AÇÃO EXECUTIVA
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
ASSINATURA
DOCUMENTO AUTENTICADO
PRINCÍPIO DA TIPICIDADE
REQUISITOS
EXEQUIBILIDADE
Sumário


I. Da nossa lei adjectiva civil resulta que a enumeração dos títulos executivos é taxativa, sujeita ao designado princípio da tipicidade. Daqui que se subtraia à disponibilidade das partes a atribuição de força executiva a documento relativamente ao qual a lei não reconheça esse atributo.
II. Para ser válida a autenticação de documento particular, impõem-se que o termo de autenticação faça menção/identificação, expressa, a ambas as partes outorgantes no Acordo a autenticar e, outrossim, que ambas o assinem – constando, também, tal menção naquele termo. Se tal não acontecer, tal ato é nulo por vício de forma (artº 70º do Código do Notariado).

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível.


I – RELATÓRIO

AA, deduziu oposição à execução que lhe foi movida por Bankinter S.A. Sucursal em Portugal.

Peticionou a extinção da execução, desde logo, pela inexistência do título1.

O embargado contestou2.

Seguidamente foi proferida a seguinte «Decisão:

Considerando o supra exposto, o Tribunal julga procedentes por provados os embargos deduzidos e, por ausência de título executivo, declara extinta a execução movida no âmbito dos autos principais.»

Inconformada, recorreu a exequente/embargada.

A Relação de Coimbra, em acórdão, julgou o recurso procedente, revogando a sentença e ordenando o prosseguimento da execução.

Por sua vez inconformado, o Embargante/Executado e Apelado, AA, veio interpor recurso de revista, apresentando alegações que remata com as seguintes

CONCLUSÕES

A. Vem o presente Recurso de Revista interposto do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no âmbito do processo melhor identificado em epígrafe, a 21 de maio de 2024, o qual decidiu revogar a sentença proferida em 1ª instância e ordenar o prosseguimento da execução em causa, encontrando-se tal decisão alicerçada num conjunto de entendimentos que carecem de suporte legal e jurisprudencial.

B. Desde logo, a decisão ora recorrida enferma de clara violação da lei substantiva aplicável ao caso concreto.

C. Tal como é sagazmente referido na decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância no âmbito do processo em causa, é no art. 363.º do Código Civil que se encontra plasmada e destrinçada a definição do que são documentos autênticos ou documentos particulares autenticados,

D. Não se encontrando prevista, quer no referido diploma legal, quer nas leis notariais aplicáveis, qualquer exceção ao expressa e taxativamente disposto no supra mencionado preceito legal, no que respeita aos requisitos mínimos legalmente exigíveis para reconhecimento de um documento particular como documento particular autenticado.

E. O art. 46.º do Código do Notariado (doravante designado por “CN”) dispõe sobre as formalidades comuns aos instrumentos notariais, especificando-se, no art. 151.º do mesmo diploma legal, os requisitos comuns para a autenticação dos documentos particulares.

F. Assim, um termo de autenticação de documentos particulares além de ter de satisfazer, na parte aplicável e com as necessárias adaptações o disposto nas alíneas a) a n) do n.º 1 do art. 46.º do CN, deve ainda conter

A. Vem o presente Recurso de Revista interposto do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no âmbito do processo melhor identificado em epígrafe, a 21 de maio de 2024, o qual decidiu revogar a sentença proferida em 1ª instância e ordenar o prosseguimento da execução em causa, encontrando-se tal decisão alicerçada num conjunto de entendimentos que carecem de suporte legal e jurisprudencial.

B. Desde logo, a decisão ora recorrida enferma de clara violação da lei substantiva aplicável ao caso concreto.

C. Tal como é sagazmente referido na decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância no âmbito do processo em causa, é no art. 363.º do Código Civil que se encontra plasmada e destrinçada a definição do que são documentos autênticos ou documentos particulares autenticados,

D. Não se encontrando prevista, quer no referido diploma legal, quer nas leis notariais aplicáveis, qualquer exceção ao expressa e taxativamente disposto no supra mencionado preceito legal, no que respeita aos requisitos mínimos legalmente exigíveis para reconhecimento de um documento particular como documento particular autenticado.

E. O art. 46.º do Código do Notariado (doravante designado por “CN”) dispõe sobre as formalidades comuns aos instrumentos notariais, especificando-se, no art. 151.º do mesmo diploma legal, os requisitos comuns para a autenticação dos documentos particulares.

F. Assim, um termo de autenticação de documentos particulares além de ter de satisfazer, na parte aplicável e com as necessárias adaptações o disposto nas alíneas a) a n) do n.º 1 do art. 46.º do CN, deve ainda conter

G. Pelo que, apenas se poderá ter por autenticado o documento particular que cumpra integralmente os requisitos taxativamente plasmados nas disposições notarias supra mencionadas.

H. Considerando que, no “termo de autenticação” que acompanha o documento invocado como título executivo pela Exequente/Embargada, se encontram em falta diversosrequisitoslegalmente exigíveispara um possível reconhecimento de tal documento como documento particular autenticado (mormente, o cumprimento dos requisitosplasmadosno arts. 46.º, n.º1, als.c), l), n) n) e m),nunca se poderiam, no caso concreto, considerar cumpridos os requisitos notariais exigíveis para a autenticação de um documento particular.

I. Pelo que, o entendimento que considera cumpridos os requisitos notariais exigíveis para a autenticação de um documento particular quando se encontram em falta os referidos requisitos mencionados no ponto precedente, bem como o entendimento que considera que “o termo de autenticação basta-se (…) com a identificação do devedor, (….) a sua assinatura e o registo informático nos termos do n.º 3 do artigo 38.º do DL n.º76-A/2006, de 29-03, Portaria n.º657-B/2006, de 29-06, não sendo necessária a intervenção do credor” - como é entendimento do Tribunal ora Recorrido, sempre se padecerá de evidente falta de fundamento legal e de erro de interpretação e de aplicação das leis (notariais e civis) aplicáveis.

J. Sendo certo que importa, além do mais, não confundir a qualidade de “outorgante” com a qualidade de “parte que assume a obrigação documentada”.

K. Assim sendo, tais entendimentos - seguidos e plasmados no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra ora recorrido -, constituem uma clara violação e errónea aplicação das disposições constantes dos arts. 363.º do CC, art. 46.º, n,º 1, al. l), m) e n) e art. 70.º, ambos do CN.

L. Mais acrescendo que, a admissão de tais entendimentos, sempre abriria portas para uma incerteza jurídica no que respeita à possibilidade de confirmação direta da efetiva correspondência entre um qualquer documento particular apresentado e o respetivo “termo de autenticação” e “registo informático” associados ao mesmo,

M. Pois que, qualquer destes últimos, sempre que elaborado em termos genéricos e sem indicação expressa da natureza e descrição do respetivo documento e de todos os outorgantes/intervenientes no mesmo, não permitiria assegurar, sem mais, a sua correspondência com o concreto objeto do ato - não permitindo, além do mais, assegurar a identificação das concretas partes outorgantes do documento levado a autenticação.

N. Face a todo o exposto, torna-se por demais evidente que a Decisão ora recorrida enferma de clara violação da lei substantiva aplicável, motivo pelo qual deve a mesma ser revogada, ao abrigo do disposto no

art. 674.º, n.º 1, al. a) do CPC.

Acresce que

O. O Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, aqui Recorrido, não só peca pelos vícios substantivos ora invocados, mas também, e em consequência, pela violação de normas processuais materialmente aplicáveis ao caso dos presentes autos.

P. A linha de raciocínio traçada pela decisão do Douto Tribunal recorrido encontra-se ferida de interpretações e conclusões não passíveis de serem extraídas das normas processuais constantes dos artigos 10.º, n.º 5, 703.º, n.º 1, al. b), 707.º e 732.º, n.º 4, todos do CPC.

Q. Andou mal o Douto Tribunal a quo, ao dar como assente a idoneidade do documento particular dado à execução para a manutenção da instância executiva, com consequente prosseguimento dos autos, ao considerá-lo como devidamente autenticado para os efeitos previstos no artigo 703.º, n.º 1 al. b) do CPC.

R. Face à ausência de diversos requisitos formais do processo de autenticação constantes da lei substantiva, não se poderia o Douto Tribunal a quo validar a qualidade do referido documento particular dado à execução como um título executivo.

S. O cerne da questão não reside no facto de o documento ter, ou não, sido levado a autenticação, mas sim na validade de tal autenticação – a qual afeta diretamente a possibilidade de tal documento “abrir portas” à ação executiva, com in casu sucedeu.

T. Pelo que, ao dar provimento ao recurso da Embargada/Exequente, para além de violar as normas constantes dos artigos 10.º, n.º 5 e 703.º, al. b) do CPC, incorreu igualmente, o Douto Tribunal a quo, na violação de normas processuais imperativas, constantes dos artigos 707.º e 732.º, n.º 4 do CPC.

U. Sendo certo que, para além de o alegado “título executivo” não revestir a qualidade de “documento particular autenticado”, encontra-se o mesmo a servir de base à execução de uma dívida que o aqui Recorrente jamais quis assumir – e não assumiu - como própria.

V. Face a tudo quanto exposto, torna-se por demais evidente que a referida decisão ora recorrida, ao considerar o documento particular dado àexecução como título executivo bastante, com exequibilidade extrínseca, além de conformar uma clara violação da lei substantiva aplicável, representa ainda clara violação das leis processuais aplicáveis, constantes dos artigos 10.º, n.º 5, 703.º, n.º 1, al. b), 707.º e 732.º, n.º 4 do CPC.

W. Face a todo o exposto, torna-se por demais evidente que a Decisão sempre deverá ser revogada, ao abrigo do disposto no art. 674.º, n.º 1, al. b) do CPC.

Além do mais,

X. A decisão recorrida encontra-se em contradição com outras decisões já transitadas em julgado, nomeadamente com o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no âmbito do processo n.º 456/21.8T8PRG.G1.

Y. Tudo visto, torna-se por demais evidente que sempre deverá o Acórdão objeto do presente recurso ser revogado e substituído por outro que confirme a decisão da primeira instância, determinando, em consequência, a procedência dos embargos de executado apresentados pelo aqui Recorrente e a respetiva extinção da execução em causa, por manifesta ausência/inexistência de título executivo.

Nestes termos e nos demais de direito, deverá o Acórdão objeto do presente recurso ser revogado e substituído por

outro que confirme a decisão da primeira instância, determinando, em consequência, a procedência dos embargos de executado apresentados pelo aqui Recorrente e a respetiva extinção da execução em causa, por manifesta ausência/inexistência de título executivo, o que se requer.

Contra-alegou o Recorrido Bankinter, pugnando pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – Delimitação do objecto do recurso

Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), a questão a decidir consiste em aferir da validade do “Termo de Autenticação (datado de 02.06.2021), junto com o título executivo (o documento denominado “Acordo”, datado de Maio de 2021).

III - Fundamentação

III. 1. É a seguinte a matéria de facto provada (na 1ª instância, sem impugnação em recurso):

1- No dia 23 de Janeiro de 2023 o exequente instaurou execução contra o executado, alegando o seguinte no respetivo requerimento executivo:

“1. Por Acordo com Termo e Autenticação celebrado em 02 de junho de 2021, os Executados declararam e assumiram, serem solidariamente devedores, perante a Exequente da quantia de EUR 210.842,60 de capital, dos juros que se vencerem na pendência do referido Acordo, assim como do Imposto de Selo - Cfr. Documento n.º 1 que se reproduz para os devidos efeitos legais.

2. Para efeitos de pagamento da referida quantia, a sociedade executada obrigou-se a proceder ao pagamento do valor em 60 (sessenta) meses, nos termos previamente definidos pelas partes e constantes da Cláusula Segunda do Acordo.

3. As partes acordaram, ainda, que o não pagamento - total ou parcial - das prestações acordadas, nos termos e prazos convencidos, importaria ao vencimento imediato e integral das seguintes prestações, independentemente de qualquer interpelação prévia ( Cfr. Cláusula Terceira do Acordo).

4. Desde abril de 2022 que a sociedade executada deixou de proceder ao pagamento pontual e integral das prestações a que se obrigou.

5. Não obstante as reuniões mantidas com os Executados e as insistentes interpelações para o pagamento do montante em dívida, os Executados não regularizaram o montante que se encontra em dívida, constituindo-se em mora, nos termos do artigo 805.º n.º 1 do Código Civil.

6. Pelo que, a Exequente tem direito a peticionar, uma indemnização correspondente aos juros de mora vencidos e vincendos, calculados sobre o montante do capital em dívida, até integral e efetivo pagamento, ao abrigo do estatuído nos artigos 804.º e 806.º todos do Código Civil.

7. A quantia exequenda é certa, líquida e exigível e o acordo autenticado constituí título executivo bastante ao abrigo do disposto no artigo 703º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil.”;

2- Como título executivo, o exequente apresentou um documento denominado “Acordo”, datado de maio de 2021, onde consta como Primeira Parte Bankinter S.A. – Sucursal Em Portugal, como Segunda Parte T..., Lda e como garante AA, que é também representante da segunda parte, com o seguinte teor: “ (…)A SEGUNDA PARTE e o GARANTE declaram e assumem, sem quaisquer reservas, serem solidariamente devedores, perante a PRIMEIRA PARTE, do montante total de EUR 210.842,60 (…) declaram e assumem, sem quaisquer reserva, serem igualmente solidariamente devedores, perante a PRIMEIRA PARTE, do valor devido a título juros remuneratórios, contabilizados à taxa contratual de 2,35% (…) que se vencerem no decurso do presente Acordo. (…) A falta de pagamento, total ou parcial, de qualquer uma das prestações acordadas e mencionadas (…) importa o vencimento imediato e integral das seguintes prestações, independentemente de qualquer interpelação, podendo a PRIMEIRA PARTE recorrer aos meios legais necessários para cobrança judicial do seu crédito (…). ”;

3- Com o documento referido em 2, foi junto outro documento denominado “Termo de Autenticação”, datado de 02.06.2021, com o seguinte teor: “No dia dois de junho de dois mil e vinte e um, perante mim, BB, Advogada, portadora da cédula profissional n.º ...09C, compareceu como Outorgante, no meu escritório sito na Rua dos ..., ... ...: AA (…), por si e na qualidade de Sócio-gerente e em representação da sociedade comercial por quotas denominada “T..., Lda” (…), cuja identidade, qualidade e poderes para o acto verifiquei por exibição do cartão de cidadão supra indicado e pela consulta da respectiva certidão permanente com o código de acesso ............07, subscrita em 07-05- 2021 e válida até 07-05-2022. E por ele foi dito: Que, para fins de autenticação, me apresentou o acordo, anexo, que leu e assinou, e de cujo conteúdo está perfeitamente inteirado e que o mesmo é a expressão da sua vontade.”;

4- O documento referido em 3, cujo registo online foi feito junto da Ordem dos Advogados na mesma data, com a identificação apenas de AA como interessado, só se encontra assinado pela Advogada mencionada e pelo embargante.


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III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO

Com dito, a questão a decidir consiste em aferir se é válido o “Termo de Autenticação (datado de 02.06.2021), junto com o título executivo (este que é o documento denominado “Acordo”, datado de Maio de 2021).

Proibindo a justiça privada ou autotutela (artigo 1º do NCPC), a ordem jurídica concede ao credor de prestação não satisfeita, através do exercício da acção executiva, a faculdade de obter a sua efectivação coerciva, ou seja, a faculdade de satisfazer o interesse patrimonial correspondente ao seu direito (artigo 10º, nº 4 do NCPC) – na acção executiva pode o credor obter a realização coactiva da prestação não cumprida, enquadrando-se esta, por isso, na efectividade da tutela jurisdicional e na garantia do acesso aos tribunais para a defesa dos direitos e interesses legítimos (art.º 20º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa).

A finalidade da acção executiva consiste, assim, na obtenção do interesse patrimonial contido na prestação não cumprida, sendo o seu objecto, sempre (e apenas) um direito a uma prestação – nesse objecto contém-se somente a faculdade de exigir o cumprimento da prestação e o correlativo poder de aquisição dessa prestação, poder que corresponde à causa debendi e, portanto, funciona como causa de pedir da acção executiva (os factos dos quais decorre esse poder são os mesmos que justificam a faculdade de exigir a prestação)3.

Esta faculdade de exigir a prestação, correlativa do poder de aquisição dessa prestação, designa-se por pretensão e apenas uma pretensão exequível pode constituir objecto de uma acção executiva – exequibilidade intrínseca, respeitante à inexistência de vícios materiais ou excepções peremptórias que impeçam a realização coactiva da prestação, e exequibilidade extrínseca, traduzida na incorporação da pretensão num título executivo, ou seja, num documento que formaliza, por disposição da lei, a faculdade de realização coactiva da prestação não cumprida4.

A acção executiva pressupõe, assim, um direito de execução do património do devedor, ou seja, “um poder resultante da incorporação da pretensão num título executivo, pois que é desta que resulta que o credor possui não só a faculdade de exigir a prestação, mas também a de executar, em caso de incumprimento, o património do devedor”.5

Do título executivo – que determina o fim e os limites da execução, sendo a base desta (art.º 10º, nº 5 do NCPC) – resulta, assim, a exequibilidade da pretensão exequenda, pois incorpora o direito de execução, isto é, o direito do credor a executar o património do devedor ou de terceiro para obter a satisfação efectiva do seu direito.6

Da nossa lei adjectiva civil resulta que a enumeração dos títulos executivos é taxativa, sujeita ao designado princípio da tipicidade. Daqui que se subtraia à disponibilidade das partes a atribuição de força executiva a documento relativamente ao qual a lei não reconheça esse atributo. Da mesma forma, não se pode negar a exequibilidade de um documento desde que essa força executiva seja reconhecida por lei.

Assim, os títulos que a nossa lei admite como susceptíveis de serem exequíveis são os previstos no artº 703º do NCPC (correspondente ao anterior artº 46º do CPC).


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No caso dos autos vem dado à execução um documento particular.

Anota-se, antes de mais, que não está aqui em causa, ou sob apreciação, aferir da natureza, validade e prova de tal documento7. Está, sim, sob apreciação a sua exequibilidade (a qual, como se verá, não prescinde da autenticação – sendo que o busílis da questão sub judice é, precisamente, a validade desta mesma autenticação).

Ora, o legislador, no que tange aos documentos particulares, restringiu as espécies de títulos executivos, eliminando os documentos particulares que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação, excepto se os mesmos forem exarados ou autenticados por notário ou outras entidades ou profissionais com competência para tal (ut al. b) do nº 1 do cit artº 703º).

Ou seja, o legislador quis, expressamente, afastar, neste domínio, a mera consensualidade8 (não se formam títulos executivos apenas porque as partes outorgantes assim o desejem. Para que sejam válidos têm de estar em sintonia com a previsão legal. O mesmo é dizer que é irrelevante a convenção, em qualquer contrato, em que se pretenda dar-lhe natureza ou força executiva se o mesmo não estiver contido no elenco daquele artº 703º do NCPC).

Regressando aos autos, temos que o exequente deu à execução um documento particular (cfr. artº 363º do Cód. Civil).

Trata-se de um documento que importa constituição ou reconhecimento de uma obrigação.

Com efeito, nesse “Acordo”, “(…)A SEGUNDA PARTE e o GARANTE (o ora Executado/Opoente) ”declaram e assumem, sem quaisquer reservas, serem solidariamente devedores, perante a PRIMEIRA PARTE” (a aqui Exequente), “do montante total de EUR 210.842,60 (…) declaram e assumem, sem quaisquer reserva, serem igualmente solidariamente devedores, perante a PRIMEIRA PARTE, do valor devido a título juros remuneratórios, contabilizados à taxa contratual de 2,35% (…) que se vencerem no decurso do presente Acordo.”. Mais declarando ali que “(…) A falta de pagamento, total ou parcial, de qualquer uma das prestações acordadas e mencionadas (…) importa o vencimento imediato e integral das seguintes prestações, independentemente de qualquer interpelação, podendo a PRIMEIRA PARTE recorrer aos meios legais necessários para cobrança judicial do seu crédito (…). ”;

Considera a exequente que tal documento (“Acordo”) foi devidamente autenticado.

A sentença entendeu que não; já o acórdão recorrido entendeu que sim.

É o que ora cumpre decidir.


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O artº 363º, nº3 do CC reza que “os documentos particulares são havidos por autenticados, se forem confirmados pelas partes perante notário, nos termos prescritos nas leis notariais9. Acrescentamos nós que assim também ocorre quando tais documentos são confirmados por outra das entidades a que o legislador atribuiu legitimidade para o efeito, como é o caso dos advogados, nos termos do artigo 5.º, do Decreto-Lei n.º 237/2001, de 30 de Agosto, e 38.º, n.º 1, do Decreto-Lei n. ° 76-A/2006, de 29 de Março, desde que o acto seja registado em sistema informático (n.º 3, do mesmo artigo) e que o teor do documento tenha sido confirmado pelas partes perante o certificante (o notário, a câmara de comércio e indústria, o conservador, o oficial de registo, o advogado ou o solicitador), nos termos prescritos nas leis notariais, o que terá de constar da respectiva autenticação, concretizando-se, ainda, a assinatura do respectivo termo pelas partes envolvidas.

Ora, as formalidades comuns aos instrumentos notariais vêm plasmadas no artº 46º do Código do Notariado, nos seguintes termos:

“1 - O instrumento notarial deve conter:

a) A designação do dia, mês, ano e lugar em que for lavrado ou assinado e, quando solicitado pelas partes, a indicação da hora em que se realizou;

b) O nome completo do funcionário que nele interveio, a menção da respectiva qualidade e a designação do cartório a que pertence;

c) O nome completo, estado, naturalidade e residência habitual dos outorgantes, bem como das pessoas singulares por estes representadas, a identificação das sociedades, nos termos da lei comercial, e das demais pessoas colectivas que os outorgantes representem, com menção, quanto a estas últimas, das suas denominações, sedes e números de identificação de pessoa colectiva;

d) A referência à forma como foi verificada a identidade dos outorgantes, das testemunhas instrumentárias e dos abonadores;

e) A menção das procurações e dos documentos relativos ao instrumento que justifiquem a qualidade de procurador e de representante, mencionando-se, nos casos de representação legal e orgânica, terem sido verificados os poderes necessários para o acto;

f) A menção de todos os documentos que fiquem arquivados, mediante a referência a esta circunstância, acompanhada da indicação da natureza do documento, e, ainda, tratando-se de conhecimento do imposto municipal de sisa, a indicação do respectivo número, data e repartição emitente;

g) A menção dos documentos apenas exibidos com indicação da sua natureza, data de emissão e entidade emitente e, ainda, tratando-se de certidões de registo, a indicação do respetivo número de ordem ou, no caso de certidão permanente, do respetivo código de acesso;

h) O nome completo, estado e residência habitual das pessoas que devam intervir como abonadores, intérpretes, peritos médicos, testemunhas e leitores;

i) A referência ao juramento ou compromisso de honra dos intérpretes, peritos ou leitores, quando os houver, com a indicação dos motivos que determinaram a sua intervenção;

j) As declarações correspondentes ao cumprimento das demais formalidades exigidas pela verificação dos casos previstos nos artigos 65.º e 66.º;

l) A menção de haver sido feita a leitura do instrumento lavrado, ou de ter sido dispensada a leitura pelos intervenientes, bem como a menção da explicação do seu conteúdo;

m) A indicação dos outorgantes que não assinem e a declaração, que cada um deles faça, de que não assina por não saber ou por não poder fazê-lo;

n) As assinaturas, em seguida ao contexto, dos outorgantes que possam e saibam assinar, bem como de todos os outros intervenientes, e a assinatura do funcionário, que será a última do instrumento.”

Por sua vez, acrescenta-se no artº 151º do mesmo Código os requisitos comuns para a autenticação dos documentos particulares:

1 – O termo de autenticação, além de satisfazer, na parte aplicável e com as necessárias adaptações, o disposto nas alíneas a) a n) do nº1 do artigo 46, deve conter ainda os seguintes elementos:

- a declaração das partes de que já leram o documento ou estão perfeitamente inteiradas do seu conteúdo e que este exprime a sua vontade;

- a ressalva das emendas, entrelinhas, rasuras ou traços contidos no documento e que não estejam devidamente ressalvados.

2 – É aplicável à verificação da identidade das partes, bem como a intervenção de abonadores, intérpretes, peritos, litores ou testemunhas, o disposto para os instrumentos públicos.”10.

Entende a sentença que o “Termo de Autenticação” (datado de 02.06.2021) não é válido porque “Atento o termo junto aos autos principais, verifica-se que o mesmo, apesar de fazer referência ao embargante/executado, contendo a respetiva assinatura, não menciona a denominada primeira parte no acordo, nem possui qualquer declaração da mesma e assinatura”. Ou seja, entende a sentença que esse Termo de Autenticação não faz menção expressa ao Bankinter S.A., aqui Exequente, não contendo tal Termo a identificação, nem a assinatura, desse interessado (ou seja, quem no celebrado “Acordo com Termo de Autenticação” figura como “primeira parte”), daí concluindo que não há título executivo válido, por não se poder concluir que o documento particular que à dado à execução foi confirmado e assinado (também) pelo Exequente perante quem o certificou (a advogada).

Diferentemente, sustenta o acórdão recorrido que, estando-se, no aludido Acordo, perante uma confissão ou reconhecimento unilateral de dívida – o que, nos termos do artº 458º, nº1 do CC, estabelece a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental, cabendo ao devedor alegar e provar a falta de causa da obrigação assumida – e estando, como tal, o credor, ora exequente, apenas onerado com o ónus de alegação da relação fundamental (cabendo ao executado o ónus da prova da inexistência ou invalidade do negócio donde procede a dívida ou a que a prestação se reporta), tal documento/Acordo pode, por si só, “servir de base à execução, se autenticado”.

Bom, mas o que aqui se discute é, precisamente, esse “se”, isto é, se a autenticação teve lugar, ou não, conforme o estatuído na lei.

Como bem diz o recorrente, não se pode, aqui, confundir a qualidade de “outorgante” com a qualidade de “parte que assume a obrigação” (a que se reporta o citado artº 458º/1 CC).

Ora, se é verdade que quem assumiu a obrigação foi a “segunda parte” (T..., Lda, Lda e o garante, ora embargante), outorgantes no Acordo, datado de Maio de 2021, foram ambas as partes.

E a lei parece clara ao exigir, para a validade da autenticação, que no termo de autenticação seja feita menção/identificação, expressa, a ambas as partes outorgantes no Acordo a autenticar e, outrossim, que ambas o assinem, constando, também, esta menção naquele termo (cfr, designadamente, as cfr. als c) e n) do artº 446º do CN, ex vi do artº 151º do mesmo Código). Acrescentando-se no artº 70º do mesmo Código do Notariado que “o ato notarial é nulo, por vício de forma, designadamente, quando não contém a assinatura de qualquer dos outorgantes que saiba e possa assinar (al. e) do nº 1).

Em bom rigor – e secundando o recorrente – , pode mesmo afirmar-se que do designado “Termo de Autenticação” que acompanha o documento invocado como título executivo pela Exequente/Embargada, se encontram em falta diversos requisitos legalmente exigíveis para um possível reconhecimento de tal documento como documento particular autenticado, desde logo:

a. A menção da outorgante que figura como “Primeira Parte” no mencionado “Acordo” - (cfr. legalmente exigível ao abrigo do disposto no art. 46.º, n.º 1, al c) do CN);

b. A menção de haver sido feita a leitura do instrumento lavrado, ou de ter sido dispensada a sua leitura pelos intervenientes, bem como a menção da explicação do seu conteúdo - (cfr. legalmente exigível ao abrigo do disposto no 46.º,n.º 1, al l) e art. 50.º, ambos do CN);

c. A assinatura, em seguida ao contexto, da outorgante que figura como “Primeira Parte” no mencionado “Acordo” - (cfr. legalmente exigível ao abrigo do disposto no 46.º, n.º 1, al n) do CN); ou, pelo menos,

d. A indicação da parte outorgante que não assina e a declaração que esta faça de que não assina por não saber ou não poder fazê-lo - (cfr. legalmente exigível ao abrigo do disposto no 46.º, n.º 1, al m) do CN).

Nesta senda, não se vislumbra como poder considerar que no termo de autenticação do aludido documento particular se tenham respeitado os requisitos notariais.

Percute-se: não está em causa aferir se no aludido Acordo é reconhecida ou não uma dívida à exequente; não se discute o conteúdo da relação causal. O que está aqui em causa é, apenas e só, saber se a autenticação desse mesmo documento obedeceu, ou não, aos comandos ínsitos no Código do Notariado.

E, s.m.o., não obedeceu.

Designadamente, do teor desse termo de autenticação não consta a identificação das concretas (ambas elas) partes que outorgaram o referido Acordo, pois nenhuma referência ali é feita à “PRIMEIRA PARTE”, isto é, ao aqui exequente Bankinter, S.A..

Como, pertinentemente, se escreveu no Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 22 de setembro de 202211: “o art.º 70.º do Código do Notariado comina com a nulidade a violação das exigências contidas nas alíneas a) a g) do seu n.º 1, entre elas e para o que ora releva, a falta de assinatura dos outorgantes (…) os termos de autenticação, lavrados em conformidade com o estatuído no artigo 38.º do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, obedecem a determinados requisitos: devem ser lavrados no próprio documento a que respeitam ou em folha anexa (cfr. artigo 36.º, n.º 4 do Código do Notariado); devem satisfazer, na parte aplicável e com as necessárias adaptações, às formalidades comuns dos atos notarias, estabelecidas no artigo 46.º do Código do Notariado.(…) Ora, como se evidencia do exposto, o termo de autenticação não foi assinado pelos outorgantes do documento, como se impunha face ao disposto no art. 46.º, n.º 1, al. n), do Cód. Notariado, ao determinar que do instrumento notarial constem as assinaturas, em seguida ao contexto, dos outorgantes que possam e saibam assinar, bem como de todos os outros intervenientes, e a assinatura do funcionário, que será a última do instrumento.(…) Pelo que, não podem ser considerados documentos autenticados, aqueles em que os respetivos termos de autenticação não se mostram lavrados em conformidade com as formalidades essenciais à validade do referido termo12.


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Atento o explanado, entende-se que bem andou a sentença em considerar que falta título executivo que sustente a pretensão deduzida pelo exequente: o aludido “Acordo”, porque não deviamente autenticado, não pode valer como título executivo, nos sobreditos termos.

Consequentemente, há-de ser julgado procedente o recurso de revista.


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IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso e, consequentemente, conceder a revista, revogando-se o Acórdão recorrido e mantendo-se a sentença.

Custas pelo recorrido.

Lisboa, 17.10.2024

Fernando Baptista (Juiz Conselheiro Relator)

Ana Paula Lobo (Juíza Conselheira - 1º adjunto)

Maria da Graça Trigo (Juíza Conselheira - 2º Adjunto)

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1. Alegou, em síntese:

  Dispõe o artigo 46.º, do Código do Notariado sobre as formalidades comuns aos instrumentos notariais e especificando, o artigo 151.º do mesmo diploma, os requisitos comuns para a autenticação dos documentos particulares.

  O termo de autenticação, além de satisfazer, na parte aplicável e com as necessárias adaptações o disposto nas alíneas a) a n) do n.º 1 do art. 46.º do CN, deve ainda conter os elementos referidos nas al. a) e b) do n.º 1 do art. 151.º do CN.

  O termo de autenticação que acompanha o documento dado à execução tem em falta a menção da outorgante que figura como “Primeira Parte” no mencionado “Acordo” (cfr. art. 46.º,n.º 1, alc) do CN); a menção de haver sido feita a leitura do instrumento lavrado, ou de ter sido dispensada a sua leitura pelos intervenientes, bem como a menção da explicação do seu conteúdo (cfr. art. 46.º,n.º 1, al l) e art. 50.º, ambos do CN); a assinatura, em seguida ao contexto, da outorgante que figura como “Primeira Parte” no mencionado “Acordo” (cfr. art. 46.º, n.º 1, al n) do CN); ou, pelo menos, a indicação da parte outorgante que não assina e a declaração que esta faça de que não assina por não saber ou não poder fazê-lo (cfr. art. 46.º, n.º 1, al m) do CN).

  O ato notarial em causa é nulo, por vício de forma, ao abrigo do disposto no art. 70.º, n.º 1 do CN, sendo certo que tais omissões não foram sanadas abrigo do disposto no n.º 2 do referido preceito legal.

  Acresce que a validade da autenticação de documentos particular importa, além do mais, que o registo informático do competente ato obedeça ao regime estabelecido na Portaria n.º 657-B/2006, de 29 de Março.

  Verifica-se que também a elaboração do respetivo registo é omissa no que respeita à identificação dos interessados, legalmente exigida nos termos do disposto na al. b) do art. 3.º da referida Portaria; a inobservância do aí estipulado põe em causa a validade da autenticação realizada, implicando que o documento não chegue sequer a adquirir a natureza de documento particular autenticado.

2. Disse que o documento dado à execução cumpre todos os requisitos para consubstanciar título executivo e cumpre, ainda, os requisitos formais patentes do artigo 46.º, do C.N.; as partes estão devidamente identificadas no documento; o termo diz expressamente que o conteúdo foi lido e compreendido; tanto o termo como o acordo são assinados pelos intervenientes; todos os elementos constantes do artigo 46º do Código do Notariado estão patentes do termo e do acordo; também o registo do termo não contém qualquer irregularidade que afecte a sua validade; o registo contém, sim, a identificação dos interessados que constam do Acordo.

3. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, p. 606.

4. Cfr. Autor e obra citados, p. 606 a 608.

5. Autor e obra citados, p. 626.

6. FERREIRA DE ALMEIDA, Algumas considerações sobre o problema da natureza e função do título executivo, RFD, 19 (1965), p. 317.

7. Aspectos que nos remeteriam para outros voos, chamando, então, à colação o estatuído, designadamente, nos arts. 374º e 376º do Código Civil e, outrossim (também designadamente) os sempre sábios e actuais ensinamentos de VAZ SERRA, na Revista de Legislação e de Jurisprudência anos 110º e 114º.

8. Cfr. ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, Themis, n.º 7, cit., p. 38.

9. Destaque nosso.

10. Destaque nosso.

11. Proc. n.º 456/21.8T8PRG.G1

12. Destaques nossos.