RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
CRIME DE ROUBO
PERDÃO
IDENTIDADE DE FACTOS
IDENTIDADE JURÍDICA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Sumário


I - Como se diz no acórdão do STJ n.º 5/2006, publicado no DR I-A Série de 06-06-2006, «A uniformização de jurisprudência tem subjacente o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito.»
II - A admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência depende do preenchimento de requisitos formais e de requisitos materiais, que se extraem dos art. 437.º e 438.º do CPP.
III - Neste caso concreto, verificando-se, além dos apontados requisitos formais, igualmente todos os requisitos materiais, conclui-se pelo prosseguimento do presente recurso extraordinário, sendo a questão sobre a qual importa fixar jurisprudência a seguinte: saber se o crime de roubo p. e p. no art. 210.º, n.º 1, do CP integra ou não a exceção prevista no art. 7.º, n.º 1, alínea g), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto (o mesmo é dizer se beneficia ou não do perdão previsto no mesmo diploma legal).

Texto Integral


Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. O Ministério Público interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos dos artigos 437.º, n.ºs 2 e 4 e 438.º do CPP, por haver oposição entre o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23.01.2024 proferido nos autos de que este recurso é apenso e o acórdão do TRL de 28.11.2023, proferido no processo n.º 7102/18.5P8LSB-A- L1-5.

2. Para o efeito, apresentou os seguintes fundamentos (transcrição):

1. Do acórdão recorrido

No acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães em 23/01/2024, já transitado em julgado, decidiu-se que:

- O crime de roubo simples, do artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, não está excluído do âmbito de aplicação da Lei n.º 38-A/2023 de 02-08 Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude servindo apenas a alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º daquela Lei de Amnistia de válvula de escape, permitindo a negação do perdão (e amnistia) para crimes que, não estando previstos especificamente nas alíneas anteriores do n.º 1 do mesmo artigo 7.º, possam ainda ser considerados fora do âmbito de aplicação da referida Lei n.º 38-A/2023 desde que esteja em causa uma vítima especialmente vulnerável, devendo essa vulnerabilidade resultar da definição dada pela alínea b) do n.º 1 do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, não sendo uma operação jurídica automática resultante da aplicação do n.º 3 do mesmo artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, por não ser essa a intenção do legislador.

Este acórdão transitou em julgado em 05/02/2024.

2. Do acórdão fundamento

- O acórdão recorrido está em oposição com o decidido no acórdão [fundamento] do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 28/11/2023, no Processo n.º 7102/18.5P8LSB-A.L1-5, publicado no sítio eletrónico www.dgsi.pt/jtrl (acessível em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRL:2023:7102.18.5), no qual se decidiu que: «Está excluído do benefício do perdão previsto na Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, o crime de roubo na sua forma de consumação simples, tipificada pelo artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, por se enquadrar no círculo de crimes cujas vítimas são, sempre e independentemente da respetiva condição, idade ou proveniência, “especialmente vulneráveis” e por isso se encontrar abrangido pela alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º da mesma Lei.».

Este acórdão também já transitou em julgado.

3. Da oposição entre julgados

i. Os dois referidos arestos, ambos já transitados em julgado e sem que, portanto, seja admissível a interposição de recurso ordinário, interpretam e aplicam, de forma divergente e incompatível, a norma do artigo 7.º, n.º 1, alínea g), da Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto.

ii. No acórdão recorrido decidiu-se que o crime de roubo simples, do artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, não está excluído do âmbito de aplicação da Lei n.º 38-A/2023 de 02-08, uma vez que uma aplicação literal da alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º, da Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, esvazia de sentido o n.º 1, alínea b), do mesmo artigo 7.º, impondo-se uma rejeição do sentido literal estrito e exigindo-se uma harmonização interna da norma interpretada, devendo averiguar-se, caso a caso, se a vítima do roubo simples é ou não uma vítima especialmente vulnerável, à luz da alínea b), do n.º 1, do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal.

iii. No acórdão fundamento decidiu-se que a vítima do crime de roubo do artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, é sempre uma vítima especialmente vulnerável, uma vez que nos termos do disposto no artigo 67º-A, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal considera-se “vítima especialmente vulnerável, a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social” e prevê o n.º 3 que “as vítimas de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente violenta e de terrorismo são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1.”

O mencionado preceito legal remete, por conseguinte, para o disposto no artigo 1.º, alíneas j) e l) do Código de Processo Penal que consideram como “Criminalidade violenta as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos” e como “Criminalidade especialmente violenta as condutas previstas na alínea anterior puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 8 anos.”

Ora, sendo o crime de roubo previsto no artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal punido com uma pena de prisão superior a 5 anos (mais concretamente até 8 anos), o mesmo integra indubitavelmente o conceito de criminalidade especialmente violenta, como resulta expressamente do disposto no artigo 1.º, alínea l), do Código de Processo Penal e vem sendo defendido na jurisprudência.

Consequentemente, o crime de roubo do artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, integra todos os pressupostos legais a que se reporta a exceção da aplicação do perdão contida no artigo 7.º, n.º 1, alínea g) da Lei n.º 38-A/2023 de 02 de agosto.

iv. Ambos os acórdãos foram proferidos no domínio da mesma redação do artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, do artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal e dos artigos 1.º, alínea l) e 67.ºA, n.º 3, do Código de Processo Penal.

Impõe-se, pelo exposto, que, relativamente à oposição de julgados, assim verificada, seja proferida decisão de fixação de jurisprudência pelo Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça.

CONCLUSÕES

1. No acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães em 23/09/2023, decidiu-se que o crime de roubo simples, do artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, não está excluído do âmbito de aplicação da Lei n.º 38-A/2023 de 02-08 Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude servindo apenas a alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º daquela Lei de Amnistia, de válvula de escape, permitindo a negação do perdão (e amnistia) para crimes que, não estando previstos especificamente nas alíneas anteriores do n.º 1 do mesmo artigo 7.º, possam ainda ser considerados fora do âmbito de aplicação da referida Lei n.º 38-A/2023 desde que esteja em causa uma vítima especialmente vulnerável, devendo essa vulnerabilidade resultar da definição dada pela alínea b) do n.º 1 do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, não sendo uma operação jurídica automática resultante da aplicação do n.º 3 do mesmo artigo 67.º-A do Código de Processo Penal.

2. No acórdão fundamento, proferido em 28/11/2023, no Processo n.º 7102/18.5P8LSB-A.L1-5, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, publicado no sítio eletrónico www.dgsi.pt/jtrl, decidiu-se que a vítima do crime de roubo do artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, não pode deixar de ser considerada como uma vítima especialmente vulnerável, sob pena de se violar o preceituado no n.º 3, do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, aditado ao Código de Processo Penal pela Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro, pelo que, consequentemente, o crime de roubo do artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, integra todos os pressupostos legais a que se reporta a exceção da aplicação do perdão contida no artigo 7.º, n.º 1, alínea g) da Lei n.º 38-A/2023 de 02 de agosto.

3. Dos acórdãos recorrido e fundamento não é admissível recurso ordinário, tendo ambos já transitado em julgado.

4. Ambos os acórdãos foram proferidos no domínio da mesma legislação.

5. Termos em que se impõe a resolução da questão de direito controvertida e que é a de saber se o crime de roubo do artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, integra sempre a exceção da aplicação do perdão contida no artigo 7.º, n.º 1, alínea g) da Lei n.º 38-A/2023 de 02 de agosto.

6. Requer-se, assim, se reconheça a existência de oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 28/11/2023, no Processo n.º 7102/18.5P8LSB-A.L1-5, publicado no sítio eletrónico www.dgsi.pt/jtrl.

7. Propondo-se que a questão controvertida seja decidida de acordo com o decidido no acórdão fundamento.

8. E determinando-se, em consequência, a revogação do acórdão recorrido e sua substituição por outro em conformidade com o que vier a ser decidido.

Termina pedindo a procedência do presente recurso, sendo fixada jurisprudência no sentido do acórdão fundamento e, consequentemente, revogando-se a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra conforme a jurisprudência a fixar.

3. A Ilustre Defensora Oficiosa do arguido respondeu ao presente recurso interposto pelo Ministério Público para este STJ, apresentando as seguintes conclusões (transcrição sem negritos):

PRIMEIRA: A Recorrente solicita que seja uniformizada jurisprudência e que responda à questão de «saber se o crime de roubo do artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, integra sempre a exceção da aplicação do perdão contida no artigo 7.º, n.º 1, alínea g) da Lei n.º 38- A/2023 de 02 de agosto (...)» (sublinhado nosso).

SEGUNDA: Ressalva, contudo o Recorrido, que, em face dos acórdãos opostos, ENTENDE QUE a pergunta em relação à qual urge responder é a seguinte: a vítima de crime de roubo simples é, automaticamente e sem mais averiguações, considerada vítima especialmente vulnerável e por esse motivo os condenados pelo crime de roubo simples estão excluídos do regime especial, por força do disposto na alínea g) do n.º 1 do Artigo 7.º da Lei do Perdão e Amnistia?

TERCEIRA: O tipo incriminador do crime de roubo protege bens jurídicos do foro patrimonial e bens jurídicos pessoais, pelo que é considerado um crime complexo, que pressupõe a existência de violência ou a colocação da vítima na impossibilidade de resistir, mas não exige uma intensidade absolutamente comprometedora da capacidade de reação, bastando que seja suficiente para que o autor se apodere do bem na presença da vítima.

QUARTA: Relembra-se que o Legislador recorre a conceitos amplos e genéricos, para proteger os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, equilibrando os interesses em causa e mantendo em mente que a privação da liberdade é o último reduto da punição penal, cabendo ao Julgador a tarefa de subsumir o comportamento de todos os intervenientes nas respetivas disposições legais aplicáveis consoante as circunstâncias e especificidades do caso concreto.

QUINTA: Não se admite que o legislador, com a letra da lei, tenha pretendido conferir o mesmo tratamento a situações absolutamente distintas, e determinar que pessoa sem qualquer indício de fragilidade, só porque receou um tom ou gesto intimidatórios, seja considerada, automaticamente e para todos os efeitos, vítima especialmente vulnerável. E que este reconhecimento ocorra de forma totalmente ad hoc, volvidos anos sobre o trânsito da decisão condenatória.

SEXTA: Por isso, defende o recorrido que deve ser feita uma análise casuística da situação, para se poder averiguar se o comportamento do condenado pela prática do crime de roubo ao abrigo do n.º 1 do artigo 210.º do CP se subsume, ou não, na exceção vertida na alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 38.º-A/2023 de 2 de Agosto (Lei do Perdão e Amnistia).

SÉTIMA: Ora, não se pode ficcionar, após o trânsito em julgado das decisões condenatórias e sem qualquer elemento vertidos nos autos, que a vítima era especialmente vulnerável, pois esse entendimento, extremamente afastado da letra da lei e vontade do Legislador, de forma injustificada e totalmente ad hoc, apenas acarreta a exclusão da situação dos condenados pelo crime de roubo simples, dos benefícios decorrentes da aplicação da Lei do Perdão e da Amnistia, em clara violação do disposto no n.º 4 do artigo 30.º da CRP.

OITAVA: Reitera-se que, a parte final da alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei do Perdão e Amnistia, ao remeter para o artigo 67.º-A do CPP impõe que o Julgador, no decurso da respetiva tramitação processual e prolação de decisão condenatória, pondere se a vítima dos atos ilícitos sancionados nos autos, reúne as condições para ser considerada vítima especialmente vulnerável e lhe reconheça expressamente esse estatuto, com todos os direitos e deveres que lhe são inerentes.

NONA: O legislador, expressamente, quis excluir, como excluiu, os condenados por crime de roubo agravado e não fez o mesmo em relação aos condenados por roubo simples, pelo que devemos acreditar que estabeleceu exatamente o que pretendia; caso pretendesse excluir os condenados pelo crime de roubo ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei do Perdão, sempre haveria de se ter inibido, por ser totalmente inútil, de mencionar expressamente os crimes de roubo agravado nos crimes contra o património.

DÉCIMA: A lei do Perdão e Amnistia visa criar um regime mais favorável, estabelecendo medidas de clemência e graça em relação aos jovens condenados pela prática de determinados crimes ou contraordenações, com o ensejo de os ressocializar, excluindo, todavia, os comportamentos antijurídicos mais gravosos.

DÉCIMA PRIMEIRA: Do processo legislativo prévio à aprovação da lei resulta evidente que foi equacionada a possibilidade de excluir aqueles condenados, mas que essa não foi a versão aprovada, pelo que se deve entender que o legislador quis dizer exatamente aquilo que verteu: os condenados pelo crime de roubo simples são abrangidos, ab initio e a priori, pelas medidas de clemência.

DÉCIMA SEGUNDA: A remissão da alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei do Perdão e Amnistia deve ser encarada sob a égide de se averiguar se, em concreto e no processo, se encontra reconhecida à vítima a qualidade/estatuto de vítima especialmente vulnerável, em cumprimentos dos requisitos vertidos na lei.

DÉCIMA TERCEIRA: Se dos autos principais nenhum indício resulta que a vítima foi encarada como especialmente vulnerável, por exemplo mediante o arbitramento de quantia certa, não pode agora o Tribunal, com a cristalização e estabilidade da situação juridica do condenado, ficcionar aquela atribuição com a finalidade de impedir o acesso às medidas de clemência.

DÉCIMA QUARTA: A alínea g) do n.º 1 do Artigo 7.º da Lei do Perdão e Amnistia remete para o artigo 67.º-A do CPP, mas, realça-se, este artigo foi introduzido pela Lei 130/2015, e que visava proteger as vítimas, reconhecendo-lhe uma serie de direitos e deveres, após a realização de uma avaliação individual.

DÉCIMA QUINTA: Por razões de unicidade, certeza e segurança do sistema judiciário, admite-se a exclusão de alguns condenados pelo crime de roubo simples da aplicação do regime do perdão: quando do respetivo processo se encontre fundamentada a existência de vítima especialmente vulnerável, não se admitindo, contudo, que se possa atribuir essa classificação posteriormente e com o escopo último de impedir o perdão parcial da pena aplicada.

DÉCIMA SEXTA: Admitir que o legislador pretendeu excluir, sem necessidade de averiguação em concreto de que se verificam os requisitos do artigo 67.º-A do CPP, os condenados por crime de roubo simples da aplicação do perdão, invocando a remissão da parte final da alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei do Perdão, será contorcer o raciocínio legislativo e fazer uma interpretação extensiva de regras de clemência e da letra da lei, o que contraria a Lei!

DÉCIMA SÉTIMA: O legislador reconhece tratamento diferenciado aos condenados por crime de roubo simples relativamente aos condenados por roubo agravado, como, aliás, resulta notório da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, no âmbito da qual excluiu os condenados por crime de roubo agravado do beneficio do perdão da pena, mas possibilitou que os condenados por crime de roubo simples beneficiassem daquelas medidas.

DÉCIMA OITAVA: Logo, se o legislador na lei n.º 38.º-A/2023 equacionou os demais condenados por roubo, mas expressamente decidiu excluir apenas os condenados por roubo agravado, por questões de unicidade do sistema judiciário e coerência de raciocínio, se deve concluir que o legislador não pretendeu, em nenhum momento, excluir, sem mais averiguações, os condenados por crime de roubo simples.

DÉCIMA NONA: Pretendeu, isso sim, que o Tribunal/Julgador, em concreto, analisasse e declarasse se se encontram preenchidos os requisitos para que a vítima fosse considerada especialmente vulnerável, reconhecendo-lhe, em consequência e por decisão condenatória, a respetiva proteção especial.

VIGÉSIMA: A interpretação do acórdão fundamento, salvo o devido respeito, viola ainda o princípio da aplicação da lei mais favorável, porquanto, totalmente ad hoc e sem qualquer averiguação ou fundamento, reconhece a vítima dos autos como especialmente vulnerável, apenas como forma de obstaculizar a aplicação do regime do perdão aos jovens condenados por crime de roubo simples.

VIGÉSIMA PRIMEIRA: Por tudo isto, reitera-se, a interpretação mais consentânea com a natureza da medida de clemência ou graça e que resulta mais harmonizada com o pensamento do legislador e a unicidade do sistema jurídico penal, é aquela segundo a qual o jovem condenado por crime de roubo previsto e punido pelo artigo 210.º, nº 1 do C. P. não está excluído, sem mais, do perdão de pena previsto no artigo 3.º, nº 1 da Lei do Perdão e Amnistia, devendo analisar-se dos respetivos instrumentos condenatórios para apurar se existe ou não o reconhecimento, em concreto, do estatuto de vitima especialmente vulnerável.

VIGÉSIMA SEGUNDA: Conclui-se assim que bem decidiu o acórdão recorrido quando defendeu que a consideração da vítima do crime de roubo simples como especialmente vulnerável não opera de forma automática, mas que tem de ser averiguada, caso a caso, a existência de vulnerabilidade apreciada à luz dos demais requisitos estabelecidos na al. b) do nº 1 do art.º 67º-A do CPP, devendo nesse sentido ser uniformizada jurisprudência.

VIGÉSIMA TERCEIRA: Por fim, é inquestionável e de todo incontornável, que, pese embora o Ministério Público tenha impulsionado o procedimento necessário à fixação de jurisprudência, em nenhum outro momento dos autos interpôs recurso de decisão condenatória, em desfavor do Recorrido, pelo que, se invoca e reclama para todos os devidos efeitos, a aplicação na situação concreta do principio da proibição da reformatio in pejus, não podendo a decisão uniformizadora colocar o arguido numa posição mais desfavorável do que a decidida pelo acórdão recorrido.

Termina pedindo que se uniformize jurisprudência no sentido de que a exclusão, ao abrigo do disposto na alínea g) do n.º 1 do art. 7.º da Lei do Perdão e da Amnistia, dos condenados por crime de roubo simples p. e p. no art. 210.º, n.º 1, do CP, depende da demonstração nos instrumentos condenatórios de que a vítima se encontra numa condição de especial vulnerabilidade e se encontram preenchidos os requisitos do n.º 3 e da alínea b) do n.º 1 do art. 67.º -A do CPP.

4. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça e, o Sr. PGA emitiu parecer no sentido de se verificarem “os pressupostos formais e materiais da dedução do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, em especial a oposição de julgados, pelo que o mesmo deve prosseguir (cfr, os arts. 437º/1 e 2 e 441º/1, in fine, do Código de Processo Penal).

5. Dado o contraditório, a Ilustre Defensora Oficiosa do arguido reiterou tudo o que já havia alegado em sede de resposta ao recurso, acrescentando ainda as seguintes conclusões:

A) Antes de mais, o Recorrido reitera todo o alegado na resposta ao recurso extraordinário de fixação de jurisprudência apresentado pela Digníssima Procuradora-Geral Adjunta junto do Tribunal da Relação de Guimarães, cujo teor e conteúdo, por razões de economia processual, se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.

B) Se o Legislador pretendesse excluir da aplicação do regime do perdão os condenados pelo crime de roubo simples, tendo equacionado ao longo do processo legislativo, sempre o haveria de ter feito de forma expressa e sem necessidade de recurso a operações interpretativas e ou suposições.

C) Não existe a menor dúvida de que o Legislador penal ponderou excluir expressamente na disposição vertida no artigo 7.º da Lei do Perdão e da Amnistia os condenados pelo crime de roubo simples artigo 210.º, n.º 1, do CP -, mas decidiu não o fazer.

D) O Legislador na alínea g) do artigo 7.º da Lei do Perdão e da Amnistia, pretendeu conceder especial proteção ás vítimas reconhecidas como especialmente vulneráveis ao longo do processo e nas respetivas decisões condenatórias, não cogitando que a exclusão dos condenados por crime de roubo simples ocorresse de forma automática.

E) A única explicação que se afigura plausível ao Recorrido é a de que o legislador pretendia de facto que se olhasse para o processo e se analisasse, em concreto, se a vítima reunia os pressupostos para ser considerada especialmente vulnerável.

F) Se o desígnio do Legislador fosse a de coincidir, de forma ampla e sem mais, o conteúdo desta alínea com todas as disposições vertidas no artigo 67.º-A do C.P.P., nenhum sentido teria em autonomizar na parte inicial desta alínea g) as crianças e jovens, afinal, as crianças e jovens já constam mencionadas nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 67.º-A do CPP; nem nenhum sentido teria a expressa menção na alínea b) do artigo 7.º aos condenados por crimes ao abrigo do n.º 2 do artigo 210.º do CP.

G) As regras subjacentes às normas de política criminal intencionam proteger os arguidos de arbitrariedades do sistema punitivo estadual, fazendo por isso prevalecer as normas que instituem em regime mais favorável ao arguido.

H) Não se concebe que se presuma que o Legislador, por distração ou disparate, excecionou o que não precisava de excecionar na subalínea i) da al. b. do n.º 1 do artigo 7.º da Lei do Perdão e da Amnistia; nem que se consente que se negligencie totalmente a parte inicial da al. g) daquele artigo 7.º e da al. b) do artigo 67.º-A do CPP, que demandam que, para que a vítima seja considerada especialmente vulnerável, seja pessoa com especial grau de fragilidade em conformidade com os critérios ali elencados.

I) Assim, a interpretação mais consentânea com a natureza da medida de clemência ou graça, prevista na Lei do Perdão e da Amnistia, e que resulta mais harmonizada com o pensamento do Legislador, vertido na versão final da letra da lei e da documentação do processo legislativo que lhe antecedeu, é aquela segundo a qual o condenado por crime de roubo previsto e punido pelo artigo 210.º, nº 1 do C. P. não está excluído, sem mais, do perdão de pena previsto no artigo 3.º, nº 1 da referida Lei, devendo analisar-se os respetivos acervos condenatórios para apurar se existe ou não o reconhecimento processual do estatuto de vitima especialmente vulnerável à vitima do crime.

Termina pedindo que se uniformize jurisprudência no sentido e com o alcance interpretativo dos fundamentos vertidos no acórdão recorrido (acórdão do TRG).

6. Instruído o recurso, com a junção de documentos requisitados pela Relatora foi ordenada a sua notificação aos sujeitos interessados, para conhecimento e, querendo, se pronunciarem em 10 dias, tendo a Ilustre Defensora Oficiosa do arguido reiterado tudo o que já havia alegado em sede de resposta ao recurso, incluindo as conclusões (que, por isso, aqui não se repetem).

7. Colhidos os vistos de acordo com o exame preliminar e realizada a conferência, incumbe, agora, decidir da admissibilidade ou rejeição deste recurso extraordinário (art. 441.º do CPP).

II. Fundamentação

8. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência tem por finalidade a obtenção de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça que fixe jurisprudência, “no interesse da unidade do direito”, resolvendo o conflito suscitado (art. 445.º, n.º 3, do CPP), relativamente à mesma questão de direito, quando existem dois acórdãos com soluções opostas, no domínio da mesma legislação, assim favorecendo os princípios da segurança e previsibilidade das decisões judiciais e, ao mesmo tempo, promovendo a igualdade dos cidadãos.

O que se compreende, até tendo em atenção, como se diz no ac. do STJ n.º 5/2006, publicado no DR I-A Série de 6.06.2006, que «A uniformização de jurisprudência tem subjacente o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito.»

Ora, a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência depende do preenchimento de requisitos formais e de requisitos materiais, que se extraem dos arts. 437.º e 438.º do CPP.

Assim, este Supremo Tribunal tem entendido, como é clarificado em variada jurisprudência1, que são requisitos formais, a legitimidade do recorrente, a tempestividade da interposição do recurso (prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido), a identificação do acórdão fundamento (com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição), incluindo se tiver sido publicado, o lugar da publicação e o trânsito em julgado do acórdão fundamento e, por sua vez, são requisitos materiais, que os dois acórdãos respeitem à mesma questão de direito, tenham sido proferidos no “domínio da mesma legislação”, “assentem em soluções opostas”, partindo de idêntica situação de facto, importando que as decisões em oposição sejam expressas.

Quanto a estes últimos dois requisitos, a saber, que sejam proferidas “soluções opostas a partir de idêntica situação de facto e que as decisões em oposição sejam expressas”, assinala-se no acórdão do STJ de 21.10.2021 citado, que “constitui jurisprudência assente deste Supremo Tribunal que só havendo identidade de situações de facto nos dois acórdãos é possível estabelecer uma comparação que permita concluir, quanto à mesma questão de direito, que existem soluções jurídicas opostas, bem como é necessário que a questão decidida em termos contraditórios seja objeto de decisão expressa, isto é, as soluções em oposição têm de ser expressamente proferidas (ac. STJ 30.01.2020, proc. n.º 1288/18.6T8CTB.C1-A.S1, 5.ª, ac. STJ 11.12.2014, proc. 356/11.0IDBRG.G1-A.S1, 5.ª) acrescendo que, de há muito, constitui também jurisprudência pacífica no STJ que a oposição de soluções entre um e outro acórdão tem de referir-se à própria decisão, que não aos seus fundamentos (ac. STJ 30.01.2020, proc. n.º 1288/18.6T8CTB.C1-A.S1, 5.ª, ac. de 13.02.2013, Proc. 561/08.6PCOER-A.L1.S1).”

9. Posto isto, vejamos se, neste caso concreto, estão ou não preenchidos todos os requisitos acima apontados.

Assim.

Analisados os autos não há dúvidas que o Ministério Público tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência que, para si é obrigatório (art. 437.º, n.º 2 e n.º 5, do CPP), sendo claro o seu interesse em agir, tendo-o apresentado tempestivamente (art. 438.º, n.º 1, do CPP), em 9.02.2024, uma vez que foi interposto dentro do prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar, ou seja, do ac. do TRG proferido em 23.01.2024, que tendo sido notificado nesse dia aos sujeitos processuais, transitou em 5.02.2024.

Para além disso, neste seu recurso extraordinário, o recorrente/MP identifica o acórdão fundamento (Ac. do TRL de 28.11.2023, proferido no processo n.º 7102/18.5P8LSB-A-L1-5), ou seja, o acórdão que invoca estar em oposição com o acórdão recorrido proferido nos autos de que este recurso é apenso (em 23.01.2024), dando nota que teria transitado em julgado em julgado e estava publicado em site da dgsi, mas sem o juntar, razão pela qual tiveram de ser feitas diligências que comprovassem essa alegação (sabido que nem tudo o que é publicado naquele site está transitado em julgado), tendo sido oportunamente junta aos autos a respetiva certidão com nota do trânsito (que ocorreu em 11.01.2024).

Dir-se-á que estão preenchidos os pressupostos formais do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.

Resta, agora, apurar, se igualmente se mostram preenchidos os seus pressupostos materiais.

Analisando o acórdão recorrido (ac. do TRG de 23.01.2024 proferido nos autos de que este recurso é apenso) e o acórdão fundamento (ac. do TRL de 28.11.2023 proferido no processo n.º 7102/18.5P8LSB-A-L1-5), verificamos que se reportam à mesma questão de direito, que é a de saber se o crime de roubo p. e p. no art. 210.º, n.º 1, do CP integra ou não a exceção prevista no art. 7.º, n.º 1, alínea g), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto.

Além disso, também do confronto do acórdão recorrido e do acórdão fundamento, verifica-se que há identidade de factos entre ambas as decisões, que foram objeto de recurso.

Com efeito, no acórdão recorrido o despacho decisório impugnado é de 8.09.2023, sendo do seguinte teor, na parte que aqui interessa:

“Entrou em vigor no passado dia 1 de Setembro a Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto, lei esta que estabelece um perdão de penas e amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.

Importa assim verificar in casu com relação à eventual aplicação aos condenados do perdão/amnistia com a prevista entrada em vigor no próximo dia 1 de Setembro da Lei n.º n.º 38- A/2023, de 2 de Agosto cfr. artigo 15.º.

Compulsados os autos, constata-se que:

(…)

Já no que concerne ao condenado AA, constata-se que o mesmo nasceu a ...-...-1986, tendo sido condenado nestes autos por crime de roubo simples praticado a 08-11-2016.

Pelo que ainda perfazia a idade de 30 anos na data em que praticou o crime pelo qual veio a ser condenado.

Contudo, o certo é que o crime em causa (um crime de roubo simples, p.p. pelo art.º 210º, nº 1 do C.Penal) integra o catálogo dos crimes não abrangidos pela amnistia e perdão previstos na lei cfr. artigo 7.º, n.º1, alínea g) do referido diploma, porquanto se trata de crime cometido contra vítima especialmente vulnerável.

Nestes termos, conclui-se que a Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto não tem aplicação a nenhum dos condenados, devendo os autos continuar a aguardar a execução das respetivas penas.

*

Notifique, sendo o Il. Defensor e os condenados.

Dê conhecimento ao TEP, EP e DGRSP.”

Por sua vez, no acórdão fundamento o despacho decisório impugnado é de 7.08.2023, sendo do seguinte teor:

A Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, vem estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude; entrando em vigor no próximo dia 1 de Setembro de 2023.

Estabelece a referida Lei, no seu artigo 2.º n.º 1, que “estão abrangidas as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre os 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º”.

Por seu turno estabelece o artigo 3.º com a epígrafe “perdão de penas” que:

1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.

2 - São ainda perdoadas:

a) As penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão;

b) A prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa;

c) A pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição; e

d) As demais penas de substituição, exceto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova.

3 - O perdão previsto no n.º 1 pode ter lugar sendo revogada a suspensão da execução da pena.

4 - Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.

5 - O disposto no n.º 1 abrange a execução da pena em regime de permanência na habitação.

6 - O perdão previsto no presente artigo é materialmente adicionável a perdões anteriores.”

Compulsados os presentes autos, constata-se que o arguido BB, por acórdão proferido em 14.3.2019, transitado em julgado em 15.4.2019, foi condenado pela prática de cinco crimes de roubo, previsto e punido pelo artigo 210º nº1 do Código Penal, na pena única de 5 anos e 6 meses de prisão.

O arguido encontra-se presentemente detido à ordem dos presentes autos, como melhor resulta de fls.474 e seguintes.

O arguido nasceu em 20.6.1991 tendo praticado os factos objecto do presente processo em 30.6.2018 e em 3.7.2018, ou seja, quando contava 27 anos de idade.

Assim, verifica-se que arguido se encontra dentro do âmbito de aplicação da referida Lei sendo que o crime pelo qual foi condenado não se encontra previsto nas excepções contempladas no artigo 7º da mesma; nomeadamente na excepção prevista na alínea b) relativa ao âmbito dos crimes contra o património e que exclui apenas o roubo agravado previsto no artigo 210º nº2 do Código Penal.

A Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, prevê, contudo, no artigo 8º nº1 que o perdão é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infracção dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, ou seja até 1.09.2024, caso em que à pena aplicada à infracção superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada.

Assim, em face do exposto, com efeitos a produzir no dia 1 de Setembro de 2023, declara-se perdoado 1 ano de prisão à pena em que foi condenado nestes autos, sob condição resolutiva de o arguido até ao dia 1 de Setembro de 2024 não incorrer na prática de infração dolosa; nos termos conjugados do disposto nos artigos 3º nº1 e 8º n.1 da Lei nº38-A/2023, de 2 de Agosto.

Mais se declara extinta a pena, quer pelo seu cumprimento, quer pelo perdão (sem prejuízo da sua revogação por violação da condição), nos termos dos Artigos 127º do Código Penal.

Notifique de imediato o arguido, o Ilustre Defensor e o Ministério Público.

Após, emita os competentes mandados de libertação, os quais deverão ser remetidos ao EP antes do dia 1.9.2023, por forma a que, nesse dia, sejam de imediato cumpridos.

Portanto, em ambas as decisões em confronto neste recurso extraordinário (isto é, quer no acórdão recorrido, quer no acórdão fundamento) há identidade de factos.

Acresce que, os acórdãos recorrido e fundamento, apesar de partirem de idêntica situação de facto e de serem proferidas no domínio da mesma legislação2, referindo-se à mesma questão de direito, chegaram a soluções opostas, decidindo expressamente de forma oposta.

Com efeito, perante a mesma questão de direito de saber se o crime de roubo p. e p. no art. 210.º, n.º 1, do CP integra ou não a exceção prevista no art. 7.º, n.º 1, alínea g), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto (ou beneficia ou não do perdão previsto no mesmo diploma legal), chegaram a soluções clara e expressamente opostas.

Como bem refere a Srª. PGA no recurso:

ii. No acórdão recorrido decidiu-se que o crime de roubo simples, do artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, não está excluído do âmbito de aplicação da Lei n.º 38-A/2023 de 02-08, uma vez que uma aplicação literal da alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º, da Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, esvazia de sentido o n.º 1, alínea b), do mesmo artigo 7.º, impondo-se uma rejeição do sentido literal estrito e exigindo-se uma harmonização interna da norma interpretada, devendo averiguar-se, caso a caso, se a vítima do roubo simples é ou não uma vítima especialmente vulnerável, à luz da alínea b), do n.º 1, do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal.

iii. No acórdão fundamento decidiu-se que a vítima do crime de roubo do artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, é sempre uma vítima especialmente vulnerável, uma vez que nos termos do disposto no artigo 67º-A, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal considera-se “vítima especialmente vulnerável, a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social” e prevê o n.º 3 que “as vítimas de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente violenta e de terrorismo são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1.

De facto, desde logo a interpretação restritiva do art. 7.º, n.º 1, al. g), da Lei n.º 38-A/2023, que é feita no acórdão recorrido, acompanhada da interpretação corretiva para melhor chegar à solução encontrada nesse mesmo acórdão recorrido, expõe de forma expressa uma solução claramente oposta à seguida no acórdão fundamento (pelo menos no segmento em que, ao fazer e tornar necessária a análise casuística, chega à conclusão de que o crime de roubo p. e p. no art. 210.º, n.º 1, do CP, beneficia do perdão da Lei n.º 38-A/2023, por não estar incluído na exceção prevista no art. 7.º, n.º 1, al. g) do mesmo diploma legal), evidenciando, assim, a oposição de julgados, tendo já levado a duas correntes jurisprudenciais que se torna necessário dirimir oportunamente.

Tratam-se, pois, de decisões em oposição que são bem expressas nos dois acórdãos (recorrido e fundamento) em análise.

Em face do exposto, verificando-se, além dos apontados requisitos formais, igualmente todos os requisitos materiais, conclui-se pelo prosseguimento do presente recurso extraordinário, sendo a questão sobre a qual importa fixar jurisprudência a seguinte: saber se o crime de roubo p. e p. no art. 210.º, n.º 1, do CP integra ou não a exceção prevista no art. 7.º, n.º 1, alínea g), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto (o mesmo é dizer se beneficia ou não do perdão previsto no mesmo diploma legal).

*

III - Decisão

Pelo exposto, acordam nesta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar o recurso procedente e, em consequência, ordenar o seu prosseguimento (art.441.º, n.º 1, 2ª parte, do CPP).

Sem custas.

*

Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo depois assinado pela própria e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos.

*

Supremo Tribunal de Justiça, 16.10.2024

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

António Augusto Manso (Adjunto)

Antero Luís (Adjunto)

Proc. n.º 1153/16.1PCBRG-B.G1-A.S1

3ª Secção

Ac. 16.10.2024


Sumário

I - Como se diz no acórdão do STJ n.º 5/2006, publicado no DR I-A Série de 06-06-2006, «A uniformização de jurisprudência tem subjacente o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito.»

II - A admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência depende do preenchimento de requisitos formais e de requisitos materiais, que se extraem dos art. 437.º e 438.º do CPP.

III - Neste caso concreto, verificando-se, além dos apontados requisitos formais, igualmente todos os requisitos materiais, conclui-se pelo prosseguimento do presente recurso extraordinário, sendo a questão sobre a qual importa fixar jurisprudência a seguinte: saber se o crime de roubo p. e p. no art. 210.º, n.º 1, do CP integra ou não a exceção prevista no art. 7.º, n.º 1, alínea g), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto (o mesmo é dizer se beneficia ou não do perdão previsto no mesmo diploma legal).

_______


1. Entre outros, Ac. do STJ de 21.10.2021, proferido no proc. n.º 613/95.0TBFUN-A.L1-C.S1 (relatado por António Gama), consultado no site da dgsi.

2. A mesma legislação quanto à qualificação do crime de roubo e quanto à Lei n.º 38-A/2023 citada, que é o tema principal sobre a qual havia que decidir se beneficiava ou não de perdão. Lateralmente, refira-se que o art. 67-A do CPP, foi introduzido pela Lei n.º 130/2015, de 4.09 e a última versão foi conferida pela Lei n.º 2/2023, de 16.01 (que alterou o seu n.º 3, ainda que sem repercussão no presente caso). De todo o modo, no acórdão recorrido o crime de roubo foi cometido em 8.11.2016 e no acórdão fundamento os crimes de roubo foram cometidos em 30.06.2018 e em 3.07.2018, pelo que todos eles foram cometidos (nos dois diferentes acórdãos, recorrido e fundamento), quando vigorava a mesma redação do art. 67-A do CPP (não se levando agora em conta o disposto no art. 5.º do CPP).