HOMICÍDIO
MEIO PARTICULARMENTE PERIGOSO
PRINCÍPIO DA DUPLA VALORAÇÃO
Sumário

- Estão afastados da qualificação os meios, métodos ou instrumentos mais comuns de agressão que, embora perigosos ou mesmo muito perigosos (facas, pistolas, instrumentos contundentes) não cabem na estrutura valorativa, fortemente exigente, do exemplo-padrão.

- Resultando indiciado ter o arguido utilizado uma arma de fogo de características desconhecidas para provocar a morte da vítima, importa concluir que essa utilização não tem autonomia configurativa para alicerçar um juízo agravado de culpa, pelo facto ou pela personalidade do agente, de acordo com o artigo 132º, nº 2, alínea h), do Código Penal, nem com fundamento na sua qualificação como meio particularmente perigoso, nem como crime de perigo comum.
- Inexiste obliteração do princípio da dupla valoração quando concorrem a circunstância qualificativa dos nºs 1 e 2, alínea e), do artigo 132º, do Código Penal e a modificativa agravante de caráter geral enunciada no artigo 86º, nº 3, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, porquanto, enquanto a primeira assenta numa culpa acrescida na prática do homicídio, que radica na especial perversidade ou censurabilidade com que ele foi em concreto cometido, já a segunda advém, exclusivamente, de razões de prevenção geral, que encontra o seu fundamento num maior grau de ilicitude e na necessidade de limitar o recurso às armas na prática de qualquer tipo de crime, pela sua aptidão para causar danos relevantes, em bens jurídicos penalmente tutelados. sendo certo que o uso de arma, para além de não ser elemento do crime de homicídio, também não conduz, no caso em apreço, ao preenchimento do tipo qualificado do artigo 132º.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO

1. No Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo de Instrução Criminal de … – Juiz …, Processo com o nº 304/23.4GBGDL, foi proferido despacho, aos 21/06/2024, que aplicou ao arguido AA, a medida de coacção de prisão preventiva, por indiciarem fortemente os autos a prática, em concurso efectivo, de um crime de homicídio qualificado e agravado, p. e p. pelo artigo 132º, nº 2, alíneas e) e h), do Código Penal, conjugado com o estabelecido no artigo 86º, nºs 3 e 4, da Regime Jurídico das Armas e suas Munições e bem assim um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, nº 1, alíneas c) e d), do mesmo Regime, verificando-se os perigos concretos de fuga, perturbação do decurso do inquérito, continuação da actividade criminosa e perturbação da ordem e tranquilidade públicas.

2. Inconformado com o teor do referido despacho, dele interpôs recurso o arguido, para o que formulou as seguintes conclusões (transcrição):

1 – O presente recurso direciona-se à impugnação da medida de coação aplicada, pela M.ma Juíza de Instrução, na subsequência do primeiro interrogatório judicial de arguido detido.

2 – O arguido, AA, está indiciado da prática, em autoria material e em concurso real, dos seguintes crimes: de 1 crime de homicídio qualificado e agravado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e) [motivo torpe/ávido] e h) [por uso de meio especialmente perigoso], todos do Código Penal, conjugado com o artigo 86.°, n.ºs 3 e 4 do Regime Jurídico de Armas e Munições; e 1 crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.ºs 1, alíneas c) e d), do Regime Jurídico de Armas e Munições.

3 – De seguida, foi transcrito, no segmento fulcral, o Despacho da M.ma Juíza que aplicou a prisão preventiva.

APLICAÇÃO DA MEDIDA DE COAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA.

4 – Nesta parcela, dissente-se do despacho exarado pela M.ma Juíza de Instrução, dado que ele se aparta dos princípios conformadores da aplicação das medidas de coação.

5– Seguidamente, foi feito um excurso teórico-jurídico, que aqui se considera reproduzido, no que tange aos sobreditos princípios, em que se ponderou o seguinte: os artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, e 191.º do CPP; o artigo 193.º do CPP; o princípio da proporcionalidade em sentido lato ou princípio da proibição de excesso; o princípio da adequação; o princípio da necessidade; e o princípio da proporcionalidade em sentido restrito ou da justa medida.

6 – Nessa digressão, firmou-se, notadamente, o seguinte: a existência de uma hierarquia de gravidade no tocante às medidas de coação; a prioridade que deve ser outorgada às medidas de coação não privativas da liberdade em detrimento das medidas privativas; e, no contexto da medida de coação privativa da liberdade, a preferência que deve ser deferida à obrigação de permanência na habitação, sempre que ela se conforme bastante para salvaguardar as exigências cautelares.

7 – No círculo da prisão preventiva, funciona a regra da subsidiariedade prevenida no artigo 193.º, n.ºs 2 e 3, do CPP – a prisão preventiva conforma, assim, uma medida de coação cautelar, excecional e subsidiária, adstringida aos casos de imputação de crimes de ressaltante gravidade e que só deve ser aplicada em ultima ratio, ou seja, quando as demais medidas de coação sejam inadequadas ou insuficientes para satisfazer as exigências cautelares postuladas pelo caso.

8 – A aplicação da prisão preventiva ao arguido configurou-se, sobremodo, excessiva.

9 – Após, foi feito um excurso acerca da qualificação jurídica efetuada pela M.ma Juíza de Instrução, no subsequente apartado – crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e) e h, do Código Penal.

10 – Tendo presente os referentes indiciários dos presentes autos, pode concluir-se, de pronto, que a facticidade não é idónea a integrar a agravação resultante da alínea e) do artigo 132.º do Código Penal, seja por avidez seja por motivo torpe ou fútil.

11 – Em vista dos subsídios doutrinários e hermenêuticos aportados na motivação e da matéria de facto indiciariamente firmada, não se divisa, sequer, nenhum arrimo para a referência à avidez. De resto, atendendo à sua total inconexão e incongruência com o caso sub examine, entende-se que a sua convocação correspondeu, decerto, a um lapso – não se verifica, por conseguinte, tal qualificativa.

12–Pelo tocante ao motivo torpe ou fútil, foi feito uma digressão desenvolvida, maiormente no hemisfério doutrinal, com apontamentos de Fernanda Palma, Teresa Serra, Figueiredo Dias, Paulo Pinto de Albuquerque, Victor Sá Pereira; Nelson Hungria e Cezar Roberto Bitencourt.

13 – Tendo presente os preditos escólios e os constituintes indiciários, pode concluir-se que a facticidade não é apta a preencher a circunstância qualificativa atinente ao motivo torpe ou fútil.

14 – Com efeito, o motivo da conduta – o tirar desforço na decorrência de um desentendimento ou incompatibilidade – não é, por si só, sem o aporte de outros elementos, um motivo “pesadamente repugnante, baixo ou gratuito […], de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana”.

15 – A objurgação ou censura a fazer – e ela deve ser feita – soto-põe-se, de forma mais ajustada, ao tipo base, seja porque não se enquadra naquilo que é considerado torpe seja ainda porque a conduta do arguido não desvela uma censura ou perversidade especial merecedora de agravação. Em verdade, o tipo qualificado do homicídio deve adstringir-se às condutas que exorbitem o socialmente compreensível.

16 – É certo que matar alguém porque se incompatibilizou com ela consubstancia uma visão antiquada do mundo e, por isso, conforma-se inaceitável hodiernamente; porém, não deixa de ser um enfoque do mundo que se entende, quer porque constituía, digamos, norma ou modo de pensar e agir característico há cerca de quarenta anos em algumas franjas sociais do país, quer porque o agente aqui em causa pertence e vive a uma espécie de subcultura que aceita estas condutas como corretas.

17 – Vale isso por dizer que o motivo em pauta, diante da imagem global dos factos, não tem potencialidade para ser capitulado de torpe, e que a M.ma Juíza forcejou nitidamente a qualificação jurídica, com apelo a tal circunstância qualificativa; dito de outra forma: a conduta não é especialmente perversa ou censurável – mostra-se, assim, excluída a alínea e), refletida pela M.ma Juíza.

18– Contudo, ainda que não fosse pelo indigitado itinerário, cuja validade subsiste, a citada alínea, no caso sub judice, por suposto motivo torpe, ancorado numa situação de vingança, sempre seria de apartar pelas considerações conexas com o dolo e o erro.

19 – Também nesta latitude, foram convocadas anotações doutrinárias de Teresa Quintela de Brito, Fernanda Palma, Teresa Serra e Figueiredo Dias.

20 – O dolo de homicídio deve ampliar-se ao exemplo-padrão em foco. Em verdade, a circunstância que integra o exemplo-padrão carece de ser representada pelo agente, sob pena de não se poder afirmar que o agente, com a atinente conduta, tenha revelado especial censurabilidade ou perversidade, que se estriba precisamente na respetiva atitude. Haja vista o tipo de circunstâncias e a particularidade de elas estarem justapostas ao grau de culpa do agente, somente é admissível que se conclua pela culpa qualificada se houver, da parte do agente, conhecimento da situação de facto (no caso em pauta, da motivação) que a suporta.

21 – Dado que a circunstância em tela (com arrimo na vingança) se correlaciona com uma posição pessoalíssima do agente no facto e que ocorreu uma clarividente convicção errónea, por banda do arguido, da verificação dessa circunstância [cf. os factos indiciários 4, 17, 26 (por motivo de vingança) e 29], exsurge inconcusso que o ato executivo sobrevindo não teve por objeto a pessoa destinatária da vingança, mas, sim, um terceiro, totalmente estranho à motivação do arguido. Ou seja: em relação à efetiva vítima, o arguido não teve nenhuma motivação, dado que, no que tange a ela, jamais excogitou qualquer vingança.

22 – Significa isso que está arredada a supositícia circunstância qualificativa da alínea e) e que o arguido apenas pode ser responsabilizado, por conseguinte, pelo homicídio simples.

23 – No que tange à alínea h), o mesmo instrumento foi estimado, pelo tribunal, de forma bissegmentada, para, desse modo, operar duas subsunções jurídicas: de um lado, o crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 86.º, n.º 1, alíneas c) e d), do Regime Jurídico das Armas e Munições; de outro lado, o crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea h), todos do Código Penal

24 – Tal determinação viola o princípio da proibição da dupla valoração; com efeito, é a especificidade de ter sido utilizado esse tipo de instrumento – que conforma um crime de perigo comum ou, na forma escusa perspetivada pelo tribunal, corporifica também um meio particularmente perigoso – que tipifica o crime de detenção de arma proibida e, concomitantemente, qualifica, ou qualifica também, o homicídio. Não é, pois, admissível tal procedimento, o que ocasiona o imediato afastamento da qualificativa que ora se analisa.

25 – Não obstante a precedente conclusão, ainda assim, fez-se uma enunciação analítica sobre o meio particularmente perigoso, com a indicação de doutrina e de jurisprudência, e defluiu-se que a arma de fogo em causa nos autos não se soto-põe ao exemplo-padrão, na vertente de meio particularmente perigoso – não ocorre, pois, a circunstância qualificativa da alínea h).

CRIME DE DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA, previsto e punível pelo artigo 86.º n.º 1, alíneas c) e d), do Regime Jurídico de Armas e Munições.

26 – De seguida, foi feita uma incursão acerca dos elementos, objetivo e subjetivo, do crime de detenção de arma proibida perspetivado nos autos.

27 – Atendendo à matéria de facto assentada indiciariamente, apenas se sabe que o arguido utilizou, como instrumento, uma arma de fogo e que não era titular de licença/autorização de uso e porte de arma.

28– Porém, não se mostram minimamente indiciadas as características concretas da arma de fogo utilizada, circunstância essa que se representa essencial à subsunção na previsão da citada alínea c) do n.º 1 do artigo 86° do RJAM e que é requisito da incriminação autónoma do crime de detenção de arma proibida.

29 – Acresce que a arma em causa não foi apreendida e, por isso, não foi objeto de nenhum exame ou perícia.

30 – Em jeito sinótico: conquanto se saiba que se tratava de arma de fogo real (com a qual foram deflagrados dois disparos), a verdade é que não se conhecem as pertinentes características. Ignora-se, designadamente, se era uma arma de fogo curta ou longa, uma espingarda, uma carabina, uma arma de fogo transformada e, não o sendo, qual a classe que lhe corresponde (poderia inclusive, no limite, ser uma arma de guerra); se se tratava de uma arma em si mesmo proibida; se era uma arma permitida, mas que tem o tratamento de arma proibida porque se encontrava fora das condições legais; se a arma exigia registo e manifesto, etc.

31–Não estando indiciariamente demonstradas as características da arma de fogo utilizada pelo arguido, não se verifica o preenchimento de todos os elementos objetivos constitutivos do tipo de ilícito em apreço – conclui-se, assim, pela inconcludência da imputação ao arguido do crime de detenção de arma proibida, referente às alíneas do n.º 1 do artigo 86.º

AGRAVAÇÃO EMERGENTE DO ARTIGO 86.º, n.ºs 3 e 4, DA LEI n.º 5/2006

32 – No caso em litígio, apurou-se unicamente que foi utilizada uma arma de fogo de características não concretamente determinadas.

33 – Ora, desconhecendo-se as concretas características da arma, encontra-se liminarmente expungida a possibilidade da correspondente subsunção a qualquer das alíneas do número 1 do artigo 86.º

34 – Com efeito, “exige-se que a arma (ou armas) trazida por qualquer dos comparticipantes integre o elenco das alíneas a) a d) do n.º 1, pelo que fica afastada a agravação do n.º 3 se o instrumento apenas se subsumir ao conceito de arma constante do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março”

35 – É o que ocorre no caso vertente, a que acresce a singularidade de, no limite, no contorno das hipóteses, não ser de arredar que pudesse tratar-se de uma arma obsoleta, que exclui, na sua latitude, a aplicação do RJAM (vd. o artigo 1.º, n.º 3) – não pode, então, ser refletida aqui a agravante que o tribunal a quo sinalizou.

36 – Acrescente-se que as condições pessoais do arguido denotam que ele está totalmente integrado familiar e socialmente.

37 – Não ocorrem aqui – ou, num plano alternativo, estão supinamente atenuados – os perigos (os pericula libertatis) pretextados pela M.ma Juíza de Instrução no indigitado despacho.

38 – Após, foram desenvolvidas considerações teórico-jurídicas, que aqui se renovam, relativamente ao seguinte: ao perigo de fuga; ao perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, ao perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ao perigo de continuação da atividade criminosa; e ao perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.

PERIGO DE FUGA

39 – A lei não presume esse perigo – exige, antes, que ele seja concreto, verdadeiro e iminente; vale por dizer que não é suficiente um perigo pressuposto, potencial ou remoto, ou seja, não basta a mera probabilidade de fuga inferida/extraída de presunções genéricas e abstratas (e.g., da gravidade do crime ou da capacidade financeira do arguido).

40 – A mera probabilidade de vir a ser aplicada ao arguido uma pena de prisão de duração considerável, resultante da gravidade do crime, não sintomatiza, de modo inexorável ou necessário, a existência de perigo de fuga.

41 – A M.ma Juíza equacionou erradamente tal perigo (e de forma exasperada, por tê-lo considerado elevado), uma vez que ele não se divisa minimamente. Com efeito, dado que o arguido se apresentou voluntariamente às autoridades e foi submetido a primeiro interrogatório judicial, em cuja envolvência, note-se, confessou parcialmente os factos que lhe são atribuídos, não se alcança que, a partir daí, esse perigo persista em concreto, ou que, no limite, não possa, de forma alternativa, ser convenientemente acautelado por outras medidas de coação.

42 – Interessa ainda acrescer, com préstimo, que o arguido se apresentou voluntariamente, consciente, como é óbvio, de que, no formato teórico, era possível a aplicação da medida de coação de prisão preventiva.

43 – De resto, as observações feitas pela M.ma Juíza surpreendem totalmente pela credulidade ou inocência que transverberam – por tal razão, colidem frontalmente com as regras da experiência e com os critérios de normalidade. Faz algum sentido que, num mundo extremamente mediático e universal, em que as notícias e as informações surgem prontamente e com inteira celeridade, o arguido não soubesse verdadeiramente o que se tinha passado com a vítima, que faleceu, nem que tipo de crime enfrentava!!!!?... A normalidade dita é o contrário: foi justamente por isso, por ter esse conhecimento, que o arguido se pôs em fuga.

44 – A M.ma Juíza, no fulcral, perspetiva o arguido como um anacoreta, que passou um ano totalmente afastada do convívio social, numa espécie de bunker, sem nenhum acesso a informação – ora basta lembrar, para não ir mais longe, que um simples telemóvel dá acesso a todo o tipo de informação pretendida.

45 – Na verdade, o perigo argumentado pela M.ma Juíza é meramente presuntivo, pois não tem nenhum arrimo objetivo nem se mostra, ainda que modo singelo, suficientemente clarificado ou explicitado – trata-se, por conseguinte, de uma asserção gratuita e espúria.

46 – Pode, pois, assentar-se, notadamente pela contextura domiciliária e familiar do arguido em Portugal, que o perigo de fuga está abduzido, ou pelo menos inteiramente minorado ou atenuado. Porém, caso se entendesse, hipoteticamente, que persiste esse perigo, então sempre devia ser dada preferência, no extremo, à obrigação de permanência na habitação, porquanto essa medida seria claramente suficiente para satisfazer as exigências cautelares requisitadas pelo presente caso.

PERIGO DE PERTURBAÇÃO DO DECURSO DO INQUÉRITO OU DA INSTRUÇÃO DO PROCESSO E, NOMEADAMENTE, PERIGO PARA A AQUISIÇÃO, CONSERVAÇÃO OU VERACIDADE DA PROVA

47 – Nessa envolvência, foram reportados, pela sua prestabilidade ao caso, os Acórdãos da Relação de Lisboa de 08-10-2003 e da Relação de Évora de 07-05-2019 e firmou-se o itinerário dialético percorrido no despacho da M.ma Juíza.

48 – Em face da apresentação do arguido às autoridades, bem como à sua confissão (parcial) no âmbito do primeiro interrogatório judicial, está totalmente atenuado e mesmo abduzido o perigo ora enunciado.

49 – Desde imediato, convém pontificar que o inquérito já tem mais de um ano e que a investigação já não se encontra propriamente numa fase embrionária – in veritas, a investigação, no fulcral, mostra-se realizada (registe-se, com servência, o seguinte: já foram inquiridas várias testemunhas, e não se perfila a inquirição de mais nenhuma outra testemunha, pelo menos cujo depoimento seja importante; a ofendida e outra testemunha prestaram depoimento para memória futura; e vejam-se ainda os meios de prova indicados, pelo Ministério Público, na acusação indiciária que suportou/legitimou a apresentação do arguido para primeiro interrogatório judicial) ou, no máximo, com alguma tolerância, a prova remanente é absolutamente exígua, porquanto nenhuma diligência relevante subsiste por efetuar.

50 – De outra parte, interessa não preterir que os crimes em apreciação nestes autos, imputados ao arguido AA na particularidade do caso em exame, não conformam nenhuma densidade probatória superlativa, com aptidão para requisitar uma pluralidade de diligências de recolha de prova, determinantes de uma morosidade acrescida.

51 – Posto isso, não se topa nenhuma razão verosímil ou tangível para se antever esse perigo, pois que não se antolha facilmente com o é que o arguido poderia inviabilizar e/ou perturbar o decurso da investigação, nomeadamente pelo tocante à tomada de depoimentos às testemunhas, sobretudo quando elas inclusivamente já depuseram – e até para memória futura. Acresce dizer que, em face desse estádio processual e do teor dos depoimentos prestados, igualmente não se intui em que termos é que o arguido poderia adulterar tais depoimentos.

52 – A M.ma Juíza postergou completamente o postulado de que não é bastante a mera possibilidade/probabilidade de que o arguido desenvolva uma atividade direcionada a prejudicar a investigação e a prova – torna-se ainda mister, de uma parte, que se evidencie concretamente esse perigo pela indigitação de factos que entremostrem a atuação do arguido com esse propósito (não se pode tratar de um possível risco, mas antes de um perigo fundado e concreto), e, de outra parte, que não seja exequível impedir com outros meios essa perturbação.

53 – A M.ma Juíza devia ter explicitado, ainda que superficialmente, por que motivo está persuadida de que o arguido iria obstaculizar a investigação (de resto, inexistente, ao menos na sua fração nuclear) e de que modo o faria; devia ter avaliado e clarificado as circunstâncias que caucionam esse suposto risco e as características pessoais do arguido que desvelam a real capacidade de ele materializar a atuação ilegítima que se pretende conjurar; devia ter indicado a concreta disposição/vontade de o arguidos obstar à recolha das provas, ou de proceder à sua viciação, isto é, incumbia-lhe apontar os elementos de prova em curso que poderiam ser impedidos ou dificultados pelo arguido em liberdade.

54 – A decretação da prisão preventiva embasada no êxito da investigação significa que ela apenas se poderia prolongar, inelutavelmente, por um breve intervalo de tempo, isto é, pelo hiato rigidamente necessário para obter os antecedentes probatórios pretensamente em perigo, o que transluz novamente a natureza excecionalíssima desta medida de coação.

55 – Atendendo às observações aduzidas, na sua imbricação holística, mostra-se, pois, inteiramente expungido o mencionado perigo, pois não se prefigura nenhuma razão válida para o antever ou redarguir.

PERIGO DE CONTINUAÇÃO DA ATIVIDADE CRIMINOSA E PERIGO DE PERTURBAÇÃO DA ORDEM E TRANQUILIDADE PÚBLICAS

56 – A alínea c) do artigo 204.º deve ser “cuidadosamente interpretada, em termos que o seu âmbito se restrinja ao de verdadeiro instituto processual, com função cautelar atinente ao próprio processo, e não de medida de segurança alheia ao processo em que é aplicada.”

57 – Nas reflexões efetuadas acerca do perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, acolheu-se, inter alia, o seguinte: a imposição de uma perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, que deve ser apreciada e valorizada casuisticamente, em atenção aos factos indiciados e à personalidade do arguido; pela sua servência, o teor dos Acórdãos da Relação de Évora de 26/06/2007 e de 15/12/2016e da Relação de Lisboa de 02-12/02/2019 e 02-07-2003; e excertos doutrinários, da autoria de Frederico Isasca e de Vítor Sequinho dos Santos.

58 – No que afeta ao alarme social, ele não figura entre os requisitos gerais de aplicação das medidas de coação, adjetivados no artigo 204.º, ou seja, não corresponde, de nenhuma forma, ao perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas.

59 – A natureza processual das exigências cautelares interdita que, sob a égide da alínea c) do artigo 204.º, seja afirmada a possibilidade de aplicação de uma qualquer medida de coação, sempre que nesse sentido apontar uma ideia de prevenção geral de intimidação ou de prevenção especial, com a outorga a tais expressões do conteúdo próprio da temática dos fins das penas.

60– No que concerne aos perigos de continuação da atividade criminosa e de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, foram seguidamente repristinados os termos em que a M.ma Juíza os enfocou, que aqui se acham reproduzidos.

61 – No que compete ao perigo de continuação da atividade criminosa, o arrazoamento invocado pelo Tribunal é absolutamente frágil e infundado; com efeito, urge atentar que, perante os factos indiciariamente atribuídos ao arguido, ele passa a ser, naturalmente, de um lado, um indivíduo mais controlado e fiscalizado, nas suas ações, pelos órgãos policiais e, de outro lado, uma pessoa naturalmente mais temerosa no complexo de condutas que coenvolvam alguma ilicitude.

62 – Ainda perante o argumentário aduzido no despacho, pode asseverar-se linearmente que semelhante perigo foi excogitado de forma algo genérica, vaga e abstrata. Isto é: refletiu-se um método nomotético (geral e abstrato), em detrimento de um procedimento idiográfico, orientado para o caso individual e concreto, conforme se impunha.

63 – Relembre-se, com préstimo, que os factos sobrevieram no condicionalismo de um episódio decorrente de uma incompatibilidade com um terceiro, com o qual a vítima foi confundia pelo arguido.

64–No seu itinerário dialético, ao afirmar, de forma imponderada e gratuita, que, havendo um sério risco de a ofendida BB poder correr risco caso o Arguido a pudesse voltar a encontrar, a M.ma Juíza trilha mesmo, digamos, o domínio cinematográfico, animada de alguma vertigem puramente fantasista. Então faz algum sentido, tirante o hemisfério ficcionista, que o arguido atentasse contra a integridade física ou a vida BB? Por que razão o faria? O arguido não tem nenhuma conflitualidade com ela, pois nem sequer a conhecia anteriormente, e os factos sobrechegaram, é incontroverso, no contorno de um incidente e engano lamentáveis – de sorte que se mostra completamente desarrazoada tal prognose feita pela M.ma Juíza.

65 – Renove-se que o arguido, posto que tenha apresentada a sua versão dos factos, não alijou responsabilidades pelo tocante ao disparo que desfechou na pessoa do ofendido. Ora, se o seu desígnio pudesse realmente cruzar-se com uma pretensa vindita sobre a BB (mulher da vítima), naturalmente que o arguido adotaria um procedimento bem diferenciado.

66 – Noutro conspecto, para respaldar semelhante perigo, no contorno do despacho exarado, referente à prisão preventiva, apelou-se a juízos acrítico e conclusivos, ou seja, recorreu-se a meras enunciações subjetivas.

67 – Significa isso que o suposto perigo de continuação de atividade criminosa está plenamente apartado, pois não se alcança nenhuma inteleção válida para o prognosticar.

68 – No que afeta ao perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, a M.ma Juíza não justificou fundadamente a respetiva incidência, limitando-se a afirmações completamente vagas, imprecisas e indeterminadas, conexas com a mediatização e com o alarme social provocado pelo ilícito mais grave que considerou indiciado.

69 – Tal posicionamento foi firmado nos termos anteditos por inexistência de argumentação minimamente substanciosa.

70 – Em jeito abreviado, impende extratar, neste quadrante, as subsequentes conclusões: o arguido mostra-se inserido familiar e socialmente; o alarme social e a mediatização não constituem fundamento de aplicação de uma medida de coação; o que aqui sobressai não é o reflexo comunitário negativo da permanência dos arguidos em liberdade, pela circunstância de estar indiciado da prática de um crime com gravidade; e a perturbação postulada deve caucionar-se num previsível comportamento futuro do arguido, no recorte da ordem pública, estribado nos elementos que constam dos autos que possibilitem estabelecer um juízo de prognose de que essa atuação futura, de facto, pode sobrevir.

71 – Não exsurge, assim, nenhum motivo ou referente indiciário para, em concreto, recear que o arguido possa vir a pôr em causa a ordem e a tranquilidade públicas, id est, que possa vir a perturbar a paz pública – não se considera, pois, verificado o indigitado perigo.

72 – A propósito dos perigos definidos no artigo 204.º, alínea c), a M.ma Juíza teceu ainda cogitações espúrias e ilegítimas, no passo em que invocou, para fundamentar a prisão preventiva, finalidades de prevenção geral de intimidação e de prevenção especial, na aceção atribuível às penas. Ora, tais considerações são totalmente inaplicáveis às medidas cautelares, dado que o Juiz não deve, em nenhuma circunstância, convolar uma medida meramente cautelar numa verdadeira sanção antecipada, pois tal consubstancia uma ingente vulneração do princípio da presunção de inocência do arguido.

73 – Desta sorte, mostra-se inadmissível a aplicação da medida de coação de prisão preventiva ao arguido. Por tal razão, deve aguardar em liberdade os ulteriores termos processuais.

74 – Na pressuposição de que persiste, embora numa inequívoca dimensão atenuada, algum dos perigos pretextados pelo M.ma Juíza, deve, então, o arguido ficar submetido, além do T.I.R., às medidas de coação de obrigação de apresentação periódica semanal, no posto policial da área da sua residência, e de proibição de contactos com a BB e respetiva família, porquanto se mostram claramente suficientes e ajustadas às exigências cautelares requisitadas pelo presente caso.

75 – Subsidiariamente, na hipótese, longínqua, de ainda assim se não entender, deve definitivamente ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação, sendo certo que o arguido dispõe de condições para cumprir rigidamente tal medida.

76 – As supraditas medidas representam-se nitidamente bastantes e adequadas às imposições cautelares requisitadas pelo presente caso.

77 – Registe-se ainda que o Tribunal, no âmbito da sua opção, desenvolveu um itinerário completamente inverso ao que lhe é exigido: na verdade, aplicou de imediato a prisão preventiva, sem nunca justificar, previamente (nem em momento algum), por que razão não deu preferência à obrigação de permanência na habitação – verifica-se, assim, um erro de raciocínio na órbita da decisão, com total postergação da regra da subsidiariedade prevenida no artigo 193.º, n.º 3. Trata-se, mutatis mutandis, de um erro similar àquele em que o julgador, perante uma pena de prisão superior a dois anos e inferior a cinco anos, aplica de imediato a prisão, sem justificar por que razão não optou pela suspensão da execução da pena.

78 – O Tribunal a quo, não tendo decidido nos preditos termos, aplicando a medida de coação de prisão preventiva, violou o estabelecido nos artigos 193.º, n.ºs 1-3, 198.º, 200.º, n.º 1, alínea d), 201.º, 202.º n.º 1, e 204.º, alíneas a), b) e c).

Nestes termos e nos demais de Direito, deve ser dado provimento ao presente Recurso. Por via dele, deve ser proferida decisão nos subsecutivos termos:

- que declare cessada a medida de coação de prisão preventiva referente ao arguido AA; e

- que determine que o arguido aguarde os ulteriores termos processuais, sujeito às medidas de coação de obrigação de apresentação periódica semanal, no posto policial da área da sua residência, e de proibição de contactos com a BB e respetiva família.

- Subsidiariamente, deve ordenar-se que o arguido aguarde os posteriores trâmites do processo, submetido à medida de coação de obrigação de permanência na habitação.

Dessa forma, será feita a costumada JUSTIÇA.

3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, em separado e com efeito suspensivo da decisão, mas este efeito foi alterado pelo relator em sede de exame preliminar para efeito meramente devolutivo.

4. Respondeu à motivação de recurso a Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo, pugnando por lhe ser negado provimento.

5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento.

6. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.

7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Verificação dos pressupostos de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva/enquadramento jurídico-penal da conduta do recorrente.

Adequação e proporcionalidade da medida de coacção aplicada.

2. O despacho recorrido, proferido aos 21/06/2024, apresenta o seguinte teor, na parte que releva (transcrição):

III – Factos indiciados

Resultam fortemente indiciados os seguintes factos:

1. Todos os factos elencados na promoção do Ministério Púbico, corrigindo-se no ponto 1. da apresentação o lapso de escrita da palavra ano, que pretendia ser a palavra “não”, no sentido de não ter sido apurada a data em que o Arguido adquiriu o ….

Todos os factos da apresentação de fls. 635-638 estão indiciados e foram dados a conhecer ao arguido, dando-se aqui por reproduzidos por remissão, nos termos dos artigos 141.º, n.º 4, alínea d) 164.º, n.º 6, alínea d) e 97.º, n.º 5, todos do Cód. Proc. Penal.

2. O Arguido foi assim constituído em 20.06.2024 (fls. 617).

3. Vivia em … até à prática dos factos, tendo estado fugido em …, a sul de ….

4. Trabalhou como barman, fazendo trabalhos na agricultura e alguns arranjos de carros, que lhe rendiam mensalmente quantia não inferior a € 2.000.

5. Tem 3 filhos menores de idade, com …

6. Tem 3 condenações por conduzir sem carta e uma condenação por roubo e burla simples, todas praticadas há mais de 5 anos.

7. Confessou os factos.

8. Estudou até ao 10.º ano, tendo frequentado o 11.º ano, mas sem o ter terminado por falta de meios financeiros.

9. É ….

Nada mais se tendo indiciado ou havendo a considerar, não se tendo apurado a existência de qualquer causa de isenção de ilicitude ou de extinção do procedimento criminal que seja de considerar, muito embora o Arguido tenta tentado enquadrar a sua defesa numa legítima defesa (cf. artigo 192.º, n.º 6 CPP).

IV – ELEMENTOS PROBATÓRIOS DISPONÍVEIS

Para a convicção do Tribunal quanto aos factos supra elencados, atentou-se às palavras do Arguido AA, em primeira linha, que confessou os factos, sabendo das consequências de tal confissão, explicando que estava muito bêbado no final da festa de … a que foi no dia 24.06.2023, tendo-se desentendido com um indivíduo que seguia num jipe no final da festa, já no parque de estacionamento, porque o jipe ia abalroando a sua filha do meio, CC, de … anos.

Na sequência desse desentendimento, o indivíduo que seguia no jipe mostrou-lhe uma caçadeira com intuito de o ameaçar e depois o carro arrancou, tendo a condutora da referida viatura seguido marcha em toda a velocidade para travar os desacatos.

Nessa altura surgiu DD, que o Arguido conhecia de vista, sabendo quem era o seu pai (…) que lhe disse que o podia levar a casa daquele senhor do jipe, por saber quem ele era, sinalizando que era possível “ajustar contas”. O Arguido anuiu à ideia, mas não estava capaz de conduzir o seu carro e por essa razão foi DD que levou o … em que circulavam até ao suposto local onde morada o homem do jipe que os tinha ameaçado.

Chegados ao local, DD deu-lhe uma arma para as mãos e ele subiu as escadas, deu um pontapé na porta e alguém a abriu por dentro, fazendo-lhe frente.

Nessa altura e porque estava escuro, continuou convencido que a pessoa que tinha à sua frente era o tal senhor do jipe, envolvendo-se em contenda física e tendo a arma na mão, que acabou por disparar acidentalmente no meio da confusão.

O Arguido diz que só percebeu que estava perante a pessoa errada quando a sua mulher EE chegou ao local, acendeu as luzes, sendo que nessa altura já todos os disparos tinham sido feitos.

Pensa que abandonou o local ao mesmo tempo que a sua companheira EE, não tendo chamado ajuda porque a vítima estava vivo.

Quanto à presença da mulher da vítima, BB, diz que viu uma pessoa à entrada de uma das divisões da casa e em fuga, mas não se lembra se lhe dirigiu a palavra ou não, sendo que a sua companheira EE é que terá interagido com a BB, que veio a saber mais tarde que estava grávida e era … da família do DD e da FF.

Esta versão do Arguido tem muitas incongruências inultrapassáveis, a primeira das quais, o facto de – a ser sua intenção apenas assustar o ocupante daquela casa, que pensava ser o senhor do jipe – cumpriria a sua função com os pontapés que deu na porta que torceram a aduela da mesma e danificaram a fechadura – sendo que, os danos da porta são compatíveis com um arrombamento e não com uma abertura por dentro, como avançado pelo Arguido.

Em segundo lugar e com mais importância, veja-se que se o Arguido e a vítima GG lutaram fisicamente depois de o Arguido ter entrado de arma em riste, se GG lhe fez um mata leão, colocando-se atrás do Arguido, este ao empunhar a arma em direção às costelas de GG, ter-lhe-ia acertado do lado esquerdo do corpo e a não do lado direito da grelha costal, como resulta de imagens de fls. 33.

Para além do mais, e segundo a versão do Arguido, os tiros foram todos disparados antes de o Arguido poder ter visão clara para a cara da vítima, só que os vestígios do cadáver mostram que GG levou 1 tiro no peito, um tiro na grelha costal e um tiro nas costas, com trajetória de cima para baixo, logo, o atirador (o Arguido) viu a cara da vítima antes de disparar e mesmo que estivesse escuro, sabia que estava a disparar para o peito da vítima, tendo-o ainda ferido de costas, à má fila, com clara intenção de matar.

Há ainda evidentes sinais de luta (espelhados nas imagens do local a fls. 40 e 41).

A inexistência de licença para o uso e porte de arma decorre da informação da PSP de fls. 622 e o CRC do Arguido de fls. 625,633 onde constam as condenações anteriores sofridas por este, mormente, 3 condenações por conduzir sem carta e uma condenação por roubo e burla simples, todas praticadas há mais de 5 anos.

Os restantes elementos dos autos, sejam os autos de notícia, as declarações da ofendida BB a fls. 78 e 392, a autópsia a fls. 199 e ss. e o visionamento de imagens a fls. 133 e ss., confirmam ainda todos os factos apresentado pelo Ministério Público, e a que o Tribunal atentou para efeitos de indiciação.

No mais e quanto às suas condições pessoais, o Tribunal acreditou naquilo que lhe foi ventilado pelo Arguido, por ausência de elementos que o contrariem.

V – ANÁLISE CRÍTICA DA FORÇA DOS INDÍCIOS

Como ficou evidente para este Tribunal, neste momento e com os elementos disponíveis, há indícios suficientes de os factos vertidos supra terem sido praticado pelo Arguido e os mesmos se qualificam juridicamente como crime, previsto e punido pelo artigo 132.º do Cód. Penal e 86.º do Regime Jurídico das Armas e Munições, mesmo que a arma não fosse sua, foi por si usada e transportada naquela madrugada de dia 25.06.2023.

Muito embora o Arguido tenha querido apresentar-se como alguém que ia ameaçar alguém a casa e depois apenas se defendeu da vítima mortal, não resultou evidente qualquer causa que exclua a ilicitude e/ou a culpa do Arguido, até porque, não está sedimentada qualquer convicção de legítima defesa nem qualquer estado de alteração de personalidade que pudesse ser compatível com qualquer causa que excluísse a ilicitude ou a culpa, já que mesmo que o Arguido estivesse intoxicado, tal situação foi provocada por si próprio, nem sempre se podendo culpar o álcool pelos episódios em causa.

Desta forma, está suficientemente indiciada a prática, pelo(a) Arguido(a), de:

- 1 (um) CRIME DE HOMICÍDIO QUALIFICADO E AGRAVADO, previsto e punido pelo artigo 132.º, n.º 2, alíneas e) [MOTIVO TORPE/ÁVIDO] e h) [POR USO DE MEIO ESPECIALMENTE PERIGOSO] conjugado com o artigo 86.º, n.ºs 3 e 4 do Regime Jurídico de Armas e Munições;

- 1 (um) CRIME DE DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.ºs 1, alíneas c) e d) do Regime Jurídico de Armas e Munições.

VI – VERIFICAÇÃO DE EXIGÊNCIAS CAUTELARES

Quanto à existência de perigos que estão na base das exigências cautelares que o caso convoca, o Tribunal concluiu que se verificam:

PERIGO DE FUGA (artigo 204.º, alínea a), do CPP) – elevado, considerando que o Arguido esteve fugido durante 1 ano inteiro, não se tendo apurado o seu paradeiro durante todos estes 365 dias que mediaram a prática dos factos e a data em que se apresentou na Polícia Judiciária.

Além do mais, o Arguido disse ter-se isolado para efeitos de sucesso da fuga, logo não sabia verdadeiramente o que se tinha passado com a vítima, que faleceu, nem que tipo de crime enfrentava, estando agora na posse de informação pesada (enfrenta a prática de um crime com pena de prisão até 25 anos), sendo que pode, a ficar em liberdade, voltar a fugir, não se antevendo na sua apresentação voluntária às autoridades um debelar do perigo de fuga, mas sim fruto do cansaço de andar fugido com a família e a casa “às costas”, não de podendo assegurar que o não fará novamente caso lhe fossem permitidas as condições.

PERIGO DE PERTURBAÇÃO DO INQUÉRITO (artigo 204.º, alínea b) do CPP) – considerável, já que o Arguido pode tentar contaminar e adulterar elementos de prova, como sejam os depoimento da ofendida, que terá de depor em julgamento ou ameaçar testemunhas, o que importa assegurar.

PERIGO DE CONTINUAÇÃO DA ATIVIDADE CRIMINOSA (artigo 204.º, alínea c), do CPP) – mediano, já que o Arguido demonstrou, com a prática destes factos, que ferve em pouca água e que por ter uma altercação com alguém num fim de festa, vai “ajustar contas” por si próprio e com recurso a uso de armas, logo, apresenta uma personalidade impulsiva, havendo um sério risco de a ofendida BB poder correr risco caso o Arguido a pudesse voltar a encontrar.

PERIGO DE PERTURBAÇÃO DA ORDEM E TRANQUILIDADE PÚBLICAS (artigo 204.º, alínea c), do CPP) – elevadíssimo, face ao caso em questão, que afronta todo o cidadão que pode ser alvo deste “erro” e ver irromper por sua casa um homem enraivecido que nem sequer cuidou de ver se estava a dirigir-se à casa e à pessoa certa, matando um jovem prestes a ser pai, que lhe fez frente para defender a mulher grávida.

E mesmo que o Arguido não resida em … e já tenha passado 1 ano dos factos, a família da vítima e os vizinhos não esquecem o que aconteceu, sabendo agora quem é e onde está o responsável pela morte de GG.

Tudo considerado, mostra-se necessária, adequada e proporcional às exigências cautelares deste caso concreto, determinar que o Arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito a medidas de coação mais gravosa que o TIR (termo de identidade e residência).

VII – DECISÃO DE MEDIDAS DE COAÇÃO APLICADAS

Por todo o exposto, determina-se que a Arguida AA aguarde os ulteriores termos do processo sujeito a:

1) TIR, já prestado (artigo 196.º CPP)

O termo de identidade e residência significa que o(a) Arguido(a) está obrigado(a) a comunicar ao processo qualquer alteração de morada e/ou deslocação para o estrangeiro superior a 5 dias, indicando morada e contactos telefónicos do local onde possa ser encontrado, para que o Tribunal saiba sempre onde o encontrar.

2) Prisão preventiva (artigo 202.º, alíneas a), b) e e) do CPP)

A Prisão preventiva, sendo a mais gravosa das medidas, exige que mais nenhuma medida seja adequada ao caso, que hajam fortes indícios de crime doloso punível com prisão superior a 5 anos; crime violento (com pena de prisão entre 3 e 5 anos) e/ou crime altamente organizado (com pena superior a 3 anos).

É reexaminada de 3 em 3 meses e durará, no máximo, 4 ou 8 meses, caso haja instrução (podendo ser de 6 e 10 meses em caso de crimes mais graves) e sempre que seja proferida decisão que conheça do objeto do processo (acusação ou pronúncia).

Pode ser suspensa por doença grave, gravidez ou puerpério.

Apreciemos.

Verificação dos pressupostos de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva/enquadramento jurídico-penal da conduta do recorrente

Como resulta da decisão revidenda, (III 1) considerou o tribunal recorrido como estando fortemente indiciada, o que se não vê censure o recorrente, para além da especificamente narrada, a seguinte factualidade:

1. Em data e ano determinada, o suspeito AA adquiriu a viatura da marca …, modelo …, cor …, de matrícula …, tendo iniciado o processo de atribuição de matrícula nacional em 07/06/2023 com a inspeção categoria B no IPO “…” em …, no ….

2. Nessa viatura AA e EE deslocaram-se para …, onde se encontravam, pelo menos, desde 21/06/2023.

3. No dia 24/06/2023 os suspeitos AA e EE deslocaram-se à festa que decorria na … em …, de onde saíram cerca das 03h30m, do dia 25/06/2023.

4. No dia 25/06/2023, pelas 04h00, por motivo concretamente ainda não apurado, os suspeitos AA e EE dirigiram-se à residência sita na Rua …, nº…, Bairro …, em …, fazendo-se transportar no veículo de marca …de matrícula … propriedade de AA, acompanhados por DD, julgando tratar-se da residência de individuo de identificação ainda não apurada.

5. Lá chegados, estacionaram o referido veículo em frente à residência, ficando DD no seu interior a aguardar.

6. Os suspeitos AA e EE abriram o portão de acesso ao logradouro da residência, que tinha a chave colocada na fechadura do lado de fora.

7. Os suspeitos, por forma ainda não concretamente apurada, arrombaram a porta de entrada da habitação, danificando a fechadura e a aduela da mesma, e acederam ao interior da residência, onde GG e a sua companheira BB, que estava gravida de 17 semanas, dormiam.

8. Com o barulho da porta a ser arrombada, GG levantou-se de imediato e dirigiu-se para a sala da residência composta também por hall e cozinha.

9. BB, com menos agilidade física, levou mais tempo a levantar-se da cama.

10. O suspeito AA empunhando a arma de fogo na direção de GG questionou-se por várias vezes “cadé o seu cara, cade o seu irmão”.

11. Ainda com a arma apontada a si e quando o suspeito AA apontou a arma na direção de BB, GG confrontou AA iniciando-se agressões mútuas entre ambos tendo, na sequência dessa luta, progredido para a zona da casa onde se encontrava a mesa e frigorifico.

12. Quando estavam os dois no chão, o suspeito AA efetuou dois disparos com a arma de fogo na direção de GG que o atingiram no seu corpo.

13. BB ao aperceber-se que GG tinha sido atingido pelos disparos, saiu da porta do quarto e, nesse instante, surgiu a suspeita EE, vinda da porta da rua, munida com um ferro metálico e avançou na direção de BB, e com movimento de cima para baixo atingiu BB na face esquerda, provocando-lhe uma escoriação.

14. A suspeita EE voltou a fazer o mesmo movimento uma segunda vez tendo BB conseguido proteger a face, colocando o seu braço direito à frente, vindo o ferro a embater-lhe no braço causando um hematoma.

15. Com o mesmo gesto tentou a agredir BB com o mesmo, não conseguindo por esta ter agarrado o ferro e ao mesmo tempo disse “estou grávida e não está aqui mais ninguém”.

16. Durante esses momentos, caído no chão e já ferido pelos dois disparos, GG tentava defender-se de AA e lutava no chão com o suspeito.

17. A suspeita EE dirigiu-se então ao suspeito AA e disse que não era aquele rapaz, era a sua pessoa errada.

18. Nesse momento, o suspeito AA levantou-se e efetuou outro disparo com a arma de fogo na direção de GG atingindo-o novamente no seu corpo.

19. Após, EE saiu da casa das vítimas seguida de AA e ambos entraram no veículo de marca … de matrícula … que se encontrava estacionado em frente ao portão.

20. Também GG e BB saíram da residência, no entanto e devido aos ferimentos GG acabou por cair, inanimado, no primeiro patamar das escadas.

21. DD que se encontrava no lugar do condutor saiu para o exterior da viatura e voltou a entrar na mesma na porta do passageiro traseira.

22. O suspeito AA entrou para o lugar do condutor e a suspeita EE para o lugar do passageiro da frente, colocando-se em fuga do local.

23. Após os factos, AA abandonou a viatura de matrícula … na Rua …, Bairro … em …, em frente ao prédio com o lote …, local da residência de DD e de seus pais, deixando uma chave escondida no compartimento da porta do condutor e com a janela traseira direita aberta, permitindo colocar um braço e fazer a abertura das portas.

24. Na sequência do confronto físico com AA e das agressões perpetradas por este, GG sofreu escoriações e hematomas na cabeça e face, com especial incidência no sobrolho esquerdo, com hematoma e ferida muito sangrante, hematoma na zona do hipocôndrio lado esquerdo e equimoses nos nós dos dedos das duas mãos.

25. Como consequência direta e necessária dos disparos da arma de fogo efetuada por AA, GG sofreu uma ferida perfuro-contundente na face lateral do terso inferior do hemitórax direito, com 0,8 cm de diâmetro, ferida perfuro-contundente na face lateral do terso inferior do hemitórax esquerdo, com 0,8 cm de diâmetro; ferida perfuro contundente na linha para vertebral esquerda com 0,8 cm de diâmetro, lesões que foram causa direta e necessária da morte de GG.

26. Os suspeitos AA e EE quiseram agir conforme o descrito, em comunhão de esforços e intentos, por motivo de vingança, querendo atingir as regiões corporais de GG com a intenção de lhe tirar a vida, o que fizeram, e sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

27. A suspeita EE previu e quis molestar BB no seu corpo e saúde, o que fez, provocando-lhe dores nas partes do corpo que atingiu, não desconhecendo que a mesma se encontrava grávida, e por esse motivo com a sua capacidade de defesa diminuída.

28. A suspeita EE agiu libre, voluntaria e conscientemente sabendo tal conduta lhe estava vedada por lei e tendo capacidade de determinação segundo as legais prescrições, ainda assim não se inibiu de a realizar.

29. O arguido quis agir conforme o descrito, em comunhão de esforços e intentos com EE, querendo atingir as regiões corporais de GG, que efetivamente atingiu, com a intenção de lhe tirar a vida, apenas por suspeitar tratar-se de individuo com o qual se havia incompatibilizado por motivo não apurado, e sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

30. O arguido não é titular de licença de uso e porte de arma ou qualquer outra que o habilite a ter em seu poder quer a arma de fogo, de características ainda não apuradas.

31. O arguido sabia que não era titular de licença de uso e porte de arma, não podendo ter na sua posse a aludida arma e as munições, sendo conhecedor das características e natureza da arma e munições que possuía e que não se havia coibido de guardar consigo, transportar e utilizar.

32. O arguido e a suspeita EE sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

E, tendo em atenção tais factos, entendeu o mesmo tribunal integrarem a prática, em concurso efectivo, de um crime de homicídio qualificado e agravado, p. e p. pelo artigo 132º, nº 2, alíneas e) e h), do Código Penal, conjugado com o estabelecido no artigo 86º, nºs 3 e 4, da Regime Jurídico das Armas e suas Munições e bem assim um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, nº 1, alíneas c) e d), do mesmo Regime.

Discorda o recorrente que dessa factualidade resulte a qualificação.

Cumpre se diga, antes de mais, que essa dissensão é, para efeitos da admissibilidade da aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, irrelevante, porquanto mesmo se o crime em causa fosse o de homicídio previsto no artigo 131º, do Código Penal (punível com pena de 8 a 16 anos de prisão), sempre seria possível ao abrigo do estabelecido no artigo 202º, nº 1, alíneas a) e b), do CPP e vero é que no que diz respeito aos prazos a que se refere o artigo 215º, deste Código, também diferença inexiste.

No entanto, para sossego das consciências, analisemos se tem o arguido a razão pelo seu lado.

Estabelece-se no artigo 131º, do Código Penal, que “quem matar outra pessoa é punido (…)”.

Por seu turno, dispõe o artigo 132º, nºs 1 e 2, alíneas e) e h), do mesmo:

“1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

(…)

e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;

(…)

h) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;”.

Como se salienta no Ac. do STJ de 31/01/2012, Proc. nº 894/09.4PBBRR.S1, consultável em www.dgsi.pt, “o crime de homicídio qualificado, p. e p. no art. 132º do CP, constitui uma forma agravada do crime de homicídio simples p. e p. pelo art. 131º do CP, que constitui o tipo de ilícito, agravamento esse que se produz não através da previsão de circunstâncias típicas fundadas em maior ilicitude do facto, cuja verificação determina a realização do tipo, mas antes em função de uma culpa agravada, de uma “especial censurabilidade ou perversidade” da conduta (cláusula geral enunciada no n.º 1), revelada pelas circunstâncias indicadas no n.º 2”.

Acrescentando-se ainda no mesmo aresto, que “estas circunstâncias constituem “exemplos-padrão”, ou seja, indícios da culpa agravada referida no nº 1, que constitui o elemento típico do homicídio qualificado (tipo de culpa). Ainda que essas circunstâncias envolvam eventualmente uma maior ilicitude do facto, não é o simples acréscimo de ilicitude que determinará a qualificação do crime. Só se as ditas circunstâncias revelarem uma maior censurabilidade ou perversidade da conduta se verificará a qualificação”, sendo que “como meros indícios, as circunstâncias do nº 2 têm sempre que ser submetidas à cláusula geral do n.º 1. Da interação entre os nºs 1 e 2 do art. 132º pode, pois, resultar a exclusão do efeito de indício do exemplo-padrão, e consequentemente a integração dos factos no crime de homicídio simples do art. 131º. Mas pode também, precisamente pelo seu caráter meramente indiciário, admitir-se a qualificação do homicídio quando se constatar a substancial analogia entre os factos e qualquer dos exemplos-padrão. Esta interação entre os dois números. do art. 132º, permitindo uma maior flexibilidade no tratamento dos casos concretos, e reflexamente na administração da justiça do caso, assegura a delimitação do tipo de homicídio qualificado em termos suficientemente rigorosos para que não seja lesado o princípio da legalidade”.

A censurabilidade especial respeita a situações em que as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores, enquanto a especial perversidade revela uma atitude profundamente rejeitável, constituindo um indício de motivos e sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade, reconduzindo-se a uma atitude má, atinente à personalidade do autor – assim, Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1995, págs. 63/64.

O tribunal recorrido entendeu estar perante motivo torpe/avidez.

Elucida-se no Ac. do STJ de 22/11/2023, Proc. nº 429/21.0SYLSB.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt, que se apoia no Acórdão do mesmo Tribunal de 03/11/2021: “torpe é o motivo que mais ofende a moralidade média ou o sentimento ético social. É o motivo abjeto, ignóbil, repugnante, que imprime ao crime um caráter de extrema vileza ou imoralidade” ou, de acordo com o Ac. do mesmo Tribunal de 29/11/2018, Proc. nº 1742/16.4JAPRT.P1.S1, que pode ser visto no mesmo sítio, “no sentido de desprezível e sórdido, nitidamente revelador de um profundo desprezo pelo valor da vida humana.”

Pois bem.

Fortemente indiciado está que o arguido efectuou três disparos com arma de fogo sobre o corpo de GG, que o atingiram na face lateral do terço inferior do hemitórax direito, face lateral do terço inferior do hemitórax esquerdo e linha paravertebral esquerda, provocando lesões que foram causa directa e necessária da morte da vítima.

E, o terceiro desses disparos foi efectuado contra GG estando este de costas, tombado no solo, depois de já ter sido atingido pelos dois anteriores.

Actuou o arguido com intenção de tirar a vida à vítima apenas por suspeitar tratar-se de indivíduo com o qual se havia incompatibilizado anteriormente, ou seja, por vingança, não resultando da factualidade indiciariamente comprovada que o arguido antes de disparar o terceiro tiro que a atingiu tenha compreendido que aquela não correspondia à pessoa que procurava (o que se deu como indiciariamente assente foi que a suspeita EE dirigiu-se então ao suspeito AA e disse que não era aquele rapaz, era a sua pessoa errada, mas não consta que este tenha ouvido a comunicação e dela ficado ciente).

De qualquer modo, o erro sobre o objecto da conduta criminosa (error in persona vel objecto) é irrelevante, visto que o que se queria atingir e o que efectivamente se atingiu, são tipicamente idênticos, sendo certo que a norma do artigo 131º, do Código Penal, proíbe se mate não um determinado indivíduo, mas qualquer indivíduo – cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, I, reimpressão, Livraria Almedina, 1971, pág. 397; Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, págs. 362/363; Johannes Wessels, Direito Penal, Parte Geral, Sergio Antonio Fabris Editor-Porto Alegre 1976, pág. 57.

A vingança é, entendemos, um motivo que se integra no conceito retro exposto de motivo torpe, não podendo ser acolhido o apelo que o arguido faz a uma suposta “subcultura” em que estará inserido, cujos valores e princípios desconhecemos, sendo certo que à data dos factos tinha … anos de idade, nasceu em Portugal, residia em Portugal - … e tem como habilitações literárias o 10º ano de escolaridade, pelo que estava perfeitamente ciente das normas e valores vigentes na comunidade nacional onde se insere, que não acolhe o princípio da vingança.

Está, pois, preenchido o exemplo-padrão em causa.

Mas, também é patente a existência de uma significativa desproporção entre o motivo que impeliu à acção o recorrente e a extrema gravidade dos factos praticados, o que integra uma situação radicalmente afastada das concepções éticas e morais da comunidade, reveladora de uma profunda insensibilidade moral.

Está, assim, preenchido o exemplo-padrão da alínea e) em causa e também verificada a especial censurabilidade e perversidade da actuação do arguido, exigidos para a qualificação do crime de homicídio, visto que o modo de cometimento do crime e a intensidade com que foi executado tornam-no mais grave por a sua conduta ser mais reprovável e também o motivo e sentimentos que o animaram são absolutamente rejeitados pela sociedade portuguesa. Isto é, a distância que separa este crime dos demais crimes de homicídio, no que concerne à censura da culpa, é significativamente maior.

Quanto à utilização de “meio particularmente perigoso” – qualificativa prevista na alínea h) – diz-nos Figueiredo Dias, Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense ao Código Penal,Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, Tomo I, pág. 37:pág. 37: “(…) deve sobretudo ponderar“(…) deve sobretudo ponderar--se que a generalidade dos meios usados para matar e se que a generalidade dos meios usados para matar e para ferir são perigosos e mesmo muito ppara ferir são perigosos e mesmo muito perigosos. Exigindo a lei que eles sejam erigosos. Exigindo a lei que eles sejam particularmente perigosos, há que concluir (…) ser desde logo necessário que o meio revele particularmente perigosos, há que concluir (…) ser desde logo necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar (não cabem uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar (não cabem seguramente no exemploseguramente no exemplo--padrão e na sua estrutpadrão e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas ou ura valorativa revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes)”.vulgares instrumentos contundentes)”.

Já para Simas Santos/Leal-Henriques, Código Penal Anotado, 4ª edição, III vol., pág. 74: “entende-se por meio particularmente perigoso todo aquele que, de forma superior à normal, tiver a potencialidade para, segundo a experiência comum, causar lesão corporal susceptível de pôr em risco, de forma significativa a integridade física ou a vida, como é o caso de algumas armas brancas (faca de ponta e mola, foice, machado, gadanha, etc.) ou de certas armas de arremesso (dardos, setas, etc.). O meio de que fala a lei deve ser entendido em sentido amplo, abrangendo não apenas os instrumentos utilizados como também os métodos ou processos de que fez uso na prática do crime”.

Ou, nas palavras do Ac. da Relação de Coimbra de 10/07/2018, Proc. nº 198/17.9PFCBR.C1, disponível em www.dgsi.pt, “tal meio (instrumento, método ou processo), para além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, tem de ser suscetível de criar perigo para outros bens jurídicos importantes; tem que ser um meio que revele uma perigosidade muito superior ao normal, marcadamente diverso e excepcional em relação aos meios mais comuns que, por terem aptidão para matar, são já de si perigosos ou muito perigosos, sendo que na natureza do meio utilizado se tem de revelar já a especial censurabilidade do agente (cfr., v. g., o acórdão do STJ, na CJ (STJ), ano VIII (2000), pág. 241).

Estão, assim, afastados da qualificação os meios, métodos ou instrumentos mais comuns de agressão que, embora perigosos ou mesmo muito perigosos (facas, pistolas, instrumentos contundentes) não cabem na estrutura valorativa, fortemente exigente, do exemplo-padrão”.

Tendo em conta os factos que indiciariamente (e fortemente) apurados se mostram (à data da prolacção do despacho recorrido, entenda-se), concretamente que o arguido utilizou, nas circunstâncias enunciadas, uma arma de fogo de características desconhecidas para provocar a morte da vítima, importa concluir, por ora, que essa utilização não tem autonomia configurativa para alicerçar um juízo agravado de culpa, pelo facto ou pela personalidade do agente, de acordo com o artigo 132º, nº 2, alínea h), do Código Penal, nem com fundamento na sua qualificação como meio particularmente perigoso, nem como crime de perigo comum–– cfr. Ac. da Relação de Lisboa de 08/11/2023, Proc. nº 1197/21.1S5LSB.L1cfr. Ac. da Relação de Lisboa de 08/11/2023, Proc. nº 1197/21.1S5LSB.L1--3, consultável no mencionado sítio.

Destarte, o crime de homicídio indiciariamente praticado, neste momento será apenas qualificado pela alínea e), do nº 2, do artigo 132º, do Código Penal.

Entendeu ainda o tribunal a quo que estava também indiciada a prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, nº 1, alíneas c) e d), do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23/02, o que merece a crítica do recorrente, que aduz não se mostrarem “minimamente indiciadas as características concretas da arma de fogo utilizada, circunstância essa que se representa essencial à subsunção na previsão da citada alínea c) do n.º 1 do artigo 86° do RJAM e que é requisito da incriminação autónoma do crime de detenção de arma proibida.”

Neste ponto, não tem razão.

Sabemos que arguido utilizou uma arma de fogo e não era titular de licença/autorização de uso e porte de arma e resulta do expediente junto aos autos em 24/07/2023 – fotografias no âmbito da recolha de vestígios efectuada pela Polícia Judiciária no local do crime - que foram aí apreendidas, para além do mais, munições de arma de fogo e três cápsulas deflagradas, sendo patente da análise macroscópica das mesmas que não estamos perante munições de arma obsoleta, (sendo, de acordo com o artigo 2º, nº 1, alínea u), do RJAM, “arma de fogo obsoleta” a arma de fogo excluída do âmbito de aplicação da lei por ser de fabrico anterior a 1 de janeiro de 1900, bem como aquelas que, sendo de fabrico posterior àquela data, utilizem munições obsoletas constantes da lista de calibres obsoletos publicada em portaria aprovada pelo membro do Governo responsável pela área da administração interna ou que obtenham essa classificação por peritagem individual da PSP), mas de arma indiciariamente integrada nas armas (e munições) das classes B, B1, C ou D, conforma a classificação do artigo 3º, nºs 3, 4, 5 e 6, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições.

Mas estaremos (indiciariamente, repisa-se) perante concurso efectivo entre os crimes de homicídio qualificado e o de detenção de arma proibida?

A resposta não pode deixar de ser afirmativa, como se passa a alumiar.

Ressalta do artigo 30º, do Código Penal, que o número de crimes se determina pelo número de tipos legais de crime realizados ou pelo número de vezes que o mesmo tipo legal é preenchido pela conduta do agente, não se podendo olvidar que os tipos legais de homicídio e de detenção de arma proibida protegem bens jurídicos distintos.

Ora, consolidada se mostra a orientação jurisprudencial nacional no sentido de que, não sendo a utilização da arma proibida elemento integrante de uma circunstância qualificativa do homicídio (quer dizer, se o uso de uma arma proibida não é enquadrável num dos exemplos-padrão do artigo 132º, do Código Penal), estaremos perante um concurso efectivo de crimes (vd. por todos, Acs. do STJ de 15/01/2015, Proc. nº 92/14.5YFLSB e 11/02/2016, Proc. nº 205/14.7PLLRS.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt), tese a que aderimos.

Por outro lado, ao contrário do que sustenta o recorrente, também inexiste obliteração do princípio da dupla valoração quando concorrem a circunstância qualificativa dos nºs 1 e 2, alínea e), do artigo 132º, do Código Penal e a modificativa agravante de caráter geral enunciada no artigo 86º, nº 3, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, porquanto, enquanto a primeira assenta numa culpa acrescida na prática do homicídio, que radica na especial perversidade ou censurabilidade com que ele foi em concreto cometido, já a segunda advém, exclusivamente, de razões de prevenção geral, que encontra o seu fundamento num maior grau de ilicitude e na necessidade de limitar o recurso às armas na prática de qualquer tipo de crime, pela sua aptidão para causar danos relevantes, em bens jurídicos penalmente tutelados” - assim, Ac. do STJ de 07/05/2015, Proc. nº 2368/12.7JAPRT.P1.S1 e Ac. da Relação do Porto de 14/01/2015, Proc. nº 2368/12.7JAPRT.P1, ambos em www.dgsi.pt - sendo certo que o uso de arma, para além de não ser elemento do crime de homicídio, também não conduz, no caso em apreço (em nosso entendimento, como ficou visto) ao preenchimento do tipo qualificado do artigo 132º.

Vejamos agora quanto aos requisitos gerais de aplicação da medida.

Conforme se extrai do artigo 204º, do CPP, medida de coacção alguma prevista no Código de Processo Penal é susceptível de aplicação (com excepção do termo de identidade e residência) se, em concreto, não se verificar, alternativamente, fuga ou perigo de fuga; perigo de perturbação do decurso do inquérito, designadamente para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

Vejamos, então, se estão preenchidos os requisitos gerais de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, por se verificarem em concreto os perigos de fuga, perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo – e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova -, continuação da actividade criminosa e perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas (que foram os detectados pelo tribunal recorrido).

Relativamente ao perigo de fuga – enunciado na alínea a), do artigo 204º - é um requisito de aplicação de medida de coacção que tem como escopo acautelar a presença do arguido no decurso do processo e a execução da decisão final.

Este perigo tem de ser concreto, como vimos, ou seja, não abstractamente presumido, mas concretamente justificado. Quer dizer, a mera possibilidade de futura condenação em pena de prisão, ainda que em dose elevada, só por si não permite concluir pela existência de um concreto perigo de fuga.

O tribunal recorrido encontrou este perigo nas circunstâncias de o recorrente ter estado fugido durante 1 ano inteiro, não se tendo apurado o seu paradeiro durante todos estes 365 dias que mediaram a prática dos factos e a data em que se apresentou na Polícia Judiciária e ter declarado em tribunal ter-se isolado para efeitos de sucesso da fuga, logo não sabia verdadeiramente o que se tinha passado com a vítima, que faleceu, nem que tipo de crime enfrentava, estando agora na posse de informação pesada (enfrenta a prática de um crime com pena de prisão até 25 anos), sendo que pode, a ficar em liberdade, voltar a fugir, não se antevendo na sua apresentação voluntária às autoridades um debelar do perigo de fuga, mas sim fruto do cansaço de andar fugido com a família e a casa “às costas”, não se podendo assegurar que o não fará novamente caso lhe fossem permitidas as condições.

E correcto se mostra este entendimento, pois, tendo em atenção estas circunstâncias, existe uma forte probabilidade de que se desloque novamente para o estrangeiro – esteve anteriormente recolhido em … - com o intuito de se eximir à acção da justiça, sendo certo que a sua apresentação voluntária em 20/06/2024, no DIC da PJ de …, ocorreu após prévio contacto telefónico estabelecido pelo seu advogado com a Polícia e depois de ter conhecimento que contra si estava pendente Mandado de Detenção.

No que tange ao perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução - alínea b), do artigo 204º - considerou o tribunal a quo estar presente, ponderando que o Arguido pode tentar contaminar e adulterar elementos de prova, como sejam os depoimento da ofendida, que terá de depor em julgamento ou ameaçar testemunhas, o que importa assegurar.

Como resulta do referido normativo, o perigo de perturbação a atender, entre outros, pois a enunciação é meramente exemplificativa, prende-se com a aquisição, conservação ou veracidade da prova e tanto pode ocorrer no decurso da fase de inquérito, como posteriormente a esta, como sejam na de instrução – a que se reportam os artigos 286º a 310º, do CPP - ou mesmo de julgamento, nestas primacialmente nas vertentes da sua conservação ou veracidade.

Com efeito, o que consta do aludido normativo é: “perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova”.

A menção a “instrução do processo” abrange, não só a fase facultativa de instrução, mas todo o decurso do processo até à audiência de julgamento, reportando-se à actividade probatória que se desenvolve e vai desenvolvendo sequencialmente ao longo do mesmo, à semelhança da expressão utilizada no título V do Código de Processo Civil, precisamente “Da Instrução do Processo” (Capítulo III do CPC de 1961).

Só com este entendimento se pode conceder sentido útil ao escopo de proteger a conservação ou veracidade da prova adquirida, pois não se vê que o legislador pretendesse conferir essa protecção durante o inquérito e a instrução – a prevista nos artigos 286º a 310º, do CPP – mas a reputasse desnecessária na fase de julgamento, sendo certo que, como é sabido, o princípio geral é de que “não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência”, nos termos do nº 1, do artigo 355º e que a leitura de declarações do assistente, das partes civis e de testemunhas recolhidas em autos em fase anterior do processo só é admissível nos termos do artigo 356º do mesmo diploma legal, abrindo desta forma a porta à susceptibilidade de desvirtuação destas por via da intimidação ou aliciamento (ou outra) de quem as prestou pelos arguidos e assim colocando em causa a verdade material que se pretende apurar.

Não resulta do despacho revidendo que tenha o recorrente por algum modo tentado perturbar ou desvirtuar a prova recolhida nos autos ainda na fase de inquérito, mormente a testemunhal, mas tendo em atenção a personalidade impulsiva, com baixa resistência à frustração e violenta do arguido, que se pode extrair dos factos indiciariamente assentes, existe a possibilidade real de o mesmo intentar contactar testemunhas em ordem à obtenção (ou alteração dos já prestados) de depoimentos não coincidentes com a verdade factual, tanto mais que em causa está uma eventual condenação pela prática dos crimes imputados a uma pena de dosimetria significativa, pelo que se configura este perigo.

No que tange ao perigo de continuação da actividade criminosa – a que alude a alínea c), do referido artigo 204º - considerou-o verificado o tribunal recorrido nos seguintes termos: já que o Arguido demonstrou, com a prática destes factos, que ferve em pouca água e que por ter uma altercação com alguém num fim de festa, vai “ajustar contas” por si próprio e com recurso a uso de armas, logo, apresenta uma personalidade impulsiva, havendo um sério risco de a ofendida BB poder correr risco caso o Arguido a pudesse voltar a encontrar.

Ora, este “perigo” não tem como finalidade precaver a prática de qualquer outro futuro crime, mas acautelar, apenas e só, a continuação da actividade delituosa que nos autos é indiciariamente imputada ao arguido – cfr. Ac. da Relação de Coimbra de 22/02/2023, Proc. nº 1142/22.7JACBR-B.C1, consultável em www.dgsi.pt.

E, porque assim é, não resulta o mesmo presente, porquanto em momento algum da sua acção criminosa interagiu o arguido com BB.

Verificado se considerou, ainda, no despacho recorrido, o perigo grave de perturbação da ordem e tranquilidade públicas - alínea c), do artigo 204º -, dizendo-se a propósito:

(…) face ao caso em questão, que afronta todo o cidadão que pode ser alvo deste “erro” e ver irromper por sua casa um homem enraivecido que nem sequer cuidou de ver se estava a dirigir-se à casa e à pessoa certa, matando um jovem prestes a ser pai, que lhe fez frente para defender a mulher grávida.

E mesmo que o Arguido não resida em … e já tenha passado 1 ano dos factos, a família da vítima e os vizinhos não esquecem o que aconteceu, sabendo agora quem é e onde está o responsável pela morte de GG.”

Como refere Vítor Sequinho dos Santos, Medidas de Coacção, Revista do CEJ, 1º semestre de 2008, nº 9 Especial, pág. 131, “mesmo anteriormente à Lei nº 48/2007, o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas devia ser entendido como reportando-se ao previsível comportamento do arguido e não ao crime por ele indiciariamente cometido e à reacção que o mesmo pudesse gerar na comunidade. A nova redacção da al. c) do art. 204º veio afastar qualquer possível dúvida sobre este aspecto, apontando claramente no sentido que já antes era correcto.” Ou seja, exige-se que haja perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas devido a um previsível comportamento futuro do arguido.

De onde, a não coincidência entre este perigo e o alarme social, ao contrário do que parece ter sido o entendimento do tribunal a quo.

Como cabalmente se alumia no referenciado Ac. da Relação de Coimbra de 22/02/2023, “o perigo de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas deve ser reportado a previsível comportamento no futuro imediato do arguido, resultante da sua postura ou actividade, e não ao crime por ele indiciariamente cometido e à reacção que pode gerar na comunidade (António Gama, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, obra colectiva, Tomo III, 2021, Almedina, pág. 390). Dito de outro modo, não é a gravidade do crime indiciado e o consequente alarme social gerado que aqui estão em causa, pois o que a lei exige é que exista perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas devido a um previsível comportamento futuro do arguido (cfr. Ac. da R. de Lisboa de 12 de Fevereiro de 2019, processo nº 165/18.5PGSXL-A.L1-5 e Vítor Sequinho dos Santos, Medidas de Coacção, Revista do CEJ, 1º semestre 2008, Número 9, Especial, Jornadas sobre a revisão do Código de Processo Penal, Estudos, pág. 131).”

Porém, da prognose que volte a desenvolver outros comportamentos criminosos como o destes autos, dada a sua personalidade espelhada nos factos como ficou exposto, aliada à natureza do crime indiciariamente praticado, resulta o perigo de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas, no entendimento explicitado.

Destarte, verificados estão, efectivamente, os perigos de fuga, perturbação do decurso do inquérito e perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, sendo certo que os perigos previstos nas alíneas do artigo 204º são de verificação alternativa e não cumulativa, sendo suficiente que esteja presente um deles para ser admissível a aplicação da medida de coacção.

Adequação e proporcionalidade da medida de coacção aplicada

Considera ainda o arguido que se mostram suficientes e adequadas para acautelar os perigos que o tribunal a quo considerou estarem verificados as medidas de coacção de obrigação de apresentação periódica semanal no posto policial da área da sua residência e proibição de contactos com a BB e respetiva família ou, quando muito, a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação.

A natureza excepcional e subsidiária da prisão preventiva encontra-se expressamente consagrada no nº 2, do artigo 28º, da CRP, estabelecendo-se no nº 1, do artigo 191º, do CPP, o princípio da legalidade das medidas de coacção, segundo o qual “a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei”.

Por seu lado, no artigo 193º, nº 1, do CPP, afirmam-se os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade dessas medidas, em função das exigências cautelares e da gravidade do crime e das sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas no caso concreto, enquanto o nº 2 do mesmo preceito reafirma o carácter subsidiário da prisão preventiva, que só pode ser aplicada “quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção”.

Ora, tendo em atenção os fortes indícios, a natureza do crime de homicídio, a pena susceptível de ser aplicada, bem como o circunstancialismo em que foi praticado e os perigos mencionados como presentes, a aplicação da medida de coacção de apresentações periódicas ou qualquer outra não detentiva ou mesmo detentiva em meio não institucional apresenta-se como desadequada e insuficiente por a estes não obstar, não satisfazendo as significativas exigências cautelares que in casu se fazem sentir.

Na verdade, não se mostram suficientes para afastar os perigos de fuga, perturbação do decurso do inquérito e perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, pois não evitam que, de forma inopinada e inesperada, o arguido se furte à acção da justiça, ausentando-se para local desconhecido; o contacto com testemunhas com vista à orientação em sentido que lhe seja favorável, em oposição à realidade, dos respectivos depoimentos ou a adoção de outros comportamentos criminosos como nos presentes autos em causa, não ocorrendo, por isso, violação alguma das normas constantes dos artigos 191º, nº 1, 193º, nºs 1, 2 e 3, 198º, 200º, nº 1, alínea d), 201º, 202º, nº 1 e 204º, alíneas a), b) e c), do CPP e artigos 18º, nº 2, e 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

Face ao exposto, tem de se negar provimento ao recurso.

III - DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso pelo arguido AA interposto e confirmar a decisão recorrida.

Condena-se o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC.

Comunique de imediato o teor deste acórdão à 1ª instância.

Évora, 8 de Outubro de 2024

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)

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(Artur Vargues)

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(J. F. Moreira das Neves

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(Anabela Simões Cardoso