CRIME DE LENOCÍNIO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
CONSTITUCIONALIDADE DA NORMA INCRIMINATÓRIA
Sumário

O bem jurídico protegido pelo crime de lenocínio, previsto no art.169º, nº1, do Código Penal, relaciona-se geneticamente com preocupações de defesa das pessoas que se prostituem em face, nomeadamente, das redes de tráfico de seres humanos e toda a criminalidade associada à atividade de prostituição. É de sublinhar, por outro lado, que a ausência de tutela criminal da exploração da prostituição (e não, importa salientar, a própria atividade de prostituição) deixaria desprotegidas todas aquelas vítimas que, a coberto de um consentimento meramente formal, são exploradas como meros produtores de proventos económicos para os respetivos agentes, com a inerente diminuição da liberdade e de sujeição a um poder de facto que, as mais das vezes, escapa a qualquer controlo.
Por tudo isso, não se julga inconstitucional a norma incriminatória constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

No Juízo Local Criminal de … (J…) do Tribunal Judicial da Comarca de … corre termos o processo comum singular n.º 756/20.4T9STC, no qual foi proferida sentença com o seguinte dispositivo (na parte que interessa à decisão):

“Pelo exposto, julgo procedente a acusação pública e, em consequência, decido:

a) Condenar a arguida AA pela prática, em coautoria material e em concurso real e efetivo, de dois crimes de lenocínio, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 14.º, n.º 1, 26.º e 169.º, n.º 1 do Código Penal na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, por cada um;

b) Condenar o arguido BB pela prática, em coautoria material e em concurso real e efetivo, de dois crimes de lenocínio, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 14.º, n.º 1, 26.º e 169.º, n.º 1 do Código Penal na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão, por cada um;

c) Em cúmulo jurídico das penas aplicadas em a), condenar a arguida AA na pena única de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, que, além das demais obrigações resultantes do artigo 54.º, n.º 3 do Código Penal, deve ser acompanhada de um regime de prova, a elaborar pela DGRSP, e subordinada ao dever de proceder ao pagamento, no prazo de suspensão, da quantia de € 4.000,00 (quatro mil euros) ao Estado, através de DUC comprovar nos autos, por meio documental, o pagamento da quantia de, pelo menos, € 500,00 a cada seis meses, até términus do período de suspensão supra fixado (cf. artigos 50.º, n.ºs 2 a 5, 51.º, n.º 1, al. c), 53.º n.ºs 1 e 2, e 54.º, todos do Código Penal);

d) Em cúmulo jurídico das penas aplicadas em b), condenar o arguido BB na pena única de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, que, além das demais obrigações resultantes do artigo 54.º, n.º 3 do Código Penal, será acompanhada de um regime de prova, a elaborar pela DGRSP, e subordinada ao dever de proceder ao pagamento da quantia de € 4.000,00 (quatro mil euros) ao Estado, através de DUC, no prazo de suspensão, devendo o arguido comprovar nos autos, por meio documental, o pagamento da quantia de, pelo menos, € 750,00 a cada seis meses, até términus do período de suspensão supra fixado (cf. artigos 50.º, n.ºs 2 a 5, 51.º, n.º 1, al. c), 53.º n.ºs 1 e 2, e 54.º, todos do Código Penal).”

Inconformados, os arguidos interpuseram recurso de tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“I- A arguida AA foi condenada pela prática, em coautoria material e em concurso real e efetivo, de dois crimes de lenocínio, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 14.º, n.º 1, 26.º e 169.º, n.º 1 do Código Penal na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, por cada um, sendo que em cúmulo jurídico foi condenada na pena única de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, acompanhada de um regime de prova, a elaborar pela DGRSP, e subordinada ao dever de proceder ao pagamento, no prazo de suspensão, da quantia de € 4.000,00 (quatro mil euros) ao Estado;

II- O arguido BB foi condenado pela prática em coautoria material e em concurso real e efetivo, de dois crimes de lenocínio, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 14.º, n.º 1, 26.º e 169.º, n.º 1 do Código Penal na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão, por cada um, sendo que em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, acompanhada de um regime de prova, a elaborar pela DGRSP, e subordinada ao dever de proceder ao pagamento da quantia de € 4.000,00 (quatro mil euros) ao Estado;

III- O art.º 169º, n.º 1, do C. Penal é materialmente inconstitucional por violação do art.º 18º, n.º 2, da CRP, pelo que não deveria a Mma Juiz “a quo” ter aplicado tal norma;

IV- As penas aplicadas aos arguidos, afiguram-se manifestamente excessivas, e sobretudo a obrigação a que se sujeitou os arguidos para beneficiarem da suspensão da execução da pena;

V-A douta decisão recorrida alheou-se de toda a factualidade dada como provada nos pontos 35 e 36, e que são factos que permitem concluir que a arguida AA não tem condições económicas para proceder ao pagamento de € 4.000,00, para beneficiar da suspensão da pena de execução da pena;

VI- Para além disso, a pena de 4 anos de prisão aplicada à arguida AA, tendo em conta toda a factualidade dos autos, mostra-se excessiva, chegando muito perto do limite máximo da pena aplicável;

VII- O mesmo se verifica quanto à condenação do arguido BB, da pena de 2 anos e 8 meses, a qual é igualmente excessiva, atentos os factos dados como provados e não provados, tendo aquela pena ultrapassado a metade da moldura penal aplicável, quando o arguido é primário;

VIII- Sendo igualmente excessivo pagamento de € 4.000,00, para beneficiar da suspensão da pena de execução da pena, quando o seu rendimento bruto é de € 3.500, 00 e ainda tem de suportar todas as despesas, incluindo o sustento da companheira e arguida AA;

IX- Todos aqueles factos não foram levados em consideração pela Mma. Juiz “a quo” para determinação da medida da pena, nos termos dos arts.º 70º e 71º do C. Penal, quando assim deveria ter acontecido, pelo que violou assim aquelas disposições legais;”

Pugnando, a final, pelo seguinte resultado:

“Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença recorrida.”

Em resposta ao recurso, o MP concluiu que:

“1. Acompanhando a jurisprudência do Tribunal Constitucional e dos Tribunais Superiores, e a essência da motivação dos instrumentos legislativos adoptados por outros Estados, entende-se que a criminalização da actividade de utilização, com fins profissionais ou lucrativos, da prostituição de outro não é desproporcional, na dimensão acolhida no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa e encontra apoio no princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1.º do mesmo diploma.

2. Face a esta orientação jurisprudencial, que tem sido maioritária, não apresentam os recorrentes razões novas que pudessem servir para inverter uma tal orientação e a segurança jurídica e igualdade de tratamento que através dela se pretende alcançar.

3. Assim, não é inconstitucional a norma incriminatória constante do artigo 169.º, n.º 1 do C.P., pois, além do mais, decidir se o risco implicado para a autonomia do agente que se prostitui deve ser considerado como um perigo a prevenir pela via da incriminação da exploração profissional ou com fins lucrativos da pessoa que se prostitui, é uma opção que cabe dentro do poder de definição da política criminal que pertence ao legislador.

4. De acordo com o disposto no artigo 40.º, n.º 1 do C.P., a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e, nos limites da prevenção geral de integração e de prevenção especial de socialização deverá ser encontrada a medida concreta da pena, sempre de acordo com o princípio da culpa, nos termos do seu n.º 2.

5. No caso subjudice, na graduação das penas, atendeu-se ao estabelecido no artigo 71.º do C.P., atentando-se, desde logo, ao moderado e idêntico grau de ilicitude, quanto a ambos os arguidos, pela perpetuação e extensão temporal da conduta praticada por ambos.

6. De salientar que a culpa dos arguidos se mostra acentuada, atento que ambos agiram com dolo direto, havendo de concluir que o fizeram na sua forma mais intensa, porque agiram de forma livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram punidas por lei penal.

7. No que respeita à conduta anterior aos factos, a circunstância de BB não ter quaisquer antecedentes foi efectivamente valorada em seu favor, sendo que se traduz apenas numa ligeira circunstância atenuativa, porquanto não praticar crimes é a obrigação de qualquer cidadão.

8. Tais exigências são aumentadas para a arguida AA, considerando que milita em seu desfavor a circunstância de ter antecedentes criminais também de semelhante natureza averbados ao seu certificado de registo criminal, uma vez que a mesma já foi condenada pela prática de um crime de lenocínio.

9. Além de que, são elevadas as necessidades e exigências de prevenção geral, face à repercussão social que os crimes de lenocínio atingem na sociedade, atenta a reprovação ética e social da obtenção de lucros à custa da prática de atos de prostituição de outrem, ferindo a dignidade da pessoa humana.

10. Face ao exposto, em especial as considerações atinentes à intensidade da culpa e, sobretudo, à necessidade das penas, afigura-se-nos que as penas concretamente aplicadas pelo tribunal recorrido satisfazem as sentidas necessidades de afirmação dos bens jurídicos violados, não se revelando a questionada quantificação de todo desproporcionada e mostrando-se a peticionada redução das mesmas insustentável.

11. Em obediência aos critérios plasmados no artigo 77.º, n.ºs 1 e 2 do C.P., e sopesando globalmente todo o exposto, na medida em que reflectem a personalidade dos arguidos, consideramos também ajustada a fixação da correspondente pena única.

12. A imposição de deveres a que alude o artigo 51.º do C.P. não é uma pena, nem se rege pelos critérios de determinação desta. Tais deveres são, quando muito, coadjuvantes da realização da finalidade da punição, directamente visada com a própria suspensão da execução da pena de prisão.

13. O que se pretende directamente, com a fixação de tais deveres, é a reparação do mal do crime, fazendo sentir ao condenado a responsabilidade pelo mal cometido e ao mesmo tempo reforçar o sentimento de paz ou conciliação comunitária.

14. No caso em presente, tais deveres impostos não representam, para os arguidos condenados, obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de exigir [cfr. n.º 2doartigo 51.º do C.P.], uma vez que a possibilidade de realização de uma tal prestação pecuniária tem em conta as possibilidades económicas e financeiras dos condenados e foi fixada na justa medida de tais possibilidades e em função desses mesmos meios, mostrando-se, em concreto, proporcionada e razoável.

15. Pelo que, decidindo como decidiu, o Tribunal a quo subsumiu correctamente os factos ao direito e não violou qualquer preceito legal.”

O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de que o recurso interposto pelos arguidos não deve obter provimento.

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (1), sem resposta.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“II – Fundamentação:

1. De facto:

1.1. Dos factos provados:

1. Desde data não concretamente apurada, mas, pelo menos, até ao dia 10.10.2021, os arguidos AA e BB tomaram de arrendamento as frações 43, 43-A e 45, sitas na Rua …, em ….

2. Os arguidos AA e BB mantinham pelo menos, até ao dia 11.10.2021, uma relação de namoro entre si e residiam na habitação sita no n.º … da mesma Rua …, em …, constituída por dois pisos.

3. Na mesma habitação, residiam, também, outras mulheres, em número e identidade variável, de quatro a seis pessoas.

4. Desde o ano de 2013 e até ao dia 11.10.2021, os arguidos AA e BB exploraram o estabelecimento comercial denominado …, sito na Rua … n.º …, em ….

5. Não obstante, era a arguida AA, empresária em nome individual desde o ano de 2016 quem, formalmente, consta como exploradora do estabelecimento …, onde os clientes se deslocavam para ali usufruírem de serviços de prostituição praticados pelas mulheres que os arguidos recrutavam para o efeito.

6. Tais mulheres iam variando ao longo do tempo e eram provenientes de países como a … e a …, entre outros, e eram angariadas, pelos arguidos, para manterem relações sexuais com clientes do estabelecimento … mediante o pagamento de uma quantia monetária.

7. Estas mulheres tomavam conhecimento da atividade desenvolvida pelos arguidos, além do mais, através de anúncios de angariação que a arguida AA colocava nos classificados do jornal ….

8. Em regra, o referido estabelecimento, encontrava-se em funcionamento no horário compreendido entre as 17h e as 04h do dia seguinte.

9. Tratava-se de um estabelecimento de acesso livre.

10. Dentro do estabelecimento, os clientes podiam, como na maioria dos bares, tomar as suas bebidas, conviver e ouvir música, sendo a principal atividade o alterne e a prostituição.

11. Durante os dias de funcionamento do estabelecimento …, diversos homens contactavam os arguidos AA ou BB perguntando se tinham as habituais mulheres e/ou se tinham mulheres novas, ou se tinham “muitas meninas aí”.

12. Alguns dos clientes telefonavam ou dirigiam-se aos arguidos AA e BB e pediam-lhe, expressamente, para que lhe “arranje uma para dar uma foda…uma qualquer”.

13. No estabelecimento …, os clientes podiam, ademais, pedir a companhia de mulheres que ali trabalham – sob as ordens dos arguidos –, desde que para isso pagassem as bebidas que estas consumiam.

14. Tais bebidas tinham o custo de € 20, sendo que este valor era repartido, em partes iguais, entre a mulher que promovia a venda da bebida e os arguidos.

15. Aos clientes era ainda proporcionada a possibilidade de terem relações sexuais com essas mesmas mulheres, desde que para isso pagassem quantias que se fixavam, pelo menos, entre € 50,00 a € 60,00.

16. Do preço pago pelos clientes como contrapartida pelos atos de natureza sexual, os arguidos recebiam, pelo menos, a quantia de € 20.

17. Estes pagamentos eram recebidos pela arguida AA, que, em regra, geria toda a contabilidade.

18. Os atos sexuais praticados entre os clientes do estabelecimento … e as mulheres que os arguidos disponibilizavam para esse efeito ocorriam no 1.º andar da habitação sita no n.º … da Rua …, em ….

19. O 1.º andar da habitação sita no n.º … da Rua …, em …, era composto por cinco quartos, uma sala, uma cozinha, um hall e uma casa de banho.

20. Assim, perante as solicitações dos clientes, as mulheres – com conhecimento, incentivo e autorização dos arguidos AA e BB – deslocavam-se do estabelecimento … [sito no n.º …], na companhia dos clientes, para os quartos existentes no 1.º andar do n.º … da mesma rua, onde mantinham relações sexuais de natureza diversa, designadamente, de cópula anal e vaginal, a troco dos pagamentos já descritos.

21. Estes quartos eram, para o efeito, previamente disponibilizados a cada uma das mulheres, pelos arguidos.

22. O acesso dos clientes e das mulheres aos quartos existentes no 1.º andar da habitação sita no n.º … era feito pelo exterior, pela via pública.

23. Mais concretamente, no dia 10.10.2021, pelas 00h00m, dentro de um dos quartos existentes no 1.º andar da habitação sita no n.º …, encontravam-se, em pleno ato sexual, CC [de nacionalidade …] e DD [de nacionalidade …], pelo qual este último pagou.

24. Nas mesmas circunstancias, dentro de um outro quarto existente na mesma habitação, encontravam-se EE [de nacionalidade …] e FF, que já havia saldado o valor de € 100 para pagamento do ato sexual.

25. Nas mesmas circunstâncias, no R/C da habitação, encontrava-se a arguida AA.

26. No dia 10.10.2021, pelas 0h00m, encontravam-se no referido estabelecimento …, no espaço de bar no rés-do-chão, como clientes, GG, HH, II, JJ e KK, bem como LL, de nacionalidade brasileira.

27. No interior do balcão de atendimento, a atender os clientes, encontrava-se o arguido BB.

28. Este tipo de atividade era realizado com a coordenação dos arguidos e acontecia quando o estabelecimento … estava em funcionamento.

29. As mulheres que ali trabalhavam faziam-no por sua iniciativa, conhecendo e querendo exercer o tipo de atividades que ali se desenvolviam.

30. Por vezes, por conhecerem as atividades que se desenvolviam no estabelecimento … ou por recomendação de outras pessoas que já ali tenham trabalhado, as mulheres telefonavam aos arguidos e perguntavam-lhes se tinham alguma vaga para que ali se pudessem prostituir.

31. Havendo vaga disponível, e depois de com os arguidos acordarem as condições, as mulheres trabalhavam no estabelecimento … por períodos não concretamente apurados, durante o qual ali permaneciam e em que se dedicavam, em exclusivo, à prostituição.

32. Toda esta atividade era fomentada e facilitada pelos arguidos que, com intuito lucrativo, disponibilizavam o espaço e criavam as necessárias condições para tal, mantendo aberto o bar onde arguidos e mulheres angariavam os clientes.

33. Os arguidos AA e BB pretendiam e sabiam, agindo em comunhão de esforços e intentos, porque essa era a sua intenção enquanto verdadeiro objetivo do “negócio” gerador dos lucros auferidos, que as mulheres que contratavam para o estabelecimento mantinham relações de natureza sexual com os clientes mediante o pagamento da quantia monetária previamente acordada.

34. Os arguidos AA e BB atuaram em comunhão de esforços e intentos, de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, com a qual tinham capacidade para se determinar.

35. A arguida AA encontra-se desempregada, não auferindo subsídio a esse título, nem prestações sociais.

36. Vive em união de facto com o arguido BB em casa arrendada, suportando a renda mensal de € 400,00.

37. Tem habilitações literárias correspondentes ao 12.º ano de escolaridade.

38. O arguido BB trabalha com supervisor industrial, auferindo um rendimento mensal de cerca de € 3.500,00.

39. Tem o 12.º ano de escolaridade.

40. A arguida AA tem averbado no seu certificado de registo criminal os seguintes antecedentes criminais:

a) Por sentença proferida em 05-03-2018 e transitada em julgado em 13-04-2013, foi condenada pela prática de um crime de lenocínio, p. e p. pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal na pena de 2 anos e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

41. O arguido BB não tem condenações averbadas no seu certificado de registo criminal.

*

1.2. Dos factos não provados:

Não se provaram quaisquer outros factos, designadamente:

(…)

*

1.3. Da valoração e análise crítica da prova:

(…)

*

2. De Direito:

2.1. Enquadramento jurídico-penal dos factos:

2.1.1. Do crime de lenocínio:

Os arguidos vêm acusados, em coautoria material, da prática de dois crimes de lenocínio, p. e p. pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal.

Vejamos.

Dispõe o artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal que quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos.

(…)

Este crime tutela a liberdade sexual individual de pessoa diferente do agente e a dignidade humana da pessoa que exerce a prostituição.

(…)

Importa que nos detenhamos sobre a constitucionalidade da incriminação, por ter sido expressamente invocada pela Defesa dos arguidos.

Na verdade, quer a doutrina quer o Tribunal Constitucional têm debatido a constitucionalidade da norma ínsita no artigo 169.º do Código Penal, de que ora cuidamos.

(…)

A defesa, ancorada da jurisprudência e doutrina que acolhem a desconformidade constitucional, argui que, nos casos em que, conforme descrito na acusação pública, as mulheres se dedicam voluntariamente à prostituição, o bem jurídico tutelado pela incriminação, na verdade, não carece dessa tutela, pois que não é postergada a liberdade sexual da mesma.

Compreende-se o argumento, todavia, ressalvado o devido respeito, não pode acolher, porque desconsidera a ratio da incriminação, designadamente, o motivo pelo qual o lenocínio é criminalmente punido e a prostituição, em si mesma, não, fazendo-se tábua rasa ao que é potenciado pela liberalização do lenocínio, nomeadamente, à miríade de crimes que aquele potencia e facilita.

(…)

Pelo exposto, deverão os arguidos AA e BB ser condenados pela prática, em coautoria material e em concurso real e efetivo, de dois crimes de lenocínio, p. e p. pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal.

*

2.2. Da determinação da medida concreta da pena:

Feito pela forma descrita o enquadramento jurídico da conduta dos arguidos, importa, agora, determinar a medida e natureza das penas a aplicar in casu.

Como se enunciou, o crime de lenocínio, p. e p. pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, é punido com pena de seis meses até cinco anos de prisão.

(…)

Reportando-nos ao reforço da consciência jurídica comunitária e ao sentimento de segurança face à violação da norma, in casu, as necessidades e exigências de prevenção geral são elevadas face à repercussão social que os crimes de lenocínio atingem na sociedade, atenta a reprovação ética e social da obtenção de lucros à custa da prática de atos de prostituição de outrem, ferindo a dignidade da pessoa humana.

No que diz respeito à ilicitude do facto, consideramo-la de grau moderado, quanto a ambos os arguidos, pela perpetuação e extensão temporal da conduta praticada por ambos, sublinhando-se que, como respinga da matéria de facto, pese embora a arguida AA fosse a legal representante do estabelecimento comercial em apreço, os dois – que mantinham (e mantêm) uma relação amorosa – atuavam de forma concertada e articulada entre si, sem que um mantivesse uma ascendência sobre o outro que, por sua vez, tivesse um papel de coadjuvação, daí que o grau de ilicitude seja idêntico.

Apurado nos termos expendidos que os arguidos agiram com dolo direto, havemos de concluir que o fizeram na sua forma mais intensa, porque agiram de forma livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram punidas por lei penal.

No que diz respeito às necessidades de prevenção especial positiva, como respinga da matéria de facto assente, milita a favor dos arguidos o facto do mesmo se encontrar familiar, profissional – no caso, apenas, de BB, já que AA se encontra em situação de desemprego – e socialmente integrados.

Ademais, depõe a favor do arguido BB a circunstância de não ter quaisquer antecedentes criminais averbados no seu registo criminal, fazendo crer que – além do contacto com o sistema de justiça que representa este processo – sempre pautou a sua vida em conformidade com o direito penal.

Conquanto, milita contra a arguida AA a natureza dos seus antecedentes criminais, uma vez que a mesma já foi condenada pela prática de um crime de lenocínio.

Tudo visto e ponderado julga-se adequado aplicar ao arguido BB a pena de 1 ano e 8 meses pela prática de cada um dos crimes de lenocínio, p. e p. pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal pelo qual será condenado.

Por sua vez, julga-se adequado aplicar à arguida AA a pena de 2 anos e 6 meses pela prática de um crime de lenocínio, p. e p. pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal.

O que se decidirá.

*

2.2.1. Do cúmulo jurídico:

Determinadas as penas concretas que cabem a cada um dos crimes praticados pelos arguidos, importa proceder à determinação da pena única do concurso de acordo com o artigo 77.º do Código Penal.

Tal pena deverá ser determinada dentro de uma moldura calculada nos termos do artigo 77.º, n.º 2, do mesmo código, cujo seu máximo corresponderá à soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, que quanto à pena de multa não poderá ultrapassar os 900 dias e quanto à pena de prisão não poderá ultrapassar 25 anos, e o mínimo fixar-se-á na mais alta das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

No caso sub judice, para o arguido BB essa moldura abstrata de concurso das penas de prisão fixar-se-á no seu mínimo em 1 ano e 8 meses e o máximo em 3 anos e 4 meses de prisão; já para a arguida AA a moldura abstrata de concurso das penas de prisão fixar-se-á no seu mínimo em 2 anos e 6 meses e no seu máximo em 5 anos.

(…)

De acordo com os apontados critérios, e tendo em conta a gravidade dos ilícitos perpetrados pelos arguidos e a sua personalidade, respetivamente, afigura-se-nos adequado fixar a pena única de concurso das penas de prisão aplicadas ao arguido BB em 2 anos e 8 meses e, bem assim, fixar a pena única de concurso das penas de prisão aplicadas à arguida AA em 4 anos.

Face ao exposto, pela prática, como coautores materiais e em concurso efetivo, de dois crimes de lenocínio, p. e p. pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, deve o arguido BB ser condenado na pena única de 2 anos e 8 meses de prisão e deve a arguida AA ser condenada na pena única de 4 anos de prisão.

Assim se decidirá.

*

2.2.2. Da substituição da pena única concretamente aplicada:

Na sequência da aplicação de uma pena única curta de prisão, cumpre apreciar, in casu, a possibilidade da sua substituição por uma pena não detentiva da liberdade.

Ora, no caso concreto, foi aplicada ao arguido BB a pena de 2 anos e 8 meses de prisão e à arguida AA a pena de 4 anos de prisão.

A pena de prisão pode, no geral, ser cumprida em regime de permanência na habitação (cf. artigo 43.º do CP) ou ser substituída por pena de multa (artigo 45.º do CP), proibição do exercício de profissão, função ou atividade (artigo 46.º do CP), de prestação de trabalho a favor da comunidade (artigos 58.º e 59.º do CP) ou, ainda, suspensa na sua execução (artigo 50.º e seguintes do CP).

Confrontados os respetivos regimes, afigura-se que o Tribunal tem o dever de ponderar a possibilidade de substituição da pena de prisão e, verificados os pressupostos ali vertidos, deve fazê-lo. Ou seja, dos regimes das penas de substituição deflui um verdadeiro poder-dever, do Tribunal, de ponderar a substituição da pena e, sendo caso disso, optar por uma pena de substituição.

Na decisão de substituição da pena de prisão não são considerações de culpa que relevam, mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto em análise, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas.

No caso sub iudice, tendo presente os concretos factos em apreço, as normas violadas e as finalidades da punição, consideramos que apenas a suspensão da pena de prisão deverá ser de equacionar, por se afigurar compaginável os fins da pena reclamados, sendo que as demais formas de cumprimento não os acautelam suficientemente ou não se harmonizam, especificamente, com aqueles.

Com efeito, dispõe o artigo 50.º do Código Penal que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Assim, alicerçando-nos apenas nas motivações apontadas no sobredito ínsito normativo e desconsiderando a culpa do agente na prática do facto, diremos que essencialmente atendendo ao facto de os arguidos se mostrarem social e familiarmente inseridos, sendo que o arguido BB se encontra ainda profissionalmente inserido, neste momento, ainda é possível fazer-se um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento daqueles, no sentido de que a simples ameaça da pena de prisão é adequada e suficiente para permitir a reintegração de cada um dos arguidos na sociedade e a proteção dos bens jurídicos tutelados pela norma incriminadora.

O artigo 50.º, n.º 5, do Código Penal prescreve que o período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.

Ademais, a suspensão da execução da pena de prisão pode ser simples, com imposição de deveres (artigo 51.º do Código Penal) ou regras de conduta (artigo 52.º do Código Penal), ou ambos cumulativamente (artigo 50.º, n.º 3, do Código Penal), ou, ainda, com regime de prova (artigos 53.º e 54.º do Código Penal, também cumulável com imposição de deveres e regras de conduta – cf. artigo 54.º, n.º 3, do Código Penal), se o tribunal o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição (cf. artigo 50.º, n.º 2, do Código Penal) e desde que os deveres ou regras impostas não representem para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de exigir (artigos 51.º, n.º 2, e 52.º, n.º 4, do Código Penal).

O artigo 51.º, n.º 1, do Código Penal estabelece que A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente: a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea; b) Dar ao lesado satisfação moral adequada; c) Entregar a instituições, públicas ou privadas, de solidariedade social ou ao Estado, uma contribuição monetária ou prestação de valor equivalente.

Quanto ao regime de prova, o artigo 53.º, n.º 1, do Código Penal, dispõe que o tribunal pode determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade, que, nos termos do n.º 2, assentará num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social.

Vejamos.

Sufrago o entendimento de que as penas de multa ou de prisão não garantem, por si só, a eficácia em ordem à prevenção da reincidência deste tipo de crimes, uma vez que não induzem competências pessoais e sociais que habilitem os infratores a adotar um comportamento juridicamente responsável e integrado.

Visando o reforço pedagógico da suspensão da pena, e para que os arguidos tomem uma maior consciência da gravidade do seu comportamento, imporei que cada um proceda ao pagamento € 4.000,00 (quatro mil euros) ao pagamento ao Estado, através de DUC, no prazo de suspensão, (cf. artigo 51.º, n.º 1, al. c), do Código Penal), devendo o arguido BB comprovar nos autos, por meio documental, o pagamento da quantia de, pelo menos, € 750,00 a cada seis meses, até términus do período de suspensão infra fixado e devendo a arguida AA comprovar nos autos, por meio documental, o pagamento da quantia de, pelo menos, € 500,00 a cada seis meses, té términus do período de suspensão infra fixado.

Com tal imposição, procuramos, de igual modo, confrontar os arguidos com os seus atos, e permitir-lhes responsabilizar-se, quer interiormente, quer socialmente, por eles.

Entendemos que é um dever cujo cumprimento por parte dos arguidos não é desrazoável, mostrando-se perfeitamente adequado e proporcional à conduta daqueles e às exigências do caso ora em análise (artigo 51.º, n.º 2 do a contrário ex vi artigo 52.º, n.º 3 ambos do Código Penal). Atente-se que o Tribunal considerou, na fixação da referida quantia, os rendimentos e encargos do agregado familiar dos arguidos, que aufere um rendimento mensal de cerca de 3.500 euros e tem encargos fixos no valor de € 400,00 com a habitação, além das despesas do normal quotidiano.

De todo o modo, acrescentaremos a sujeição da suspensão da execução da pena de prisão em apreço a regime de prova, como forma de os arguidos, nesse período, terem permanentes contactos com o sistema de justiça, materializados no plano de adaptação social a elaborar pela DGRSP, afastando do cometimento de novos crimes.

Pelo exposto, deverá o arguido BB ser condenado na pena única de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, e deverá a arguida AA ser condenada na pena única de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, que, além das demais obrigações resultantes do artigo 54.º, n.º 3 do Código Penal, serão acompanhadas de um regime de prova, a elaborar pela DGRSP, e subordinadas ao dever de cada um dos arguidos proceder ao pagamento de € 4.000,00 (quatro mil euros) ao Estado, através de DUC, no prazo de suspensão, devendo o arguido BB comprovar nos autos, por meio documental, o pagamento da quantia de, pelo menos, € 750,00 a cada seis meses, até términus do período de suspensão supra fixado, e devendo a arguida AA comprovar nos autos, por meio documental, o pagamento da quantia de, pelo menos, € 500,00 a cada seis meses, até términus do período de suspensão supra fixado(cf. artigos 50.º, n.ºs 2 a 5, 51.º, n.º 1, al. c), 53.º n.ºs 1 e 2, e 54.º, todos do Código Penal).”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

As questões a decidir no presente recurso são as seguintes:

1.ª questão - A inconstitucionalidade material do art.º 169.º do C. Penal;

2.ª questão - medida da pena.

*

B. Decidindo.

1.ª questão - A inconstitucionalidade material do art.º 169.º do C. Penal.

A questão da inconstitucionalidade deste tipo legal de crime tem tido uma prolongada e rica história de argumentos no Tribunal Constitucional (TC), afigurando-se-nos como tarefa essencialmente repetitiva e inútil a reprodução de todas as razões apreciadas ao longo do tempo quanto à questão em causa.

Assim, remetemos fundamentalmente para o texto do Acórdão do Plenário do TC n.º 72/2021, de 27.01, onde se escalpelizam minuciosamente os argumentários que, historicamente, vêm sendo alinhados a favor da conformidade constitucional do aludido tipo legal de crime e contra tal conformidade.

Avançamos já que, em nossa opinião, a opinião que fez vencimento no mencionado do Plenário do TC tem argumentos que, sem prejuízo da valia da opinião contrária, se nos afiguram especialmente consistentes e válidos.

Assim, e fundamentalmente:

Acórdão TC 144/2004: “Na realidade, ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma expressão da livre disponibilidade da sexualidade individual, o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder exprimir já uma interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (colocando‑o em perigo), na medida em que corresponda à utilização de uma dimensão especificamente íntima do outro não para os fins dele próprio, mas para fins de terceiros.”

Acórdão 178/2018: “Contudo, como tem sido reafirmado pela jurisprudência dominante no Tribunal Constitucional, esta norma visa combater um fenómeno invisível na sociedade e que se traduz na exploração das pessoas prostituídas, que prestam um consentimento meramente formal à atividade da prostituição, mas que não vivem em estruturas económico-sociais que lhes permitam tomar decisões em liberdade, por pobreza, desemprego e percursos de vida marcados pela violência e pelo abandono desde uma idade muito jovem. Por outro lado, o fenómeno da prostituição, nos últimos trinta anos, mudou muito, verificando-se uma estrita ligação entre a prostituição e o tráfico de pessoas, o qual atinge dimensões crescentes, inimagináveis há algumas décadas. Verificou-se também que o sistema não tem instrumentos para distinguir, na prática, a ténue linha que separa o consentimento da pessoa para a prática de atos de prostituição das situações de tráfico e prostituição forçada. As leis que criminalizam o uso do serviço sem o consentimento da vítima enfrentam dificuldades sérias na sua implementação e o sistema não consegue aplicá-las efetivamente (…). Neste contexto de política criminal, o desaparecimento do requisito da «exploração de um estado de necessidade ou de abandono» situa-se dentro da margem de liberdade de conformação do legislador democrático e visa, não a tutela de qualquer moral, mas a proteção de direitos fundamentais das pessoas à autonomia, à integridade pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade e à dignidade (artigos 1.º, 25.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1, da CRP).

Acórdão 72/2021: “Como é sabido, outras decisões do Tribunal Constitucional, em expressiva maioria, têm adotado uma orientação no sentido da não inconstitucionalidade da norma sub judice. Atravessa este entendimento uma ideia – a sua ideia fulcral – de que “[…] a ofensividade que legitima a intervenção penal assenta numa perspetiva fundada de que as situações de prostituição, relativamente às quais existe promoção e aproveitamento económico por terceiros, comportam um risco elevado e não aceitável de exploração de uma situação de carência e desproteção social, interferindo com – colocando em perigo – a autonomia e liberdade do agente que se prostitui” [Acórdão n.º 641/2016, sublinhado acrescentado; esta decisão viria a ser referida pelo Tribunal Constitucional italiano na Sentenza 141/2019, de 06/03/2019, enquanto abonação da conformidade constitucional da criminalização, nesse caso decorrente da chamada legge Merlim, das condutas de facilitação e de intermediação (construídas em torno dos conceitos de recrutamento e de favorecimento) ao exercício da prostituição, empreendidas por terceiro (cfr., quanto às referências ao Acórdão n.º 641/2016, os pontos 4.5. e 6.2. das Considerações de Direito da Sentenza)]

(…) É que existe uma diferença substancial entre a mera atividade de prostituição (não punida), e a (outra) atividade que a fomenta, favorece ou facilita, deslocando a segunda do campo da mera liberdade individual para uma constelação de relações sociais muito mais complexas, e desligadas das circunstâncias referenciáveis à individualização do ato de prostituição, que é inevitavelmente próxima – demasiado próxima – de movimentos, nacional e internacionalmente organizados, cujo resultado (aqui referimo-nos ao resultado da atividade dos referidos movimentos organizados num plano superior ao de cada “empresário”), quase invariavelmente, corresponde à perpetuação de situações de diminuição da liberdade e de sujeição a um poder de facto que, as mais das vezes, escapa a qualquer controlo, visto que se exerce fora de relações formalizadas ou declaradas, as quais, uma vez iniciadas, são difíceis de quebrar ou interromper, tendendo a perpetuar-se enquanto se mantiver a respetiva “utilidade comercial”. Com tal proximidade se gera um risco socialmente inaceitável, que não exorbita o âmbito de proteção da norma, nem dele é sequer periférico, porque se trata de um risco conatural ao proxenetismo, cujo empresário – como o de qualquer outro negócio – tende a organizar-se de modo a potenciar o lucro (criando redes ou procurando redes já estabelecidas, que lhe propiciem economias de escala, maximizando o controlo da atividade – insiste-se – fora de mecanismos de controlo efetivo, que pura e simplesmente não existem no nosso país), objetivo ao qual, mais tarde ou mais cedo, dificilmente escapará (o dano d)a vontade e (d)a liberdade das pessoas que se prostituem. Mesmo que a expressão exploração esteja fora do tipo – e, como tal, não seja facto a provar in concreto – o risco da sua materialização é suficientemente forte para conter a norma dentro dos limites da proporcionalidade e, em particular, da necessidade da intervenção penal.”

Do exposto flui, quanto a nós com meridiana clareza, que o bem jurídico pelo tipo legal de crime em causa nada tem a ver com qualquer defesa de uma qualquer anacrónica moral sexual mas relaciona-se geneticamente com preocupações de defesa das pessoas que se prostituem em face, nomeadamente, das redes de tráfico de seres humanos e toda a criminalidade associada à atividade de prostituição. É de sublinhar, por outro lado, que a ausência de tutela criminal da exploração da prostituição (e não, importa salientar, a própria atividade de prostituição) deixaria desprotegidas todas aquelas vítimas que, a coberto de um consentimento meramente formal, são exploradas como meros produtores de proventos económicos para os respetivos agentes, com a inerente diminuição da liberdade e de sujeição a um poder de facto que, as mais das vezes, escapa a qualquer controlo.

Por tudo isso, não se julga inconstitucional a norma incriminatória constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal.

2.ª questão - medida da pena.

Segundo os recorrentes, as penas acima mencionadas são excessivas.

Vejamos.

Desde logo, cumpre salientar que os recorrentes procederam a uma cuidadosa escolha de alguns dos factos provados para fundamentar as suas pretensões, ignorando os demais.

Como vimos, entendeu o Tribunal a quo valorar, nesta sede específica, as seguintes circunstâncias:

“Reportando-nos ao reforço da consciência jurídica comunitária e ao sentimento de segurança face à violação da norma, in casu, as necessidades e exigências de prevenção geral são elevadas face à repercussão social que os crimes de lenocínio atingem na sociedade, atenta a reprovação ética e social da obtenção de lucros à custa da prática de atos de prostituição de outrem, ferindo a dignidade da pessoa humana.

No que diz respeito à ilicitude do facto, consideramo-la de grau moderado, quanto a ambos os arguidos, pela perpetuação e extensão temporal da conduta praticada por ambos, sublinhando-se que, como respinga da matéria de facto, pese embora a arguida AA fosse a legal representante do estabelecimento comercial em apreço, os dois – que mantinham (e mantêm) uma relação amorosa – atuavam de forma concertada e articulada entre si, sem que um mantivesse uma ascendência sobre o outro que, por sua vez, tivesse um papel de coadjuvação, daí que o grau de ilicitude seja idêntico.

Apurado nos termos expendidos que os arguidos agiram com dolo direto, havemos de concluir que o fizeram na sua forma mais intensa, porque agiram de forma livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram punidas por lei penal.

No que diz respeito às necessidades de prevenção especial positiva, como respinga da matéria de facto assente, milita a favor dos arguidos o facto do mesmo se encontrar familiar, profissional – no caso, apenas, de BB, já que AA se encontra em situação de desemprego – e socialmente integrados.

Ademais, depõe a favor do arguido BB a circunstância de não ter quaisquer antecedentes criminais averbados no seu registo criminal, fazendo crer que – além do contacto com o sistema de justiça que representa este processo – sempre pautou a sua vida em conformidade com o direito penal.

Conquanto, milita contra a arguida AA a natureza dos seus antecedentes criminais, uma vez que a mesma já foi condenada pela prática de um crime de lenocínio.

Tudo visto e ponderado julga-se adequado aplicar ao arguido BB a pena de 1 ano e 8 meses pela prática de cada um dos crimes de lenocínio, p. e p. pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal pelo qual será condenado.

Por sua vez, julga-se adequado aplicar à arguida AA a pena de 2 anos e 6 meses pela prática de um crime de lenocínio, p. e p. pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal.

Assim, importa mencionar que os recorrentes se encontram destituídos de qualquer razão quando alegam que “a douta decisão recorrida alheou-se de toda a factualidade dada como provada nos pontos 35 e 36” no que respeita à falta de condições económicas para satisfazer a condição de suspensão de execução da pena. Os recorrentes apenas colocam em crise a pena única em que foram condenados. Assim:

Medida da pena única.

Fixemos o quadro normativo:

Artigo 77.º (2)

Regras da punição do concurso

1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

No caso em apreço, a moldura penal do concurso tem como limites:

Quanto à recorrente:

1 ) limite mínimo – pena mais grave: 2 anos e 6 meses de prisão.

2 ) limite máximo – soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes – 5 anos de prisão.

Resulta do n.º 1 da norma acima reproduzida que na determinação da medida da pena deve atender-se à díade conjunto dos factos / personalidade do agente.

''Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (3) (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).'' (4)

Começando pela avaliação da personalidade da arguida, não é correto reduzir os factos a uma mera pluriocasionalidade, descortinando-se já uma “tendência” ou mesmo um modo de vida, traduzindo uma personalidade já especialmente inclinada para a prática de atos criminosos semelhantes. Há, consequentemente, de ponderar um efeito agravante evidente dentro da moldura penal conjunta, de forma a que o mesmo surta o efeito de afastar a arguida da criminalidade.

Relativamente à ponderação conjunta ''dos factos'', entendemos que esta terá de passar, necessariamente, pela ponderação de cada uma das penas a que os mesmos conduziram. Assim, ''[c]om essa (…) dissolução ou confusão da pena numa punição global, o crime integra-se num conjunto de crimes e, simultaneamente, perde a sua correspondência directa que, de acordo com a norma incriminadora, lhe era proporcionada, para a encontrar apenas numa “quota ideal” da punição global que o agente na realidade vai cumprir, o que (…) põe em questão a proporção entre crime e pena que resultava da norma incriminadora singular.

Importa apurar se e em que medida essa proporção se mantém nessa integração e, por isso, se a pena única resulta proporcionada ao crime enquanto integrado no concurso.

Isto só pode apurar-se consideradas as coisas na perspectiva de cada crime e da pena singular que lhe corresponde.'' (5)

In casu, temos a considerar o seguinte, atentas as molduras punitivas abstratas, as proporções que presidiram à fixação das penas parcelares acima mencionadas e à avaliação negativa da personalidade da arguida a que acima aludimos, que deverá ter como reflexo um incremento do quantum punitivo, entendemos que se mostra justificada a fixação daquela pena única em 3 anos e 3 meses de prisão.

Quanto ao recorrente:

1 ) limite mínimo – pena mais grave: 1 ano e 8 meses de prisão.

2 ) limite máximo – soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes – 3 anos e 4 meses de prisão.

Atendendo às circunstâncias acima mencionadas, aqui aplicáveis com as devidas adaptações, entendemos como adequada uma pena única 2 anos e 6 meses de prisão.

Quanto à condição da suspensão de execução da pena, “visando o reforço pedagógico da suspensão da pena, e para que os arguidos tomem uma maior consciência da gravidade do seu comportamento”, foi imposto o pagamento € 4.000,00 no prazo de suspensão.

Subscrevemos tal intenção pedagógica.

No entanto, dadas as condições económicas dos arguidos, os montantes afiguram-se-nos como excessivos, entendendo-se ser de os reduzir da seguinte forma:

Arguida - € 1.000,00;

Arguido: € 2.000,00. Sendo também de revogar a necessidade de pagamento faseado, dando aos arguidos a hipótese de dosearem o esforço económico necessário a tal satisfação, sem que prejuízo da exigibilidade total até ao fim do período de suspensão.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder parcial provimento ao recurso e, consequentemente:

Reduzir a pena única da recorrente para 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão.

Reduzir a pena única do recorrente para 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Reduzir o montante fixado como condição para a suspensão da execução das penas para (i) a arguida - € 1.000,00 e (ii) o arguido: € 2.000,00, revogando-se igualmente a necessidade de pagamento faseado, confirmando no demais a sentença recorrida.

Sem custas. (art.º 513.º, n.º 1 a contrario do Código de Processo Penal)

(Processado em computador e revisto pelo relator)

..............................................................................................................

1 Diploma a que pertencerão todas as referências ulteriores, salva indicação diversa.

2 Do Código Penal.

3 Contra esta valoração, José Lobo Moutinho (Da Unidade à Pluralidade dos Crimes no Direito Penal Português, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2005, página 1285), nos seguintes termos: ''É que, de duas uma, ou isso [essa tendência] se reflectiu na perpetração dos diversos crimes (e naturalmente de modo crescente nos sucessivos crimes) - e então deve ser e é ponderada na sua inerência como que adverbial a cada crime – ou isso não se reflectiu em qualquer dos sucessivos factos criminosos – e então, mesmo admitindo a sua verificação, num Direito penal do facto é penalmente irrelevante''. Discordamos deste entendimento pelas seguintes ordens de razões: é verdade que, em circunstâncias ideais, na determinação da pena correspondente a cada crime, deve ser (por imposição legal) ponderado o seu comportamento anterior, ou seja, relativamente a cada pena deverá valorar-se o passado criminal do agente. Contudo, no mundo da aplicação concreta do Direito, nem sempre as coisas se passam assim, podendo não ser valorado um passado criminal indiciador de uma clara tendência criminosa, simplesmente porque tal passado ainda não foi investigado/julgado (caso do concurso superveniente). Mesmo que assim aconteça, só na determinação da pena conjunta se pode ter uma imagem global das características da personalidade do agente, estruturalmente diferente do julgamento retrospetivo parcelar que é efetuado aquando da fixação de cada pena. Por outro lado, poderá descortinar-se essa tendência no julgamento conjunto de uma miríade de factos que a sustentem, não sendo aí, obviamente, possível a avaliação retrospetiva conjunta dos delitos cometidos, dada a simultaneidade da determinação das respetivas penas.

4 Jorge de Figueiredo Dias in Direito Penal..., página 293.

5 José Lobo Moutinho in Ob. cit., página 1331.