32,8 (2019); 20. No que se refere aos fluxos de caixa, gerados pela actividade operacional, constata-se uma estabilidade nos fluxos de caixa operacionais (aproximadamente M€ 52 em 2020), os quais têm vindo a financiar as necessidades de tesouraria, similares, inerentes às actividades de investimento (M€ 53 em 2020); 21. O Grupo Auchan Portugal é caracterizado pela relevância das suas vendas, no canal hipermercados, através dos quais se verifica uma grande sensibilidade aos preços de venda por parte dos seus clientes; 22. O contexto pandémico acelerou as alterações no consumo, por parte dos clientes de retalho, incrementando a preferência e procura por lojas de proximidade e por plataformas de comércio electrónico; 23. Por forma a recuperar a quota de mercado perdida, bem como para se ajustar à alteração dos hábitos de consumo dos portugueses, o plano de investimentos da Auchan Portugal, para o período 2021-2025, estima necessidades de investimento (CAPEX) de aproximadamente M€ 60/ano; 24. Este montante é superior à capacidade de gerar fluxos de caixa operacionais, por parte do Grupo Auchan Portugal (cerca de M€52), o que gerará necessidade de recorrer a financiamentos junto de terceiros; 25. O Grupo Auchan evidencia um Fundo Maneio negativo, sinónimo de que o seu passivo corrente é muito superior ao seu activo circulante, ou seja, os activos fixos estão a ser financiados por passivos exigíveis a curto prazo; 26. Este potencial desequilíbrio é controlado pela empresa no sentido de que o prazo de realização do seu activo circulante (prazo médio de recebimento), essencialmente das dívidas dos seus clientes e da venda dos seus inventários, é muito inferior ao prazo de exigibilidade dos passivos correntes (prazo médio de pagamento); 27. As Necessidades de Fundo de Maneio apresentam uma tendência estável, ao longo do período em análise, sendo, contudo, de destacar uma ligeira redução dos prazos médios de pagamento (72 dias em 2018 para 69 dias em 2020); 28. Pese embora o Grupo Auchan seja caracterizado por uma reduzida dívida financeira, não existindo mesmo dívida bancária, através da análise aos rácios de autonomia financeira constata-se que os mesmos são baixos, oscilando entre os 4,1% em 2016 e os 4,2% em 2020; 29. Segundo as melhores práticas na análise de crédito efectuada pelas entidades bancárias, o rácio de Autonomia financeira, dependendo de cada situação particular, deverá situar-se no mínimo entre os 15% e 20%, situação que poderá originar dificuldades por parte do Grupo na obtenção de financiamento e/ou produtos colaterais, junto de entidades bancárias; 30. Ao longo dos últimos 5 anos, o rácio de endividamento apresenta valores médios de 95%, atingindo em 2020 a percentagem de 95,76%, os quais são superiores: (i) aos dados de endividamento dos principais concorrentes de mercado, calculados com base na informação financeira pública (Pingo Doce: 89% em 2020; e Modelo Continente: 87,6% em 2020); (ii) aos referenciais internacionais, de endividamento, aplicáveis ao sector retalho (73% de acordo com a informação aferida em https://www.readyratios.com/sec/industry/G/); 31. A nível internacional, o Grupo Auchan, através da sua Holding (ELO), tem sido classificado como uma entidade de risco financeiro significante, como é o exemplo da atribuição de rating Standard & Poor’s de BBB-, com referência a Maio de 2021; 32. A atribuição do referido rating internacional, tem sido limitativo na obtenção de financiamento externo, por parte da Holding Internacional, e consequentemente limitativo na sua capacidade de financiamento da sua operação em Portugal. 33. A contratação de uma garantia bancária por parte da Recorrente, para a finalidade de caução em tribunal e num montante de M€ 22,5, implica um gasto financeiro de, aproximadamente, m€ 250, no primeiro ano de contratação, acrescido de um gasto anual de m€ 115, para os períodos subsequentes; 34. Por referência ao ano de 2021, a Recorrente Auchan apresentou vendas e serviços prestados no valor de € 1.154.759.124,97, um resultado operacional de € 32.551.180,84 e um resultado líquido do período de € 16.157.041,24 35. Nesse mesmo ano, o total do activo foi de € 752.681.029,38, o total do passivo de € 494.145.443,86 e capitais próprios de € 258.535.585,52, sendo o activo não corrente de € 369.069.369,83, o activo corrente de € 383.611.659,55, o passivo corrente de € 463.178.695,33 e o passivo não corrente de € 30.966.748,53; 36. Fechou o ano com caixa e depósitos bancários no valor de € 6.434.328,22; 37. Empregou 8.498 trabalhadores.
Fundamentação de Direito 1. Deverá a Decisão recorrida ser revogada por erro sobre os pressupostos de Direito, em violação do n.º 5 do artigo 84.º da Lei da Concorrência (e do artigo 154.º do CPC e do n.º 2 do artigo 374.º do CPP), ao evitar ponderar todos os critérios necessários para a determinação da caução, desde logo a garantia de que o Recurso não terá um intuito meramente dilatório?
Foi feita, nestes autos, aplicação do regime do n.º 5 do art. 84.º do Novo Regime Jurídico da Concorrência aprovado pela Lei n.º 19/2012, de 08 de Maio, na sua versão originária.
Aí, estando em causa decisões que aplicassem sanções (entre elas coimas), o visado podia, ao interpor o recurso, solicitar a atribuição ao mesmo de efeito suspensivo, sob dois requisitos positivados (e não quaisquer outros).
Na economia do pretendido e afirmado nessa norma – claramente emergente de literalidade simples e semântica directa dos vocábulos escolhidos – eram requisitos do decretamento do apontado efeito e da susceptibilidade de imposição de caução:
a. O oferecimento para realizar tal prestação; e
b. A existência de um quadro fáctico gerador da convicção de a execução da decisão poder causar ao requerente prejuízo considerável.
Como não podia deixar de ser, a atribuição do efeito bloqueador da execução imediata dependia da efetiva prestação de caução nos termos definidos pelo Tribunal.
A busca de quaisquer elementos laterais coerentes com o que acabou por ficar plasmado no preceito é inútil e desviante dos objectivos analíticos num contexto tão claro, quando o que se pretenda é saber se devia ou não ser prestada caução, já que o desejado pelo legislador e constante de quaisquer trabalhos preparatórios ou exposição de motivos nunca poderia ser afastado ou contraditório com o regime efectivamente escolhido.
No contexto normativo actualmente vigente, ou seja, na redacção daquele número e artigo emergentes da Lei n.º 17/2022, de 17.08, os automatismos são mais claros e reveladores de um tónus e vontade que vinham já de 2012 mas prescindindo agora do risco de produção de prejuízo considerável.
No novo âmbito regulador, a caução é sempre correspondente a metade do valor da coima/sanção.
No que tange à revelação de prejuízo considerável, elemento decisivo para os interesses da Impugnante, com surpresa se vê nas alegações de recurso uma aparência de indignação com o decidido.
Por um lado essa estranheza surge por a Recorrente ter pretendido que fosse reconhecida a existência de dano dessa etiologia e depois parecer incomodada por o Tribunal «a quo» lhe ter dado razão.
Por outro, com estranhamento se enfrenta a afirmação recursiva no sentido de que o Órgão Jurisdicional não concretizou «o conceito de “prejuízo considerável”». É assim porquanto, lida a decisão criticada, até se fica com a impressão de que a Recorrente está a referir-se a um qualquer outro processo e não a este. No presente, o Tribunal de Primeira Instância não só argumentou com base numa noção desse prejuízo que sempre o guiou como ponto cardinal, como permanentemente revelou – ao construir a detalhada e extensa subsunção dos factos ao Direito, incidente sobre a determinação desse prejuízo (da melhor forma possível porque detalhada, acompanhada, circunstancial, não conclusiva, não pré-assumida) – o que é um prejuízo considerável e como o mesmo se preencheu nestes autos.
De forma não menos surpreendente, vemos neste recurso um ataque directo a uma decisão explicativa, muito bem fundamentada e circunstanciada que atingiu um valor de caução de 50% apelando à razão, à inteligência, ao convencimento, por parte de quem brandiu com um valor de 5% que, de todo, não surge, esse sim, explicado de forma lógica e convincente. Por que não 4%, ou 6%, ou, 20, 30 ou 40% ou qualquer valor apenas inferior à metade definida que não agradou à Recorrente? E por que se escreveu tanto para não dizer o essencial?
Não se divisam entre as razões invocadas motivos que inculquem a noção de dever ser fixada a caução nos 5% pretendidos.
Já quanto aos 50%, o Tribunal «a quo» explicou bem e com detalhe por que motivo deveriam ser definidos.
Não tem suporte normativo a proposta interpretativa no sentido de que a caução tem como finalidade relevante ao nível da fixação do valor concreto da caução (aparentemente exclusiva, face à construção das alegações de recurso) a de «garantir que não está em causa um intuito meramente dilatório».
Em aparência, esta tese, tal como concretizada, significaria que a caução deveria ser fixada no montante que o Requerente desejasse desde que não litigasse de má-fé, o que, além de corporizar surrealismo processual sem suporte no Direito adjectivo constituído, conduziria à necessidade de o Tribunal fazer uma colheita de elementos demonstrativos, bastas vezes compreendidos numa espécie prova diabólica de má-fé, não patentes (como avaliar, perante meras aparências liminares e num quadro de exercício de direitos axilares, se o recurso da decisão administrativa ou a longa alegação deste recurso, desfocada pelo não fornecimento de elementos relevantes e seguros para a definição da percentagem taxativamente indicada de 5%, correspondem a impugnações judiciais que apenas visam ganhar tempo e entorpecer o funcionamento dos mecanismos sancionatórios do «public enforcement» da concorrência?).
Claro está que, se fosse patente a má-fé, seriam grandes as possibilidades de a Recorrente estar agora a ser sancionada por essa conduta processual e não apenas a discutir a dimensão de uma caução, não se entendendo como pretende chegar aos 5% avançados com base na introdução de um requisito que o legislador não consignou na norma.
Obviamente que a imposição de caução tem também como desiderato subjacente à criação normativa obviar ao uso do «sagrado» direito ao recurso de forma desviada, id est, para entorpecer a tutela pública da sã concorrência e o bom funcionamento do mercado. Mas tal é critério motivador da produção da norma, não nos emprestando critérios e dados quantitativos relativos à fixação de caução viabilizadora de atribuição de efeito processual. A caução obvia ao incumprimento da sanção, não à má-fé processual.
Aliás, se dúvidas houvesse, elas logo seriam dissipadas pela atenção à evolução normativa que conduziu ao regime vigente acima referenciado, caracterizado por vero automatismo e por não termos já nem prejuízo considerável a ponderar nem qualquer distinção de estados subjectivos desviados por parte dos sujeitos processuais a atender enquanto elementos viabilizadores do despoletamento do mecanismo apreciado.
Não se divisa a existência do pretendido erro sobre o quadro jurídico que deveria sustentar a decisão no referido contexto e num âmbito em que o Tribunal, depois de concluir estarem preenchidos os dois requisitos legais então exigidos para a fixação de caução substitutiva, explicou com detalhe, de forma concatenada, assente em factos e conceitos subjacentes possuídos com clareza, por que razões a caução deveria ser a que veio a definir.
Por assim ser, como insofismavelmente é, revela-se manifestamente negativa a resposta que se impõe dar à questão sob avaliação, o que ora se declara e concretiza. 2. Deverá a Decisão recorrida ser revogada por erro sobre os pressupostos de facto, em violação do n.º 5 do artigo 84.º da Lei da Concorrência (e do artigo 154.º do CPC e do n.º 5 do artigo 97.º e do n.º 2 do artigo 374.º ambos do CPP), ao não considerar no exercício de ponderação efetuado um conjunto de factos relevantes do pleno conhecimento funcional do TCRS ou de natureza pública e notória?
Os factos relevantes para a decisão são os indicados na fundamentação de facto porquanto fornecem os elementos de enquadramento da situação económica da Recorrente, esforço financeiro reclamado em função do contexto processual aí acolhido e relevo da garantia para os presentes autos em função do conhecimento do ilícito e da sanção.
Se dúvidas houvesse, elas seriam afastadas analisando a decisão impugnada que lança mão de cada um desses factos para construir o caminho que lhe impôs a definição da caução na medida fixada.
Houve aí a clareza de fazer luz sobre o que é habitualmente ocultado neste tipo de incidente e aqui foi também lançado na confusão na alegação relativa a esta questão: a contratação da garantia bancária gera custos e estes foram definidos na decisão impugnada, mas tais custos não correspondem a 50% da sanção e não podem ser confundidos com esse valor. São dispêndios bancários substancialmente inferiores. A decisão não impôs à Recorrente que depositasse em cofre metade do valor da coima. Não é esse o montante caracterizador do esforço económico que lhe foi pedido. E o Órgão Jurisdicional de decisão criticada também a isso atendeu, como lhe competia, não podendo deixar-se no ar a confusão enganadora.
Por outro lado, importa referir que nada foi requerido em afronta à fixação fáctica – sempre valendo o disposto no n.º 1 do art. 75.º do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro que institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo (RGCO) que circunscreve o conhecimento do Tribunal de recurso à matéria de Direito – ou seja, no escasso nicho de petição admitido pelo n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal aplicável ex vi do disposto no n.º 1 do art. 41.º do referido RGCO.
Ora, sendo os factos a utilizar na subsunção os acolhidos e supra-indicados e tendo o Tribunal atendido a todos eles, não tem qualquer adequação a pretensão de ponderação de outros, não cristalizados, ainda que sob a denominação vaga e difusa de «relevantes do pleno conhecimento funcional do TCRS ou de natureza pública e notória», que se desconhecem.
É, pois, também negativa a resposta que, sem mais considerações, porque ociosas e violadoras do princípio da economia processual, aqui se deixa. 3. Deverá a Decisão recorrida ser revogada por manifesta falta de fundamentação, atenta a manifesta omissão de qualquer explicação, ainda que concisa, que permita apreender as razões que levaram o TCRS a fixar o valor concreto da caução em 50% do valor da coima (e que corresponderá a EUR 1.660.000)?
A alegação que sustentou a criação desta pergunta é difícil de entender porquanto parece falar de outro processo e outra realidade, como se nunca tivesse sido lida a decisão recorrida.
É assim porquanto, de forma muito louvável, mediante uso de linguagem muito precisa, enquadrada nos factos e na noção técnica das finalidades específicas, o Tribunal «a quo» percorreu um detalhado e muito focado percurso explicativo da sua decisão.
Aliás, a questão que espelha a alegação revela um vício imediato: não se arguiu, verdadeiramente, nulidade já que não foi pedida uma anulação de decisão com fundamento em falta de fundamentação mas uma revogação, decisão que pressupõe, antes, procedência quanto ao mérito, o que significa que, oculta sobre uma aparência de invocação de falta de fundamentação se está, afinal, a não se querer aceitar decisão inconveniente para os interesses individuais e de parte que se quis tutelar e não perante tentativa de protecção do sistema contra decisões magestáticas e não esteadas em motivos.
É materialmente tão contundente a existência da fundamentação lavrada na decisão impugnada e é tão marcante a aparência de ausência de leitura prévia do decidido que aqui se reproduz o afirmado pelo Órgão jurisdicional porquanto tal corresponde à melhor forma de patentear essa materialidade e revelar a diagonalidade ou omissão parcial de leitura: Do estabelecimento do modo e valor da caução a prestar pela Recorrente: Uma vez comprovado pela Recorrente o “prejuízo considerável” e tendo de igual forma declarado pretender prestar caução, estando, como vimos, verificamos os requisitos para que seja atribuído efeito suspensivo ao recurso de impugnação interposto, importa, nesta sede, estabelecer o modo e o valor da caução a prestar. A Recorrente propôs prestar uma caução no valor de 5% do valor da coima, mediante garantia bancária. Várias são as modalidades de caucionamento da coima que deverão e poderão ser equacionados, conforme resulta do artigo 623.º do Código Civil. Nem o Ministério Público, nem a AdC se opuseram à forma de prestação de caução pela Recorrente. Por sua vez, o montante da caução a prestar não necessita de ser igual ao valor total da coima, podendo ser um montante apenas parcial desse valor – neste sentido, vide José Luís da Cruz Vilaça e Maria João Melícias, in Lei da Concorrência – Comentário Conimbrense, Almedina, pág. 961. A válvula de escape do sistema que permite a atribuição de efeito suspensivo ao recurso de impugnação, no caso de se demonstrar o “considerável prejuízo” que a execução imediata da coima, com o seu pagamento, acarretaria para o visado, ainda assim contempla um mecanismo, que visa acautelar o efectivo pagamento da coima, em caso de improcedência do recurso dos impugnantes e acautelar o risco de dissipação do património destes até o trânsito em julgado de uma decisão condenatória, mediante a necessidade de prestação de caução. Todavia, como é apanágio do Estado de Direito, tanto a forma como o montante da caução a fixar deve estar sujeita ao princípio da proporcionalidade, ínsito no artigo 2.º da CRP. Sob a epígrafe de “Caução imposta ou autorizada por lei”, o artigo 623.º do Código Civil, estabelece o seguinte: “1. Se alguém for obrigado ou autorizado por lei a prestar caução, sem se designar a espécie que ela deve revestir, pode a garantia ser prestada por meio de depósito de dinheiro, títulos de crédito, pedras ou metais preciosos, ou por penhor, hipoteca ou fiança bancária. “2. Se a caução não puder ser prestada por nenhum dos meios referidos, é lícita a prestação de outra espécie de fiança, desde que o fiador renuncie ao benefício da excussão. “3. Cabe ao tribunal apreciar a idoneidade da caução, sempre que não haja acordo dos interessados.” A Recorrente Auchan veio indicar a garantia bancária, a qual não consta do elenco do n.º 1 do mencionado artigo 623.º do CC. Ainda assim, consideramos que deve ser operada uma interpretação actualista da norma em causa, permitindo-se a garantia bancária como meio de prestação de caução, já que certamente a mesma apenas não foi prevista, porquanto se trata de um negócio jurídico atípico, com uso relativamente recente e que à data da entrada em vigor do CC não era conhecido. Com efeito, sentido algum faria que se admitisse a fiança bancária e não a garantia bancária. O contrato de garantia bancária, não se encontrando previsto na nossa legislação, é aquele pelo qual o banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, no caso de inexecução (ou má execução) de determinada obrigação, sem poder invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com essa relação base. Na verdade, segundo Galvão Telles, in “O Direito”, Ano 120, pág. 284, “existe tendência para confundir a garantia autónoma com a fiança; mas essa tendência é errónea. “Sem dúvida, as duas correspondem a preocupações semelhantes, na medida em que ambas têm uma função específica de garantia; não podem, todavia, assimilar-se, porque as separam traços fundamentais. “A fiança é o contrato pelo qual uma pessoa se obriga para com o credor a cumprir a obrigação de outra pessoa, no caso de esta o não fazer. O fiador compromete-se a pagar a dívida de outrem – o devedor principal. O seu compromisso é acessório. “No caso de garantia autónoma, o garante não se obriga a satisfazer uma dívida alheia. Ele assegura ao beneficiário determinado resultado, o recebimento de certa quantia em dinheiro, e terá de proporcionar-lhe esse resultado, desde que o beneficiário diga que não o obteve da outra parte, sem que o garante possa entrar a apreciar o bem ou mal fundado desta alegação. “O objecto da fiança confunde-se com o objecto da dívida afiançada, no sentido de que o fiador tem de pagar o que o afiançado deixou de satisfazer. O objecto da garantia autónoma é distinto do objecto da obrigação decorrente do contrato-base. “Daqui resulta que o garante autónomo ou independente, ao contrário do fiador, não é admitido a opor ao beneficiário as excepções de que se pode prevalecer o garantido (...)”. Assim sendo e ao contrário do que sucede com a fiança, na garantia bancária autónoma o garante não pode opor ao garantido (beneficiário) os meios de defesa ou excepções decorrentes das suas relações com o devedor. Nisso consiste a autonomia da garantia. Tal implica que a garantia autónoma seja claramente mais favorável ao beneficiário do que a fiança, pois que constitui um importante acréscimo da segurança desse beneficiário. Ora, no vertente caso nem o Ministério Público, nem a Autoridade da Concorrência se opuseram a essa forma de prestação de caução. E ainda que se tivessem oposto, sempre se diria que a mesma, em termos de adequação do modo da sua prestação à realização dos fins da caução, é evidentemente idónea, quer em termos de qualidade, quer de eficácia, pelos motivos já aflorados, inerentes às características dessa garantia. Quanto ao montante (vertente da idoneidade da caução em termos de suficiência, caracterizada por assegurar a satisfação integral da obrigação de que é garantia), importa referir que consideramos que a adequação e proporcionalidade da caução há-de ser aferida predominantemente em função do valor da quantia a garantir (neste caso, o valor da coima) e não tanto em função da condição económica da Recorrente, especialmente se o modo de prestação da caução for diverso do depósito de dinheiro. Na verdade, no caso de depósitos em dinheiro, se se concluir que a execução, por via do pagamento da coima, traria “consideráveis prejuízos” às Recorrentes, parece não fazer muito sentido determinar a prestação de uma caução com valor igual ao da coima. Já no caso da prestação de caução mediante outras modalidades, esse raciocínio já será falacioso, pois tais modalidades não exigem a disponibilidade imediata de liquidez para o efeito. Para além disso, como atenta o douto acórdão da Relação de Lisboa de 5 de Dezembro de 2022, no âmbito do processo n.º 184/19.4YUSTR-I.L1, consultável neste tribunal no respectivo processo, “na ausência de critérios legislativamente consagrados para fixar o montante da caução aqui em crise, afigura-se que deve ser levada em conta a jurisprudência do Tribunal de Justiça e do Tribunal Geral da União Europeia sobre a matéria, por razões de unidade do sistema jurídico aqui aplicável, composto por regras nacionais e supra nacionais.” Um dos critérios que devem ser considerados para verificar se a visada está em condições de prestar a caução é levar em conta o grupo de empresas de que faz parte uma vez que os interesses financeiros da visada não são desligados da situação económica da empresa que a controla – cf. C-335/99, parágrafos 61 e 62, C-364/99 paragrafos 49 a 53 e C- 373/10 parágrafo 18. Ora, consideramos que o valor proposto pela Recorrente se apresenta, data vénia, injustificado e que apenas devem ocorrer em situações económicas extremas, já que colocam em causa a função de garantia subjacente à caução. É um valor manifestamente insuficiente para assegurar a satisfação integral da obrigação que pretende ser garantida, sendo um valor inidóneo para o propósito legal subjacente. Vejamos, qual deverá ser o montante a prestar a título de caução pela Recorrente. A modalidade deferida à Recorrente é a de garantia bancária. A prestação desse tipo de caução implica sempre o incremento de responsabilidades financeiras, reduzindo a sua capacidade de financiamento, implicando custos anuais, por via dos juros a pagar à entidade financiadora e a cativação de uma percentagem de dinheiro por referência ao valor garantido. Assim, a modalidade escolhida pela Recorrente de garantia bancária acarreta despesas anuais para a Recorrente, que se cifram em cerca de 10% de m€ 250, no primeiro ano de contratação, acrescido de um gasto anual de cerca de 10% m€ 115, para os períodos subsequentes (vide o facto provado n.º 33 que contem valores respeitantes a uma garantia bancária de M€ 22,5, sendo a coima nestes autos de cerca de 10% desse valor). Contudo, não se pode deixar de considerar que foi a modalidade que a própria escolheu, sabendo, de antemão, dos valores que teria de despender para a prestação dessa garantia. Importa, assim, analisar se dos factos dados como assentes resulta que a prestação de uma garantia bancária por parte da Recorrente pelo valor correspondente ao valor da coima implica um tal sacrifício que anula o direito a uma tutela jurisdicional efectiva. Apesar de ter um fundo de maneio negativo, como já tínhamos observado, o que implica que a continuidade das suas operações, está muito dependente do apoio de entidades relacionadas e de instituições financeiras, o certo é que apresentou um resultado líquido em 2021 em valor muito superior ao valor correspondente ao da coima. Porém, resulta provado que pese embora o Grupo Auchan seja caracterizado por uma reduzida dívida financeira, não existindo mesmo dívida bancária, através da análise aos rácios de autonomia financeira constata-se que os mesmos são baixos, oscilando entre os 4,1% em 2016 e os 4,2% em 2020. Segundo as melhores práticas na análise de crédito efectuada pelas entidades bancárias, o rácio de Autonomia financeira, dependendo de cada situação particular, deverá situar-se no mínimo entre os 15% e 20%, situação que poderá originar dificuldades por parte do Grupo na obtenção de financiamento e/ou produtos colaterais, junto de entidades bancárias. Ao longo dos últimos 5 anos, o rácio de endividamento apresenta valores médios de 95%, atingindo em 2020 a percentagem de 95,76%, os quais são superiores: (i) aos dados de endividamento dos principais concorrentes de mercado, calculados com base na informação financeira pública (Pingo Doce: 89% em 2020; e Modelo Continente: 87,6% em 2020); (ii) aos referenciais internacionais, de endividamento, aplicáveis ao sector retalho (73% de acordo com a informação aferida em https://www.readyratios.com/sec/industry/G/). A nível internacional, o Grupo Auchan, através da sua Holding (ELO), tem sido classificado como uma entidade de risco financeiro significante, como é o exemplo da atribuição de rating Standard & Poor’s de BBB-, com referência a Maio de 2021. A atribuição do referido rating internacional, tem sido limitativo na obtenção de financiamento externo, por parte da Holding Internacional, e consequentemente limitativo na sua capacidade de financiamento da sua operação em Portugal. Pese embora o Grupo Auchan, com referência a 31dez20, não possua dívida financeira, para com entidades bancárias, constata-se a já existência de uma exposição financeira, potencial, no montante global de M€ 52,5, inerente a garantias bancárias. O incremento das responsabilidades financeiras potenciais, assumidas no âmbito da contratação da garantia bancária em análise, reduz a capacidade existente e já residual, do Grupo Auchan, para a contratação de: garantias bancárias exigíveis como normal garante de execução de contratos de fornecimentos de bens e serviços, estabelecidos com entidades públicas e/ou privadas; financiamentos bancários necessários à satisfação das necessidades de CAPEX, prevista em plano de investimento, considerados pela Gestão da AP como essenciais para a manutenção, nos valores históricos dos últimos 3 anos, da operação em Portugal. Verificamos assim que a prestação de uma garantia bancária pelo valor global da coima acaba por se traduzir num elevado sacrifício financeiro para a Recorrente, pois poderia colocar em causa a sua operacionalidade e, por essa via, fixar uma caução de tal montante acaba por se traduzir numa violação do seu direito a uma tutela jurisdicional efectiva. Contudo, a par das condições económicas da Recorrente, não podemos deixar de ter em conta a função de garantia do pagamento de uma coima que subjaz à prestação de caução. Assim, se o sacrifício patrimonial que é imposto a um Recorrente não pode ser tal que o impeça de aceder ao tribunal para fazer valer a sua pretensão, também a garantia do pagamento da coima, em caso de condenação, não pode ser aniquilada. Importa, por isso, indagar e explorar um critério que ofereça uma garantia razoável de justiça, o qual poderá ser encontrado com apelo ao princípio da proporcionalidade, atenta a sua dimensão de “critério universal de constitucionalidade” – nas palavras de Laura Nunes Vicente, in “O princípio da proporcionalidade; Uma Nova Abordagem em Tempos de Pluralismo”, www.ij.fd.uc.pt/publicacoes/premios. Na verdade, o direito à tutela jurisdicional efectiva não é um direito absoluto susceptível de ser exercido à margem das normas processuais legalmente estabelecidas, sendo certo que o próprio RJC parte do pressuposto de que o efeito do recurso de impugnação, após a condenação por uma entidade administrativa sujeita a princípios de legalidade, é meramente devolutivo, ou seja, o princípio é o do pagamento imediato da coima. Não sendo paga (por via de comprovado considerável prejuízo), importa que se alcance uma solução que permita garantir que, em caso de confirmação da decisão administrativa pelo tribunal, a coima será efectivamente paga, partindo novamente a lei do pressuposto de que a caução é de substituição da coima, ou seja, é tendencialmente pelo valor dessa coima. No fundo poder-se-á afirmar que apenas serão inconstitucionais aqueles ónus processuais que se traduzam em denegação da justiça, mediante a criação de obstáculos de tal monta que redundem, na prática, na supressão, exclusão ou restrição do aludido direito à tutela jurisdicional efectiva. Sob uma perspectiva do princípio da proporcionalidade, ínsito no n.º 2 do artigo 18.º da CRP, é necessário, para efeitos de fixação do valor da caução a prestar, considerar o seguinte (considerações que também foram feitas, na sua esmagadora maioria, em sede do douto acórdão da Relação de Lisboa de 5 de Dezembro de 2022, no âmbito do processo n.º 184/19.4YUSTR-I.L1, acima já identificado, em sede de situação similar, em que também era Recorrente a Auchan): - que resulta dos factos provados que não existe risco de dissipação do património da Auchan nem do grupo a que pertence; - em caso de improcedência do recurso, o grupo de empresas é responsável pelo pagamento da coima (cf. acórdão do TJUE C-882/19); - os encargos com a prestação de caução no valor aproximado da coima única correspondem a cerca de 10% de m€ 250, no primeiro ano de contratação, acrescidos de um gasto anual de cerca de 10% de m€ 115, para os períodos subsequentes, sendo tais valores menores no caso do valor da caução ser inferior ao valor da coima; - a Recorrente já prestou caução mediante garantia bancária no âmbito de outro processo pelo valor de 50% de € 22.250.000,00, com os custos inerentes – cerca de metade de m€ 250, no primeiro ano de contratação, acrescidos de um gasto anual de cerca de metade de m€ 115, para os períodos subsequentes, com diminuição inevitável da sua capacidade de se financiar junto de terceiros, já fragilizada; - o valor da coima única é de € 2.660.000,00, o que equivale a cerca de 10% da coima cominada no âmbito dos dois primeiros processos referidos no facto provado n.º 2, ou seja, é substancialmente menor, pelo que se se fixar também um valor de caução em cerca de 50% do valor da coima, tal acabará por não ter um impacto substancial na Recorrente, até porque se analisarmos, o Estudo que a Recorrente apresentou tinha em mente a prestação de uma caução no valor da coima do outro processo (€ 22.250.000,00) e não concretamente o deste; - a capacidade do grupo internacional Auchan e do grupo nacional Auchan virem em auxílio da visada Auchan, é potencialmente limitada não porque tenham divida bancária mas devido ao rating internacional atribuído pela agência de notação financeira e a exposição financeira, potencial, no montante de M€ 52,5, inerente a garantias bancárias, embora não se tenha provado a concreta execução das dividas garantidas; - por referência ao ano de 2021, a Recorrente Auchan apresentou vendas e serviços prestados no valor de € 1.154.759.124,97, um resultado operacional de € 32.551.180,84 e um resultado líquido do período de € 16.157.041,24, fechando o ano com caixa e depósitos bancários no valor de € 6.434.328,22; - Em 2020, o EBITDA reportado pela Auchan Portugal apresentou um decréscimo de 15% (cerca de M€ 13,7), face aos valores registados em 2019; - Contudo, o EBITDA recorrente (negócio), no período em análise, apresentou valores estáveis, ascendendo este rácio a M€ 74,5 no exercício de 2020; - o justo equilíbrio entre, em primeiro lugar, a eficácia imediata da decisão condenatória da AdC, que é um dos objectivos do efeito devolutivo do recurso, em segundo lugar, o risco inerente a todo o contencioso, em terceiro lugar, os custos financeiros que representa a prestação da caução para visada e, por fim, o objectivo da caução que é garantir o pagamento da coima em caso de condenação (cf. T-834/17, parágrafo 348); - a Recorrente não logrou provar que, adicionalmente, noutros processos contra-ordenacionais pendentes (para além dos que nos já referimos), tenha prestado outras cauções, nem qual o seu valor, pelo que, tal circunstância não releva no juízo de ponderação sobre a sua situação financeira efectuado nesta sede, sendo certo que, “impendia sobre ela fazer prova da sua situação financeira, incluindo de que prestou cauções nos processos a que se refere, não bastando alegar a mera possibilidade de virem a ser prestadas essas cauções” – acórdão da Relação de Lisboa já identificado, o qual se estriba no acórdão do TJUE, C-551/12, parágrafos 29 a 32).
Como falar, perante este conteúdo, em falta de fundamentação?
Flui do exposto só poder ser negativa a resposta a esta derradeira questão.
III. DECISÃO
Pelo exposto, julgamos improcedente o recurso e, em consequência, negando-lhe provimento, confirmamos a sentença impugnada.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UCs.
*
Lisboa, 16.10.2024
Carlos M. G. de Melo Marinho
José Paulo Abrantes Registo
Armando M. da Luz Cordeiro