CONTRATO DE TRABALHO
RESOLUÇÃO PELO TRABALHADOR
ARREPENDIMENTO
RENOVAÇÃO DO CONTRATO
REPRISTINAÇÃO
Sumário


I. Consubstanciando o exercício de um direito potestativo, a resolução traduz-se numa declaração de vontade unilateral e recetícia, mediante a qual um dos contraentes comunica à contraparte a extinção do vínculo contratual, declaração que se torna eficaz logo que chega ao poder ou é conhecida pelo seu destinatário.
II. Em exceção à regra geral do art. 230º, do C. Civil, que prescreve a irrevogabilidade da declaração negocial, o trabalhador pode revogar a resolução do contrato até ao sétimo dia seguinte à data em que a declaração chegar ao poder do empregador, mediante comunicação escrita dirigida a este.
III. Decorrido este prazo, a resolução assume plena eficácia, cessando para todos os efeitos a relação contratual, deixando por isso de ser possível proceder à sua revogação, unilateral ou convencionalmente.
IV. Todavia, num plano dogmaticamente distinto, nada obsta a que as partes acordem na repristinação do contrato, ao abrigo do princípio da liberdade contratual (Art. 405.º, nº 1, do C. Civil).

Texto Integral


Revista n.º 4843/21.3T8MAI.P1.S1

MBM/JG/AP


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

I.


1. AA instaurou contra GIMNORIO – Clube de Lazer, Lda., ação com processo comum.

2. Na 1.ª instância, a ação foi julgada parcialmente procedente, declarando-se, para além do mais, ser “lícita e eficaz a resolução do contrato de trabalho levada a cabo pela A.”.

3. Interposto recurso de apelação pela R., o Tribunal da Relação do Porto (TRP), concedendo-lhe provimento, decidiu absolver a R. dos pedidos formulados pela A.

4. Inconformada, a A. interpôs recurso de revista.

5. A R. contra-alegou.

6. Neste Supremo Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido da procedência do recurso, em Parecer a que respondeu a R., em linha com as posições antes sustentadas nos autos.

7. Em face das conclusões das alegações da recorrente, e inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), a única questão a decidir1 consiste em determinar se, à data da alegada resolução do contrato de trabalho pela A., o vínculo contratual se encontrava em vigor, em virtude de a anterior declaração resolutória, pela mesma comunicada à ré, ter deixado de produzir efeitos.

Decidindo.


II.

8. Com relevo para a decisão, a matéria de facto fixada pelo acórdão recorrido é a seguinte:

1. A Ré é uma empresa que se dedica ao ensino, desenvolvimento e gestão de atividades desportivas e de lazer, gestão de instalações desportivas e outras atividades de serviços não especificados a eles relativos; comércio a retalho de artigos de desporto, de campismo e lazer, comércio a retalho de produtos médicos e ortopédicos; comércio a retalho de produtos cosméticos e de higiene; café/bar; outras atividades de saúde humana n.e.; salão de cabeleireiro e atividades de bem-estar físico.

(…)

3. Em 12 de janeiro de 2012 a Autora e o seu ... de nome BB, compraram a Ré (…)

4. No exercício da atividade da Ré, mediante contrato de trabalho verbal sem termo, esta contratou a Autora desde o dia 12 de janeiro de 2012.

5. Nos termos do referido contrato, a Autora comprometeu-se a exercer, por conta, sob autoridade, direção e fiscalização da Ré as funções de ...(…).

(…).

8. [A partir de] dezembro de 2020 (…) a Ré começou a extravasar os prazos de pagamento dos vencimentos da Autora, deixando, inclusive, de os pagar.

(…)

10. Em relação aos meses de janeiro e fevereiro de 2021, a Ré só pagou à Autora a retribuição mensal respetiva em 11 de março de 2021.

11. A partir do mês de julho de 2021, a Ré deixou de efetuar o pagamento das retribuições salariais devidas à Autora.

(…)

14. A Ré não pagou à Autora a quantia correspondente ao mês de agosto de 2021 (…)

15. A Ré não pagou à Autora a quantia correspondente ao mês de mês de setembro de 2021 (…).

16. A Ré não pagou à Autora a quantia correspondente ao subsídio de férias do ano civil de 2020 (…).

(…)

19. Por carta datada de 18.10.2021, recebida pela Ré em 20 de outubro de 2021, a Autora deu a conhecer à Ré essa sua intenção de rescisão unilateral, com justa causa, do seu contrato de trabalho.

(…)

30. Por carta registada com aviso de receção de 15.02.2021, recebida pela Ré em 17.02.2021, a Autora comunicou à Ré, sua entidade patronal, “… a imediata resolução com justa causa do contrato de trabalho celebrado…”.

31. Nos meses de janeiro/21, fevereiro/21, março/21, abril/21, maio/21, junho/21, julho/21, agosto/21, setembro/21 e outubro/21, a Autora não desempenhou qualquer trabalho na Ré.

(…)

35. [A]pós o ... (…), em .../03/2021, Autora e o ... da Ré, BB, celebraram contrato promessa partilha de bens comuns.

36. Tal contrato tinha o seguinte teor:

“(…)

Cláusula terceira – relação laboral entre a sociedade Gimnorio, Lda., e a primeira outorgante.

(…)

Com a assinatura do presente contrato, a primeira outorgante dá sem efeito a comunicação de resolução do contrato de trabalho datada de 15.02.2021, remetida à sociedade Gimnorio, Lda., cuja eficácia será repristinada, em caso de incumprimento pelo segundo outorgante [o seu ex marido] de alguma das obrigações assumidas no presente acordo. (…)”.

(…)

47. Por acordo entre as partes, o contrato definitivo de partilha (escritura pública) ficou agendado para o (…) dia 24.05.2021, pelas 15h (…).

48. No dia 21.05.2021, o advogado da Autora informou que esta não estava disponível nesse dia para outorgar a referida escritura pública de partilha.

49. O ... da Ré, BB, interpelou a Ré por email e carta registada com aviso de receção de 01/06/2021 do seguinte modo: “(…)”

50. Consta do certificado emitido pela dita Notária, no dia 14.06.2021 [nova data designada para a escritura pública de partilha], apesar de Autor e Ré terem comparecido no referido cartório notarial no dia e hora determinados (14/06/2021, pelas 15h), a Ré “… se recusou a assinar a escritura, alegando que a mesma não está conforme o acordo de partilha. (…)”.

(…)

55. O BB, face à recusa da Autora em outorgar a escritura pública de partilha, procedeu à suspensão dos pagamentos dos salários da Autora.

(…)

64. No dia 20/10/2021, a Autora remeteu outro email ao BB, ... da Ré, com o seguinte teor:

“(…) Boa noite, BB!

De acordo com a carta registada que hoje recebeste, venho também por este meio, enviar o conteúdo da mesma, o qual passo a citar: “Exmo. Senhor, Venho, por este meio, comunicar a rescisão do m/ contrato de trabalho, com justa causa, pelo facto de, até à presente data, não terem sido pagos, injustificadamente, os vencimentos de julho, agosto e setembro de 2021, nem o subsídio de férias.

(…)”

65. Em 04/01/2022, o referido BB deduziu contra a aqui Autora ação de execução específica do contrato promessa de partilha entre eles outorgado.

66. Por acordo verbal entre a Autora e o legal representante da Ré, a resolução de contrato manifestada na carta enviada pela Autora à Ré em fevereiro de 2021 ficou sem efeito.

67. A Autora acabou por receber, mais tarde as quantias não pagas a título de salário e subsídio de Natal respeitantes e novembro e dezembro de 2020.

68. A Ré continuou a pagar os vencimentos subsequentes, de março, abril, maio e junho, ainda que, fora do prazo de vencimento.

69. Por acordo entre a Autora e o legal representante da Ré, a Autora estava dispensada de prestar trabalho no local de trabalho a partir de data não concretamente apurada mas, pelo menos, desde outubro de 2020 até outubro de 2021.

(…)

71. Em março de 2021, a Ré pagou à Autora 50% do vencimento de janeiro e 50% do subsídio de Natal e vencimento de fevereiro.

72. Em 12 de abril de 2021, a Ré pagou à Autora 50% do vencimento de janeiro e 50% do subsídio de Natal e vencimento de março.

73. Em 11 de maio de 2021, a Ré pagou à Autora o vencimento de abril.

74. Em 11 de junho de 2021, a Ré pagou à Autora o vencimento de maio.

75. Em 05 de agosto de 2021, a Ré pagou à Autora o vencimento de junho.


III.

9. Como sinaliza o acórdão recorrido, os factos provados permitem distinguir três momentos ou ciclos no relacionamento entre as partes:

1º ciclo: na sequência de atrasos no pagamento das retribuições devidas à A., esta, em 15.02.2021, comunicou à R. a resolução do contrato de trabalho com justa causa (v.g. pontos 8 e 30 da matéria de facto).

2º ciclo: em 10.03.2021, após o divórcio, a A. e o gerente da R. celebraram contrato-promessa de partilha de bens comuns, do qual consta, designadamente, que “a primeira outorgante dá sem efeito a comunicação de resolução do contrato de trabalho datada de 15.02.2021, (…) cuja eficácia será repristinada, em caso de incumprimento pelo segundo outorgante de alguma das obrigações assumidas no presente acordo”; a Ré continuou a pagar os vencimentos subsequentes, de março, abril, maio e junho; nos meses de janeiro/21, fevereiro/21, março/21, abril/21, maio/21, junho/21, julho/21, agosto/21, setembro/21 e outubro/21, a Autora não desempenhou qualquer trabalho na Ré; por acordo, a A. estava dispensada de laborar no local de trabalho a partir de data não concretamente apurada mas, pelo menos, desde outubro de 2020 até outubro de 2021 (v.g. pontos 31, 35, 36, 66, 68 e 69 da matéria de facto).

3º ciclo: BB, face à recusa da Autora em outorgar a escritura pública de partilha, procedeu à suspensão dos pagamentos dos salários da A.; a R. não pagou à A. os salários de agosto e setembro de 2021, nem o subsídio de férias do ano civil de 2020; por carta datada de 18.10.2021, a A. deu a conhecer à R. a sua intenção de “rescisão unilateral, com justa causa, do seu contrato de trabalho” (v.g. pontos 14 a 16, 19 e 55 da matéria de facto).

10. Consubstanciando o exercício de um direito potestativo, a resolução traduz-se numa declaração de vontade unilateral e recetícia, mediante a qual um dos contraentes comunica à contraparte a extinção do vínculo contratual, declaração que se torna eficaz logo que chega ao poder ou é conhecida pelo seu destinatário (art. 234º, nº 1, do C. Civil).

11. Em exceção à regra geral ínsita no art. 230º, do C. Civil, que prescreve a irrevogabilidade da declaração negocial, o trabalhador pode revogar a resolução do contrato até ao sétimo dia seguinte à data em que a declaração chegar ao poder do empregador, mediante comunicação escrita dirigida a este (art. 397º, nº 1, do CT).

O direito ao arrependimento assim previsto reveste natureza marcadamente excecional, uma vez que, como refere Pedro Romano Martinez2, no tocante ao regime geral da resolução:

“A resolução determina a imediata cessação do vínculo, produzindo o efeito extintivo logo que a declaração de vontade chega ao poder do destinatário ou é dele conhecida (art. 224º, nº 1, do CC). Depois de recebida (ou ser conhecida) a declaração negocial de resolução do vínculo não poderá ser revogada, admitindo-se, porém, que aquele que resolveu o contrato proponha ao destinatário da declaração (contraparte) a repristinação do negócio jurídico, sendo, então, necessário o consentimento deste. Em suma, a resolução funda-se num direito potestativo, mas a sua revogação pressupões o acordo”.

12. Uma vez que, como se compreende, não é concetualmente configurável a possibilidade de unilateralmente fazer renascer um vínculo já extinto, digamos que, até ao decurso do prazo de 7 dias concedido na lei laboral para o arrependimento do trabalhador, a resolução do contrato fica com a sua eficácia paralisada/suspensa.

Mas, decorrido este prazo, a resolução assume plena eficácia, cessando para todos os efeitos a relação contratual, deixando por isso de ser possível proceder à sua revogação, unilateral ou convencionalmente.

13. Todavia, num plano dogmaticamente distinto, nada obsta, naturalmente, a que as partes acordem em qualquer momento na repristinação do contrato, ao abrigo do princípio da liberdade contratual, segundo o qual, dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos na lei ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver (Art. 405.º, nº 1, do C. Civil).

Com efeito, o contrato de trabalho é “um produto da autonomia privada, resultando do encontro de uma proposta e uma aceitação”3, inserindo-se a sua disciplina legal no direito privado, pelo que “estamos fora de um modelo de mera execução ou de aplicação da lei, mas [num âmbito] em que se toma sobretudo como referência a autonomia [privada]”4, “com as suas componentes de autonomia da vontade e da autonomia contratual, como expressão do princípio de liberdade5.

14. Será que os factos provados nos autos – que evidenciam uma alargada relação litigiosa entre ex-cônjuges na qual se inserem as vicissitudes do contrato de trabalho em apreço – permitem afirmar que as partes quiseram repor em vigor o contrato de trabalho (válida e eficazmente) resolvido pela A. em 15.02.2021 (com efeitos a partir desta data)?

A este propósito, provou-se que “por acordo verbal entre a Autora e o legal representante da Ré, a resolução de contrato manifestada na carta enviada pela Autora à Ré em fevereiro de 2021 ficou sem efeito” (ponto 66 da matéria de facto), bem como que no contrato-promessa celebrado entre a A. e BB foi convencionado que “com a assinatura do presente contrato, a primeira outorgante dá sem efeito a comunicação de resolução do contrato de trabalho datada de 15.02.2021, remetida à sociedade Gimnorio, Lda., cuja eficácia será repristinada, em caso de incumprimento pelo segundo outorgante [o seu ...] de alguma das obrigações assumidas no presente acordo” (pontos 35 e 36 da matéria de facto).

Mais se acordou na cláusula terceira, nºs 1, 2 e 5, do mesmo contrato “a fazer cessar o contrato de trabalho que vincula a primeira e sociedade Gimnorio, Lda.”, mediante o pagamento de determinadas quantias, bem como que “com a celebração do acordo de cessação do contrato de trabalho acima mencionado, extingue-se o processo disciplinar que foi movido pela sociedade contra a primeira outorgante”.

Conclui-se, assim, que as partes acordaram na repristinação do contrato de trabalho e, ao mesmo tempo, na forma e nos termos de proceder à sua posterior extinção.

Neste sentido, muito relevantemente, também aponta a circunstância de, já após o contrato-promessa, terem sido pagos à recorrente os salários relativos aos meses de março a junho de 2021 (pontos 72 a 76 da matéria de facto), sendo certo que a reiterada prática de atos de execução de um tipo contratual “pode e deve, segundo um critério prático, ser tomada como comportamento concludente no sentido de ter ocorrido renovação ou repristinação da relação contratual originariamente existente” (nas palavras do Ac. do STJ de 10.10.2013, Proc. nº 4094/07.0TVLSB.L1.S1, 7ª Secção).

15. Contra a relevância do clausulado no contrato-promessa, argumenta o Tribunal da Relação, com base no disposto no nº 4 do art.º 260º do Código das Sociedades Comerciais – segundo o qual “os gerentes vinculam a sociedade, em atos escritos, apondo a sua assinatura com indicação dessa qualidade” –, que “não se alcança que o contratante BB tenha agido como gerente da Ré, nada apontando para que tenha agido em nome da sociedade, de modo a poder dizer-se tratar-se de um ato da sociedade, e como tal se tenham produzido efeitos na esfera jurídica da sociedade”.

Acontece, como se reconhece no mesmo aresto, que o STJ uniformizou jurisprudência no sentido de que “a indicação da qualidade de gerente prescrita no n.º 4 do art.º 260.º do CSC, pode ser deduzida, nos termos do art.º 217º do CC, de factos que, com toda a probabilidade, a revelem”6. E, uma vez que a A. e o seu ex-marido são os únicos sócios da sociedade em causa, decorre daí e de todo o demais contexto que envolveu a outorga do contrato que, relativamente às cláusulas com implicações na esfera jurídica da sociedade, este último interveio enquanto gerente.

16. Em suma: à data da resolução do contrato de trabalho levada a cabo pela A. em 18.10.2021, o vínculo contratual encontrava-se em vigor, em virtude de as partes terem procedido anteriormente à repristinação do vínculo laboral, com efeitos reportados a 15.02.2021.

Uma vez que apenas estava em causa no recurso a eficácia da resolução contratual, e não o montante das suas consequências ressarcitórias, questão que não foi suscitada, nem na revista, nem na apelação, impõe-se repristinar, nos seus precisos termos, o decidido na sentença da 1ª Instância.


IV.

17. Nestes termos, concedendo a revista, acorda-se em revogar o acórdão recorrido, ficando a prevalecer, nos seus precisos termos, a decisão da 1ª instância.

As custas da revista e da apelação ficam a cargo da R., repristinando-se igualmente o decidido na 1.ª instância quanto a custas.

Lisboa, 16.10.2024

Mário Belo Morgado (Relator)

Júlio Manuel Vieira Gomes

Albertina Pereira

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1. O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais não vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma.↩︎

2. In Da Cessação do Contrato, 2ª edição, Almedina, 2004, pp. 185 – 186.↩︎

3. Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 6ª edição, p. 272.↩︎

4. Bernardo da Gama Lobo Xavier, Procedimentos laborais na empresa, 2009, p. 88.↩︎

5. Ibidem, p. 81.↩︎

6. Acórdão nº 1/2002, de 06.12.2001, publicado no DR, I Série-A, nº 20, de 24.01.2002.↩︎