RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
TENTATIVA
ARMA DE FOGO
FRIEZA DE ÂNIMO
IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I. A acção do arguido preenche a agravante “frieza de ânimo” prevista no art.º 132.º n.º 2 al. j) do Código Penal quando, após uma discussão num café sobre simpatias clubísticas e concomitante troca de insultos com o ofendido, adepto de clube rival, foi a casa, munindo-se de uma arma de fogo apta a disparar munições de calibre 6.35mm, e regressando, estacionou a viatura em local estratégico que lhe permitia ver o ofendido sair do café, aguardando, nestas circunstâncias, cerca de uma hora e meia, atraindo aquele e aproveitando-se da vontade que este também teria de tirar desforço de provocações, arrancando e parando sucessivamente a viatura para ir em aproximação daquele, em local onde era menos provável a movimentação de pessoas, por se situar a 200 metros do estabelecimento e, quando o ofendido se encontrava em local mais afastado, sozinho e desarmado no meio da estrada, saiu da sua viatura e efectuou 4 disparos seguidos sobre o mesmo bem como, quando o ofendido já se encontrava caído no chão e totalmente vulnerável, aproximou-se do mesmo e, a menos de um metro, efectuou um 5.º disparo à cabeça. não lhe dando qualquer hipótese de se defender, atingindo-o no tórax, na mão, no ombro esquerdo e na cabeça, regiões do corpo onde sabia que se situam órgãos vitais à vida humana, e que o mesmo quis atingir, como conseguiu.
II. Todo o contexto da acção do arguido, sendo certo que a dissidência de gostos desportivos e clubísticos de forma alguma poderia justificar o desagravo ao ponto a que chegou, ainda que recheado de expressões menos “generosas” e deselegantes dirigidas um ao outro, revelou que aquele teve muito tempo para se acalmar, pensar no sucedido, actuar com serenidade e não dar a importância que quis dar ao confronto verbal com o ofendido, tendo tido muito tempo para agir reflectidamente e, nomeadamente, para também por poder optar por não fazer o que fez.
III. No que concerne à frieza de ânimo, ela envolve certas características como tibieza, impassividade, indiferença ou insensibilidade à dor, a sentimentos ou emoções de outrém, firmeza de reflexão e amadurecimento, irrevogabilidade e intensidade da resolução criminosa e na correspondente execução do crime. A influência do factor tempo, e o facto de se ter estudado a forma de preparar o crime, demonstram uma atitude de maior desvio em relação à ordem jurídica. O decurso do tempo deveria fazer o agente cessar a sua vontade de praticar o crime, quanto mais medita sobre a sua prática mais exigível se torna que não actue desse modo». No fundo, a frieza de ânimo verifica-se quando o crime tenha sido praticado a coberto de evidente sangue-frio, pressupondo um lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo e imperturbado processo de preparação e execução do crime, congeminado por forma a denotar insensibilidade, indiferença pelos outros e profundo desrespeito pela pessoa humana, pela saúde e integridade física e vida alheias, residindo a justificação da agravação na insensibilidade e resistência persistente às contra-motivações sociais e ético-jurídicas que o levariam a desistir do seu desígnio, reveladora de uma vontade criminosa particularmente intensa e, portanto, de especial perigosidade.
IV. A frieza de ânimo é só uma das três possíveis manifestações de premeditação e refere-se tanto ao processo de formação da vontade criminosa, como ao processo de execução dessa vontade, ou seja, ao modo de consumação do crime, sendo certo que a verificação da agravante modificativa prevista no art. 132º nº 2 al. j) do Código Penal não exige a verifica-se cumulativa da frieza de ânimo, da reflexão sobre os meios empregados e da persistência da intenção de matar por mais de 24 horas, como resulta, desde logo, do uso da disjuntiva «ou» entre as expressões «reflexão sobre os meios empregues» e «ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas» mas, sobretudo, porque essa é a solução que se coaduna com a razão de ser da inclusão destas circunstâncias como índices da agravação do homicídio.
V. Aparte as críticas que se podem fazer à inserção desta última vertente da premeditação e da fixação deste limite temporal para ilustrar a firmeza da vontade criminosa, o que importa salientar, é que até é especialmente na execução criminosa que a frieza de ânimo tem o seu âmbito de revelação.]

Texto Integral



Recurso- Processo 1237/22.7JACBR.C1.S1

Acordam em Conferência na 5ª Secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I-RELATÓRIO

1. Nos presentes autos 1237/22.7JACBR por acórdão de ... de ... de 2023 do colectivo de juízes do Tribunal Judicial da Comarca de ... Juízo Central Criminal de ... - ... 1 foi decidido:

“(…) julgar procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência:

1. Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e concurso efectivo, de:

a. um crime de homicídio qualificado, agravado (pelo uso de arma) na forma tentada, p. e p. pelos art.os 131.º, 132.º, n.os 1 e 2 al. j), 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal e 86.º, n.os 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e suas Munições [praticado em .../.../2022], na pena de 11 (onze) anos e 8 (oito) meses de prisão;

b. um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1 al. c) (em concurso aparente com o crime previsto na al. e) do mesmo normativo) do Regime Jurídico das Armas e suas Munições [praticado em .../.../2022], na pena de 2 (dois) anos de prisão.

Em cúmulo jurídico das penas parcelares acima referidas em a) e b), condenar o arguido AA na pena única de 12 (doze) anos e 2 (dois) meses de prisão.

2. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, de uma contra-ordenação por não renovação da licença de uso e porte de arma, p. e p. pelo art. 99.º-A, n.º 2 do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, na coima de € 400,00 (quatrocentos euros);

3. Nos termos do art. 22.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, declarar perdidos a favor do Estado a arma caçadeira e os cartuchos apreendidos a fls. 63 e ss. e examinados a fls. 422, mais determinando que se proceda à sua oportuna entrega à PSP, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 78.º do Regime Jurídico das Armas e suas Munições (…)”

2. O arguido recorreu para o Tribunal da Relação de ... tendo este decidido, por acórdão de ... de ... de 2024, na 4ª Secção:

“1. Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, e, consequentemente, confirmam na íntegra o acórdão recorrido. “

3. A decisão recorrida

Em sede de motivação de facto, deflui do acórdão da 1ª instância confirmado pelo TRC, o que, de seguida, na parte relevante, se transcreve:

[ a. Provados os seguintes factos:

1. Na noite de ... de ... de 2022 foi transmitido pela televisão o jogo de futebol da ..., entre as equipas da ... e do ..., com inicio pelas 20:00 horas, estando o ofendido - BB – e o arguido – AA a assistir ao referido jogo no interior do café ..., sito na localidade de ..., local onde também se encontravam outras pessoas.

2. A determinada altura, e motivados por questões clubísticas, por serem de clubes nacionais distintos (e na sequências de outras altercações que já tinham ocorrido noutras circunstâncias em datas não concretamente apuradas), o ofendido BB e o ora arguido travaram-se de razões, com troca de provocações, sendo que quando o arguido festejava mais uma vitória do ..., o ofendido disse em voz alta: “até parece que já sois campeões”, ao que o arguido, dirigindo-se ao balcão para pagar, disse “não ligo a merda!”.

3. Perante este comentário, o ofendido levantou-se e perguntou se aquilo era para ele, ao que o dono do café disse que não, e que se fosse sentar.

4. Terminada a transmissão do jogo, o arguido saiu do estabelecimento de café, tendo o ofendido proferido a seguinte expressão “vai dar o cu ao cão, cabrão”.

5. O arguido saiu do café, cerca das 22:00 horas e entrou para o seu veiculo automóvel de marca ..., de cor cinzenta, com a matricula ..-..-UN, e dirigiu-se a casa da mãe, onde estava a pernoitar, sita no ..., enquanto BB continuou no interior do café.

6. Contudo, momentos depois o arguido regressou ao local, estacionando a sua viaturas, às 22:25 horas, numa artéria secundária, perpendicular à estrada principal, ao lado do café ..., com alcance visual para quem saía do café e para o local onde estava estacionada, do lado contrário da estrada, a viatura pertencente ao ofendido BB, ficando o arguido no interior da sua viatura à espera daquele, para tirar desforço da contenda ocorrida.

7. Cerca de uma hora e meia depois, ou seja, por volta das 00:00 horas do dia .../.../2022, o ofendido BB saiu do café e dirigiu-se ao seu veiculo automóvel – um Mercedes Sprinter de cor branca e matrícula ..-DD-.. - que estava estacionado na berma oposta à do café, na direcção ..., passando apeado pela viatura do arguido estacionada perpendicularmente à estrada, do lado do café.

8. O ofendido BB entrou na sua viatura e iniciou manobra de inversão de marcha, entrando com a frente na via onde a viatura do arguido se encontrava estacionada, pelo que o viu a gesticular sentado no lugar do condutor do Mazda, de cor cinzenta, com a matricula ..-..-UN, saindo do seu Mercedes Sprinter para o questionar.

9. O arguido, quando viu o ofendido vir na sua direcção, arrancou e conduziu o seu Mazda, de cor cinzenta, com a matricula ..-..-UN, virando à direita na estrada principal, em direcção a ..., parando cerca de 40mt à frente, o que levou o ofendido a seguir na sua direcção apeado.

10. Quando o ofendido já estava a aproximar-se, o arguido arrancou novamente e parou cerca de 40 metros mais à frente, continuando o ofendido no seu encalce, situação que ocorreu cerca de três vezes, com o arguido a arrancar e a parar cerca de 40 metros mais à frente e o ofendido a tentar alcançá-lo.

11. Quando se encontrava a cerca de 200metros do local onde o ofendido havia abandonado a carrinha, no sentido ..., o arguido imobilizou a sua viatura, saiu para o exterior com uma arma de fogo apta a disparar munições de calibre 6.35 mm, na mão e efectuou um disparo em direcção ao ofendido que se encontrava a cerca de 3 metros de si, atingindo-o no tórax.

12. Ao sentir o disparo o ofendido levantou a mão e o arguido disparou contra ele a arma de fogo uma segunda vez, atingindo-o na mão.

13. Após o segundo disparo, o ofendido virou-se para tentar fugir, voltando as costas ao arguido, tendo este disparado outra vez contra ele a arma de fogo, atingindo-o no ombro esquerdo.

14. Após o terceiro disparo, o ofendido caiu no chão, altura em que o arguido desferiu contra ele um 4º disparo que não lhe acertou.

15. Depois, o arguido aproximou-se do ofendido, e a menos de 1 metro de distância, estando o ofendido no chão, efectuou com a arma de fogo o 5º disparo, que o atingiu na cabeça.

16. Após ter efectuado cinco (5) disparos contra o ofendido BB, que o atingiram no peito, na mão, no ombro esquerdo e na cabeça, o arguido pôs-se em fuga, seguindo na sua viatura, e deixando o ofendido prostrado no chão e cinco (5) invólucros de calibre 6.35 mm.

17. Os disparos foram ouvidos pela testemunha CC, que reside perto do local onde ocorreram os factos, o qual ainda viu uma viatura de marca Mazda, de cor cinzenta, a arrancar a grande velocidade, tendo logo diligenciado pela assistência à vitima quando se apercebeu que estava prostrada no chão, ligando ele para a GNR, e a esposa para o 112 e para os Bombeiros.

18. O ofendido BB foi transportado ao ... em ..., onde foi assistido, sendo visíveis três orifícios de entrada de projecteis de arma de fogo, um craneo encefálico ao nível da região parietal esquerda, outro, no ombro esquerdo e outro, na face anterior do tórax, à direita, que determinaram o seu internamento naquela unidade hospitalar.

19. Em consequência dos disparos efectuados pelo arguido, o BB apresentava: equimoses dispersas nos membros com hematoma e deformidade do ombro e braço esquerdos com orifício de bala sangrante; TCE parietal esquerdo por porta de entrada de bala; trauma torácico penetrante por projéctil de pequeno calibre com porta de entrada no hemitórax anterior direito e enfizema sub-cutâneo, sem hemorragia activa.

Realizou exames de imagem que evidenciaram projéctil localizado no cérebro, traumatismo torácico com projéctil alojado na parede dorsal e projéctil no ombro esquerdo com fractura da diáfise.

Foi colocado DIC à esquerda.

Foi submetido a craniotomia e desbridamento do projéctil e retirada de fragmentos ósseos e material cerebral necrosado e cranioplastia com rede de titânio.

Ficou internado na ....

A situação complicou-se com encefalopatia e agitação e foi tratado com neurolépticos.

Foi extubado às 36 horas de pós operatório.

Em .../.../2022 foi retirado DIC.

Em ... foi submetido a nova intervenção para reparação da fractura cominutiva da diáfise proximal do úmero, remoção do projéctil que estava alojado no deltóide e encavilhamento do úreo esquerdo.

Em ... foi removida limalha do olho esquerdo por ....

Teve alta hospitalar em .../.../2022 com boa evolução cicatricial das feridas cirúrgicas e sem queixas de relevo.

20. - 20) Em ...-...-2023 o ofendido apresentava as seguintes sequelas:

▪ No crânio: cicatriz de ferida cirúrgica com afundamento na região parieto-temporal esquerda com 9 centímetros; cicatriz arredondada da região retro-auricular esquerda com 5 milímetros;

▪ Na face: hipostesia peribucal à direita

▪ No tórax: cicatriz cirúrgica do 5º espaço intercostal com 2 centímetros; cicatriz de entrada de projéctil na região do hemitórax direito, face anterior com 5 milímetros ao nível do 3º espaço intercostal e na linha mamilar

▪ No membro superior direito: parestesias nos 1º e 2º dedos da mão; sem défices de mobilidade ou alterações de força;

▪ No membro superior esquerdo: cicatriz de ferida cirúrgica da face anterior do ombro com extensão ao terço distal do braço com 22 cm de comprimento; cicatriz da face anterior do terço inferior do braço com 2 cm; cicatriz arredondada da face lateral externa do terço superior do braço com 5 milímetros; cicatriz arredondada da face posterior da mão ao nível da tabaqueira anatómica com 5 milímetros e outra ao nível do espaço interdigital entre o primeiro e o segundo dedos; limitação da mobilidade do ombro com flexão possível a 90º, abdução a 80º, rotação interna -mão/ilíaco posterior esquerdo e RE sem alterações; sem limitação da mobilidade do cotovelo, punho ou dedos da mão

21. Concluiu-se no relatório pericial efectuado nos autos ao ofendido que:

▪ A data da consolidação das lesões é fixável em .../.../2023

▪ As lesões determinarão, em condições normais, 391 dias para a consolidação: com afectação da capacidade de trabalho geral (391 dias) e com afectação da capacidade de trabalho profissional (391 dias).

▪ Do evento resultaram para o Examinado as sequelas permanentes descritas, que afectam de forma grave a sua capacidade de trabalho profissional

▪ Do evento resultou, em concreto, perigo para a vida do ofendido.

22. Não se mostram ainda consolidadas as sequelas neurológicas e psiquiátricas.

23. No dia .../.../2022, o arguido guardava no interior da habitação onde pernoitava, sita no ...:

▪ uma espingarda de marca “Maverick” calibre 12 com o nº MV23718H, municiada com três cartuchos, dois com chumbo 6 e um com chumbo 7.5;

▪ três cartuchos, sendo um carregado com chumbo 4, outro carregado com chumbo 6 e o outro carregado com chumbo 7.5 ,

▪ seis cartuchos de calibre 12, sendo dois com carregamento de bala e quatro com carregamento de zagalote,

▪ oito cartuchos de calibre 12, sendo cinco carregados com chumbo 4, um com chumbo 6, e dois com bagos de borracha.

24. O arguido possuía arma apta a disparar munições de calibre 6,35mm, cujas características conhecia, e que usou para disparar contra o ofendido nos termos descritos - não estando a mesma registada em seu nome, nem tendo o mesmo licença para a sua detenção.

25. O arguido sabia também que a licença de uso e porte de arma de caça de que foi titular, já se encontrava caducada desde ..., não tendo diligenciado pela revalidação da mesma, pelo que não poderia deter naquelas circunstâncias a caçadeira que lhe foi apreendida – Maverick, modelo 88, de calibre 12 -, nem os cartuchos e munições que lhe foram apreendidos, o que sabia.

26. O arguido conhecia as características dos cartuchos carregados com bala e com zagalotes que detinha e que lhe foram apreendidos, bem sabendo não lhe ser permitida a posse/detenção dos mesmos, uma vez que não estava autorizado a tal.

27. Ao actuar como se descreve, o arguido agiu deliberadamente com o propósito de tirar a vida ao ofendido BB para tirar desforço do desentendimento ocorrido antes no café, só o não tendo conseguido por circunstâncias alheias à sua vontade, nomeadamente pelo facto de o BB ter sido rapidamente encontrado e transportado ao Hospital.

28. O arguido agiu de forma premeditada e com frieza de ânimo, tendo-se previamente munido de uma arma de fogo apta a disparar munições de calibre 6.35mm, FN, de origem ..., esperando no interior do veiculo que o BB saísse do café, abordando-o depois e disparando contra o mesmo por cinco vezes, não lhe dando qualquer hipótese de se defender, atingindo-o no tórax, na mão, no ombro esquerdo e na cabeça, regiões do corpo onde sabia que se situam órgãos vitais à vida humana, e que o mesmo quis atingir, como conseguiu.

29. Em todas as situações descritas o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas.

Mais se provou que:

30. Do certificado do registo criminal do arguido nada consta.

31. À data a que correspondem os alegados factos (...) o arguido constituía agregado com a sua companheira, residindo com esta e um filho da mesma (maior de idade e fruto de uma anterior relação) na morada constante dos autos, em habitação propriedade de DD, sua companheira.

32. Tendo o arguido concluído o 12.º ano de escolaridade e logrado na idade adulta o ingresso no ensino superior – curso de Gestão de Recursos Humanos na ... (apresentando assim habilitações literárias superiores à escolaridade mínima obrigatória para um elemento da sua idade) registava um perfil de empregabilidade dissonante de tal circunstância uma vez que formalmente, o exercício da ultima actividade remontou a .../.../2011 (data de cessação do contrato com a empresa ...) estando por isso em situação formal de desemprego de longa duração.

33. Na sequência da instauração dos presentes autos, ingressou a .../.../2022 em meio prisional (prisão preventiva) passando ao cumprimento da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação desde .../.../2023, situação que subsiste na actualidade, sendo que o mesmo cumpre com os propósitos subjacentes à medida (confinamento e conduta cordata com a respectiva Equipa Técnica).

34. O arguido continua a constituir agregado com a sua companheira e filho desta, sendo que os rendimentos do agregado se centram no salário de DD, situado em cerca de 750 euros líquidos mensais, sendo as principais despesas subjacentes à vida quotidiana no valor global de 200 euros, nomeadamente alimentação, higiene pessoal e ambiental (80 euros) luz e gás (60) e água (50 euros). A habitação não apresenta encargos, em virtude da amortização integral do empréstimo bancário destinado à sua aquisição. Os rendimentos do agregado serão ainda complementados pelo apoio que o filho da companheira do arguido presta à economia familiar, no valor médio de 300 euros mensais e pelo apoio que o arguido diz receber de uma tia (algum dinheiro e alimentação) pelo que em face do quadro apurado se avalia que o mesmo, aparentemente apresenta vulnerabilidade e dependência face a terceiros para supressão das necessidades de subsistência. Ainda assim o quadro formal de desemprego de longa duração dificulta a real compreensão do histórico de financiamento do modo de subsistência ao longo da sua vida activa.

35. No passado e em face da condenação sofrida em sede do processo 233/13.0... (pela prática dos crimes de difamação, calunia e três crimes de dano simples dirigidas a uma ex companheira), o arguido requereu a substituição da pena de multa (em cumulo jurídico) por trabalho a favor da comunidade (180 horas) vindo a cumprir tal decisão a favor do ..., entre ... e ... de ... de 2018. O arguido faltou alguns dias ao trabalho comunitário, que justificou com problemas de saúde e necessidade de apoio à progenitora, sendo que junto da entidade, AA deu apoio à secretaria e ao arquivo da escola. Segundo a avaliação da entidade beneficiária, o arguido: “Desenvolveu, sempre, as funções que lhe foram atribuídas, com empenho e profissionalismo. Estabeleceu uma boa (relação?) com os restantes membros de serviço.”(sic)

36. Resulta do relatório social que: “AA verbaliza ansiedade ante o eventual desfecho que os presentes autos possam ter para si, nomeadamente face a uma hipotética condenação que determine a perda de liberdade, que a ocorrer, comprometeria os seus projectos de vida. (…). Relativamente ao processo em causa, o arguido evidencia limitações ao nível da consciência crítica quanto à sua constituição como arguido, minimizando essa condição. Não obstante, AA denota uma certa capacidade de ajustamento face a eventuais imposições judiciais, avaliação consubstanciada pela disponibilidade manifestada no cumprimento de anterior decisão judicial e ao nível da observância da medida de coacção. Contudo, em caso de condenação verifica-se que o posicionamento do arguido, que minimiza a existência de eventuais impactos negativos decorrentes da sua conduta em terceiros, poderá indiciar a presença de constrangimentos a um efectivo processo de mudança pessoal.”

*

b. Não provados os seguintes factos:

a) Que a arma utilizada pelo arguido para efectuar os disparos fosse uma pistola, ou que fosse de marca Browning.”

*

c. Motivação de facto:

“ A convicção do tribunal assentou no conjunto da prova produzida nos autos, criticamente analisada à luz de regras de experiência e segundo juízos de normalidade.

Consideraram-se, desde logo, as declarações do arguido que, embora negasse a autoria dos disparos, confirmou ter ocorrido um desentendimento com o ofendido momentos antes e ter esperado à porta do café para falar com ele quando saísse.

Assim, relatou que:

Esteve no café paris, onde viu futebol. Não teve nenhuma altercação com o ofendido, viu o jogo calmamente e no final do jogo levantou-se, deu duas palmas e disse para si próprio “boa, EE, 12 jogos, 12 vitórias”, dirigindo-se ao balcão para pagar e comprar tabaco. Disse baixinho ao dono do café (porque o ofendido estava sempre com impropérios) “não ligo a conversa de merda”, ao que o ofendido levantou-se da mesa onde estava, aproximou-se do declarante e disse “estás a falar para mim, eu parto-te todo, eu dou cabo de ti”, ao que o dono do café disse “vai lá sentar-te na mesa, beber a tua cerveja, porque o sr. não falou de ti”.

Foi para casa e foi jantar, pensa que seriam 22:08, 22:10h.

Pegou no carro que estava à porta do estabelecimento com cachorro lá dentro e quando estava a sair, o sr. FF disse uma última provocação, “anda lá cabrão, vai lá dar o cu ao cão, seu filho da puta”, mas o declarante passou, não ligou, como não lhe ligou no café, nem quando lá ia, nunca ligou às provocações.

Mas depois ficou a pensar e como pensa que a conversar é que as pessoas se entendem, decidiu ir falar com ele, para ver se isto não se repetia, até porque era o café onde ia comprar cigarros, para ver se ele mudava de atitude.

Voltou lá (já sem o cão), estacionou numa rua perpendicular, e aguardou que ele saísse para terem uma conversa, porque esperava que fosse uma conversa saudável.

O sr. FF sai pela meia-noite do café, num “estado alcoólico elevadíssimo”, atravessou a estrada a cambalear, dirigiu-se ao veículo, fez manobra para inversão, com os faróis de frente para o carro do declarante e começou a tentar provocá-lo com o carro, ao que o declarante se manteve quietinho. Ele saiu do carro, veio para fora, dirigiu-se ao vidro do seu carro com gestos agressivos, disse “sai cá para fora, que eu dou cabo de ti, seu filho da puta, parto-te todo”. Como se manteve caladinho, ele voltou para dentro da carrinha, mexeu a carrinha um bocado para trás, o que lhe deu espaço para passar, pelo que arrancou e virou à direita para as .... Ainda afrouxou um bocadinho para desembaciar o vidro de trás, e nessa altura reparou que ele vinha a cambalear atrás do carro, pelo que foi embora. Negou que tivesse parado a viatura, só afrouxou.

Negou alguma ter tido uma arma 6.35mm.

Quanto à arma caçadeira, comprou-a em ..., através de amigos da ... em ..., para matar javalis, que davam cabo das culturas da tia. A tia queixava-se muito de não ter ninguém que afugentasse os javalis. Legalizou-a e teve licença emitida pela ....

Quanto aos resíduos de disparos de armas de fogo, referiu que os inspectores já lhe tinham perguntado se tinha disparado a caçadeira, e na altura, atrapalhado, disse que não, mas depois recordou-se que uns dias antes, pegou na caçadeira e pôs alguns cartuchos para enxotar uns corvos (que fazem muito barulho), pensa que foi no sábado anterior, um dia húmido, deu 2 tiros com a caçadeira, ao pé do cemitério novo de ..., que fica a cerca de 600 metros da casa da mãe. E levou carro para não ir com a caçadeira na mão e porque estava a chover. Pôs caçadeira no banco do passageiro. Disparou através da janela do pendura, para o ar.

Esclareceu que a arma caçadeira normalmente estava na residência em .... Mas desta vez estava em casa da mãe, por acaso, porque a tia continua a queixar-se que os javalis continuam a ser muitos.

Só usou arma no tiro aos pratos e uma vez no barrocal. Só a trouxe duas vezes para o ..., quando a comprou e quando foi apreendida.

Os cartuchos foram-lhe dados por amigos caçadores, escolhia os cartuchos azuis, que eram os mais fraquinhos. Um amigo de GG deu-lhas num saco de plástico. Disse não saber para que eram os cartuchos de bala, nem os de zagalotes.

Confirmou que conduzia um Mazda 6, cinzento escuro.

Já a versão do assistente, embora coincida no tocante ao ocorrido no interior do café ..., é bem diversa daquela.

Afirmou o assistente BB que:

Estavam no café e o declarante estava contra o ... (queria que perdesse) e estavam numas picardias (já o tinha visto antes 3 ou 4 vezes e já tinham tido outras diferenças de opinião). O arguido não se manifestava verbalmente, mas fazia gestos, batia na mesa, e olhava para o declarante. A dada altura, disse “não sei quantas vitórias”, eu respondi “parece que já sois campeões”. Ele levantou-se para ir pagar e disse “não ligo a merda”, ao que o declarante se levantou também e perguntou “isso é para mim?”, tendo o dono do café dito “senta-te que isso é para mim”.

Questionado, disse ser provável que lhe tenha dito (mas sem se levantar da cadeira e quando ele estava a sair) para ir “dar o cu ao cão”. Referiu que ele costumava levar o cão, que comia à mesa com ele.

Ficou no café com os colegas, até cerca de 5, 10m antes da meia-noite. Dirigiu-se ao carro, foi fazer inversão de marcha, altura em que o arguido, que tinha o carro virado para a estrada, fez sinal de luzes, fez um gesto para lá ir. Parou ao lado dele, e quando estava a contornar a carrinha por trás, ele arrancou, virou à direita. Depois ele parou, e o declarante foi a caminhar em direcção ao carro, ele arrancou e parou 3 ou 4 vezes, e numa zona mais escura saiu e deu-lhe cinco tiros. Os primeiros 4, seguidos, o declarante caiu, ele fez uma pausa e deu o último tiro. Os primeiros dois tiros atingiram-no de frente, depois tentou fugir, mas não conseguiu, caiu. O arguido deu o primeiro, no segundo o declarante pôs a mão para se proteger, e depois caiu. Ouviu o 5.º tiro, ficou com um zunido na cabeça. O arguido estava a uma distância no máximo de 3 metros, nos primeiros dois tiros, mas depois não sabe porque virou-se. Não sabe a que distância estava aquando do último tiro. O 1.º tiro atingiu-o no peito, o 2.º na mão esquerda, o 3.º no ombro esquerdo, já de costas a tentar fugir, o 4.º provavelmente falhou e o 5,º na cabeça. Durante todo este tempo, o arguido não disse nada.

Referiu que o arguido tinha uma ... 6 cinzenta. O arguido usou uma pistola, não sabe as características, mas era uma arma pequena.

Ainda se lembra do colega HH a perguntar-lhe se tinha levado uns tiros, se tinha sido baleado, e depois só acordou nos cuidados intensivos, pensa que 3 dias depois. Ficou a gaguejar, tem dormência na cara, nos dois dedos, foi operado duas vezes ao braço. Nunca mais voltou a trabalhar.

Não dorme, não consegue conviver muito tempo com as pessoas, sente-se mais triste, só está bem no sofá a ver televisão para se entreter.

Referiu que não se sentia embriagado, bebeu cerveja, não sabe a quantidade, mas não cambaleava nem tinha dificuldades em andar..

Quanto ao arguido, disse que não estava embriagado, que do que viu, esteve o tempo todo com uma mini e um favaios.

Questionado, disse que saiu da sua carrinha porque queria saber o que é que o arguido queria, pensou que ele quisesse falar. E quanto ao facto de ele parar e arrancar com o carro, sentiu era uma provocação, mas queria ver até onde é que ele ia (“e depois vi”). Confirmou que naquele momento pensou que se ele saísse fora do carro, era capaz de lhe bater.

Quando o arguido saiu do carro, disparou logo, até deixou a porta do carro aberta.

Ora, no confronto dos dois relatos, resulta desde logo que é o segundo que encontra maior coerência em termos lógicos, por ser o único que se coaduna com as regras da experiência e juízos de normalidade, sendo totalmente inverosímil que o arguido tivesse regressado às imediações do café (onde tinha ocorrido o desentendimento anterior com o ofendido e este tinha permanecido durante mais duas horas) na expectativa de manter com o mesmo uma conversa saudável. E muito menos que, tendo aguardado no exterior durante uma hora e meia, o arguido apenas tivesse desistido de tal suposto propósito, por alegadamente ver o ofendido a sair a cambalear.

O que, aliás, é infirmado desde logo pelo teor das imagens de videovigilância recolhidas a fls. 303 e constantes do CD junto à contracapa, onde se vê o arguido a caminhar na direcção tomada pelo veículo do arguido, sem cambalear nem manifestar sinais de desequilíbrio.

Tal alegado estado de embriaguez é ainda infirmado pelos depoimentos de II e JJ (dono do café), os quais estiveram no interior do café até o ofendido sair e que disseram que o mesmo aparentava estar normal, que apesar de ter bebido cerveja, não saiu a cambalear.

As mesmas imagens de videovigilância afastam também a versão do arguido no que toca aos movimentos ocorridos quando o ofendido saiu do café, pois que delas resulta claramente que, contrariamente ao indicado pelo arguido, o ofendido nunca se abeirou do vidro da viatura do arguido para o instar a sair, antes documentando, nos exactos termos descritos pelo ofendido, que apenas parou a sua viatura, deixando a porta aberta e que quando ia contornar a carrinha pela traseira, o arguido arrancou com a sua viatura virando à direita.

Da mesma forma, constata-se que entre o momento em que o arguido arrancou com a sua viatura e o momento em que o ofendido decidiu seguir apeado pela estrada na mesma direcção, decorreu cerca de meio minuto. O suficiente para que, se o arguido não tivesse parado a viatura, o ofendido desistisse de se lhe dirigir apeado. Note-se que não se vê o ofendido a correr atrás do carro do arguido, antes se verificando que o mesmo hesita por momentos e só depois segue em passo normal no sentido que aquele havia tomado. O que conduz à única conclusão de que efectivamente, e como afirma o ofendido, o arguido imobilizou a viatura mais à frente (em local que já não era visível pela câmara), aguardando pelo ofendido e assim o atraindo a local mais distanciado do café.

Mas outros elementos permitem corroborar a versão do ofendido.

Desde logo, e ainda por referência às imagens colhidas, a circunstância de ser escassa ou nenhuma a circulação de viaturas àquela hora, verificando-se contudo, que poucos minutos depois (tanto o ofendido, como II e o próprio arguido afirmam que o ofendido terá saído do café perto da meia-noite e KK referiu que a chamada para a ... está registada às 00:05 horas) o arguido era atingido a tiro numa zona ainda mais isolada na direcção para onde seguira o arguido, sendo ainda possível ouvir, na gravação, que o primeiro tiro ocorreu às 00h:01m:35s. Ou seja, é de todo improvável que alguma outra pessoa que quisesse tirar a vida ao ofendido, convergisse em termos de local e hora, com o encontro entre o arguido e o ofendido à saída do café.

Em todo o caso, foi inequívoco o depoimento de LL, morador na casa situada junto ao local onde o ofendido foi baleado, que afirmou que estava em casa, pela meia-noite, quando ouviu uns tiros (não sabe se 5 ou 6), sendo que quando abriu a porta, de imediato vejo um carro a arrancar, não tendo dúvidas de que era um Mazda 6 cinzento-rato (até porque trabalha como ... de automóveis há 43 anos). Disse ter visto o carro a arrancar, que ainda se ouviu a chiar, e que seguiu em direcção a ..., (de quem vai de ... para ...), e quando desceu as escadas, viu uma pessoa deitada na estrada, atravessada, sem se mexer. Não viu mais carro nenhum e inicialmente nem se aproximou com medo, mas depois viu um outro carro aproximar-se, mandou-o parar, e com as luzes desse carro é que se aproximou e viu que era o ofendido.

Ora, tendo por certo – quer porque o próprio arguido o admite e o registo da conservatória automóvel de fls. 60 também o suporta – que o veículo conduzido pelo arguido era o Mazda 6 de sua propriedade, cujas características coincidem com as descritas pela testemunhas, não restam dúvidas em afirmar que foi o arguido o autor dos factos.

Acresce que, se dúvidas restassem, sairiam as mesmas resolvidas pela circunstância de resultar do exame pericial de fls. 487 que, examinada a viatura do arguido pelas 12:30 horas do dia .../.../2022, nela foram ainda detectadas partículas características/consistentes com resíduos de disparo de arma de fogo, sendo que a presença de tais partículas é compatível com o disparo ou manipulação de armas de fogo no interior da viatura ou com o transporte nesta de quem disparou, manipulou ou esteve próximo de um disparo de arma de fogo.

É certo que, a este respeito, afirmou o arguido que no sábado anterior tinha estado a disparar a sua caçadeira na direcção de uns pinheiros para afugentar corvos. Contudo, tal nesta parte as suas declarações não colhem.

Desde logo porque, como afirmado pelo arguido, o mesmo teria sido questionado pelos inspectores na data do exame à viatura, negando a manipulação de armas. Não merecendo qualquer credibilidade o alegado esquecimento por atrapalhação, quando é certo que o mesmo afirmou também que só trouxe a arma caçadeira para o ... em 2 ocasiões, pelo que certamente não deixaria de se lembrar se o sábado anterior tivesse sido uma das escassas ocasiões em que a disparou. Aliás, a este propósito, embora o arguido afirmasse que adquiriu a caçadeira para afugentar os javalis que destruíam as culturas da sua tia, a verdade é que quando ouvida esta (testemunhas MM), a mesma negou peremptoriamente que o sobrinho se importasse com os javalis ou que alguma vez se tivesse servido da arma, que apenas tinha porque a casa foi assaltada e ele “preveniu-se”.

Por outro lado, porque conforme decorreu do depoimento do especialista de Polícia Científica NN, os vestígios de resíduos de arma de fogo começam a perder-se 12 horas após o disparo. Esclareceu que esta protocolado que a recolha apenas deve ocorrer até 12 ou 24 horas depois da ocorrência do disparo, porque depois disso o gradiente começa a perder-se e, ou não fica lá, ou é muito baixo, não permitindo fiabilidade suficiente.

O que significa que, a terem ocorrido disparos pelo arguido apenas no sábado anterior, ou seja, 5 dias antes, e sendo certo que entretanto o arguido se terá feito transportar naquela viatura (tornando mais voláteis os eventuais vestígios, como assinalado pela inspectora OO) dificilmente o resultado pericial se revelaria tão evidente como o que resulta do relatório de fls. 487.

Será ainda de referir que muito embora não tenha sido possível localizar e apreender na posse do arguido a arma que disparou as munições de calibre 6.35mm com que foi atingido, o arguido, não é despiciendo o facto de as buscas apenas terem ocorrido pelas 11:00 horas do dia seguinte.

Ainda assim, depôs em audiência PP que, tendo em tempos trabalhado para a mãe do arguido, afirmou que cerca de 15 dias antes, tendo abordado o arguido para lhe propor a aquisição de uma mota, acabou por questioná-lo sobre se teria alguma arma para lhe vender, ao que o mesmo lhe exibiu uma pistola pequena, uma 6.35mm, dizendo que tinha aquela arma, mas estava legal e não lha vendia.

São todas estas circunstâncias que, conjugadas entre si, permitem ao tribunal formular um juízo seguro quanto à autoria dos factos pelo arguido.

Reforça-se que, só por si, o confronto das versões de arguido e assistente, seria esclarecedor, tão carecidas de lógica são as declarações do arguido e tão sérias e convincentes surgiram as declarações do assistente (nas quais não se detectaram nem subterfúgios – antes assumindo mesmo as partes mais censuráveis da sua conduta no âmbito da discussão havida e o desejo de tirar desforço físico das provocações que o arguido lhe dirigiu ao fazê-lo caminhar atrás do carro dele – nem os mais pequenos desvios à lógica da dinâmica dos factos – designadamente afirmando de forma clara não saber a distância a que estava o arguido aquando do último disparo).

Reportando-nos de forma mais circunstanciada aos factos dados como provados, dir-se-á ainda que:

Quanto ao descrito nos pontos 1. a 4., atendeu-se ainda, para além das declarações de arguido e assistente, ao teor dos depoimentos de II, QQ e JJ, que se encontravam no interior do café ... na data dos factos e descreveram de forma coincidente a desavença ocorrida entre arguido e assistente.

O teor do ponto 5. assentou nas declarações do arguido, que disse ter ido a casa, mais acrescentando que foi dar de comer ao cão e que já não o trouxe quando regressou, o que encontra corroboração nos depoimentos de QQ e KK que afirmam que o arguido tinha o cão no carro quando esteve no café a ver o jogo, sendo certo que nem o assistente nem KK referem a sua presença na ocasião em que ocorreram os disparos, nem se ouve qualquer cão nas gravações de videovigilância, o que sustenta que o arguido terá ido a casa deixá-lo.

Os pontos 6. a 8. dos factos provados assim se consideraram na medida em que se mostram documentados nas imagens vídeo constantes dos ficheiros apreendidos a fls. 223 e recolhidos conforme cota/informação de fls. 222, bem como nos fotogramas de fls. 303 a 304. Quanto ao facto de o ofendido ter abandonado a carrinha naquele local, atendeu-se ainda aos depoimentos das testemunhas II, QQ e JJ que disseram ter estranhado a forma como a carrinha estava ali abandonada sem se ver o ofendido nas imediações, bem como no teor do relatório pericial de fls. 121 a 126 onde é visível o estado em que foi encontrada.

O descrito nos pontos 9. e 10. decorreu da análise dos movimentos do ofendido, nos termos acima descritos, até deixarem de estar visíveis nas imagens de videovigilância, com o teor do auto de reconstituição de fls. 308 a 311, onde ficou representada a dinâmica dos factos.

E quanto ao descrito em 11. a 17., atendeu-se ainda ao teor do auto de notícia de fls. 130, do relatório de inspecção judiciária de fls. 41, do relatório de exame pericial de fls. 111, documentando a recolha de 5 elementos municiais (invólucros de calibre 6.35mm) e um vestígio hemático e do auto de apreensão dos invólucros de fls. 128.

Efectivamente, o número de invólucros recolhidos coincide com o número de disparos com que o ofendido diz ter sido atingido (e com aqueles que são audíveis na gravação de videovigilância), e os locais do corpo atingidos são também plenamente compatíveis com as lesões que o ofendido apresentava e que os inspectores puderam verificar logo no hospital.

Por seu turno, a localização dos invólucros no exame pericial, a fls. 120 e 121 é compatível com o teor do auto de reconstituição de fls. 308 a 311.

Será de assinalar que, no respeitante ao último disparo, resulta das medições de fls. 121 e da fotografia de fls. 118 e imagem do GoogleMaps de fls. 120, que os vestígios 2 e 6 têm uma distância de 30 cm. Ou seja, o último invólucro foi encontrado a cerca de 30 cm do vestígio hemático, o que sustenta uma grande proximidade do disparo, inferior a um metro, tal como também representado no auto de reconstituição na fotografia 25 de fls. 310 v.º.

Tal circunstância, conjugada com a pausa que se ouve nas gravações de videovigilância entre o 4.º e o 5.º disparo (os primeiros 4 disparos ocorrem entre as 00h01m35s e as 00h01m39s, à razão de um disparo por segundo, enquanto o último disparo ocorre às 00h01m44s, ou seja, 5 segundos depois), sustentam a convicção segura do Tribunal quanto ao facto descrito em 15, ou seja, a aproximação do arguido relativamente ao ofendido que estava caído no chão, para efectuar o último disparo na cabeça.

A colocação do arguido em fuga, após concretização dos disparos, na viatura de sua propriedade (ponto 17.), é ainda corroborada pelo relatório de recolha de vestígios de fls. 198 e ss.

O vertido no ponto 18. dos factos provados é quanto resulta do relatório de inspecção judiciária de fls. 41 e ss.

O descrito nos pontos 19. a 21. decorre da documentação clínica de fls. 51 a 58 e 233 a 241 e 560 a 562 e 565 a 567, da cota/informação de recolha de projecteis extraídos em .../.../2022 da cabeça (região parietal esquerda) e em .../.../2022 do ombro esquerdo do assistente, do auto apreensão dos projécteis a fls. 219, e do exame médico fls. 246 a 248 e 580 a 582.

Quanto ao ponto 22., atendeu-se ao teor da informação de fls. 638.

No tocante ao descrito no ponto 23., considerou-se o auto de busca de fls. 63 a 65 e reportagem fotográfica fls. 66 a 95, e o exame pericial à arma e munições de fls. 422 a 441

Relativamente aos pontos 24. e 25., atendeu-se ao teor da informação da PSP de fls. 220 (dando conta de que o arguido tem registada a espingarda Maverick mas não tem licenciamentos), e a cópia de fls. 613 v.º, da licença de uso e porte de arma de caça exibida pelo arguido em audiência.

Relativamente ao ponto 26., as declarações prestadas pelo arguido, alegando desconhecer a natureza dos cartuchos que tinha na sua posse, não colheram, por carecidas de lógica, já que não só se comprova que o arguido é pessoa familiarizada com a detenção e uso de armas e munições (sendo inequívoco que para além da caçadeira, teve na sua posse a arma e munições usadas na pessoa do ofendido), como ainda que fosse de crer nas versão que trouxe, certamente não deixariam os seus amigos da PSP ou os seus amigos caçadores de o alertar para a proibição total de uso e detenção de cartuchos de bala e zagalote.

O vertido nos pontos 27. a 29. é quanto decorre, por inferência lógica da análise dos factos objectivamente dados como provados, dos quais resulta a atitude pensada e calculista do arguido, reflectindo e escolhendo os meios a empregar, posicionando-se em local estratégico para ter visibilidade sobre a saída do ofendido do café, permanecendo no interior da viatura, munido de arma de fogo durante cerca de uma hora e meia, fazendo manobras com a viatura de modo a atrair o ofendido a local menos movimentado, e aí efectuando 5 disparos dirigidos a zonas vitais, o último dos quais quando o ofendido já estava caído e indefeso no chão, atingindo-o na cabeça.

Quanto ao ponto 30. dos factos provados, louvou-se o tribunal no certificado do registo criminal de fls. 607.

E quanto às condições pessoais e económicas, no teor do relatório social de fls. 651 e ss., bem como nos depoimentos de RR, MM, SS, TT, UU e VV, que descrevem o arguido como uma pessoa educada, culta e bem falante, calma e pacífica.

O facto dado como não provado, assim se considerou por não ter sido possível apreender e examinar a arma que efectuou os disparos, desconhecendo-se em concreto quais as suas características, para além de se tratar de arma de fogo apta a disparar munições de calibre 6.35mm.

(…)”]

4. A partir do recurso do arguido para o TRC foi por este equacionado o seguinte elenco de questões a decidir:

“(…)

- A incorrecta decisão da matéria de facto;

- A incorrecta ponderação do enquadramento jurídico-penal dos factos relativamente ao imputado crime de homicídio na forma tentada;

- A incorrecta ponderação da medida da pena relativamente ao crime de homicídio na forma tentada;

- A incorrecta ponderação da escolha e da medida da pena relativamente ao crime de detenção de arma proibida.”

5. Desta decisão do TRC veio interpor o presente recurso para o STJ, extraindo das suas motivações as conclusões (minimalistas) seguintes:

“1ª – A conduta do arguido/recorrente preenche o tipo legal do a 131º, do C. Penal – homicídio simples, na forma tentada, agravado pelo uso de arma de fogo.

2ª – Pois que , e como dos factos provados resulta, nenhuma circunstância qualificativa é aqui concitável, mormente a da al.j) do artº 132º, ibidem.

3ª – Efectivamente, e como supra se expendeu (pontos 8. a 11) 1 que aqui se dão por reproduzidos), não agiu ele com frieza de ânimo, nem com reflexão sobre os meios que usou.

4ª – Consequentemente, e considerando a moldura penal aplicável, deverá, na correcta aplicação das regras dos artsº 70º e 71º, do C. Penal, ser-lhe aplicada, por tal crime, pena não superior a 5 anos de prisão, pois que assim se respeitará o critério de proporcionalidade.

5º - Já no concernente ao crime de detenção de arma proibida, será justo e adequado aplicar-se-lhe pena de multa, não superior a 200 dias, já que tal detenção, atenta a agravação que ela traz ao crime de homicídio tentado, não justifica nem impõe um outro e maior “castigo”, mormente pena de prisão.

(…)”

6. Responderam ao recurso o MPº e o assistente, dizendo em síntese.

A. O MP

“a) Examinado o recurso interposto pelo arguido, verifica-se que este pretenderá, para além do mais, pôr em causa a respectiva condenação pela prática dum crime de homicídio qualificado tentado, procurando alegar que se não teria verificado, no caso, a circunstância prevista na alínea j) do nº 2 do art. 132º do C. Penal – devendo assim, se bem se percebe, ser condenado apenas por homicídio simples tentado, agravado pelo uso de arma de fogo Perante tal argumentação do arguido, apenas se oferece dizer que as circunstâncias da prática dos factos, tal como os mesmos se deverão ter por assentes, poderiam integrar um verdadeiro “caso de estudo” em matéria de aferição da existência de frieza de ânimo e ou de premeditação, tendo para além do mais em conta:

- o regresso do arguido, passado um período já significativo de tempo, ao local onde sabia estar o ofendido, após se ter munido duma arma de fogo ilegal e “clandestina”, que sabia não poder ser associada consigo;

- a utilização de tal arma para efectuar cinco disparos contra o ofendido, praticamente à queima-roupa, um deles dirigido à cabeça, em estilo de “execução”;

- tudo isto após ter atraído esse mesmo ofendido para um local afastado daquele no qual o mesmo se encontrava, de modo a poder actuar com menos probabilidades de ser visto por terceiros.

Deverá, assim, considerar-se não ter qualquer fundamento a tentativa de impugnação, por parte do arguido, da subsunção da sua conduta à previsão constante da alínea j) do nº 2 do art. 132º do C. Penal

b) Mais procura o arguido impugnar a justeza das penas parcelares e conjunta de prisão que lhe foram aplicadas e que qualifica como exageradas - pedindo para além do mais que se opte pela aplicação duma mera pena de multa quanto ao crime de detenção de arma proibida pelo qual foi condenado.

A respeito desta matéria, apenas se oferece dizer que o elevadíssimo grau de culpa do arguido, manifestado até na sua postura em sede de audiência de discussão e julgamento e posteriormente, é plenamente consonante com o elevadíssimo grau de ilicitude dos factos por si praticados, quer em termos de desvalor de acção, quer de resultado – em moldes que não apenas justificam cabalmente as penas parcelares e conjunta de prisão que lhe foram aplicadas, como tornariam inadmissível a eventual opção por uma mera pena de multa, desde logo no que diz respeito à detenção da arma por si usada para tentar matar o ofendido.

Deverão, por isso, ser mantidas as decisões proferidas nesta matéria, que não violaram quaisquer normas legais, nomeadamente as invocadas no recurso interposto.”

B) O assistente

(…)

A culpa do arguido é elevadíssima, impondo-se, pelo muito já fundamentado em duas instâncias e, pelo pouco e menos bem que aqui expressamos de forma singela, mas sincerae convictaque,considerandoas nuances”docaso concreto,odolo intensíssimo, a consciência plena e consonantemente executada da ilicitude da sua conduta e do meio usado para a levar a cabo, não esquecendo o resultado dos danos, deve improceder o recurso do arguido.

O Acórdão está exaustivamente fundamentado e não padece de qualquer vicio.

Foi feita uma acertada aplicação do Direito, não havendo qualquer violação da lei.”

7. Neste Supremo Tribunal de Justiça foi emitido parecer pelo MºPº, dizendo em síntese:

“ (…)

a resposta do Ministério Público junto do Tribunal de 1ª instância deve ser aqui chamada à colação, já que identifica detalhadamente as questões aqui a dirimir, e que já haviam sido objeto do recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, equacionando-as devidamente e rebatendo de forma fundamentada e sólida os argumentos do recorrente.

Diz a Senhora Procuradora da República na 1ª instância, a propósito da verificação da circunstância qualificativa da al. j) do artº 132º do Código Penal:

A factualidade dada como assente, inevitavelmente leva à qualificação do crime de homicídio nos moldes em que o foi, desde logo pela revelada especial censurabilidade ou perversidade, atentas as circunstâncias do cometimento do crime, tudo devida e certeiramente fundamentado no douto acórdão.

Prevê a citada alínea j) o homicídio praticado com frieza de animo, com reflexão sobre os meios empregados ou tendo persistido na intenção de matar por mais de 24 horas.

Tal circunstância, que na nossa tradição legislativa vem sendo tratada como premeditação, tem vindo a ser considerada como uma das circunstâncias mais fortemente indiciadoras da especial censurabilidade ou perversidade do autor do crime de homicídio voluntário, podendo, à face da atual configuração de exemplo padrão, existir independentemente de reflexão e de persistência no tempo durante um período definido, bastando para que ela exista que o agente atue com frieza de ânimo ou com reflexão sobre os meios empregados, nisto se encontrando a essência da premeditação, embora existindo uma concessão ao entendimento que era feito à luz do Código de 1886, onde se inspirou o atual Código, na parte final de tal alínea i) onde se refere, em alternativa, ao protelamento da intenção de matar por mais de 24 horas Vide, neste sentido, Maia Gonçalves, in Código Penal Português, Anotado e Comentado, 10ª edição 1996.

Podendo concluir-se, como o faz o Prof. Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, pag. 39, que o C. Penal de 1995, que sufragou o C. Penal de 1982, reuniu sob o conceito de premeditação alguns dos entendimentos que diferentes ordenamentos jurídicos lhe conferiam: a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados e o protelamento da intenção de matar por mais de 24 horas.

Tal como se escreve no douto acórdão recorrido: «No entendimento corrente, e na esteira de Beleza dos Santos (cf. RLJ, Ano 67, págs. 306 e ss.), a frieza de ânimo titula firmeza, propósito, tenacidade, irrevogabilidade da decisão, indiciada pela persistência durante um apreciável espaço de tempo ou seja, uma forte vontade criminosa e preenchendo o campo da consciência; o agente age com frieza de ânimo quando seleciona os meios a utilizar na agressão, quando reflete na opção pelo meio mais adequado, repudiando o que menos probabilidade de êxito se lhe oferece de um ponto de vista pragmático, por ter em mente o que menos possibilidade de defesa representa para a pessoa da vítima vide a este propósito o Ac. do STJ, de 2008.11.12, disponível em www.dgsi.pt.»

Já no que toca à deficiente escolha da medida da pena, a evidente falta de razão do recorrente relativamente à subsunção jurídica dos factos, com o pretendido afastamento da circunstância referida na alínea j) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, e a correspondente desqualificação do homicídio, compromete definitivamente toda a sua argumentação.

Também no que respeita ao crime de detenção de arma proibida carece de fundamento a pretensão do recorrente.

(…)

Ora,

O STJ tem vindo a considerar que existe concurso efectivo entre os crimes de detenção de arma proibida e de homicídio qualificado pelo uso de arma proibida. E isto na consideração de que, tutelando um e outro dos ilícitos bens jurídicos distintos (no crime de homicídio a vida humana e no crime de detenção de arma proibida, a segurança das pessoas), verifica-se uma situação de concurso efectivo entre os referidos tipos legais quando os factos concretos determinativos da qualificação do crime de homicídio preenchem o crime de detenção de arma proibida, objecto de previsão no art. 86.º, n.º 1, do RJAM.

II - O que ocorre quando, como no caso em apreciação, o agente, consciente de que fora das condições legalmente prescritas não pode deter, transportar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio obter uma determinada arma, tem tal tipo de conduta. De onde que a circunstância de o crime de homicídio voluntário ser qualificado pelo uso de arma proibida não tem como efeito a consumpção do crime de detenção de arma proibida pelo crime de homicídio, com o qual se encontra numa relação de concurso efectivo.”1

5. Assim, examinados os fundamentos do recurso, e por todo o exposto, emite-se parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente mantendo-se o acórdão recorrido.

(…)”

Não houve respostas ao parecer.

8. Efectuado exame preliminar e vistos legais foram remetidos os autos à Conferência, cumprindo agora explicitar o sentido e âmbito da deliberação tomada.

II- Delimitação das questões a conhecer no âmbito do presente recurso

2.1- Visando permitir e habilitar este Supremo Tribunal a conhecer as razões de discordância da decisão recorrida e tal como tem sido, aliás, posição pacífica da jurisprudência, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões, devidamente congruentes, que o(s) recorrente(s) extrai(em) da respectiva motivação, sem prejuízo da ponderação das questões que sejam de conhecimento oficioso. (2)

2.2- Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir no presente recurso, sem prejuízo das que possam existir de conhecimento oficioso, por ordem de precedência lógica, são:

a) - Quanto ao crime de homicídio qualificado na forma tentada, nenhuma circunstância qualificativa é concitável, mormente a da al.j) do artº 132º do CP (actuação com frieza de animo e reflexão sobre os meios usados)?

b) - No concernente ao crime de detenção de arma proibida, será justo e adequado aplicar-se-lhe pena de multa, não superior a 200 dias?

2.3- O Direito

2.3.1 – As questões suscitadas e os limites de competência do STJ

O recurso visa uma decisão do TRC que confirmou a decisão de 1ª instância na íntegra.

As penas aplicadas impugnadas são superiores a 8 anos de prisão-(pena parcelar pelo homicídio qualificado tentado e pena única) mas a relativa ao crime de detenção de arma correspondeu a 2 anos de prisão.

O arguido recorrente também impugna esta pena, pedindo a sua redução a multa. Porém, já não pode fazê-lo nessa parte, em recurso para este STJ, tendo havido, como houve, dupla conforme e perante o disposto no artº400º nº1 alíneas e) e f) do CPP, conjugadamente entre si.

Assim, o presente recurso apenas será conhecido e analisado em relação às questões atinentes ao crime de homicídio, tendo a decisão transitado em relação àquela de 2 anos de prisão.

2.3.2- O crime de homicídio qualificado pela alínea j) do nº2 do artº 132º do Código Penal, na forma tentada, devia tê-lo sido apenas pelo nº1 do artº 131º do CP (homicídio simples tentado, agravado apenas pelo uso de arma) e aplicada assim uma pena não superior a 5 anos de prisão?

Defende, de novo, o recorrente, que não agiu com frieza de ânimo nem com reflexão sobre os meios empregues, de onde conclui que não podia ser qualificado o crime de homicídio.

Esta matéria foi analisada pelos tribunais de 1ª instância e do TRC nos seguintes termos:

A. O tribunal de 1ª instância

“(…) ponderação quanto ao enquadramento jurídico-penal dos factos:

Do crime de homicídio qualificado na forma tentada

Vem imputada ao arguido AA a prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.os 1 e 2 als. e) e j) do Código Penal.

Na sequência de alteração da qualificação jurídica a que se procedeu em audiência de julgamento, é de imputar ao arguido o mencionado crime, mas agravado pelo uso de arma, nos termos do art. 86.º, n.º 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e suas Munições.

Prevê-se no art. 131.º do Código Penal, como tipo penal base e primordial: “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”.

Trata-se de crime doloso, cujo bem jurídico protegido é a vida.

No art. 132.º do mesmo código, consagrando a forma qualificada do ilícito penal, prevê-se que: “1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:(…)

e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;

j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;” (negrito nosso)

A estrutura do tipo penal na forma qualificada recorre à chamada técnica dos exemplos-padrão, mediante uma indicação meramente exemplificativa de alguns índices que poderão revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que o tipo se refere.

Especialmente censuráveis são as circunstâncias de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma conduta normativa; e por especial perversidade entende-se uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada por motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade.

As circunstâncias previstas, de forma não taxativa, no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal não operam automaticamente, sendo indispensável determinar se, no caso concreto, aquelas comportam especial censurabilidade ou perversidade e, por essa via, justificam uma sanção que não cabe na moldura incriminadora do homicídio simples.

No concreto caso da alínea e) do n.º 2 do art. 132.º, a que faz referência o Ministério Público na acusação, e porque se supõe ser esse o único segmento equacionável em face dos factos objecto dos autos, há a referir que, conforme vem sendo entendido na jurisprudência, deve entender-se por motivo fútil um não motivo, ou seja, algo que se configura como de tal forma carecido de importância, banal ou insignificante, que torna a actuação particularmente repugnante, baixa ou gratuita e reveladora de um profundo desprezo pelo valor da vida humana.

O motivo fútil é aquele que é incapaz de fornecer uma explicação em termos razoáveis, insignificante, mesquinho, demonstrando insensibilidade moral do agente.

E na al. j) do mesmo normativo, sob o conceito da premeditação, o legislador reuniu a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados e o protelamento da intenção de matar por mais de 24 horas. A circunstância qualificativa é preenchida com a actuação calma, ou imperturbada reflexão, no assumir pelo agente da resolução de matar a que se alia a firmeza dessa mesma resolução criminosa.

Quanto à frieza de ânimo, esta terá lugar sempre que interceda um hiato temporal entre a ideação do meio a usar e a passagem à acção, por seu intermédio. No entendimento corrente, e na esteira de Beleza dos Santos (cf. RLJ, Ano 67, págs. 306 e ss.), a frieza de ânimo titula firmeza, propósito, tenacidade, irrevogabilidade da decisão, indiciada pela persistência durante um apreciável espaço de tempo – ou seja, uma forte vontade criminosa – e preenchendo o campo da consciência; o agente age com frieza de ânimo quando selecciona os meios a utilizar na agressão, quando reflecte na opção pelo meio mais adequado, repudiando o que menos probabilidade de êxito se lhe oferece de um ponto de vista pragmático, por ter em mente o que menos possibilidade de defesa representa para a pessoa da vítima – vide a este propósito o Ac. do STJ, de 2008.11.12, disponível em www.dgsi.pt.

Para além da qualificação do ilícito, este pode ainda sofrer agravação quando, nos termos do art. 86.º, n.º 3 do Regime Jurídico das Armas e sua Munições, sejam “cometidos com arma (…) exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma”, dispondo ainda o n.º 4 do mesmo preceito que “4 - Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente.”

A agravação a que se reporta este normativo tem o seu fundamento num maior grau de ilicitude do facto, a qual só é afastada se o uso da arma for elemento do tipo ou a lei já previr o uso ou porte de arma como causa de agravação mais elevada.

A respeito da forma tentada do crime, prevê o art. 22.º, n.º 1 do Código Penal que há tentativa quando o agente pratica actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se, constituindo actos de execução:

- os que preencherem um elemento de um tipo de crime (al. a));

- os que forem idóneos a produzir o resultado típico (al. b));

- os que segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores (al. c)).

No caso dos autos resultou provado que na noite de 14 para ... de ... de 2022, durante a transmissão do jogo ..., o ofendido BB envolveram-se em troca de provocações por serem adeptos de clubes nacionais distintos, sendo que no final do jogo, como o arguido festejasse a vitória do ..., e o ofendido manifestasse desprezo por aquela, trocaram entre si insultos, dizendo o arguido em voz alta “não ligo a merda” e o ofendido, quando aquele saía do café “vai dar o cú ao cão, cabrão”.

Nessa sequência o arguido foi a casa e regressou para junto do café onde estacionou a sai viatura pelas 22:25 horas, aguardando numa perpendicular à estrada principal durante cerca de uma hora e meia, que o ofendido saísse do café.

Depois de o ofendido sair do café, o arguido gesticulou na sua direcção, chamando-o, e quando o viu vir na sua direcção, arrancou com a viatura parando uns metros mais à frente. Quando o ofendido se aproximava, apeado, da viatura do arguido, este arrancou novamente, parando uns metros mais à frente, o que se repetiu por várias vezes.

Quando neste contexto, já se encontravam a cerca de 200 metros do café, o arguido saiu da sua viatura e, empunhando uma arma de fogo, disparou 5 munições de calibre 6.35mm na direcção do arguido, atingindo-o no tórax, na mão, no ombro e na cabeça, após o que se ausentou do local.

Resultou ainda provado que, em virtude dos disparos efectuados pelo arguido, o ofendido sofreu lesões que apenas não vieram a causar-lhe a morte em virtude da pronta assistência médica de que beneficiou.

Mais resultou provado que o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o intuito de tirar a vida a BB, bem sabendo que, face ao meio utilizado, à distância dos disparos e às zonas que atingia, a sua conduta era apta a causar a morte do ofendido, o que apenas não ocorreu por circunstâncias alheias à sua vontade.

Mostram-se, por isso, integralmente preenchidos os elementos típicos objectivo e subjectivo do crime de homicídio a que alude o art. 131.º do Código Penal.

Já no tocante às circunstâncias qualificativas, verifica-se que resultou provado que o arguido assim actuou para tirar desforço da desavença ocorrida horas antes no café.

Tal desavença – como se referiu – prendia-se com as afiliações clubísticas de cada um e com as expressões insultuosas que, na sequência do jogo que tinha sido transmitido, se dirigiram mutuamente.

Ora, embora a motivação subjacente aos factos possa ter-se como comezinha ou banal, entende-se que não pode ser subsumida à circunstância qualificativa prevista na alínea e) do n.º 2 do art. 132.º do Código Penal.

Efectivamente, sem desvalorizar a clara desproporção entre uma discussão clubística e a reacção do arguido que, no caso, se traduziu em atentar de forma grave contra o bem jurídico supremo que é a vida, não pode deixar de atender-se às emoções que consabidamente na sociedade portuguesa, o futebol é capaz de causar, nem pode ignorar-se o vexame e indignação que os insultos dirigidos ao arguido, em pleno café, num meio pequeno como a localidade de ..., podem causar.

Daí que, apesar do reduzido peso que tais sentimentos possam assumir no confronto com o atentado à vida de terceiros, não pode, contudo, afirmar-se que tal reacção surja como incompreensível, ou que se revista de tal repugnância que, por particularmente censurável ou perversa, possa fazer reconduzir a conduta do arguido à circunstância qualificativa do motivo fútil.

Já a circunstância qualificativa prevista na al. j) do n.º 2 do art. 132.º, entende-se estar perfeitamente preenchida.

É que, como se viu, resultou provado que o arguido, com intenção de causar a morte do ofendido:

- muniu-se de arma de fogo apta a disparar munições de calibre 6.35mm, que se encontrava municiada com, pelo menos, 5 munições;

- estacionou a viatura em local estratégico que lhe permitia ver o ofendido sair do café;

- aguardou, nestas circunstâncias, cerca de uma hora e meia;

- atraiu o ofendido (aproveitando-se da vontade que este também teria de tirar desforço das provocações; e arrancando e parando sucessivamente a viatura para ir aproximação daquele) a local onde era menos provável a movimentação de pessoas, por se situar a 200 metros do café;

- quando o ofendido se encontrava em local mais afastado, sozinho e desarmado no meio da estrada, saiu da sua viatura e efectuou 4 disparos seguidos sobre o mesmo;

- quando o ofendido já se encontrava caído no chão e totalmente vulnerável, aproximou-se do mesmo e, a menos de um metro, efectuou um 5.º disparo que o atingiu na cabeça.

E todo este contexto da actuação do arguido deixa à evidência que não só o arguido reflectiu sobre os meios empregues (colocando a vítima em posição de total desprotecção), como actuou com frieza de ânimo, revelando tenacidade na execução do crime e profunda insensibilidade e desrespeito pela vida humana.

Assim se tendo por preenchida a circunstância qualificativa prevista no art. 132.º, n.º 2 al. j).

Resta verificar da existência ou não de condições para a agravação prevista no art. 86.º, n.º 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e suas Munições.

E quanto a esta, verifica-se que, apesar de se conhecerem todas e as exactas características da arma de fogo usada (designadamente se uma pistola, um revólver ou até uma arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objecto), o certo é que ficou provado que se tratava de arma de fogo apta a disparar munições de calibre 6.35mm, a qual integra o conceito de arma enquadrável na al. c) do n.º 1 do art. 86.º.

Daí que o uso da referida arma para efectuar os disparos dos quais resultou perigo para a vida do ofendido, quando o arguido conhecia as suas características e sabia da sua aptidão, quando usada da forma como o foi (a curta distância e visando zonas vitais) para causar a morte, importa o integral preenchimento da circunstância agravante acima aludida.

Invocou a Defesa em sede de alegações que não haveria lugar à agravação nos termos deste normativo, na medida em que o uso da arma é passível de ser reconduzido à al. h) do n.º 2 do art. 132.º (meio particularmente perigoso).

Contudo, entende-se, neste âmbito – como, cremos, a maioria da jurisprudência – que apesar de uma arma de fogo ser um objecto perigoso e, em princípio, adequado e suficiente ao cometimento do crime em causa, por si só, não revela uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar.

É que, utilizar meio particularmente perigoso, é servir-se, para matar, de um instrumento, de um método, ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vítima e seja susceptível de criar perigo para a lesão de outros bens jurídicos.

Se a generalidade dos meios usados para matar são perigosos, o que importa ao preenchimento da circunstância qualificativa, é que eles sejam particularmente perigosos, ou seja, que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar.

Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário ao Código Penal, pág. 352, refere que meio particularmente perigoso é aquele que tem uma perigosidade tal que pode atingir terceiros, indiscriminadamente, independentemente, pois, da vontade e do controlo do agente.

Tem que ser meio que revele uma perigosidade muito superior à normal, marcadamente diverso e excepcional em relação aos meios mais comuns que, por terem aptidão para provocarem danos físicos, são, já de si, perigosos, ou muito perigosos.

No caso, o uso de uma arma de fogo apta a disparar munições de calibre 6.35mm, não pode, por não traduzir essa perigosidade acrescida, importar o preenchimento da qualificativa prevista na al. h, do n.º 2, do art.º 132.º, do Código Penal.

Excluída que está a subsunção dos factos à circunstância qualificativa traduzida no uso de meio particularmente perigoso, há que concluir estarem verificados os pressupostos para a agravação prevista no art. 86.º, n.º 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, na medida em que resultou provado que, no cometimento do crime de homicídio qualificado na forma tentada, o arguido fez uso de arma apta a disparar projecteis de calibre 6.35mm, e devidamente municiada.

Em conclusão, não ocorrendo quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, impõe-se a condenação do arguido pela prática do crime de homicídio qualificado, agravado (pelo uso de arma), na forma tentada, p. e p. pelos art.os 131.º e 132.º, n.º 1 e 2 al. j) do Código Penal e 86.º, n.º 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e suas Munições.”

A. O TRC, analisando o recurso interposto, considerou o seguinte:

“(…)

- Da incorrecta ponderação do enquadramento jurídico-penal dos factos relativamente ao imputado crime de homicídio na forma tentada

Nas Conclusões 3ª a 5ª resume o recorrente a sua pretensão recursiva relacionada com a incorrecta ponderação feita no acórdão recorrido quanto à subsunção jurídica dos factos, no sentido de que não se verifica a qualificativa prevista na alínea j) do nº2 do art. 132º do C. Penal, por entender que não actuou com reflexão sobre os meios que usou e com frieza de ânimo, qualificativa esta que o tribunal recorrido considerou estar verificada e que, por isso, foi levada em conta na condenação que lhe foi imposta pela prática do crime de homicídio na forma tentada.

Na densificação que faz de tal alegação no corpo da motivação do recurso adianta o recorrente que “ para que se concite tal qualificativa, -- e reproduzindo aqui o vertido na decisão recorrida – “o agente age com frieza de ânimo quando selecciona os meios a utilizar na agressão, quando reflecte na opção pelo meio mais adequado, repudiando o que menos probabilidade de êxito se lhe oferece de um ponto de vista pragmático, por ter em mente o que menos possibilidade de defesa representa para a pessoa da vítima – vide a este propósito o Ac. do STJ, de 2008 – 11-12 disponível em www.dgsi. pt. (…) como dos autos resulta, o arguido, após ter saído do café, foi a sua casa, jantar, e só cerca de meia hora depois saiu para procurar o ofendido; (..) em sua casa tinha a espingarda, que lhe foi apreendida, e diversos cartuchos carregados com bala e zagalotes (...) se fosse sua intenção matar o ofendido (e sobre isso tivesse reflectido) de certo se muniria das referidas espingarda e cartuchos, pois que para tal fim seriam bem mais adequados e eficazes do que uma arma de pequeno calibre (…) como não o fez, terá de afastar-se aqui a aludida circunstância qualificativa da al. j), do artº 132º do C. Penal.”

Se bem alcançamos o sentido de tal argumentação recursiva do recorrente, pretende o mesmo afastar a qualificativa prevista na alínea j) do nº2 do art. 132º do C. Penal, tida como verificada no acórdão recorrido, com fundamento em que após ter saído do café foi a sua casa jantar e só cerca de meia hora depois saiu para procurar o ofendido, que em casa tinha a espingarda e diversos cartuchos carregados com bala e zagalotes, pelo que, se fosse sua intenção matar o ofendido ( e sobre isso tivesse reflectido) de certo se muniria da referida espingarda e cartuchos, pois que, para tal seriam aqueles bem mais adequados e eficazes do que uma arma de pequeno calibre.

Na ponderação feita no acórdão que vem posto em crise a respeito do preenchimento da referida qualificativa do crime de homicídio - prevista na alínea j) do nº2 do art. 132º do C. Penal – sopesou o tribunal recorrido a seguinte factualidade que resultou provada:

“ … o arguido, com intenção de causar a morte do ofendido:

- muniu-se de arma de fogo apta a disparar munições de calibre 6.35mm, que se encontrava municiada com, pelo menos, 5 munições;

- estacionou a viatura em local estratégico que lhe permitia ver o ofendido sair do café;

- aguardou, nestas circunstâncias, cerca de uma hora e meia;

- atraiu o ofendido (aproveitando-se da vontade que este também teria de tirar desforço das provocações; e arrancando e parando sucessivamente a viatura para ir aproximação daquele) a local onde era menos provável a movimentação de pessoas, por se situar a 200 metros do café;

- quando o ofendido se encontrava em local mais afastado, sozinho e desarmado no meio da estrada, saiu da sua viatura e efectuou 4 disparos seguidos sobre o mesmo;

- quando o ofendido já se encontrava caído no chão e totalmente vulnerável, aproximou-se do mesmo e, a menos de um metro, efectuou um 5.º disparo que o atingiu na cabeça.”

E, na verdade, com base em tal factualidade que resultou provada, conjugada, ainda, com a que também resultou provado atinente a que, antes de regressar ao local perto do café onde veio a estacionar a sua viatura e a esperar que daquele saísse o ofendido, o arguido havia saído desse café depois de no interior do mesmo ter tido lugar a contenda entre o mesmo e o ofendido, não pode deixar de entender-se que o arguido agiu com reflexão sobre os meios empregados e com frieza de ânimo.

Desde logo, para além de não resultar demonstrada a alegação que vem feita pelo recorrente no sentido de que o mesmo, após ter saído do café, foi a sua casa jantar e só cerca de meia hora depois, é que foi procurar o ofendido, a plausibilidade da mesma mostra-se, até, posta em causa pela factualidade que resultou provada, pois, como assertivamente assinala a Digna Magistrada do Ministério Público na resposta ao recurso, os 25 minutos que separam a saída do arguido do café e o regresso do mesmo ao local perto deste onde o arguido depois estacionou a sua viatura e ficou à espera que o ofendido dele saísse - conforme descrito nos pontos 5. e 6. da factualidade provada - não seriam suficientes para lhe permitir ir a casa, jantar e voltar, mas apenas para deixar o cão e munir-se da arma, pois, só no trajecto para ir a sua casa e voltar ao café seriam necessários, pelo menos, 20 minutos, fazendo apelo ao que, a esse propósito, terá resultado das próprias declarações do arguido.

Com efeito, o que nesse particular efectivamente deflui da factualidade provada é que o arguido após ter saído do café, por volta das 22 horas, dirigiu-se à casa da sua mãe, onde pernoitava, deixou o cão e regressou, 25 minutos depois, munido de uma arma pronta a disparar munições de calibre 6,35 ao local perto do café onde ficou à espera, durante cerca de um hora e meia, que o ofendido saísse do café, com o propósito de lhe causar a morte, donde resulta que o arguido, durante cerca de 2 horas, reflectiu sobre os meios a empregar e muniu-se deles para causar a morte do ofendido como era seu propósito.

Entendimento este que não resulta postergado pela circunstância, também adiantada pelo recorrente, de que tinha ao seu alcance uma espingarda e diversos cartuchos carregados com bala e zagalotes, arma essa que se revelaria mais adequada e eficaz se fosse sua intenção matar o ofendido, cuja alegação visa descartar a reflexão sobre os meios empregados, porquanto, a mesma é destituída dessa virtualidade, uma vez que, revelando a factualidade provada que, em vez da utilização dessa espingarda, o arguido se decidiu pela utilização de uma arma apta a disparar munições 6,35, daí não deixa de resultar que o mesmo tenha reflectido sobre um meio apto a empregar para causar a morte do ofendido por si almejada, bem podendo, até, congeminar-se, como pertinentemente adianta a Digna Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância, que nessa reflexão tenha perpassado pelo espírito do arguido o cuidado a ter na escolha do meio a empregar apto para causar a morte do ofendido, relacionado com o perigo de ser descoberto como autor dos factos. E, nessa perspectiva, tivesse ponderado que apresentaria maior dificuldade para a investigação chegar ao autor dos disparos se a sua opção recaísse, como recaiu, na escolha da arma que se decidiu a utilizar, por se tratar de uma arma apta a disparar munições de calibre 6,36 mm, para a detenção da qual não tinha licença nem registo da mesma a seu favor, o que já não aconteceria, se essa sua opção tivesse recaído sobre a espingarda, visto que já tinha tido licença de uso e porte desta.

Para além disso, a propósito do modo como o arguido disparou contra o ofendido, por cinco vezes, atingindo-o com quatro desses disparos, a primeira vez, à distância de cerca de 3 m, atingindo-o no tórax, a segunda vez, à mesma ou aproximada distância, atingindo-o na mão, a terceira vez, quando ofendido se encontrava de costas voltadas para si, atingindo-o no ombro, e, a quarta vez, quando o ofendido já se encontrava caído no chão, à distância de menos de 1 metro, atingindo-o na cabeça, não pode deixar de entender-se que o arguido ao pretender causar a morte ao ofendido agiu reflectindo sobre os meios empregados (colocando a vítima em posição de total desprotecção), com frieza de ânimo, revelando tenacidade na execução do crime e profunda insensibilidade e desrespeito pela vida humana, como bem defendeu o tribunal recorrido.

A respeito da frieza de ânimo, vem sendo entendimento da jurisprudência que a mesma consiste no “processo reflexivo, lento, ponderado e calmo na preparação do projeto criminoso, nomeadamente na seleção dos meios a utilizar e na escolha daquele que menos possibilidade de defesa deixa à vítima.”, como se sublinha no ac. do STJ de .../.../2022, proc. nº 2289/20.

Como neste aresto se adianta, “O STJ vem entendendo que constitui frieza de ânimo o processo reflexivo, lento, ponderado e calmo na preparação do projeto criminoso, nomeadamente na seleção dos meios a utilizar e na escolha daquele que menos possibilidade de defesa deixa à vítima (Supremo Tribunal de Justiça, Secção Criminal, Acórdão de 17 Jan. 2007, Processo 3845/06, Ref. ...07, CJ on line); que atua com frieza de ânimo aquele que forma a sua vontade de matar outrem de modo frio, lento, refletido, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução e persistente na resolução (ac. STJ de ........2003, Processo 3252/03, Ref. ...03 CJ on line); a frieza de ânimo deve revelar-se como uma intenção prévia da resolução homicida, (ac. STJ de ........2008, Processo 4730/08 Ref. ...08, CJ on line); a frieza de ânimo remete para um estado de serenidade e calma, aberto à ponderação, que mostre que o agente teve oportunidade para se deixar penetrar pelos contra-motivos sociais e ético-jurídicos de forma a desistir do seu desígnio homicida, residindo a justificação da agravação na insensibilidade a essas contra-motivações (ac. STJ de ........2010, Processo 494/09...., Ref. ...10, CJ on line); age com frieza de ânimo aquele que, após uma discussão com a vítima e de ser desafiado para se encontrarem num certo local, vai a casa, onde recolhe e leva consigo uma espingarda caçadeira, devidamente municiada, desloca-se na sua carrinha para aquele local, cruzando-se com a carrinha da vítima, mas, a dado momento, esconde-se e, quando este vem na sua direção, surge inesperadamente nas suas proximidades e, a uma distância de 8,80 m., aponta-lhe a referida arma na direção da cabeça e dispara, causando-lhe a morte (ac. STJ de 3 .... 2016, Ref. ...16, CJ on line).”

As circunstâncias em que o arguido actuou não podem, pois, deixar de apontar para que o mesmo agiu com frieza de ânimo e com reflexão sobre os meios empregados, pelo que, nenhuma censura nos merece o entendimento sufragado pela primeira instância no sentido da verificação da qualificativa prevista na citada alínea j) do nº2 do art. 132º do Código Penal, contrariamente à pretensão do recorrente no sentido da sua inverificação, revelando-se, pois, correcta a condenação do mesmo pelo cometimento do crime de homicídio, na forma tentada, qualificado nos termos previstos pela citada previsão legal, agravado nos termos do disposto no art. 86º, nºs 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e suas munições, agravação esta última que nem sequer vem posta em causa pelo recorrente.”

C) No recurso para este STJ o recorrente repristina a mesma argumentação no essencial.

Na verdade, limita-se até a salientar, conforme deflui da motivação, apenas que:

Ora, e como dos autos resulta, o arguido, após ter saído do café, foi a sua casa, jantar, e só cerca de meia hora depois saiu para procurar o ofendido.

Em sua casa tinha a espingarda, que lhe foi apreendida, e diversos cartuchos carregados com bala e zagalotes.

Se fosse sua intenção matar o ofendido (e sobre isso tivesse reflectido) de certo se muniria das referidas espingarda e cartuchos, pois que para tal fim seriam bem mais adequados e eficazes do que uma arma de pequeno calibre.

Como não o fez, e porque nenhum outro facto provado se pode enquadrar em tal qualificativa, terá ela de ser afastado.

Sendo-lhe, pois, imputável o crime tentado de homicídio previsto no artº 131º, agravado por força do artº 86º, nº 3, do Regime Jurídico das Armas e Munições.

Tal crime de homicídio (agravado e tentado) é passível de uma pena entre um mínimo de 2 anos, 1 mês e 18 dias e um máximo de 14 anos, 2 meses e 20 dias, sendo, no caso em apreço, justa e adequada uma pena não superior a 5 anos.13. Tal crime de homicídio (agravado e tentado) é passível de uma pena entre um mínimo de 2 anos, 1 mês e 18 dias e um máximo de 14 anos, 2 meses e 20 dias, sendo, no caso em apreço, justa e adequada uma pena não superior a 5 anos.

(…)”

Pois bem.

A argumentação antecedente só disso tem a aparência. É, aliás, de causar algum espanto pela fraqueza e inconsistência da mesma, tal como muito bem o salientou o Tribunal da Relação. Para mais ainda, tendo em conta o que o arguido disse acerca da forma e pouca frequência como usara já a caçadeira e desconhecer para que serviam chumbos e zagalotes. Não se compreende ainda como se pode concluir que a intenção resultaria do tipo de instrumento utilizado ou utilizável, quando no caso concreto qualquer um deles até teria objectivamente essa virtualidade. Aliás, o não uso da espingarda e cartuchos teria tido razões de diferente natureza sendo perfeitamente explicável, nomeadamente, pela sua maior visibilidade, peso e manuseamento ao invés da arma 6,35 usada.

Mais salientou o tribunal recorrido que “(…)revelando ainda a factualidade provada que, em vez da utilização dessa espingarda, o arguido se decidiu pela utilização de uma arma apta a disparar munições 6,35, daí não deixando de resultar que o mesmo tenha reflectido sobre um meio apto a empregar para causar a morte do ofendido por si almejada, bem podendo, até, congeminar-se, como pertinentemente adianta a Digna Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância, que nessa reflexão tenha perpassado pelo espírito do arguido o cuidado a ter na escolha do meio a empregar apto para causar a morte do ofendido, relacionado com o perigo de ser descoberto como autor dos factos. ( sublinhado nosso) E, nessa perspectiva, tivesse ponderado que apresentaria maior dificuldade para a investigação chegar ao autor dos disparos se a sua opção recaísse, como recaiu, na escolha da arma que se decidiu a utilizar, por se tratar de uma arma apta a disparar munições de calibre 6,36 mm, para a detenção da qual não tinha licença nem registo da mesma a seu favor, o que já não aconteceria, se essa sua opção tivesse recaído sobre a espingarda, visto que já tinha tido licença de uso e porte desta (…)”

Depois, a questão da natureza dos instrumentos, face ao conteúdo e sentido dessa argumentação do recorrente, sem mais, até nada explicaria por si quanto à frieza de ânimo e reflexão sobre os meios usados. Apenas dessa natureza resultaria maior ou a menor virtualidade na eficácia (suficiente porém em qualquer um deles) para a produção do resultado morte.

O tribunal recorrido perante a factualidade provada discorreu bem e concluíu ainda melhor. Acertadamente, além de chamar à fundamentação jurisprudência adequada à compreensão do sentido e dimensão fáctico-jurídica da qualificativa da alínea j) do nº2 do artº 132º do CPP, conteve-se no argumento mais importante e que se ateve à densificação de que “a frieza de ânimo remete para um estado de serenidade e calma, aberto à ponderação, que mostre que o agente teve oportunidade para se deixar penetrar pelos contra-motivos sociais e ético-jurídicos de forma a desistir do seu desígnio homicida, residindo a justificação da agravação na insensibilidade a essas contra-motivações (…)”

Na verdade, ficou provado no ponto 28 a própria frieza de ânimo no seu conceito mais abrangente (apesar de também poder ser lido numa abrangência não puramente de facto mas também de direito):

“28. O arguido agiu de forma premeditada e com frieza de ânimo, tendo-se previamente munido de uma arma de fogo apta a disparar munições de calibre 6.35mm, FN, de origem ..., esperando no interior do veiculo que o BB saísse do café, abordando-o depois e disparando contra o mesmo por cinco vezes, não lhe dando qualquer hipótese de se defender, atingindo-o no tórax, na mão, no ombro esquerdo e na cabeça, regiões do corpo onde sabia que se situam órgãos vitais à vida humana, e que o mesmo quis atingir, como conseguiu.”

Todo o contexto da acção do arguido, sendo certo que a dissidência de gostos desportivos e clubísticos de forma alguma poderia justificar o desagravo ao ponto a que chegou, ainda que recheado de expressões menos “generosas” e bem deselegantes como as dirigidas um ao outro pelo arguido e ofendido, revela que aquele teve muito tempo para se acalmar, pensar no sucedido, actuar com serenidade e não dar a importância que quis dar ao confronto verbal com o ofendido. Mas não. Foi a casa, voltou algum tempo depois, esperou o ofendido e disparou 5 tiros com a intensidade típica de quem quer mesmo tirar a vida a outrém, numa acção reveladora de intenção bem pensada num iter temporal de cerca de uma hora e meia. Teve mais do que tempo para agir reflectidamente e, nomeadamente, para também por poder optar por não fazer o que fez.

Ao invés, “estacionou a viatura em local estratégico que lhe permitia ver o ofendido sair do café; aguardando, nestas circunstâncias, cerca de uma hora e meia, atraindo o ofendido (aproveitando-se da vontade que este também teria de tirar desforço das provocações; e arrancando e parando sucessivamente a viatura para ir aproximação daquele) a local onde era menos provável a movimentação de pessoas, por se situar a 200 metros do café; e, quando o ofendido se encontrava em local mais afastado, sozinho e desarmado no meio da estrada, saiu da sua viatura e efectuou 4 disparos seguidos sobre o mesmo bem como, quando o ofendido já se encontrava caído no chão e totalmente vulnerável, aproximou-se do mesmo e, a menos de um metro, efectuou um 5.º disparo à cabeça.(…)”

Entre o mais, e seguindo a súmula contida no Ac do STJ de 24-03-2022 (relatado pelo Conselheiro Cid Geraldo, publicado no site da DGSI in Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (dgsi.pt) diremos ainda:

“(…)

Contemplando o exemplo-padrão, sob o denominador comum da premeditação, a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados e o protelamento da intenção de matar por mais de 24 horas, haverá que verificar se ocorre a circunstância de qualificação do crime de homicídio prevista na al. j), do n.º 2, do art. 132.º, do CP, indiciadora de especial censurabilidade ou perversidade, isto é, se o recorrente agiu com “frieza de ânimo”. Ou seja, se, pela ponderação, na sua globalidade, das circunstâncias em que a morte foi causada, tanto no processo de formação da vontade criminosa, como em particular no modo de execução do facto, e da atitude do agente nele expressas, se deve considerar que estas, pela sua especial gravidade, revelam que o arguido formou e executou a vontade de matar de modo frio, imperturbável, firme e inabalável, com persistência da resolução criminosa, denotando total ausência de emoções perante a saúde, a integridade física e a vida humana e destituída de qualquer tipo de respeito ou compaixão perante o sofrimento da vítima, com violência extrema na busca sinistra de soluções de imposição de sofrimento crescente, muito para além do que seria necessário para retirar a vida, demonstrando desprezo pela vida humana numa atitude profundamente intolerável, evidenciando, assim, especial perversidade ou censurabilidade.

Ademais no que concerne à frieza de ânimo, ela envolve certas características como tibieza, impassividade, indiferença ou insensibilidade à dor, a sentimentos ou emoções de outrém, firmeza de reflexão e amadurecimento, irrevogabilidade e intensidade da resolução criminosa e na correspondente execução do crime.

A propósito da inclusão desta circunstância agravante, como uma das possíveis manifestações da premeditação, na tipificação do crime de homicídio qualificado, Eduardo Correia esclarecia que: «(…) tal firmeza, tenacidade e irrevogabilidade de uma resolução previamente tomada revela uma forte intensidade da vontade criminosa. Efectivamente, a circunstância de mediar um grande intervalo de tempo entre o momento em que, definitivamente, a resolução criminosa se formou e a sua execução, ou seja a pertinácia da resolução, a mora habens, mostra não só que o criminoso teve uma larga oportunidade, que não aproveitou, para se deixar penetrar pelos contra-motivos sociais e ético-jurídicos de forma a, pelo menos transitoriamente, desistir do seu desígnio, mas ainda que a paixão lhe endureceu totalmente a sensibilidade e sobretudo que a força de vontade criminosa é de tal forma intensa que o agente sem hesitação, como mero “déclancher” da decisão tomada prévia e longinquamente».

E acrescentou que «o critério referido envolve uma relativa margem de incerteza, na medida em que o tempo de permanência de uma resolução previamente tomada, até à sua execução, considerado necessário para revelar uma especial perigosidade ou a possibilidade de uma normal intervenção de contra - motivos, só pode ser fixada por apelo às regras da experiência. Mas isto corresponde à natural fragilidade de todos os conceitos que se relacionam com os factos humanos e pode ser corrigido pela exigência formal da fixação de um certo lapso de tempo, especialmente quando à premeditação correspondam efeitos agravantes particularmente graves» (Direito Criminal, II, 1965, págs. 301 a 303).

«A ideia fundamental nesta circunstância é a da premeditação. Pressupondo uma reflexão da parte do agente. O que acontece é a influência do factor tempo, e o facto de se ter estudado a forma de preparar o crime, demonstram uma atitude de maior desvio em relação à ordem jurídica. O decurso do tempo deveria fazer o agente cessar a sua vontade de praticar o crime, quanto mais medita sobre a sua prática mais exigível se torna que não actue desse modo» (Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes contra as pessoas, 2.ª edição, revista e actualizada de acordo com a Lei n.º 59/2007, Quid Juris, 2008, pág. 80).

Assim, a frieza de ânimo verifica-se quando o crime tenha sido praticado a coberto de evidente sangue-frio, pressupondo um lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo e imperturbado processo de preparação e execução do crime, congeminado por forma a denotar insensibilidade, indiferença pelos outros e profundo desrespeito pela pessoa humana, pela saúde e integridade ... e vida alheias, residindo a justificação da agravação na insensibilidade e resistência persistente às contra-motivações sociais e ético-jurídicas que o levariam a desistir do seu desígnio, reveladora de uma vontade criminosa particularmente intensa e, portanto, de especial perigosidade.

A frieza de ânimo tem sido definida como uma actuação criminosa «de forma calculada, com imperturbada calma, revelando indiferença e desprezo pela vida, um comportamento traduzido na firmeza, tenacidade e irrevogabilidade da resolução criminosa» (Ac. do STJ de 06.04.2006, proc. 362/06-5, in http://www.dgsi.pt).

«A frieza de ânimo é uma acção praticada a coberto de evidente sangue-frio, pressupondo um lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo e imperturbado processo na preparação e execução do crime, (…), por forma a denotar insensibilidade e profundo desrespeito pela pessoa e vida humanas» (Ac. do STJ de 26.09.2007, proc. 07P2591. No mesmo sentido, Acs. do STJ de 15.05.2008, proc. 07P3979, de 21.01.2009, proferido no proc. 08P4030, de 06.01.2010,proc.238/08.2JAAVR.C1.S1,de14.10.2010,proc.494/09.9GDTVD.L1.S1,de20.10.2011,proc. 1909/10.9JAPRT.S1, de 12.03.2015, processo 405/13.7JABRG.G1.S1, de 18.03.2015, proc. 351/13.4JAFAR.E1.S1, de 12.05.2016, proc. 974/13.1PIVNG.G2.S1, de 30.05.2019, proc. n.º 21/17.4JAFUN.L1.S1, de 27.11.2019, proc. 323/18.2PFLRS.L1.S1, de 27.05.2020, proc. 45/18.4JAGRD.C1.S1, in http://www.dgsi.pt).

Por fim, sempre acrescentaremos, ainda, que:

“(…) a frieza de ânimo é só uma das três possíveis manifestações de premeditação e refere-se tanto ao processo de formação da vontade criminosa, como ao processo de execução dessa vontade, ou seja, ao modo de consumação do crime, sendo certo que a verificação da agravante modificativa prevista no art. 132º nº 2 al. j) não exige a verifica-se cumulativa da frieza de ânimo, da reflexão sobre os meios empregados e da persistência da intenção de matar por mais de 24 horas, como resulta, desde logo, do uso da disjuntiva «ou» entre as expressões «reflexão sobre os meios empregues» e «ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas», mas, sobretudo, porque essa é a solução que se coaduna com a razão de ser da inclusão destas circunstâncias como índices da agravação do homicídio. Aparte as críticas que se podem fazer à inserção desta última vertente da premeditação e da fixação deste limite temporal para ilustrar a firmeza da vontade criminosa, o que importa salientar,(…) é que até é especialmente na execução criminosa que a frieza de ânimo tem o seu âmbito de revelação.(cit ibidem Ac. supra).

Voltando derradeiramente ao caso concreto, tal como se explicou, cremos assim podermos concluir sem dúvida alguma pelo acerto do juízo a quo na caracterização do impacto daquele tempo de reflexão e na insensibilidade do arguido reveladores da qualificativa da frieza de ânimo e, por isso, julgar improcedente o recurso nessa parte.

Consequentemente, a pretendida alteração da pena para medida inferior resultante da desqualificação cai por si, sendo certo que, nesta parte, o arguido, sem aquele argumento, não põe validamente em causa o acerto da pena obtida pela qualificação do crime, pelo que a forma e critérios com que foi determinada, bem como a pena unitária, também não merece censura alguma por revelar ponderação e proporcionalidade de acordo com as exigências de prevenção geral ( muito elevadas) e especial e os limites da culpa ( também elevada).

É o que decorre do que consta claramente da decisão confirmada:

“(…)Para determinação da medida concreta da pena deverá atender-se aos critérios constantes do art. 71.º do Código Penal.

Assim, há que ponderar:

-As exigências de prevenção geral que são muito elevadas no tocante ao crime de homicídio, que tutela o bem jurídico supremo que é a vida humana, e já significativas quanto ao crime de detenção de arma proibida, face ao bem jurídico tutelado, correspondente à segurança da comunidade.

-As exigências de prevenção especial, relevando, a este propósito, a ausência de antecedentes criminais.

-O grau de ilicitude, o modo de execução e a gravidade das consequências do facto, que não podem deixar de considerar-se muito elevados, atendendo às circunstâncias da prática dos factos, tendo o arguido, após a discussão, ido a casa, regressando ao local minutos depois, pelas 22:25 horas e ficando a aguardar no interior da viatura durante cerca de uma hora e meia pela saída do ofendido do café. Gesticulou para fazer notar a sua presença e provocar a saída do ofendido da viatura, e quando este se lhe dirigia, arrancou com a viatura parando uns metros mais à frente, fazendo com que o mesmo viesse na sua direcção. Manobra que repetiu várias vezes, no sentido de atrair a vítima a local menos movimentado. Chegado a um local onde era menos provável a circulação de outras pessoas àquela hora, a 200 metros do café, saiu do carro e de imediato efectuou 4 disparos, sendo dois de frente para o ofendido (atingindo-o no tórax e na mão esquerda) e outros dois quando o mesmo já estava de costas para si e tentava fugir do local (um dos quais atingiu o ombro esquerdo do ofendido). E já quando o ofendido estava caído no chão, no meio da estrada, aproximou-se a menos de um metro daquele, desferindo-lhe um 5.º tiro na cabeça. Tudo a denotar uma persistência particularmente grave na intenção de matar, algum gosto em se aproveitar da personalidade que detectou no ofendido (impulsivo e permeável a provocações) e total insensibilidade ao outro, cuja morte tentou provocar em jeito de execução sumária (disparando em direcção à cabeça, quando o ofendido se encontrava indefeso e vulnerável no chão). Atende-se igualmente às consequências para a vítima, sendo que para além do sério e concreto perigo para a vida, sofreu um período de 391 dias de incapacidade, viu definitiva e gravemente afectada a sua capacidade de trabalho profissional, vê afectada a mobilidade do membro superior esquerdo e a sensibilidade da face e de dois dedos da mão direita, e sofrerá sequelas neurológicas e psiquiátricas que estão ainda por consolidar. Sendo certo que se trata de pessoa com 50 anos de idade, com uma expectativa de vida ainda longa e que assim vê o seu trabalho, o seu dia-a-dia e as sua rotinas irremediavelmente postas em causa. Quanto ao crime de detenção de arma proibida, atende-se ao facto de estar em causa não só a arma com que efectuou os disparos, como as munições deflagradas (importando a detenção e uso de pelo menos 5 munições de calibre 6.35mm), bem como a detenção e guarda de 6 cartuchos/munições proibidas de outros calibres.

-A intensidade do dolo, que foi directo e muito persistente;

- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, relevando o facto de a actuação do arguido ter sido determinada por divergências clubísticas, numa clara desproporção entre insignificância do motivo da contenda e a gravidade da actuação do arguido. Nos factos, denotou ainda o arguido total desprezo pela vida humana, ausência de empatia para com a vítima e uma atitude fria e calculista, totalmente distanciada das emoções.

-As condições pessoais e económicas do agente, para as quais releva o facto de não ter qualquer vínculo profissional desde 2011, subsistindo dos rendimentos da companheira e ajudas do filho desta e de uma tia. Apesar da idade que tinha quando deixou de trabalhar (46 anos), o arguido continua a não apresentar quaisquer projectos de vida estruturados.

-A conduta posterior aos factos, ponderando-se, a este propósito, a postura assumida em audiência onde, optando por prestar declarações, trouxe aos autos uma versão dos factos completamente distanciada da realidade e contrária às regras da lógica e às evidências com que era confrontado. Em momento algum demonstrou o mínimo de empatia para com a vítima, mantendo uma atitude de sobranceria relativamente aos factos, tudo a denotar uma total ausência de juízo crítico ou de auto-censura sobre os seus comportamentos e falta de consciência do desvalor da sua conduta.

Ora, atendendo aos factores já elencados, e aos limites mínimos e máximos das penas de prisão abstractamente aplicáveis a cada um dos crimes, considera-se ajustado fixar:

- a pena a aplicar pela prática do crime de homicídio qualificado agravado na forma tentada, em 11 anos e 8 meses de prisão;

- a pena a aplicar pela prática do crime de detenção de arma proibida, em 2 anos de prisão.

Procedendo ao cúmulo, verifica-se ser abstractamente aplicável ao arguido, nos termos do disposto no art. 77.º do Código Penal, pela prática dos referidos crimes, uma pena situada entre o limite mínimo de 11 anos e 8 meses, e o limite máximo de 13 anos e 8 meses de prisão.

Ponderados os critérios de determinação da medida da pena atrás referidos, e atendendo, por outro lado, à contemporaneidade dos crimes, e ao facto de o crime de detenção de arma proibida se ter constituído, em parte, como meio de consumação do crime de homicídio qualificado agravado tentado, numa análise global da actividade delituosa do arguido, entende-se ajustada a aplicação, em cúmulo, da pena de 12 anos e 2 meses de prisão.(…)”

Em suma, é de manter integralmente a decisão e julgar o recurso improcedente.

III- DECISÃO

3.1 - Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

3.2 - Taxa de justiça em 6 UC a cargo do arguido recorrente (artº 513º do CPP e tabela III do RCP)

STJ, 12 de Setembro de 2024

(texto elaborado em suporte informático , revisto e rubricado pelo relator – (artº 94º do CPP)

Agostinho Torres- (relator)

Vasques Osório (1º adjunto)

Jorge Gonçalves (2º adjunto)

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1. Nos pontos 8 a 11 da motivação consta o seguinte:

  “8.Ora, e como dos autos resulta, o arguido, após ter saído do café, foi a sua casa, jantar, e só cerca de meia hora depois saiu para procurar o ofendido.

  9.Em sua casa tinha a espingarda, que lhe foi apreendida, e diversos cartuchos carregados com bala e zagalotes.

  10. Se fosse sua intenção matar o ofendido (e sobre isso tivesse reflectido) de certo se muniria das referidas espingarda e cartuchos, pois que para tal fim seriam bem mais adequados e eficazes do que uma arma de pequeno calibre.

  11.Como não o fez, e porque nenhum outro facto provado se pode enquadrar em tal qualificativa, terá ela de ser afastada”

2. Neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.