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ACÇÃO POPULAR
ASSOCIAÇÃO DE CONSUMIDORES
NÚMERO DE ASSOCIADOS
LEGITIMIDADE ACTIVA
Sumário
I. A consagração constitucional da acção popular no art.º 52.º, n.º 3, da CRP determina que a mesma funcione (i) como uma “âncora e limite” para os poderes do legislador ordinário (que é obrigado a reconhecer e implementar o direito de ação popular por cidadãos e associações, em termos que viabilizem ações declaratórias e condenatórias fundadas em infrações de valias constitucionalmente protegidas), mas também como uma (ii) “bússola” interpretativa para o julgador, quando chamado a pronunciar-se e a interpretar a lei, em situações com contornos e/ou âmbitos de aplicação imprecisos ou ambíguos. II. A tramitação da acção popular – prevista na CRP e regulamentada na Lei 83/95 - não se rege por normas específicas, porém, no que se refere à legitimidade activa, o legislador teve a preocupação de introduzir normas específicas alterando o conceito de legitimidade previsto no Código de Processo Civil, alargando o mesmo, para intentar as acções previstas na Lei de Defesa do Consumidor, a entidades diferentes do consumidor directamente lesado. III. Os direitos consagrados no art.º 18.º da LDC – entre os quais o de intentar acção popular – são atribuídos às associações de consumidores, sem requisitos adicionais, nomeadamente quanto à data em que tenham sido criadas, ao número de membros que tenham ou suficiência de fundos para prosseguir com a acção. IV. Sendo certo que, (i) noutras situações, a propósito do direito de intentar acção popular, o legislador fez a destrinça - de que são exemplo os arts. 31.º e 32.º do Código dos Valores Mobiliários (direitos das associações de defesa de investidores) - conferindo direitos a associações de defesa dos investidores (entre os quais de intentar acção popular) que contassem, entre os seus associados, com pelo menos 100 pessoas singulares e (ii) assumindo que o legislador se expressou da forma mais correcta possível, então é de concluir que se o legislador não distinguiu e não exigiu requisitos adicionais às associações de consumidores, em função do número de sócios, não deverá o interprete distinguir, exigindo, para efeitos de legitimidade, que as associações de âmbito nacional tenham 3000 ou mais sócios. V. Em abono desta interpretação milita ainda o argumento de o legislador ter tido oportunidade, através do DL 114-A/2023 (através do qual transpôs para a ordem jurídica nacional a directiva (UE)2020/1828), de restringir a legitimidade das associações em função do seu âmbito territorial e número de sócios, não o tendo feito, tendo-se limitado a incluir nos requisitos atinentes à legitimidade das associações de consumidores exigências relacionadas com a independência e financiamento das acções colectivas.
(Sumário elaborado pela relatora)
Texto Integral
Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório:
A 08-06-2023 C intentou, no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Cível, acção declarativa popular de condenação contra P S.A., pedindo se julgue a acção procedente por provada e, em consequência: “ser declarado que a ré: A. teve o comportamento descrito no §3 supra; B. violou qualquer uma das seguintes normas: 1. artigo 35 (1, c), do decreto lei 28/84; 2. artigos 6, 10, 11 (1), 12, do decreto lei 330/90; 3. artigo 311 (1, a, e), do decreto lei 110/2018; 4. artigos 4, 5 (1), 6 (b), 7 (1, b, d), 9 (1, a), do decreto lei 57/2008; 5. artigos 3 (a) (d) (e) (f), 4, 7 (4) e 8 (1, a, c, d) (2), da lei 24/96; 6. do artigo 11, da lei 19/2012; 7. artigos 6, 7 (1) (2) e 8, da diretiva 2005/29/CE; 8. artigo 3, da diretiva 2006/114/CE; 9. artigos 2 (a) (b), 4 (1), da diretiva 98/6/CE; 10. artigo 102, do TFUE; C. especulou nos preços das embalagens de Preservativos contacto total, da marca Durex, caju frito com sal, 200 g e pistacchio torrado com sal, 175 g na sua sucursal, localizada em Av.---; D. publicitou enganosamente o preço das embalagens de Preservativos contacto total, da marca Durex, caju frito com sal, 200 g e pistacchio torrado com sal, 175 g, na sua sucursal localizada em Av.--; E. teve o comportamento supra descrito em qualquer um dos pedidos anteriores e que o mesmo é ilícito e 1. doloso; ou, pelo menos, 2. grosseiramente negligente; F. agiu com culpa e consciência da ilicitude no que respeita aos factos supra referidos, com os autores populares; G. com a totalidade ou parte desses comportamentos lesou gravemente os interesses dos autores populares, nomeadamente os seus interesses económicos e sociais, designadamente os seus direitos enquanto consumidores; H. causou e causa danos aos interesses difusos de proteção do consumo de bens e serviços, sendo a ré condenada a reconhece-lo. e em consequência, de qualquer um dos pedidos supra, deve a ré ser condenada a: I. a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados por estas práticas ilícitas, no que respeita ao sobrepreço, seja a título doloso ou negligente, em montante global: 1. a determinar nos termos do artigo 609 (2), do CPC; 2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço; 3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal; J. subsidiariamente ao ponto anterior, ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que resultou do sobrepreço causado pelas práticas ilícitas, em montante global: 1. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do CC, determinado em 0.70 euros, 0,75 euros e 1,95 euros por cada embalagem de Preservativos contacto total, da marca Durex, caju frito com sal, 200 g e pistacchio torrado com sal, 175 g, respetivamente vendida na sua sucursal, com estabelecimento localizado em Av.--, durante, pelo menos, entre 30.05.2023, às 08h00, e 08.06.2023, às 11h38 (portanto, durante 9 dias seguidos, senão mais); 2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço; 3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal; K. ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pêlos danos morais causados pelas práticas ilícitas, em montante global: 1. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4), do CC, mas nunca inferior a 1 euro por autor popular; 2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pêlos danos morais; 3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal; L. ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares, in casu, todos os consumidores em geral, medidos por agregados familiares privativos, pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência, e montante global: 1. nos termos do artigo 9 (2), da lei 23/2018, ou por outra medida, justa e equitativa, que o tribunal considere adequada, mas nunca menos que 1 euro por autor popular, in casu, agregados familiares privativos; 2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pêlos danos de distorção da equidade das condições de concorrência; 3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal; M. ser a ré condenada a pagar todos os encargos que a autora interveniente tiver ou venha ainda a ter com o processo e com eventual incidente de liquidação de sentença, nomeadamente, mas não exclusivamente, com os honorários advocatícios, pareceres jurídicos de professores universitários, pareceres e assessoria necessária à interpretação da vária matéria técnica [tanto ao abrigo do artigo 480 (3), do CPC, como fora do mesmo preceito], que compreende uma área de conhecimento jurídico-económica complexa e que importa traduzir e transmitir com a precisão de quem domina a especialidade em causa e em termos que sejam acessíveis para os autores e seu mandatário, de modo a que possam assim (e só assim) exercer eficazmente os seus direitos, nomeadamente de contraditório, e assim como os custos com o financiamento do litígio (litigation funding) que venha a ser obtido pela autora interveniente; N. porque o artigo 22 (2), da lei 83/95, estatui, de forma inequívoca e taxativa, que deve ser fixada uma indemnização global pela violação de interesses dos titulares ao individualmente identificados, mas por outro lado é omissa sobre quem deve administrar a quantia a ser paga, nomeadamente quem deve proceder à sua distribuição pelos autores representados na ação popular, vêm os autores interveniente requerer que declare que C, agindo como autora interveniente neste processo e em representação dos restantes autores populares, têm legitimidade para exigir o pagamento das supras aludidas indemnizações, incluindo requerer a liquidação judicial nos termos do artigo 609 (2), do CPC e, caso a sentença não seja voluntariamente cumprida, executar a mesma, sem prejuízo do requerido nos pontos seguintes. subsidiariamente, e nos termos do §4 (m); O. o comportamento da ré, tido com todos os autores populares e descritos no §3, subsidiariamente, para o caso de não se aplicar nenhum dos casos supra, deve ser considerado mediante o instituto do enriquecimento sem causa e os autores populares indemnizados pelo sobrepreço cobrado, tal como sustentando em § 4 (m) supra. em qualquer caso, deve: P. o comportamento da ré, tido com todos os autores populares e descritos no §3, sempre deve ser considerado com abuso de direito e, em consequência, paralisado e os autores populares indemnizados por todos os danos que tal comportamento lhes causou; requer-se ainda que Vossa Excelência: Q. decida relativamente à responsabilidade civil subjetiva conforme § 15, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido; R. decida relativamente ao recebimento e distribuição da indemnização global nos termos do § 16, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido; S. seja publicada a decisão transitadas em julgado, a expensas da ré e sob pena de desobediência, com menção do trânsito em julgado, em dois dos jornais presumivelmente lidos pelo universo dos interessados, apesar de tal decorrer expressamente do artigo 19 (2), da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido, e com o aviso da cominação em multa de €100.000 (cem mil euros) por dia de atraso no cumprimento da sentença a esse respeito; T. declare que a autora interveniente tem legitimidade para representar os consumidores lesados na cobrança das quantias que a ré venha a ser condenada, nomeadamente, mas não exclusivamente, por intermédio da liquidação judicial das quantias e execução judicial de sentença; U. declare, sem prejuízo do pedido imediatamente anterior, que a ré deve proceder ao pagamento da indemnização global a favor dos consumidores lesados diretamente à entidade designada pelo tribunal para proceder à administração da mesma tal como requerido em infra em §16, fixando uma sanção pecuniária compulsória adequada, mas nunca inferior a €100.000 (cem mil euros) por cada dia de incumprimento após o trânsito em julgado de sentença que condene a ré nesse pagamento; V. declare uma remuneração, com uma taxa anual de 5 % sobre o montante total da indemnização global administrada, mas nunca inferior a €100.000 (cem mil euros) nos termos do requerido infra em §16, a favor da entidade que o tribunal designar para administrar as quantias que a ré for condenada a pagar; W. declare que a autora interveniente tem direito a uma quantia a liquidar em execução de sentença, a título de procuradoria, relativamente a todos os custos que teve com a presente ação, incluindo honorários com todos os serviços prestados, tanto de advogados, como de técnicos especialistas, como com a obtenção e produção de documentação e custos de financiamento e respetivo imposto de valor acrescentado nos termos dos artigos 21 e 22 (5), da lei 83/95, sendo tais valores pagos exclusivamente daquilo que resultarem dos montantes prescritos nos termos do artigo 22 (4) e (5), da lei 83/95. X. declare a autora interveniente isenta de custas; Y. condene a ré em custas.”
Alegou, sumariamente:
- A ré comercializa na sua sucursal localizada em Av. …, além de muitos outros, os seguintes produtos:
- Preservativos contacto total, marca Durex,
- Caju frito com sal, 200 g,
- Pistacchio torrado com sal, 175 g;
- A ré efetua, como prática corrente, uma discrepância entre valores de preço afixado e efetivamente praticado;
- Nos produtos em causa, a ré anuncia um preço diferente inferior ao que efetivamente cobra, sendo este sobrepreço correspondente a 42,95%;
- A ré detém uma posição dominante no mercado, com uma importante quota no mesmo, sendo um dos maiores comerciantes de produtos alimentares a retalho do país;
- A ré anunciou por meio de letreiro fixado junto das respetivas embalagens os seguintes preços para os produtos em referência:
- Preservativos contacto total, marca Durex - 2,59 euros,
- Caju frito com sal, 200 g – 2,79 euros,
- Pistacchio torrado com sal, 175 g - 4,54 euros;
- Todavia, no momento de pagamento, seja nas caixas de pagamento assistidas por trabalhadores da ré ou nas caixas eletrónicas de self-checkout cobrava os seguintes preços:
- Preservativos contacto total, marca Durex - 3,29 euros,
- Caju frito com sal, 200 g – 3,54 euros,
- Pistacchio torrado com sal, 175 g - 6,49 euros;
- Os consumidores do estabelecimento pagaram, assim, um sobrepreço face ao anunciado de 0,70 euros, 0,75 euros e 1,95 euros por cada embalagem, respetivamente;
- A decisão de seguir esta prática, para este caso, foi tomada ao nível da sucursal da ré;
- Tal diferença entre preço anunciado e praticado prolongou-se pelo menos por nove dias (não indicados);
- O comportamento traduz publicidade enganosa, prática comercial desleal e restritiva da concorrência, afetando os consumidores;
- Além do prejuízo patrimonial decorrente da diferença de preço, os consumidores sofreram danos morais traduzidos:
- Sofrimento pela quebra da confiança depositada na marca P,
- Desconfiança, preocupação, transtornos e incómodos que decorrem da necessidade de elevar a atenção na verificação de preços e da situação de dúvida em que ficaram face à possibilidade de engano por práticas lesivas da ré,
- Preocupações, transtornos e incómodos decorrentes de terem de verificar as qualidades e preços dos produtos anunciados.
Indo os autos com vista ao Ministério Público, a 21-07-2023 foi emitido parecer com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
a) deve ser declarada a incompetência material Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia;
b) deve ser declarada a incompetência territorial do Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia, remetendo-se o processo para o Tribunal competente, o Juízo Local Cível de Lisboa; e
Em todo o caso,
c) deve a petição apresentada, desde já, liminarmente e nos termos do artigo 13.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, ser indeferida por ser manifestamente improvável a procedência do pedido.
A 11-09-2023 foi proferida decisão em que, julgando verificada a excepção dilatória de incompetência territorial, se declarou o Tribunal Judicial da Comarca do Porto incompetente em razão do território e, consequentemente, se determinou a remessa dos autos para o Juízo Central Cível de Lisboa.
A 13-10-2023 veio a Autora apresentar requerimento de ampliação do pedido inicialmente formulado e a 15-10-2023 veio requerer a intervenção principal provocada da seguradora com quem a Ré terá contratado um seguro de responsabilidade civil destinado a cobrir riscos associados à sua actividade.
A 19-10-2023 foi proferido o seguinte despacho (que se transcreve), no Tribunal Judicial Cível de Lisboa – Juízo Central Cível:
“Avaliação liminar da ação:
O Ministério Público junto a Comarca do Porto pronunciou-se expressamente sobre a admissibilidade liminar da ação (no sentido da manifesta improcedência). Estando concretizada a pronúncia, determina-se, a título prévio, aferir da constituição da autora, nos termos infra (verificação de pressuposto processual). –
--
Aferição da estrutura social da autora – legitimidade ativa:
Para conhecimento da composição social da autora para efeito de consideração do eventual relevo de tal estrutura como requisito legal de legitimidade, mais concretamente do seu número de associados nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 17.º n.º 2, 18.º n.º 1 al. l) e 13.º al. b) da Lei n.º 24/96, com as alterações subsequentes, conjugado com o disposto nos artigos 2.º e 3.º da Lei n.º 83/95), determina-se:
a) Solicitar à autora que, em dez dias, informe nos autos o seu número de associados, juntando documentos comprovativos de tal facto que tiver por adequados, incluindo, em qualquer caso, cópia do seu documento constitutivo e pacto social (se diverso);
b) Solicitar à autora que, no mesmo prazo, se pronuncie sobre o sentido a dar ao requisito legal de número mínimo de associados estabelecido pelo art.º 17.º n.º 2 da Lei de Defesa do Consumidor para efeito de estabelecimento de legitimidade ativa em ação popular. –
---
Dê-se conhecimento ao Ministério Público deste despacho e da pronúncia liminar deste órgão junto da Comarca do Porto.”.
Por requerimentos de 25-10-2023 veio a Autora dar resposta ao despacho supra, proferido em 19-10-2023 e requerer a junção de documentos aos autos.
Notificado o M.P. da pronúncia liminar de 21-07-2023, junto da comarca do Porto, veio reformular a sua posição inicial.
A 16-11-2023 foi proferido o seguinte despacho (despacho recorrido), que aqui se transcreve: “I. Pronúncia da autora de 25/10 (informação do número de associados; pronúncia solicitada sobre relevo da composição social na apreciação de pressuposto processual de legitimidade ativa): Visto. Fique nos autos. – -- II. Junção de documentos pela autora - requerimentos de 25 e 27/10 (informação recolhida de portal público na rede informática global; cópia de comunicação de correio eletrónico): Visto. Fiquem nos autos. – -- III. Requerimento apresentado pelo Ministério Público a 2/11 – reformulação da pronúncia inicial nos presentes autos: Visto. -- IV. Apreciação liminar da ação popular: IV.I. Síntese da ação: -- Partes: Autora – C; Ré – P, S.A. -- Pedidos: - Declaração de ilicitude de ações da ré, por desconformes com um conjunto de normas nacionais e europeias, que indica; - Declaração de ter a ré especulado em preços praticados na sua sucursal localizada na Av.--, relativamente aos seguintes produtos: - Preservativos contacto total, marca Durex; - Caju frito com sal, 200 g; - Pistacchio torrado com sal, 175 g; - Declaração de ter a ré, nessa sucursal, publicitado enganosamente o preço das embalagens dos produtos em causa; - Declaração de ter atuado a ré com dolo ou negligência grosseira, com culpa e consciência da ilicitude; - Declaração de ter lesado gravemente os interesses económicos e sociais dos autores populares, enquanto consumidores, causando danos aos interesses difusos de proteção do consumo de bens e serviços. - Em consequência de tais declarações: a) Indemnizar os autores populares pelos danos que lhes foram causados por aplicação de um sobrepreço nos referidos produtos, a determinar em liquidação de sentença, valor acrescido de juros vencidos e vincendos à taxa legal desde a data da prática dos atos e até integral pagamento; b) Subsidiariamente ao anterior, ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que resultaram do sobrepreço, em montante global a fixar equitativamente, tendo por base os preços devidos de 70 cêntimos; 75 cêntimos 1,95 euros, respetivamente, por cada embalagem de preservativos contacto total, da marca Durex, caju frito com sal, 200 g e pistacchio torrado com sal, 175 g, vendidos na sucursal supra referida, durante, pelo menos, 9 (nove) dias seguidos, acrescida de juros vencidos e vincendos à taxa legal desde a data da prática dos atos e até integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço; c) Ser a ré condenada a indemnizar os autores populares pelos danos morais causado pelas práticas ilícitas em montante a fixar equitativamente, quantia acrescida de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal; d) Ser a ré condenada a indemnizar todos os consumidores por danos decorrentes de distorção das condições de concorrência, em valor a fixar equitativamente e não inferior a 1 euro por autor popular, acrescido de juros vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data da prática dos atos e até ao seu integral pagamento. -- Fundamentos de facto: - A ré comercializa na sua sucursal localizada em Av.--, além de muitos outros, os seguintes produtos: - Preservativos contacto total, marca Durex, - Caju frito com sal, 200 g, - Pistacchio torrado com sal, 175 g; - A ré efetua, como prática corrente, uma discrepância entre valores de preço afixado e efetivamente praticado; - Nos produtos em causa, a ré anuncia um preço diferente inferior ao que efetivamente cobra, sendo este sobrepreço correspondente a 42,95%; - A ré detém uma posição dominante no mercado, com uma importante quota no mesmo, sendo um dos maiores comerciantes de produtos alimentares a retalho do país; - A ré anunciou por meio de letreiro fixado junto das respetivas embalagens os seguintes preços para os produtos em referência: - Preservativos contacto total, marca Durex - 2,59 euros, - Caju frito com sal, 200 g – 2,79 euros, - Pistacchio torrado com sal, 175 g - 4,54 euros; - Todavia, no momento de pagamento, seja nas caixas de pagamento assistidas por trabalhadores da ré ou nas caixas eletrónicas de self-checkout cobrava os seguintes preços: - Preservativos contacto total, marca Durex - 3,29 euros, - Caju frito com sal, 200 g – 3,54 euros, - Pistacchio torrado com sal, 175 g - 6,49 euros; - Os consumidores do estabelecimento pagaram, assim, um sobrepreço face ao anunciado de 0,70 euros, 0,75 euros e 1,95 euros por cada embalagem, respetivamente; - A decisão de seguir esta prática, para este caso, foi tomada ao nível da sucursal da ré; - Tal diferença entre preço anunciado e praticado prolongou-se pelo menos por nove dias (não indicados); - O comportamento traduz publicidade enganosa, prática comercial desleal e restritiva da concorrência, afetando os consumidores; - Além do prejuízo patrimonial decorrente da diferença de preço, os consumidores sofreram danos morais traduzidos: - Sofrimento pela quebra da confiança depositada na marca P, - Desconfiança, preocupação, transtornos e incómodos que decorrem da necessidade de elevar a atenção na verificação de preços e da situação de dúvida em que ficaram face à possibilidade de engano por práticas lesivas da ré, - Preocupações, transtornos e incómodos decorrentes de terem de verificar as qualidades e preços dos produtos anunciados. – --- Tramitação processual; diligências realizadas e pronúncia do Ministério Público: - Os autos deram entrada no Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia, Comarca do Porto; - O Ministério Público junto desse Juízo pronunciou-se pela incompetência material e territorial desse Juízo e também pela manifesta improcedência da ação, dizendo, em síntese: - Sendo a ação popular uma ação especial, a competência para a respetiva tramitação e decisão cabe aos Juízos Locais Cíveis; - A ré é uma pessoa coletiva única, não tendo a sua sucursal de Vila Nova de Gaia personalidade jurídica autónoma; - Por consequência, o tribunal competente é o do local da sede, sita em Lisboa. - A tutela judicial por meio de ação popular é subsidiária face a uma possibilidade de defesa individual de qualquer titular do direito; - A matéria alegada é suscetível de configurar prática de crime de especulação, p. e p. pelo artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro; - A situação em causa, merecendo tutela penal, não a merecerá sob a forma de ação popular. - Foi proferida decisão declarando a incompetência em razão do território da Comarca do Porto e remessa dos autos a esta comarca de Lisboa; - Foi proferido despacho no sentido de solicitar à autora que informe nos autos o se número de associados (juntando os documentos comprovativos de tal facto que tiver por adequados, incluindo, em qualquer caso, cópia do seu documento constitutivo e pacto social, se diverso) e que se pronuncie sobre o sentido a dar ao requisito legal de número mínimo de associados estabelecido pelo art.º 17.º n.º 2 da Lei de Defesa do Consumidor, para efeito de estabelecimento de legitimidade ativa em ação popular. - A autora respondeu fazendo referência aos documentos apresentados anteriormente (pacto constitutivo da associação autora), informando ter atualmente 1759 associados, declarando não estar em condições de apresentar documento comprovativo de tal facto por dever de salvaguardar a identidade dos mesmos e pugnando pela irrelevância deste critério para efeito de estabelecimento de legitimidade ativa para os autos; - O Ministério Público junto deste Juízo apresentou requerimento de alteração da pronúncia inicial, manifestando-se no sentido de não oposição ao prosseguimento da ação popular instaurada, suscitando: - Possibilidade de o Tribunal promover o aperfeiçoamento da petição, designadamente, quanto a densificação do grupo de consumidores afetados pela alegada distorção da equidade das condições de concorrência, através da alegação de factos concretos que delimitem o grupo ou a categoria de consumidores e substanciação e concretização da alegada distorção da equidade das condições de concorrência e das suas implicações para os interesses invocados, especificando o dano e a base para o seu cálculo. Em qualquer caso, promovendo solicitação de pedido de informação à ASAE sobre se, pelos factos em apreciação, foi instaurado procedimento criminal contra a demandada, com o envio de todos os elementos relevantes. Cumpre apreciar e decidir. – -- IV.II. Avaliação liminar de prosseguimento da ação: -- a) Pressupostos processuais – a suscitada questão de legitimidade ativa: Convidou o tribunal a autora a pronunciar-se sobre verificação da sua legitimidade ativa para os presentes autos, o que fez. -- Com base nos elementos apresentados e declaração feita, podem tomar-se, nesta sede, como fundamentos de decisão os seguintes: 1. A autora é uma associação cujo objeto é a defesa de consumidores, sem limitação territorial ao nível nacional (cf. documento n.º 1 anexo à petição inicial, dado por integralmente reproduzido); 2. A autora foi constituída com dois associados (idem); 3. Declara ter atualmente 1759 (mil setecentos e cinquenta e nove) associados, não tendo apresentado qualquer documento comprovativo desta declaração e tendo protestando não o poder fazer como forma de proteger os dados relativos à identidade dos seus sócios. -- Como consta do despacho proferido nos autos a 19/10, aqui dado por integralmente reproduzido, a questão em apreço é a de saber se, para efeitos de estabelecimento de legitimidade ativa de associação de defesa do consumidor em ação popular, são relevantes apenas os requisitos indicados no art.º 3.º da Lei de Ação Popular (Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, com as alterações subsequentes – LAP), i.e., serem detentoras de personalidade jurídica; incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objetivos estatutários a defesa dos interesses dos consumidores e não exercerem qualquer tipo de atividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais; ou, pelo contrário, no que concerne especificamente a representação de consumidores, tal legitimidade tem que ser aferida também pelo cumprimento dos requisitos estabelecidos pela Lei de Defesa do Consumidor – LDC – Lei n.º 24/96, de 31/7, com as alterações subsequentes. Veja-se o que dispõem as normas relevantes da LDC: Diz o art.º 17.º n.º 2 da LDC que as associações de consumidores podem ser de âmbito nacional, regional ou local, consoante a área a que circunscrevam a sua ação e tenham, pelo menos, 3000, 500 ou 100 associados, respetivamente. Nos termos desta lei é concedida a estas entidades um elenco extenso de direitos, entre os quais figura o de ação popular (art.º 18.º n.º 1 al. l) da LDC). Assim, por exemplo, as associações de defesa do consumidor têm estatuto de parceiro social em matérias que digam respeito à política de consumidores (al. a)); direito de antena na rádio e na televisão (al. b)); direito a representar os consumidores no processo de consulta e audição públicas (al. c)); direito a corrigir e a responder ao conteúdo de mensagens publicitárias relativas a bens e serviços postos no mercado, bem como a requerer, junto das autoridades competentes, que seja retirada do mercado publicidade enganosa ou abusiva (al. e)); direito de participar nos processos de regulação de preços de fornecimento de bens e de prestações de serviços essenciais (al. h)); direito a solicitar aos laboratórios oficiais a realização de análises (al. i)) direito de queixa e denúncia, bem como direito de se constituírem como assistentes em sede de processo penal (al. m)). Se se atentar na tipologia dos direitos destacados, e poderiam referir-se outros ali contidos, torna-se clara a razão de ser do preceito relativo à determinação da dimensão social da associação. O requisito legal de número mínimo de associados, previsto no art.º 17.º, não pode ser desligado, sob pena de irracionalidade interpretativa, da concessão de direitos conferida pelo artigo imediato. Este conjunto amplo de faculdades concedidas a associações de defesa dos consumidores tem aplicação direta em procedimentos decisórios ou consultivos da administração e no acesso a meios públicos, necessariamente limitados, como será o caso dos relativos a antena em meio de comunicação social ou a solicitação de análises em laboratório oficial. Assim sendo, o legislador sentiu necessidade de conformar os direitos que conferia às associações de defesa dos consumidores como forma de assegurar efetiva satisfação do que concedeu. Essa conformação é, assim, uma verdadeira limitação de acesso ao uso de faculdades e recursos previstos na LDC a entidades que a lei entende que não atingem uma dimensão suficientemente representativa do interesse tutelado. É uma limitação racional e teleologicamente dirigida a assegurar uma utilização adequada dos meios e recursos disponíveis, muitos deles públicos, ligada necessária e diretamente à própria eficácia da defesa dos direitos dos consumidores. Esta razão e finalidade legal aplica-se também ao acesso à justiça, sob a forma de ação popular, que, como referido, a norma inclui expressamente no elenco em causa – art.º 18.º n.º 1 al. l) da LDC, não se vendo, em primeiro lugar, razão para o intérprete distinguir onde o legislador não distinguiu. Em sede de avaliação sistemática não pode também deixar de se salientar que a LDC é posterior à LAP e, nesse sentido, uma vez que consagrou expressamente a ação popular na sua disciplina, terá carater inovador face ao disposto no art.º 13.º da LAP (no que concerne à questão da conformação subjetiva das associações de defesa do consumidor para propositura de ação popular). Ultrapassando essa avaliação transversal a todos os direitos concedidos pela LDC às associações de defesa dos consumidores, poderia argumentar-se, a contrariu sensu, que tal requisito subjetivo será inaplicável à propositura de ações populares, precisamente porque existe uma lei especial que confere tal possibilidade a qualquer associação, independentemente de cumprimento de qualquer requisito adicional, designadamente quanto ao número de associados, afastando assim qualquer relevo à sucessão temporal de leis. Entende-se, porém, que este argumento não colhe. Olhando diretamente a LAP, esta estabelece um alargamento das regras gerais de legitimidade ativa, atribuindo-a não apenas ao titular de um interesse pessoal e direto em disputa, mas, no que diz respeito a uma série de interesses ditos difusos, também a entidades que representem interesses comuns e homogéneos de uma série de pessoas indeterminadas. Esse alargamento de legitimidade radica nesse caráter indeterminado, mas determinável, dos interesses afetados, agregados homogeneamente em dois níveis: – Um nível geral difuso, que corresponderá à categoria do interesse afetado, no caso o direito dos consumidores, como poderia ser a proteção do meio ambiente, ou outros; - Um nível mais concreto, correspondente a uma afetação por ação ou ações concretas de um número de pessoas indeterminadas e cujos interesses são homogéneos. No caso de consumidores, essa ligação concreta poderá ser obtida por referência a um mesmo produto, serviço ou prática. Se é esta a estrutura de proteção de interesses que subjaz à concessão do direito de ação popular genericamente atribuído pela LAP, os concretos interesses difusos abrangidos (nesse primeiro nível geral) são suscetíveis de ser muito diferentes. A ação de proteção do interesse de qualquer pessoa enquanto consumidora pode ser muito diferente da defesa do interesse dessa mesma pessoa a beneficiar de um meio ambiente sadio e não poluído. O mesmo sucede na avaliação da homogeneidade dos interesses tutelados. Vertendo ao caso concreto, e admitindo, para já e por uma questão de raciocínio, que tem homogeneidade suficiente o interesse dos consumidores do estabelecimento da ré sito na Avenida República, em Vila Nova de Gaia, compradores dos produtos objeto dos autos, não será certamente do seu interesse verem multiplicadas ilimitadamente as entidades com legitimidade para os representarem e multiplicarem-se os pleitos judiciais em que tal representação ocorra. Tal é suscetível de impedir (ou grandemente dificultar) o direito exclusão que a LAP consagra a qualquer consumidor nos seus artigos 14.º e 15.º. Por outro lado, a eventual multiplicação de entidades representativas também é suscetível de causar indefinição (por sobreposição e omissão) da tutela desses interesses homogéneos. No caso, a associação autora identifica como interesse homogéneo a tutelar o que pode ser referido como direito à correspondência entre os preços anunciado e cobrado relativamente aos produtos descritos como “preservativos contacto total, marca Durex”; “caju frito com sal, embalagem de 200g” e “pistacchio torrado com sal, embalagem de 175g” vendidos pela ré no seu estabelecimento sito na Av.--. A própria autora, na sua alegação, sustenta que a ré mantém práticas comerciais como as que pretende tutelar nesta ação em múltiplas situações análogas (depreende-se que tal repetição se refira a outros produtos comercializados e também a outras sucursais, das 444 – quatrocentas e quarenta e quatro – que, sustenta, mantem no país). Não se trata, neste momento, de aferir da homogeneidade do interesse em causa enquanto tal, apenas de aduzir um argumento de reflexão sobre a ratio legis e o relevo sistemático da dimensão das associações de consumidores para efeito de estabelecimento de legitimidade ativa. Colocando a questão neste ponto e interpretando também os preceitos em causa no pressuposto que o legislador consagrou as melhores soluções, a inexistência de qualquer critério limitativo da legitimidade de ações de defesa do consumidor estaria a abrir a porta a repetição de ações propostas por diversas entidades (quanto a estes produtos; quanto a estes e outros no mesmo pleito; referindo-se a um estabelecimento ou a diversos; relativa ao mesmo período ou a diferentes). Essa indefinição retira grandemente possibilidade dos consumidores individuais de exercerem o seu direito de exclusão, por desconhecimento da multiplicidade de litígios em seu nome interpostos e, portanto, seria suscetível de induzir, não um alargamento da regra geral de legitimidade funcionalmente destinada à melhor tutela de interesses jurídicos, mas antes uma verdadeira postergação da possibilidade de representação direta e pessoal do direito pelo respetivo titular pessoal. Neste caso, um alargamento da tutela do interesse difuso traduziria uma redução da tutela individual e do acesso ao direito do próprio lesado. Dir-se-á que essa indefinição existirá sempre, na medida em que o critério legalmente definido para a dimensão das associações de defesa do consumidor pode sempre ser atingido por um grande número de entidades e, nessa medida, a suscetibilidade de multiplicação de situações de representação dos mesmos interesses pode sempre verificar-se. É um argumento que também não colhe. Para tanto, deve atentar-se, antes de mais, que os requisitos da LDC não são irrelevantes e, tratando-se, como é o caso da autora, de uma associação de âmbito nacional (na medida em que não restringe a sua atuação a uma área territorial) impõe que tenha pelo menos 3000 associados, o que, aliás, assumidamente, não se verifica. Quer isto dizer que o legislador estabeleceu, conscientemente, um limite que pode ser classificado de exigente, com isso pretendendo, sem dúvida, evitar uma multiplicação de associações de defesa de consumidores sem uma base representativa sólida. Assim sendo, pode concluir-se que a lei, com o requisito que definiu, pretendeu claramente reduzir o número de entidades a quem confere as faculdades representativas dos consumidores e os inerentes direitos que dessa representação advêm, com isso também permitindo também, entre outras finalidades, que cada consumidor tenha uma susceptibilidade superior de conhecer as pessoas que atuam e as ações que são praticadas em seu nome. Acresce uma segunda ordem de razões para considerar a exigência legal de número mínimo de associados como uma verdadeira limitação processual - a prevenção de situações de uso anormal do processo de ação popular. Os supra referidos riscos de multiplicação e indefinição subjetiva e objetiva dos pleitos judiciais, caso qualquer associação, sem qualquer requisito específico, possa arrogar-se representante de qualquer grupo de consumidores, tornaria muito difícil, quando não impossível, o efetivo recebimento de alguma compensação que viesse a ser judicialmente declarada a favor destes, desde logo por desconhecimento da representação e do seu direito. Sem consideração do caso concreto e colocando este raciocínio no domínio puramente abstrato, permitir-se a qualquer associação legitimidade para representar quaisquer consumidores a nível nacional é suscetível de conduzir a que um grupo muito restrito de pessoas (no limite apenas duas), associando-se, possa arrogar-se o direito de representar interesses gerais, mas, de facto, o faça por interesse próprio, angariando como clientela judicial, virtualmente, toda a população do país (que é o universo dos consumidores), sem que os titulares do interesse protegido o possam razoavelmente saber, com reduzidas as possibilidades de reagir e, no limite, por desconhecimento, até sem terem uma verdadeira possibilidade de receber qualquer compensação económica que lhes seja atribuída. Tal uso anormal do processo constituiria, nesse caso, também um verdadeiro abuso dos direitos de acesso à justiça e de constituição de associações de defesa de interesses gerais. Se se ligar estas considerações à faculdade, legalmente concedida, de atribuição da gestão de quantias indemnizatórias que possam ser fixadas à entidade representativa do interesse tutelado, estar-se-á a abrir caminho para um desvio das finalidades de tutela concedidas pela LAP, em detrimento do interesse difuso dos consumidores e em proveito de um interesse ilegítimo e direto de quem se arrogue seu representante sem que possua a base representativa mínima legalmente definida. Também por estas razões se deve considerar que a lei (e o legislador) estabeleceram um expresso requisito de representação de consumidores, para efeito das faculdades constantes do art.º 18.º da LDC, em que se integra, em termos de acesso ao direito e aos tribunais, a propositura de ações populares, assim limitando e modelando as faculdades representativas dos consumidores, restringindo-as a associações de dimensão legalmente definida como relevante. A autora alega ter um número de associados que fica muito aquém dos 3.000 (três mil) legalmente definidos como requisito legal para estabelecer a sua legitimidade ativa (1759 - facto que não comprova, sendo que o documento apresentado apenas atesta que tenha dois sócios). Em todo o caso, não tem legitimidade para representar consumidores a nível nacional porque fica aquém do limite representativo legalmente definido. É o que se decide, considerando-se que a autora não reúne tal requisito legal de legitimidade ativa nesta especial forma processual e, nessa medida, deve a ação ser liminarmente indeferida. – -- b) A matéria alegada – homogeneidade de interesse; danos patrimoniais e não patrimoniais invocados; relevo criminal: Quanto à homogeneidade de interesses, repetindo-se aqui, mutatis mutandis, o que antes se disse e relevando também a última pronúncia do Ministério Público, não se pode considerar que a autora tenha invocado, pelo menos de forma completamente substanciada, um interesse homogéneo bem identificado. A ter-se verificado a prática imputada à ré, i.e., que esta tenha mantido, pelo menos durante nove dias, no seu estabelecimento de venda a retalho em Av.-- uma discrepância de preço em três produtos (entre o afixado e o praticado), só haverá um ilícito civil na esfera jurídica de consumidores indeterminados se se puder dizer que houve um conjunto de pessoas prejudicado por esta atuação (independentemente de poder haver ilicitude noutras esferas, designadamente na área administrativa-ordenação social ou criminal). No caso, tal prejuízo não se mostra suficientemente identificado, designadamente por referência ao interesse protegido. Serão afetados todos os consumidores que acederam ao estabelecimento em causa? Se forem estes, seria necessário alegar (e demonstrar) qual o dano que estaria em causa. Serão os consumidores que estavam interessados em adquirir algum dos produtos em causa (ou os três)? Se forem estes, seria necessário alegar qual foi a sua reação e decisão de consumo e, neste caso, que dano se produziu. Serão os consumidores que compraram os produtos em causa, mas se aperceberam daquilo a que a autora chama sobrepreço e reclamaram, pagando o preço afixado? Nesse caso, não parece que se possa assacar algum dano patrimonial, havendo que remeter este universo apenas para putativos danos não patrimoniais (sendo que, nesse caso, se trataria de consumidores especialmente atentos aos preços, não parecendo colher a invocação de um dano assente na desconfiança face ao comportamento do retalhista; Serão os consumidores que compraram algum ou todos os produtos em causa, pagando o tal sobrepreço sem se aperceberem (ou sem se aperceberem a tempo de reclamar)? Nesse caso poderá dizer-se que o dano patrimonial será o correspondente ao preço excessivo, mas, nesse caso, haverá danos não patrimoniais invocados e pouco substanciados, a concretizar em sede de alegação. Quer isto dizer que, mesmo quanto aos produtos e estabelecimento em causa, há questões relativas à identificação e substanciação do interesse em causa que merecem dúvidas. O mesmo se dirá, a contrariu, com a não inclusão no universo de interesses protegido dos consumidores de outros produtos, quando conjugada com a alegação de se repetirem práticas como a descrita no estabelecimento em causa, legitimando a dúvida de saber se o interesse homogéneo em causa não se deve referir, mais geralmente, a todos os consumidores da ré (ou de um conjunto de estabelecimentos desta) que tenham adquirido produtos de venda a retalho com preço anunciado inferior ao praticado em caixa. Sabendo-se que a ré alega repetição de comportamentos e sabendo-se que pendem neste Juízo, propostas pela autora contra a ré, além da presente, as seguintes ações populares (sendo que, em todas elas a autora alega discrepâncias entre preços anunciados e praticados, de diferentes produtos, em vários estabelecimentos da ré situados nos distritos do P-- e de B--), a saber: a) Processo n.º …/23.4T8VNG – venda de produtos no estabelecimento da ré descrito como Loja -- (massa fettuccine, com preço anunciado de 1,26 euros por embalagem e com preço de 1,68 euros por embalagem nas caixas de pagamento) – Juiz 1; b) Processo n.º …./23.5T8VNG - venda de produtos no estabelecimento da ré descrito como Loja -- (milho, marca Bonduelle, pack de três, com preço anunciado de 1,26 euros por embalagem e com preço de 1,68 euros por embalagem nas caixas de pagamento) – Juiz 1; c) Processo n.º …./23.0T8VNG - venda de produtos no estabelecimento da ré Av.-- (sumo tutti frutti, marca Innocent, 900 ml, smoothie de manga e maracujá, marca Innocent, 250 ml, e KIWI, 1 kg, com preço anunciado de, respetivamente, 2,29 euros, 1,54 euros, e 3,79 euros por embalagem e com preços de 3,09 euros, 2,09 euros e 3,99 euros por embalagem efetivamente cobrados nas caixas de pagamento) – Juiz 2; d) Processo n.º …./23.9T8VNG - venda de produtos no estabelecimento da ré sito na Av.-- (morangos, embalagens de 1/2 kg), com preço afixado de 2,99€ e sendo o preço efetivamente cobrado de €3,49 – Juiz 3; e) Processo n.º …/23.9T8VNG - venda de produtos no estabelecimento da ré sito em R.--, distrito do Porto (snacks de cão), com preço afixado de 1,94€ e sendo o preço efetivamente cobrado de €2,59 – Juiz 3; f) Processo n.º …./23.9T8PRT - venda de produtos no estabelecimento da ré sito na R.--, (embalagem de chá da marca Tetley), com preço afixado de 1,39€ e sendo o preço efetivamente cobrado de €1,89 – Juiz 3; g) Processo n.º ..../23.0T8PRT - venda de produtos no estabelecimento da ré sito na R.--, (embalagem refrigerante com gás de laranja, marca Fanta, em lata de 33 cl), com preço afixado de 4,04€ e sendo o preço efetivamente cobrado de €4,49 – Juiz 4; h) Processo n.º …./23.3T8VNG - venda de produtos no estabelecimento da ré na R.-- (bolachas cookies, marca Y, 150 g, e chocolates, marca Pintarolas (Imperial), 40 g), com preço afixado, respetivamente, de 0,79€ e 0,66€, sendo os preços efetivamente cobrados de €1,09 e €0,89 – Juiz 10; i) Processo n.º …./23.9T8VNG - venda de produtos no estabelecimento da ré sito na R.-- (atum feijão Frade, marca Vasco da Gama, 120 g.), com preço afixado de 0,99€ e sendo o preço efetivamente cobrado de €1,29 – Juiz 12; j) Processo n.º …./23.7T8VNG - venda de produtos no estabelecimento da ré sito na R.-- (chocolate marca Twix White, 46 gramas), com preço afixado de 0,86€ e sendo o preço efetivamente cobrado de €1,15 – Juiz 14; k) Processo n.º …./23.0T8VNG - venda de produtos no estabelecimento da ré sito na R.-- (bebida energética original, marca Red Bull, 25 cl), com preço afixado de 0,99€ e sendo o preço efetivamente cobrado de €1,49 – Juiz 18; Este conjunto de ações conhecidas e pendentes neste Juízo, para este efeito também sustentam a supra referida dúvida quanto à determinação do interesse homogéneo pretendido tutelar, parecendo extrair-se (da alegação destes autos e do conjunto das ações populares propostas contra a ré) a invocação de um interesse relativo a práticas da autora (restritas, ou não, às referidas zonas territoriais de--) de repetida desconformidade entre o preço afixado em produtos expostos para venda a retalho e o preço efetivamente cobrado em caixa de pagamento. Entende-se, em todo o caso, deixar esta questão meramente assinalada, realçando-se uma vez mais que as referidas insuficiências de alegação não justificam uma decisão específica nesta sede liminar (que seria de convite ao aperfeiçoamento), uma vez que sobreleva a apontada falta de pressuposto processual, que é insuprível. -- A despeito do referido, outra menção deve ser feita em termos de materialidade da alegação, por referência ao critério legal de admissibilidade liminar da ação popular por manifesta falta de fundamento. Trata-se da alegação relativa a danos não patrimoniais, cuja não parece imprecisa (e passível de aperfeiçoamento), sendo claros os fundamentos em que a autora a sustenta. Tais fundamentos não constituem, todavia, dano moral indemnizável. Sustenta a autora que, devido ao sobrepreço que alega, os consumidores tiveram sofrimentos pela quebra da confiança depositada na marca P. Que ficaram numa situação de desconfiança, preocupação, transtornos e incómodos (que decorrem da necessidade de elevar a atenção na verificação de preços e da situação de dúvida em que ficaram face à possibilidade de engano por práticas lesivas da ré), além deterem sofrido preocupações, transtornos e incómodos decorrentes de terem de verificar as qualidades e preços dos produtos anunciados. Nenhum destes fundamentos ultrapassa o nível dos meros incómodos ou atinge uma gravidade merecedora da tutela do direito (art.º 496.º n.º 1 do Código Civil). Por consequência, quanto a danos não patrimoniais não existe, manifestamente, fumus boni juris que sustente a ação. -- Quanto à invocada insusceptibilidade de seguimento da ação popular por constituir a matéria alegada infração criminal (enquadramento apresentado na pronúncia inicial do Ministério Público), deve entender-se que tal não obsta a uma tutela autónoma em ação popular, mesmo sabendo que a LDC concede às associações representativas a faculdade de se constituírem assistentes em processo penal (art.º 18.º n.º 1 al. m)), valendo as referências anteriores quanto ao número de associados para que esta faculdade possa ser acionada. -- Assim, em síntese conclusiva, havendo matéria em que é manifesta a falta de fundamento da ação (danos não patrimoniais) e matéria suscetível de aperfeiçoamento (relativa à identificação completa do interesse pretendido tutelar), a ação não pode seguir por falta do pressuposto processual acima identificado. --- IV.III. Decisão: Face a tudo o que se expôs, por falta do requisito legal de legitimidade ativa relativo a um número mínimo de associados, declara-se que a autora não cumpre este pressuposto processual e, em consequência, indefere-se liminarmente a presente ação popular. Custas pela autora. Notifique-se. Oportunamente, arquive-se. –“
Inconformada com tal decisão de indeferimento liminar, dela veio apelar a Autora apresentando as suas alegações e pugnando no sentido da sua revogação.
Termina as respetivas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):
1. Os autores interpõem recurso de apelação nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 644 (1,a) e 647 (1), todos do CPC, por terem legitimidade para tal e estarem em tempo de o fazer (cf. artigo 638, do CPC), por não se conformarem com a decisão proferida e ora recorrida e com a mesma discordarem.
2. O tribunal a quo indeferiu liminarmente a petição inicial, ao considerar que a representante da classe não tem legitimidade ativa para intentar uma acção popular, devido a ter menos de 3.000 associados.
3. A representante da classe é uma associação legalmente constituída e registada, que tem como objeto social a defesa dos direitos dos consumidores na União Europeia.
4. A ação popular interposta pela representante da classe visa a proteção de interesses difusos e individuais homogéneos dos consumidores, estando alinhada com os seus objetivos estatutários e o cumprimento de suas competências.
5. A questão da legitimidade ativa da associação para a interposição da acção popular não deve ser limitada pela interpretação restritiva do número de associados, conforme entendido pelo tribunal a quo com base no artigo 17 (1) da lei 24/96, pelas seguintes razões:
6. Legitimidade Ampla das Associações de Defesa dos Consumidores: as associações de defesa dos consumidores, sejam elas genéricas ou específicas, possuem legitimidade ativa para propor ações populares. Esta legitimidade é reconhecida independentemente de cumprirem as exigências específicas do artigo 17 (2) e (3) da lei 24/96, pois a ação popular é um direito estendido a qualquer cidadão isolado, ainda que não afetado pela violação em causa.
7. Confirmação Legal Específica para Tutela do Direito da Concorrência: a legitimidade das associações de defesa dos consumidores, especialmente no contexto da tutela do direito da concorrência, é reafirmada pelo artigo 19 (2) da Lei do Private Enforcement. Este ponto é crucial para enfatizar a relevância jurídica das associações em áreas específicas de interesse público.
8. Relação Classe-Categoria e Objeto da Ação: a legitimidade das associações deve ser avaliada com base na relação entre uma classe ou categoria de pessoas e o objeto da ação. Isso significa que todas as decisões afetam todos os membros da classe ou categoria representada, e não apenas uma subseção específica.
9. Inexistência de Restrições Legais Específicas na Legitimidade Popular: A legislação portuguesa não impõe restrições quanto ao número mínimo de associados para conferir legitimidade às associações de defesa dos consumidores. A personalidade jurídica da associação e o seu objetivo de defesa dos consumidores são os únicos requisitos necessários para a legitimidade, conforme os artigos 3(a, b) da lei 83/95 e 31 do CPC, e 3(c) da mesma lei.
10. Irrelevância do Número Mínimo de Associados para Legitimidade: a exigência de um número mínimo de associados para determinar a legitimidade das associações em ações populares não é apenas desnecessária, mas também restringiria os direitos fundamentais de acesso à justiça e à ação popular, sem qualquer justificação na necessidade de tutelar um outro interesse constitucionalmente protegido (cf. artigo 18, da CRP).
11. Associados e Capacidade de Representação: nem se pode dizer que exista um interesse em limitar a legitimidade processual das associações a um número mínimo de associados, perante a necessidade de assegurar uma adequada representação dos consumidores, uma vez que o número de associados não tem correspondência necessária com a capacidade prática, técnica ou económica da associação para prosseguir as suas atribuições. Logo, o número de associados não deve ser um critério para determinar a legitimidade da associação.
12. Inadequação de Restrições Baseadas em Representatividade Geográfica ou Dimensional: limitar a legitimidade das associações com base em critérios como âmbito geográfico (nacional, regional ou local) ou dimensão (número de associados) iria contra a lógica da legitimidade representativa. Isso discriminaria injustamente associações menores, que podem ser igualmente ou mais capazes de representar eficazmente os consumidores. A imposição de tais restrições levaria a uma discriminação das associações menores e reduziria o acesso à justiça para muitos consumidores, o que é contrário aos princípios de justiça e eficiência processual.
13. Legitimidade Ativa da C: a associação C, enquanto representante de classe, possui legitimidade ativa para propor ação popular. Isto é evidente pela sua personalidade jurídica, a sua natureza não lucrativa e o facto de não exercer atividades profissionais que concorram com empresas ou profissionais liberais (cf. artigo 3 da lei 83/95).
14. Inconstitucionalidade da Interpretação Normativa do Tribunal Recorrido: suscita-se a inconstitucionalidade da interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 2 (1), 3, 12 (2) da lei 83/95, em conjugação com os artigos 13 e 17 (2) e (3), da lei 24/96 lei e de qualquer outra norma ordinária do ordenamento jurídico, segundo a qual as associações de defesa dos interesses em causa, que preencham os requisitos previstos no artigo 3 da lei 83/95, não têm o direito de promover a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra os direitos dos consumidores quando sejam uma associação com menos de 3.000 associados. Tal interpretação violaria o direito de ação popular [cf. artigo 52 (3), da CRP], bem como o princípio do Estado de Direito, na sua vertente de princípio da segurança jurídica (cf. artigo 2, da CRP), da força jurídica, por falhar no teste da proporcionalidade (cf. artigo 18, da CRP), e do direito de acesso aos tribunais e uma tutela jurisdicional efetiva mediante um processo equitativo [cf. artigo 20 (1) e (4), da CRP ], especialmente porque as exigências do artigo 17 (2) e (3), da lei 24/96 para a generalidade das atuações das associações de consumidores, as quais não constituem requisitos constitutivos nem se compaginam com a atribuição do direito de ação popular a qualquer cidadão isolado, ainda que não afetado pela violação em causa.”
Posteriormente à apresentação de requerimento de interposição de recurso veio a Autora requerer a junção de documentos.
Foi admitido o recurso interposto e ordenada a notificação da Ré para, querendo, responder ao recurso de apelação interposto pela Autora.
Por requerimento de 22-011-2024 veio a Ré arguir a nulidade do despacho que admitiu o recurso e ordenou a sua notificação para, querendo, responder ao mesmo, na medida em que a Ré não foi, ainda, citada no âmbito dos autos, o que consubstancia a omissão de uma formalidade essencial.
Suprindo-se o invocado vício de nulidade o Tribunal a quo, por despacho de 14-02-2024, ordenou a citação da Ré para os termos da acção e para, querendo, responder ao recurso interposto.
Por requerimento de 24-02-2024 veio a Autora requerer a suspensão da instância até decisão a proferir, sobre a apensação de processos, nos autos …/22.1T8BRG, que corre termos no Juízo Central Cível de Braga.
Concedeu-se à Ré prazo para exercício do contraditório, relativamente à requerida suspensão da instância e apensação de processos.
Por requerimentos de 08-04-2024 veio a Ré (a) apresentar as suas alegações; (b) pronunciar-se no sentido do indeferimento da requerida suspensão da instância.
Nas contra-alegações apresentadas formulou a Ré P. as seguintes conclusões:
“A. Não tendo a Apelante autoliquidado a taxa de justiça devida pela interposição do recurso, nos termos do artigo 529.º, n.º 2, e 530.º, n.º 1, do CPC e do artigo 14.º, n.º 1, alínea a), do RCP, deverá ser notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 642.º, n.º 1, do CPC, sob pena de desentranhamento da alegação e da inadmissibilidade do recurso.
B. Os documentos juntos pela Autora devem ser considerados inadmissíveis e, em consequência, os mesmos serem desentranhados e a Apelante condenada em multa (cf. artigo 443.º, n.º 1 do CPC).
C. O pedido de intervenção processual do Presidente da Direção da Autora, aqui Apelante, em substituição desta, carece de fundamento legal.
D. Não podem ser conhecidas pelo Tribunal ad quem as conclusões 10.ª, 11.ª, 12.ª e 14.ª da presente apelação, por falta de fundamentação no corpo da motivação do recurso.
E. Os direitos reconhecidos às associações de consumidores, incluindo o direito de ação popular, pressupõe que a associação cumpra os requisitos de representatividade e de democraticidade plasmados no artigo 17.º da LDC 1996.
F. Sucede que a Apelante não tem 3.000 associados, nem mesmo 500 ou sequer 100, pelo que não se enquadra em qualquer um dos tipos de associação (nacional, regional ou local) previstos na LDC e, por conseguinte, não lhe assiste, em qualquer caso e neste em particular, a legitimidade para exercer o direito de ação popular que é conferido pelo artigo 18.º da LDC 1996 e pela Lei n.º 23/2018, de 05 de junho.
G. Por outro lado, independentemente do tipo de interesse prosseguido, o artigo 17.º, n.º 3, da LDC 1996 exige que os órgãos da associação tenham sido livremente eleitos pelo voto secreto de todos os seus associados, o que não se verificou ou verifica no caso da Apelante, pelo que, também por este motivo, a Apelante carece de legitimidade ativa para a presente ação.
H. Não é inconstitucional a interpretação normativa realizada pelo Tribunal a quo, pela qual se mostra corretamente delimitado o direito de ação popular pelo legislador, tal como interpretado e aplicado pela sentença recorrida.
*
Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
Questão a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões da recorrente (arts. 5.º, 635.º n.º 3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim, saber se, no caso concreto:
(i) – Da legitimidade da Autora para intentar a presente acção popular.
*
II. Fundamentação:
Para além dos factos que resultam expostos no antecedente relatório, importa mencionar os factos considerados no despacho recorrido, resultantes quer dos documentos juntos quer da alegação da Autora:
1. A Autora é uma associação cujo objecto é a defesa de consumidores, sem limitação territorial ao nível nacional.
2. A Autora foi constituída com dois associados.
3. Declara ter actualmente 1759 (mil setecentos e cinquenta e nove) associados, não tendo apresentado qualquer documento comprovativo desta declaração, alegando não o poder fazer como forma de proteger os dados relativos à identidade dos seus sócios.
*
III. O Direito:
I - Acção popular – pressupostos processuais - legitimidade
Em Portugal as acções populares assentam num direito constitucional, sendo essa uma especificidade importante a ter em consideração na análise infra.
A Constituição da República Portuguese não só garante o direito fundamental de acesso à protecção e de tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º, n.º 1 CRP), mas também consagra, expressamente, o direito de actio popularis.
O art.º 52.º, n.º 3 da CRP passou, em 1997, a ter a seguinte redacção:
“É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:
a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural;
b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais”.
Começámos por dizer que a consagração constitucional da acção popular era uma importante especificidade do regime português. E com efeito assim é: a circunstância de a acção popular ter consagração constitucional determina que a mesma funcione (i) como uma “âncora e limite para os poderes do legislador ordinário, que é obrigado a reconhecer e implementar o direito de ação popular por cidadãos e associações, em termos que viabilizem acções declaratórias e condenatórias (incluindo de indemnização) fundadas em infracções de valias constitucionalmente protegidos (neste sentido Miguel Sousa Ferro, “Ações Populares Cíveis em Portugal”, Revista de Direito Comercial, 2022, acessível aqui), mas também como uma (ii) bússola interpretativa para o julgador, quando chamado a pronunciar-se e a interpretar a lei, em situações com contornos e/ou âmbitos de aplicação imprecisos ou ambíguos. No sentido de que a interpretação se impõe como conforme à constituição, convocamos o Ac. STJ de 17-09-2024, onde se refere expressamente que “A remissão para a regulamentação a efectuar em sede infraconstitucional, ainda que imponha uma interpretação conforme à regra constitucional e a aplicação das normas de direito material e adjectivo específicas da acção popular dela derivadas, em especial das constantes da Lei 83/95 de 31 de agosto, não afasta a aplicação do regime processual geral e a observância dos princípios gerais estruturantes do processo civil, quanto a todos os aspectos não especificamente regulados na Constituição da República Portuguesa e na regulamentação da acção popular.”
A consagração constitucional da Acção popular, prevista no art.º 52.º, n.º 3, do CPC, foi infra constitucionalmente regulamentada através de:
a) um regime geral, estabelecido na Lei 83/95 (“Lei da Ação Popular” / “LAP”) - Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, retificada pela Retificação n.º 4/95, de 12 de outubro, e revista pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro.
b) reafirmações básicas do direito de ação popular e regimes especiais (lex speciali):
(i) processo civil: artigos 31.º e 303.º do Código de Processo Civil e artigo 4.º, n.º 1 do Regulamento das Custas processuais.
(ii) processo administrativo: artigo 9.º, n.º 2 do CPTA
(iii) concorrência: artigo 19.º da Lei do Private Enforcement - Lei n.º 23/2018, de 5 de junho;
(iv) valores mobiliários: artigos 31.º e 32.º do Código de Valores Mobiliários - Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de novembro;
(v) cláusulas contratuais gerais: artigos 26.º e 29.º do Decreto-Lei n.º 446/85 – Decreto lei n.º 446/85, de 13-11;
(vi) proteção dos consumidores: artigos 10.º a 13.º, 17.º e 18.º, n.º 1, al. l) da Lei de Defesa do Consumidor – Lei n.º 24/96, de 31-07;
(vii) proteção ambiental: artigo 7.º da Lei n.º 19/2014 – Lei 19/2014, de 14-04 - e artigos 10.º e 11.º da Lei n.º 35/98 – Lei 35/98 de 18-07;
(viii) proteção animal: artigos 9.º e 10.º da Lei n.º 92/95;
(ix) práticas comerciais desleais: artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 57/2008;
(x) património cultural: artigo 59.º da Lei n.º 13/85;
(xi) igualdade de género: artigos 3.º e 7.º da Lei n.º 107/2015;
(xii) baldios e meios de produção comunitários: artigo 6.º, n.º 9 e 10 da Lei n.º 75/2017;
(xiii) criminalidade racial: artigo único da Lei n.º 20/96.
Por último há ainda que ter em consideração que, recentemente, o DL 114-A/2023 transpôs para a ordem interna a Directiva (UE)2020/1828, relativa a acções colectivas para protecção dos interesses colectivos dos consumidores.
O art.º 2.º, n.º 1, da Lei 83/95, de 31-08 dispõe que:
“São titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de ação popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda”, sendo que os interesses previstos no artigo anterior são “a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público”.
Com a sua constituição, a Autora adquiriu personalidade jurídica (art.º 158º, nº1 do Cód. Civil) e a sua capacidade “abrange todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins” (art.º 160º nº 1 do Cód. Civil); o que significa que, por força do princípio da coincidência (art.º 11º nº2 do CPC), a autora goza de personalidade judiciária, sendo que tem, igualmente, capacidade judiciária (art.º 15º do CPC).
A questão que se coloca é saber se tem legitimidade (processual) para a instauração da presente ação.
Genericamente, quando se afere da verificação desta excepção dilatória, tratamos de avaliar se o demandante “tem interesse directo em demandar”, aferindo-se este pressuposto processual, em ultima ratio, em função da relação jurídica tal como ela é configurada pelo autor (art.º 30º, nºs 1 e 3 do CPC).
O conceito de legitimidade activa fornecido pelo artigo 30.º do Código de Processo Civil, exige, em conformidade, a verificação de uma relação entre o autor e a pretensão por ele formulada: “O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar, sendo este aferido em função da utilidade derivada da procedência da acção.”
A tramitação da acção popular – prevista na CRP e regulamentada na Lei 83/95, não se rege por normas específicas, podendo assumir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil. Porém, no que se refere à legitimidade activa, o legislador teve a preocupação de introduzir normas específicas alterando de forma radical o conceito de legitimidade em geral previsto no Código de Processo Civil. E fê-lo alargando a legitimidade para intentar as acções, previstas na Lei de Defesa do Consumidor, a entidades diferentes do consumidor directamente lesado, sublinhando aqui que a titularidade do direito de acção popular conferida a qualquer cidadão para instaurar a correspondente não estava dependente do seu interesse directo na demanda (artigo 2.º n.º 1) – a este propósito no âmbito de uma acção inibitória ver o recentíssimo Ac. STJ de 17-09-2024.
Resulta do art.º 3.º da L 83/95 que “constituem requisitos da legitimidade activa das associações e fundações:
a) A personalidade jurídica;
b) O incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de ação de que se trate;
c) Não exercerem qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais”.
Assim, à pergunta quem pode ser Autor numa acção popular, a resposta será de que, regra geral, uma ação popular pode ser intentada (independentemente de terem ou não um interesse directo no pedido) por:
(i) quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos;
(ii) associações e fundações defensoras dos interesses em causa; e
(iii) autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição.
Depois, no que às associações e fundações diz respeito, dispõe o art.º 3.º da LAP que os requisitos da sua legitimidade são (i) terem personalidade jurídica; (ii) incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de acção de que se trate; e (iii) não exercerem qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais. Não se prevê na LAP quaisquer requisitos adicionais, nomeadamente quanto à data em que tenham sido criadas, ao número de membros que tenham, suficiência de fundos para prosseguir com a acção etc.
Aliás, o facto de qualquer cidadão individual poder iniciar uma ação popular (seja ele/ela membro, ou não, da classe representada de pessoas lesadas) tem sido frequentemente utilizado como argumento para justificar interpretações não restritivas da legitimidade activa das associações. – neste sentido Ac. R.L. de 20-06-2024 e Miguel Sousa Ferro, “Ações Populares Cíveis em Portugal”, Revista de Direito Comercial, 2022 [1].
Com efeito, nas diversas acções populares que têm vindo a ser intentadas nos tribunais judiciais, tem-se levantado a questão, a maior parte das vezes oficiosamente, de saber se as associações de protecção de consumidores devem ter um número mínimo de associados, a que alude a Lei de Defesa do Consumidor, no art.º 17.º e 18.º.
E efectivamente, foi este o caminho percorrido pela decisão recorrida onde se refere:
“a questão em apreço é a de saber se, para efeitos de estabelecimento de legitimidade ativa de associação de defesa do consumidor em ação popular, são relevantes apenas os requisitos indicados no art.º 3.º da Lei de Ação Popular (Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, com as alterações subsequentes – LAP), i.e., serem detentoras de personalidade jurídica; incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses dos consumidores e não exercerem qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais; ou, pelo contrário, no que concerne especificamente a representação de consumidores, tal legitimidade tem que ser aferida também pelo cumprimento dos requisitos estabelecidos pela Lei de Defesa do Consumidor - Lei n.º 24/96, de 31/7, com as alterações subsequentes.”
Com efeito, o art.º 17º da LDC (24/96) dispõe o seguinte:
“1 - As associações de consumidores são associações dotadas de personalidade jurídica, sem fins lucrativos e com o objetivo principal de proteger os direitos e os interesses dos consumidores em geral ou dos consumidores seus associados.
2 - As associações de consumidores podem ser de âmbito nacional, regional ou local, consoante a área a que circunscrevam a sua ação e tenham, pelo menos, 3000, 500 ou 100 associados, respectivamente.
3 - As associações de consumidores podem ser ainda de interesse genérico ou de interesse específico:
a) São de interesse genérico as associações de consumidores cujo fim estatutário seja a tutela dos direitos dos consumidores em geral e cujos órgãos sejam livremente eleitos pelo voto universal e secreto de todos os seus associados;
b) São de interesse específico as demais associações de consumidores de bens e serviços determinados, cujos órgãos sejam livremente eleitos pelo voto universal e secreto de todos os seus associados.
4 - As cooperativas de consumo são equiparadas, para os efeitos do disposto na presente lei, às associações de consumidores.”
Por sua vez, o art.º 18º da L 24/96 dispõe o seguinte:
“Direitos das associações de consumidores”
1 - As associações de consumidores gozam dos seguintes direitos:
a) Ao estatuto de parceiro social em matérias que digam respeito à política de consumidores, nomeadamente traduzido na indicação de representantes para órgãos de consulta ou concertação que se ocupem da matéria;
b) Direito de antena na rádio e na televisão, nos mesmos termos das associações com estatuto de parceiro social;
c) Direito a representar os consumidores no processo de consulta e audição públicas a realizar no decurso da tomada de decisões susceptíveis de afectar os direitos e interesses daqueles;
d) Direito a solicitar, junto das autoridades administrativas ou judiciais competentes, a apreensão e retirada de bens do mercado ou a interdição de serviços lesivos dos direitos e interesses dos consumidores;
e) Direito a corrigir e a responder ao conteúdo de mensagens publicitárias relativas a bens e serviços postos no mercado, bem como a requerer, junto das autoridades competentes, que seja retirada do mercado publicidade enganosa ou abusiva;
f) Direito a consultar os processos e demais elementos existentes nas repartições e serviços públicos da administração central, regional ou local que contenham dados sobre as características de bens e serviços de consumo e de divulgar as informações necessárias à tutela dos interesses dos consumidores;
g) Direito a serem esclarecidas sobre a formação dos preços de bens e serviços, sempre que o solicitem;
h) Direito de participar nos processos de regulação de preços de fornecimento de bens e de prestações de serviços essenciais, nomeadamente nos domínios da água, energia, gás, transportes e telecomunicações, e a solicitar os esclarecimentos sobre as tarifas praticadas e a qualidade dos serviços, por forma a poderem pronunciar-se sobre elas;
i) Direito a solicitar aos laboratórios oficiais a realização de análises sobre a composição ou sobre o estado de conservação e demais características dos bens destinados ao consumo público e de tornarem públicos os correspondentes resultados, devendo o serviço ser prestado segundo tarifa que não ultrapasse o preço de custo;
j) Direito à presunção de boa fé das informações por elas prestadas; l) Direito à ação popular;
m) Direito de queixa e denúncia, bem como direito de se constituírem como assistentes em sede de processo penal e a acompanharem o processo contraordenacional, quando o requeiram, apresentando memoriais, pareceres técnicos, sugestão de exames ou outras diligências de prova até que o processo esteja pronto para decisão final;
n) Direito à isenção do pagamento de custas, preparos e de imposto do selo, nos termos da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto;
o) Direito a receber apoio do Estado, através da administração central, regional e local, para a prossecução dos seus fins, nomeadamente no exercício da sua atividade no domínio da formação, informação e representação dos consumidores;
p) Direito a benefícios fiscais idênticos aos concedidos ou a conceder às instituições particulares de solidariedade social.
Do elenco dos direitos desfiados no n.º 1 do art.º 18.º da LDC alguns deles são apenas restritos a associações de consumidores que reúnam alguns requisitos. É isso que nos dizem os n.ºs 2 e 3 do art.º 18.º da referida Lei:
“2 - Os direitos previstos nas alíneas a) e b) do número anterior são exclusivamente conferidos às associações de consumidores de âmbito nacional e de interesse genérico.
3 - O direito previsto na alínea h) do n.º 1 é conferido às associações de interesse genérico ou de interesse específico quando esse interesse esteja diretamente relacionado com o bem ou serviço que é objeto da regulação de preços e, para os serviços de natureza não regional ou local, exclusivamente conferido a associações de âmbito nacional.”
Isto é os direitos ao estatuto de parceiro social em matérias que digam respeito à política de consumidores, nomeadamente traduzido na indicação de representantes para órgãos de consulta ou concertação que se ocupem da matéria (al. a) e direito de antena na rádio e na televisão, nos mesmos termos das associações com estatuto de parceiro social (al. b) é exclusivamente conferido às associações de âmbito nacional e interesse genérico, estando assim excluídos do leque dos direitos que assistem às associações de âmbito regional e local e de interesse específico.
Da mesma forma o direito de participar nos processos de regulação de preços de fornecimento de bens e de prestações de serviços essenciais (nomeadamente nos domínios da água, energia, gás, transportes e telecomunicações, e a solicitar os esclarecimentos sobre as tarifas praticadas e a qualidade dos serviços), é concedido apenas às associações de âmbito nacional cujo interesse esteja directamente relacionado com o bem ou serviço objecto de regulação.
Defende o acórdão recorrido que o conjunto amplo de direitos/faculdades concedidas às associações de consumidores no art.º 18.º da LDC não pode ser desligado, sob pena de irracionalidade interpretativa, do requisito legal de número mínimo de associados, previsto no art.º 17.º da LDC.
E, fazendo apelo a uma interpretação sistemática, racional e teleológica conforme, conclui que a mesma terá necessariamente de resultar numa verdadeira limitação de acesso ao uso de faculdades e recursos previstos na LDC a entidades que a lei entende que não atingem uma dimensão suficientemente representativa do interesse tutelado. Entendemos que tal interpretação não é conforme nem à lei ordinária nem à preocupação constitucional de consagração da acção popular.
Sem prejuízo da pertinência prática e da sagacidade demonstrada em todas as chamadas de atenção que são feitas à incongruência, falta de controlo e abuso de recurso a estas acções por parte de associações de consumidores, entendemos que esses mesmos inconvenientes resultam da amplitude que o legislador quis dar e deu à intervenção de tais associações. Ou seja; não negamos a assertividade das considerações da decisão recorrida do ponto de vista de jure constituendo; mas já não as podemos defender do ponto de vista de jure constituto.
Em prol deste entendimento do Tribunal rebatem-se os argumentos constantes do despacho recorrido com os seguintes:
- os direitos consagrados no art.º 18.º da LDC são atribuídos às associações de consumidores, não sendo requisito constitutivo de uma associação a exigência mínima de número de sócios. Assim, permitir a válida constituição de uma associação de consumidores e depois retirar-lhes todas as faculdades/direitos com base no número de associados, equivaleria a esvaziar a mesma de conteúdo;
- bem ou mal (não interessa aqui discutir), a LAP apenas faz depender a legitimidade activa das associações da sua personalidade jurídica, do seu fim estatutário e do não exercício de actividade profissional concorrente com empresa ou profissão liberal.
- a isto acresce que o legislador noutras situações fez a destrinça, exigindo um número de associados. Exemplo disso são os arts. 31.º e 32.º do Código dos Valores Mobiliários: a propósito do direito de intentar acção popular por parte de associações de defesa de investidores. Nestas situações o legislador foi claro na formulação restritiva conferindo direitos (entre os quais de intentar acção popular) a associações de defesa dos investidores “que reúnam os requisitos previstos no artigo seguinte”. E no art.º seguinte – art.º 32., n.º 2 – refere a exigência de as associações contarem, “entre os seus associados, pelo menos 100 pessoas singulares…” Assumindo que o legislador se expressou da forma mais correcta possível, e tendo o legislador em situações análogas feito a distinção, então poderemos afirmar que, onde o legislador não distinguiu, não deverá o interprete distinguir – art.º 9.º do CC. E muito menos o deverá fazer contrariando a ampla consagração constitucional da acção directa e os poderes nela concedidos às associações (arts. 52.º e 60.º da CRP).
Com efeito, o princípio da interpretação conforme à constituição, conduz a que, de entre os sentidos possíveis da norma, seja a esta atribuído o que, dentro do sentido literal possível, dê à norma um conteúdo em conformidade com a Constituição. Conforme se refere no Ac. R.L. de 01-10-1992, “O princípio da interpretação conforme à Constituição conduz a que de entre os sentidos possíveis da norma, seja a esta atribuído o que, dentro do sentido literal possível, dê à norma um conteúdo em conformidade com a Constituição.”. E afigura-se-nos que a amplitude da consagração constitucional da acção directa e da atribuição de legitimidadade às associações – quer no art.º 52.º, n.º 3, quer no art.º 60.º da CRP – não se compadece com interpretações restrititvas que não resultam nem de elementos literais, nem teleológicos.
A tudo quanto foi dito acrescemos um argumento superveniente. Em Dezembro de 2023 o legislador português transpôs para a legislação nacional a directiva (UE)2020/1828, por meio do DL 114-A/2023.
Se atentarmos nesse diploma vemos que muitos dos argumentos invocados no despacho recorrido foram objecto de preocupação pelo legislador nacional nessa transposição para as concretas situações de acções colectivas para protecção dos interesses do consumidor: desde logo a legitimidade com vista à prevenção de uso anormal do processo de acção popular e também o combate ao desconhecimento da multiplicidade de litígios.
E no que respeita à legitimidade, dúvidas não subsistem que o legislador teve uma oportunidade de ouro e poderia ter esclarecido as dúvidas que se vêm colocando nos últimos anos, restringindo a legitimidade às associações com um determinado número de associados. Mas o certo é que não o fez.
Alargou o elenco de requisitos de legitimidade para intentar a ação, o qual, além dos já previstos na Lei de Ação Popular, passa a incluir requisitos relacionados com a independência das associações e fundações e com o financiamento de acções colectivas por terceiros (art.º 6.º do DL 114-A/2023); e com vista a garantir que os consumidores são devidamente informados sobre as acções colectivas intentadas em Portugal, estabeleceu no referido Decreto Lei, a obrigação de divulgação por parte dos demandantes de um conjunto de informações nesse âmbito, que deverão estar disponíveis nas suas páginas de internet (arts. 19.º e 20.º do mesmo Decreto-Lei).
Assim o art.º 6.º do DL 114-A/2023 dispõe hoje para as acções populares de defesa de interesses do consumidor, sob a epígrafe Legitimidade activa das Associações e Fundações“ que:
1 - Constituem requisitos de legitimidade activa das associações e fundações:
a) A personalidade jurídica;
b) A inclusão expressa, nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários, da defesa dos interesses em causa no tipo de ação de que se trate;
c) O não exercício de qualquer tipo de atividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais;
d) A independência e ausência de influência de pessoas que não sejam consumidores, em especial de profissionais, que tenham um interesse económico em intentar uma ação coletiva, nomeadamente no caso de financiamento por terceiros, e a adoção de procedimentos para impedir a sua influência, bem como para impedir conflitos de interesses entre si, os seus financiadores e os interesses dos consumidores.
2 - Para efeitos do disposto na alínea d) do número anterior, entende-se que uma associação ou fundação é independente, designadamente, se for exclusivamente responsável por tomar as decisões de intentar, desistir ou transacionar no âmbito de uma ação coletiva, tendo por princípio orientador a defesa dos interesses dos consumidores.
Muito embora este DL 114-A/2023 não se aplique à situação concreta sob apreciação - na medida em que do seu art.º 24.º resulta que o mesmo apenas se aplica às acções colectivas intentadas a partir da sua entrada em vigor (que ocorreu no dia seguinte ao da publicação, ou seja 06-12-2023), o que não é o caso da presente – o mesmo não pode deixar de ser tomado em consideração no esforço e tarefa interpretativa do alcance dos arts. 17.º e 18.º da Lei do Consumidor e do art.º 3.º da Lei de Acção Popular.
Este entendimento do Tribunal é, ainda, aquele que encontra respaldo na doutrina e jurisprudência deste Tribunal da Relação de Lisboa.
A nível doutrinário encontramos José Lebre de Freitas ( “Regime da ação popular do art.º 19 da Lei 23/2018”, Revista de Direito comercial, 2022, disponível para consulta aqui). Refere o mesmo na publicação citada que “Perante o texto da Lei, não é duvidosa a legitimidade processual ativa de qualquer associação de defesa dos consumidores, que genericamente tenha como fim estatutário a defesa dos interesses dos consumidores, em geral ou relativos a certo tipo de produto ou serviço, ou que, mais especificamente, tenha como fim estatutário a defesa dos interesses dos consumidores perante atos lesivos da concorrência, para pedir a indemnização a eles devida em consequência de determinada prática anticoncorrencial.” Continuando, “Não contém a LAP nem a LEI qualquer exigência suplementar para as associações de defesa dos interesses coletivos e difusos nas áreas do consumo ou da concorrência. No entanto, o art.º 17-2 LDC (Lei 24/96, de 31 de julho) estabelece uma classificação tripartida das associações de consumidores em função da área a que circunscrevem a sua ação, exigindo que tenham, pelo menos, 3000 associados as que atuam no âmbito nacional, 500 associados as que atuam no âmbito regional e 100 as que atuam no âmbito local. A todas sendo conferido o direito de acção popular (art.º 18-1-l LDC), será que não o têm as associações de consumidores que não satisfaçam o requisito da existência desse número mínimo de associados?
Entende-se por associação de consumidores uma associação com personalidade jurídica, sem fim lucrativo e com o objetivo principal de proteger os direitos e os interesses de consumidores em geral ou dos consumidores seus associados (art.º 17 LDC).
A associação pode assim atuar no interesse dos seus associados ou no interesse, mais geral, desses e outros consumidores; mas é, ela própria, uma associação de consumidores.
Compreende-se que, estando em causa uma sua atuação material, isto é, uma intervenção nas condições de funcionamento do mercado ou na ação administrativa (por exemplo, a representação dos consumidores em processo de consulta ou audição pública, na solicitação da retirada de bens do mercado ou de uma resposta ao conteúdo duma mensagem publicitária, ao lado de muitas outras enunciadas no art.º 18-1 LDC), a sua dimensão, expressa no número de associados, releve na definição do campo geográfico em que atua.
Mas tal deixa de fazer sentido quando passamos para o campo adjetivo do exercício da ação popular, tido nomeadamente em conta que qualquer cidadão, individualmente, a pode exercer. Se se considerasse que a exigência do mínimo de 100 associados é requisito constitutivo da associação ou pressuposto do exercício das suas funções, esse mínimo ser-lhe-ia sempre indispensável para exercer o direito de ação popular (art.º 3-a LAP). Mas não é assim: trata-se apenas de requisito exigido para a generalidade das atuações da associação, como bem mostram os n.ºs 2 e 3 do art.º 18. Não é este o caso da ação popular, como inequivocamente resulta do art.º 3 LAP, que só faz depender a legitimidade ativa das associações de consumidores, ainda que não diretamente lesados.
Acresce que a associação de defesa dos consumidores não tem de coincidir com uma associação de consumidores. Mostra-o, em primeiro lugar, a Constituição.
Das associações de consumidores trata o art.º 60 CRP, que lhes reconhece legitimidade processual para defesa dos seus associados ou de interesses coletivos ou difusos. Ora esta atribuição não faria sentido se constituísse mera repetição da atribuição de legitimidade feita no art.º 52-3 CRP, que, como se viu, já confere o direito de acção popular às associações de defesa dos direitos dos consumidores. A dualidade significa que os conceitos de associação de consumidores e de associação de defesa dos consumidores não coincidem: uma associação de cidadãos que tenha como fim estatutário a defesa dos interesses dos consumidores em geral ou de determinada categoria de consumidores não tem de ser constituída por consumidores ou da sua personalidade jurídica, do seu fim estatutário e do não exercício de atividade profissional concorrente com empresa ou profissão liberal. Aliás, só para a LAP, que não faz qualquer exigência desse tipo, remete o art.º 13-b LDC, ao reconhecer a legitimidade para propor a ação popular aos consumidores, ainda que não diretamente lesados.
Acresce que a associação de defesa dos consumidores não tem de coincidir com uma associação de consumidores. Mostra-o, em primeiro lugar, a Constituição.
Das associações de consumidores trata o art.º 60 CRP, que lhes reconhece legitimidade processual para defesa dos seus associados ou de interesses coletivos ou difusos. Ora esta atribuição não faria sentido se constituísse mera repetição da atribuição de legitimidade feita no art.º 52-3 CRP, que, como se viu, já confere o direito de acção popular às associações de defesa dos direitos dos consumidores. A dualidade significa que os conceitos de associação de consumidores e de associação de defesa dos consumidores não coincidem: uma associação de cidadãos que tenha como fim estatutário a defesa dos interesses dos consumidores em geral ou de determinada categoria de consumidores não tem de ser constituída por consumidores ou por consumidores dessa categoria; perante ela, não se põe a questão de ter atuações concretas no interesse dos seus associados ou dos consumidores nela não associados; por definição, atua no domínio dos interesses coletivos ou difusos, podendo, aliás, defender também, se assim disserem os seus estatutos, outro tipo desses interesses.
Tida em conta a disposição do art.º 60 CRP, a associação de consumidores é, por inerência, uma associação de defesa dos consumidores, podendo exercer a ação popular se o consentirem os seus estatutos. Mas a inversa não é verdadeira e a associação de defesa dos consumidores que não seja uma associação de consumidores não está sujeita à mesma exigência de representatividade que para esta se põe. Muito menos, como se deixou dito, quando se trata de propor ações populares.”
Em termos jurisprudenciais, para além do Ac. da R.L. de 20-06-2022 (já supra citado), convoca-se igualmente – em reforço da posição por nós adoptada – o Ac. da R.L. de 04-12-2018.
Para além desta ser a posição do Tribunal ancorada numa interpretação sistémica e conforme à Constituição, e que encontra guarida na doutrina e jurisprudência dos Tribunais superiores, afigura-se-nos que o apelo às discussões doutrinárias ao longo do tempo (elemento histórico) nos aponta, igualmente, na mesma direcção.
Senão vejamos:
A circunstância de tanto o legislador constitucional, como o legislador ordinário, terem atribuído legitimidade às associações para requerer a tutela dos interesses supraindividuais é uma consequência natural da crescente importância que as mesmas têm vindo a adquirir nas sociedades modernas, mas também da função de mediação que exercem entre a sociedade e o Estado – neste sentido Miguel Teixeira de Sousa, “A legitimidade Popular na Tutela dos Interesses Difusos”, Lisboa, Lex, 2003, pág. 72.
Sem prejuízo desse reconhecimento, o legislador previu alguns critérios legais que as associações e fundações têm de cumprir para que lhes seja atribuída legitimidade para propor uma acção popular, razão pela qual lhes é exigido personalidade jurídica, incluir expressamente nas suas atribuições ou objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa na acção e ainda que não exerçam qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais.
Relativamente ao direito comparado, o nosso país, ao contrário na tendência nos restantes países da Europa, não exige prévia certificação do governo, nem tão pouco que se encontre em actividade há determinado tempo.
De certa forma o legislador acabou por reconhecer as inúmeras vantagens que as associações apresentam, nomeadamente em termos financeiros, para poderem mobilizar recursos que, individualmente, os sujeitos dificilmente poderiam dispor.
Foi questão juridicamente debatida – e que indirectamente em termos históricos, poderá dar uma achega na busca da resposta que procuramos – saber se a associação enquanto autora de uma acção popular exercia, ou não um direito próprio. Houve alturas em que se defendeu que as mesmas possuíam legitimidade actuando em defesa de um direito próprio que também se mostrava coincidente com o interesse colectivo ou difuso. Não obstante, a circunstância de determinada associação apresentar como finalidade estatutária a protecção de determinados interesses, não pressupõe uma atribuição da titularidadedesse interesse à associação. E nesse sentido, Teixeira de Sousa (ob. citada pág. 27) referia que fosse possível que os associados pudessem transferir o seu próprio interesse para a associação, nunca poderiam excluir os demais titulares do gozo do mesmo bem colectivo, na medida em que a “prossecução do fim estatutário da entidade colectiva não implica qualquer apropriação do interesse difuso que ela defende”.
Raquel de Jesus Caetano (in “A acção popular (civil) como instrumento de tutela colectiva”- dissertação no Âmbito do Mestrado em Direito Ciências Juridico-Civilisticas”, Universidade de Coimbra, Outubro 2020) questiona-se até acerca de uma eventual admissibilidade de atribuição de legitimidade para agir a associações ou formações sociais que não se encontrem regularmente constituídas e não cumpram os critérios previstos na lei, na medida em que o espirito associativo em Portugal tem uma expressão reduzida e limitada, o que poderia levar a equacionar-se a utilidade de associações ad hoc poderem vir a propor a acção na qualidade de associações (neste sentido também José Carlos Barbosa Moreira, “A protecção jurídica dos interesses colectivos”, in Revista de Direito Administrativo, 139, 1980, pág. 6).
Nesse mesmo sentido se orienta Miguel Teixeira de Sousa (ob. cit. pág. 201) ao não ver impedimento numa associação personalizada propor a acção, na medida em que qualquer pessoa individual a pode intentar, independentemente de ser ou não representante adequado.
Este mesmo entendimento já havia sido defendido na década de 70 por Stefano Rodota (“La azoine civilistiche”, 1976, pag. 81-102) e Rodolfo Camargo Mancuso (“interesses difusos. Conceito e legitimação para agir”, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo 1997) – ambos citados por Raquel de Jesus Caetano na obra supra citada.
Serve esta discussão jurídica para demonstrar que ao longo dos tempos a tendência doutrinária sempre foi no sentido de remover limitações à legitimidade das associações e nunca a de impor restrições superiores às que os requisitos legais já impunham.
Por tudo o exposto, e sem prejuízo da meritória e pertinente fundamentação da decisão recorrida, terá a presente apelação de proceder.
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IV. Decisão:
Por todo o exposto:
Acorda-se em julgar procedente o recurso de apelação interposto por c, revogando o despacho recorrido, devendo o Tribunal recorrido, considerando a legitimidade processual da Autora, fazer seguir a normal tramitação dos autos.
Custas pela apelada.
Registe e notifique.
Lisboa, 10 de Outubro de 2024
Maria Teresa Mascarenhas Garcia
Elsa Melo
Cláudia Barata
_______________________________________________________ [1] Supra cit.