ESCUSA
PRESSUPOSTOS
Sumário

A existência do risco de intervenção do juiz ser considerada suspeita pode-se aferir em dois planos distintos. Na vertente pessoal, ou subjetiva, esse risco é verificado pela existência de uma qualquer relação de interesse pessoal entre o juiz e o objeto do processo ou os seus sujeitos, de modo a que, e por causa dela, possa existir o perigo do julgamento da causa ser influenciado por esse interesse, com prejuízo da necessária isenção.
No plano objetivo, independentemente da existência ou não de uma qualquer relação de interesse que ligue o juiz à causa ou aos seus sujeitos, o que importa verificar é se, considerando os factos em causa, um cidadão de discernimento médio, esclarecido, poderá, com razoabilidade, colocar em causa a imparcialidade do juiz.

Texto Integral

Acórdão deliberado em Conferência
1. Relatório

A Sra. Juíza AA, ao abrigo do disposto no artigo 43º nºs 1 e 4, do Cód. Proc. Penal, requereu escusa para intervir no processo id. pelo NUIPC 109/22.0…

Para tanto invocou, no essencial, que o ofendido/assistente nesses autos, BB, é genro da madrinha de batismo e de casamento do seu pai, motivo pelo qual o conhece e se relaciona com ele há vários anos, mantendo ambos uma relação semelhante à familiar, partilhando com ele eventos familiares, momentos de lazer e prestando os membros de ambas as famílias assistência/apoio uma à outra. Acresce que é frequentadora do espaço comercial destinado a Turismo Rural, explorado pelo mencionado BB e seu cônjuge, que é o local onde alegadamente os factos contantes da acusação ocorreram.

Afirma que tal relacionamento próximo, e dadas as caraterísticas sociogeográficas do município em causa, pode suscitar dúvidas ou reservas sobre a sua imparcialidade.

Junta peças processuais comprovativas do por si alegado.

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Neste Tribunal da Relação, a Exma. Sra. Procuradora Geral Adjunta pronunciou-se no sentido do deferimento do pedido de escusa por entender que está em causa uma «situação que se apresenta com seriedade e gravidade adequada a gerar, de forma clara e fundada, a invocada desconfiança exterior da comunidade sobre um desempenho imparcial por parte da Senhora Juíza requerente que importa salvaguardar».

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2. Fundamentação

Como é sabido, em processo penal, vigora entre nós, o princípio do juiz natural, o qual se mostra constitucionalmente consagrado, no art. 32º, nº9, da CRP, nos seguintes termos: “Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior». Porém, e sob pena de, em certas circunstâncias se verificar a perversão do próprio sistema, tal princípio consagra exceções. Uma delas é precisamente quando a participação do juiz natural na causa pode colocar em causa as garantias de imparcialidade e isenção – o que está em apreciação nestes autos.

Vejamos.

A Sra. Juíza mantém com o assistente do processo em referência, e bem assim com a família próxima e alargada deste, uma relação muito próxima e que em tudo se assemelha a uma verdadeira relação familiar. O processo em causa foi distribuído à Sra. Juíza e ainda não se iniciou a audiência de julgamento. De tal decorre que o requerimento apresentado é tempestivo. Também foi apresentado da forma própria e constam dos autos todos os elementos necessários à sua apreciação.

De acordo com o disposto no artigo 43º nº 1, do Cód. Proc. Penal, a intervenção do juiz no processo pode ser recusada (ou escusada) quando se verificar o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Como é manifesto, a imparcialidade do juiz face ao objeto do processo penal e face aos seus intervenientes é, não só essencial, como também uma das garantias da real independência do tribunal e da existência de um processo justo e, sobretudo, equitativo.

A existência do risco de intervenção do juiz ser considerada suspeita pode-se aferir em dois planos distintos. Na vertente pessoal, ou subjetiva, esse risco é verificado pela existência de uma qualquer relação de interesse pessoal entre o juiz e o objeto do processo ou os seus sujeitos, de modo a que, e por causa dela, possa existir o perigo do julgamento da causa ser influenciado por esse interesse, com prejuízo da necessária isenção.

No plano objetivo, independentemente da existência ou não de uma qualquer relação de interesse que ligue o juiz à causa ou aos seus sujeitos, o que importa verificar é se, considerando os factos em causa, um cidadão de discernimento médio, esclarecido, poderá, com razoabilidade, colocar em causa a imparcialidade do juiz.

Na situação concreta os factos invocados são razões objetivas pois, apesar da relação relatada, não existem quaisquer indícios que permitam concluir que a Sra. Juíza tem qualquer interesse pessoal na causa.

Porém, importa apreciar se em função dos motivos invocados a sua manutenção no processo – designadamente realizando o julgamento e proferindo a respetiva sentença – é apta a criar uma suspeita objetiva sobre a sua imparcialidade.

Entende-se que sim.

Não se duvida que a generalidade das pessoas que integram a comunidade, o cidadão médio, esperará e entenderá como adequado, que os julgamentos não sejam realizados por alguém que mantenha relações próximas, nomeadamente de amizade ou familiares, com qualquer uma das partes. E não se trata aqui de um sentimento ou de uma expetativa irrazoável, destituída de sentido ou insensata. Pelo contrário, é uma expetativa sensata e razoável face àquilo que se espera da administração da justiça: julgamentos e decisões isentos, objetivos e imparciais. E que o sejam, quer na sua substância, quer na sua aparência.

As circunstâncias aqui invocadas são por isso aptas a criar, justificadamente, uma dúvida objetiva sobre a efetiva imparcialidade do tribunal. E, tal desconfiança será ainda mais forte e, consequentemente terá ainda um maior impacto, num meio pequeno, em que a generalidade das pessoas se conhece e tem um maior grau de conhecimento quer da vida, quer das relações pessoais existentes entre as pessoas.

E, neste contexto, pese embora não se verifique uma qualquer ligação direta e pessoal com o caso, não temos dúvidas em dizer que uma pessoa de diligência média, informada e razoável, teria reservas a confiar na imparcialidade de um julgamento realizado por uma juíza que mantém uma relação de amizade, e de quase família, com o assistente do processo.

Assim, entende-se que se verificam os pressupostos de que depende a concessão de escusa para intervir no processo.

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3. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem este Tribunal Coletivo em julgar procedente o pedido de escusa, devendo proceder-se à substituição da Sra. Juíza requerente, de acordo com as normas aplicáveis da orgânica judicial.

Sem custas.

Notifique.

Évora, 8 de outubro de 2024

Carla Oliveira (Relatora)

Anabela Simões Cardoso (1ªAdjunta)

Laura Goulart Maurício (2ª Adjunta