CONDUÇÃO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
IDENTIFICAÇÃO DO CONDUTOR POR TERCEIROS
DEPOIMENTO INDIRECTO
ADMISSÃO ESPONTÂNEA DO CONDUTOR ANTES DA ABERTURA DE INQUÉRITO
Sumário

O depoimento do agente policial que, na qualidade de testemunha, reproduz em julgamento as informações que colheu no local do crime com vista à identificação do suspeito, fornecidas por pessoas que aí se encontravam, no exercício das competências próprias de realização de diligências cautelares, previstas nos artigos 50º e 249º nº 2 al. b) do Código de Processo Penal, não constitui prova indirecta de “ouvir dizer”, sujeita à proibição de valoração do artigo 129º nº 1 do mesmo código.
O relato que a mesma testemunha faz em julgamento da confirmação, feita espontaneamente pelo arguido no local, de que era o condutor do veículo interveniente no acidente de viação, estando, de resto, o mesmo legalmente obrigado a identificar-se, face ao disposto nos artigos 4º e 89º do Código da Estrada, antes da realização do teste de pesquisa de álcool no sangue e, portanto, antes do levantamento do auto de notícia e da abertura do inquérito, não se integra no conceito de “declarações cuja leitura não for permitida”, para os efeitos previstos nos artigos 356º nº 7 e 357º nº 2 do Código de Processo Penal.

Texto Integral

Acórdão deliberado em Conferência
1. Relatório

1.1. Decisão recorrida

Sentença proferida em 23abr2024, que absolveu o arguido AA do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto nos artigos 292º nº 1 e 69º nº 1 al. a), do CP.

1.2. Recurso, resposta e parecer

1.2.1. O Ministério Público recorreu da sentença, pedindo a sua revogação por erro de julgamento da matéria de facto e consequente convolação da absolvição em condenação pelo crime de que o arguido está acusado, na pena de 85 dias de multa, à taxa diária de 6 euros, e na pena acessória de 4 meses de proibição de condução de veículos motorizados.

Para tanto, alegou, em resumo, o seguinte:

- O tribunal incorreu em erro de julgamento da matéria de facto ao dar como não provados todos os factos da acusação, por ter entendido, no essencial, que não ficou demonstrado que o arguido, apesar de se encontrar com uma TAS proibida, tivesse conduzido o automóvel, visto não poder ser valorado aquilo que ele disse ao agente policial que o fiscalizou, admitindo ser ele o condutor;

- As declarações prestadas pelas testemunhas BB e CC devem ser valoradas porque incidem sobre o que o arguido lhes disse antes de ser constituído como tal;

- O arguido identificou-se como o condutor do automóvel interveniente no acidente e por isso foi submetido ao teste de alcoolemia;

- Apenas após a realização desse teste se concluiu que tinha conduzido com uma TAS igual ou superior a 1,20g/l e, nessa sequência, que se estava perante a prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, apenas tendo sido constituído arguido depois desse momento;

- Para além da prova testemunhal, encontra-se junto aos autos prova documental que não foi tida em consideração pelo tribunal, nomeadamenteo Auto de Notícia, o talão do teste de alcoolemia e a participação de acidente de viação;

- Valorando as declarações prestadas pelas testemunhas, conjugadas com a prova documental constante autos, devem ser dados como provados os factos imputados na acusação;

- Em consequência, deverá o arguido ser condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez;

- Quanto à escolha da pena, são prementes as exigências de prevenção geral, considerando a frequência e as consequências nefastas que tais comportamentos;

- A respeito das exigências de prevenção especial, há a ponderar que o arguido apenas apresenta uma condenação no seu certificado de registo criminal, pelo crime de condução perigosa pelo que dever-se-á optar pela aplicação da pena de multa;

- A medida da pena a aplicar, em face das circunstâncias apuradas, e da situação financeira e encargos do arguido, deverá ser fixada nos 85 dias, à razão diária de 6 euros;

- Quanto à pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, entende-se adequada, suficiente e proporcional que seja fixada em 4 meses.

1.2.2. O arguido respondeu, manifestando-se no sentido da improcedência do recurso.

- Para o preenchimento dos elementos objectivos do tipo de crime não basta a verificação da presença de álcool no sangue em quantidade igual ou superior a 1,2 g/l, sendo igualmente necessário fazer prova de que o indivíduo conduziu um veículo na via pública;

- O tribunal não valorou o depoimento prestado pelas duas testemunhas indicadas pelo Ministério Público por as mesmas não terem presenciado pessoal e directamente os factos e terem baseado os seus depoimentos em relatos de outras pessoas que naquele local se encontravam e que não foram chamadas para depor em sede julgamento;

- Não tendo sido tais testemunhas chamadas a depor, o que disseram é depoimento indirecto que não pode ser valorado;

- Por outro lado, o arguido ao ter conversado com os agentes, não prestou quaisquer declarações no âmbito do processo penal, mas sim no âmbito de um acidente de viação, não tendo sido ainda constituído arguido, pelo que tais conversas e nas circunstâncias que foram realizadas, acabam por se enquadrar nas chamadas conversas informais, não tendo qualquer relevância penal e não podem ser valoradas;

- Não tendo existido mais prova e não tendo o tribunal conseguido ultrapassar a dúvida razoável se seria ou não o arguido a conduzir a viatura, a sentença necessariamente só poderá culminar na absolvição do arguido através da aplicação do princípio do in dubio pro reu.

1.2.3. Na Relação o Ministério Público emitiu parecer concordante com o recurso.

1.2.4. O recorrente respondeu para manifestar a sua discordância e reafirmar os fundamentos do recurso.

2. Questões a decidir

A questão essencial a decidir, é saber se os factos imputados na acusação foram erradamente tidos como não provados, o que conduz a duas sub-questões condicionantes: (i) os depoimentos das duas testemunhas inquiridas, na parte em que referiram ter obtido informação de terceiros sobre a identidade do condutor do automóvel, pode ser valorado? (ii) os mesmos depoimentos, na parte em que se referiram ao que o arguido lhes disse no local, podem ser valorados?

Decidida a questão anterior, caso se conclua que houve erro de julgamento da matéria de facto e que não ocorre qualquer obstáculo de conhecimento oficioso, importará decidir o direito, isto é, se for o caso, condenar o arguido pelo crime imputado e determinar a pena aplicável.

3. Fundamentação

3.1. Factos provados, não provados e sua fundamentação

Factos provados:

(transcrição do registo áudio da sentença ditada para a acta)

- O arguido tem mestrado em gestão e pós-graduação em ciência de dados, é empresário, sócio-gerente da empresa …., recebe por mês 1.200 euros líquidos, não tem automóvel, tem uma embarcação, não tem créditos bancários nem despesas fixas relevantes, ressalvando as de alimentação;

- Foi condenado antes por crime de condução perigosa de veículo automóvel, por decisão proferida em 23jan2020, transitada em julgado em 4mar2020, na pena de 100 dias de multa, à razão diária de 7 euros, e na pena acessória de 5 meses de proibição de condução de veículos motorizados.

Factos não provados:

- No dia 13 de abril de 2024, pelas 22:25h, na Avenida …, em …, concelho de …, o arguido AA conduziu o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula …;

- O arguido conduziu nessas circunstâncias com uma taxa de álcool no sangue de 1,406g/l, correspondente à taxa de 1,48g/l registada pelo alcoolímetro quantitativo, deduzido do erro máximo admissível de 5%;

- O arguido sabia que tinha ingerido bebidas alcoólicas em quantidade que lhe determinaria uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l e conhecia as características da via e do veículo;

- Não obstante, quis conduzir o referido veículo a motor na via pública e realizou tal propósito;

- Agiu livre, voluntária e conscientemente, conhecedor do carácter penalmente proibido e punido da sua conduta.

Motivação:

(transcrição do registo áudio da sentença ditada para a acta)

Não há dúvidas para o tribunal que o arguido, no dia e hora indicados na acusação, tinha ingerido bebidas alcoólicas e que apresentava uma taxa de álcool de 1,406g/l.

O que importa aqui perceber é se o arguido, com essa taxa de álcool, estava ou não a conduzir o veículo.

No caso concreto, ninguém viu o arguido a conduzir o veículo. As testemunhas que depuseram no tribunal, isto é, os dois agentes militares que com toda a credibilidade que tiveram e mereceram, explicaram que estavam no posto, foram chamados para uma ocorrência no local, chegados ao local falaram com algumas testemunhas que teriam apontado uma pessoa com as características físicas do arguido como condutor; depois falaram com arguido, que se identificou como o condutor e que fizeram o teste do álcool. Também disseram que, para além do arguido, estava na companhia dele um outro senhor, senhor esse que não identificaram, não obtiveram o nome.

Dos dados também retirados do local foi possível verificar que, de facto, o veículo automóvel que estava no fundo, a que era imputada a condução por parte do arguido, é um veículo automóvel que está registado em nome da sociedade …, que depois de obter certidão nos autos, verifica-se que é a mesma sociedade de que o arguido é sócio-gerente, mas também se verifica na mesma que a gerência atualmente é partilhada por duas pessoas, pelo AA e pelo senhor DD. Isto tudo para dizer que, naturalmente, desde logo no que toca ao depoimento indireto, o mesmo só poder valorado se o tribunal ouvisse as testemunhas aqui e a verdade é que dos elementos constantes dos autos não é fácil identificar essas testemunhas e também elas não foram arroladas pelo Ministério Público. Portanto, o que os agentes disseram foi que o foi relatado pelas testemunhas e nesse campo não tem valor probatório nesse ponto.

No que ao arguido disse aos senhores agentes, naturalmente, as regras da experiência comum dizem o que a digna procuradora disse em sede de alegações. A questão é se o tribunal pode ou não pode valorar as declarações que o arguido disse à polícia, pois, no entender do tribunal, a verdade é que este é o único elemento probatório que temos que aponta com forte tendência de que terá sido o arguido a conduzir. Só que é um elemento probatório que decorre das declarações do arguido a um agente numas circunstâncias próximas. Naturalmente, o arguido prestou declarações ao agente no âmbito de um acidente, não de factos penais, mas no âmbito de um facto ilícito, e portanto, depois, quanto ao álcool, também foi nesse âmbito. Isto, no fundo, é um caso limite das chamadas conversas informais, que o tribunal entende que, no caso concreto, não devem ser valoradas.

Acresce que, e para explicar também aqui o raciocínio do tribunal, tendo sido apurado que o senhor arguido estava na companhia de um amigo e não tendo sido apurado qual o nome desse senhor e a empresa ao qual esta registado o nome, que é a empresa de que o arguido é sócio-gerente, que tem outro gerente, não é possível, com as regras das experiência comum, poder dizer que era com a certeza absoluta, ou com a certeza que aqui é necessária, que era o arguido que estava a conduzir, se nós extrairmos ou retirarmos as declarações das testemunhas que não são valoradas na parte do depoimento indireto e naquilo que o arguido disse à testemunha porque também é depoimento indireto, na verdade, não há nada, nenhum elemento que nos permita afirmar que tenha sido o arguido ou não a pessoa que estava a conduzir ou ao lado da que estava a conduzir e ainda para mais mesmo havendo um outro sócio gerente o tribunal não sabe se esse sócio-gerente era a pessoa que estava a acompanhar o arguido e por portanto também não sabe, ambos são gerentes e por isso podiam estar ambos a conduzir aquela viatura.

Isto para dizer que pese embora possam haver aqui factos e indícios que parecem apontar o arguido para a prática do crime, alguns deles não podem ser valorados pelo tribunal e os restantes que existem, na verdade, são e apenas a circunstância de o arguido estar no local e a circunstância de o carro estar registado em nome da sociedade da qual o arguido é sócio-gerente, como aqui o mesmo afirmou e resulta da certidão, são insuficientes para afirmar com a certeza de que o tribunal necessita, isto é, para além de dúvida razoável, que de facto era o arguido que estava a conduzir o veículo automóvel, quando ocorreu aquele acidente de viação e de que resultou depois o teste do álcool e por esse motivo julgaram-se não provados os factos constantes da acusação.

3.2. Valoração de prova proibida – depoimento de “ouvir dizer”

O que está em causa é o seguinte: os dois elementos da força policial, depois de terem sido chamados ao local por causa de um acidente de viação, chegaram ao contacto com o arguido, que estava com outro indivíduo um pouco afastado do automóvel embatido, porque pessoas que se encontravam nas imediações lhes disseram que o condutor do automóvel responsável pelo embate era um desses dois, mais concretamente o que no momento do acidente estava sem camisa, o que correspondeu ao arguido, que efectivamente, quando foi abordado, se encontrava sem t-shirt.

Para o tribunal recorrido, a determinação da identidade do condutor não pode ser valorada a partir deste relato das testemunhas ouvidas no julgamento por se tratar de depoimentos indirectos. Em consequência, desvalorizou o que disseram as duas testemunhas inquiridas para determinar o arguido como autor do crime.

O artigo 129º nº 1 do CPP impede a valoração, como meio de prova, de depoimentos de testemunhas que reproduzam o que ouviram dizer a pessoas determinadas, as quais podem ser chamadas pelo juiz a depor.

É importante começar por fazer uma distinção a propósito dos factos relatados pelas testemunhas.

Uma coisa é o relato do facto típico – no caso, a condução em estado de embriaguez propriamente dita, com as suas circunstâncias de modo, tempo e lugar – transmitido por terceiras pessoas à testemunha que depõe, do qual esta não tinha conhecimento directo por não o ter percepcionado com os seus sentidos. Aqui trata-se claramente de depoimento indirecto, sujeito à disciplina do artigo 129º do CPP.

Mas outra coisa, é o relato que a testemunha faz em julgamento de outro facto por si percepcionado directamente – no caso, a indicação, pela terceira pessoa, das características do agente do crime. A testemunha depoente, actuando na qualidade de órgão de polícia criminal, limitou-se a relatar em tribunal o resultado das diligências cautelares que fez no local, com vista à identificação do suspeito, mais concretamente, as informações que colheu das pessoas que lá se encontravam para essa finalidade. Trata-se de uma actuação cautelar, inserida nas competências próprias dos órgãos de polícia criminal (artigos 50º e 249º nº 2 al. b) do CPP), cujo relato em tribunal não constitui prova indirecta de “ouvir dizer”. Este relato sobre as diligências para a identificação do agente do crime tem autonomia em relação à reprodução do que se ouviu dizer de terceiros sobre os elementos do facto típico e é um meio de prova válido e sujeito à regra da livre apreciação, prevista no artigo 127º do CPP.

Por isso, a primeira conclusão a que podemos chegar já é que o tribunal recorrido aplicou erradamente a proibição de valoração de prova indirecta, estabelecida no artigo 129º do CPP. Até porque, estando identificadas no auto de notícia as pessoas de quem os agentes policiais recolheram as primeiras informações cautelares com vista à identificação do autor do crime, se o tribunal considerava que, nessa parte, o depoimento estava sujeito à proibição de valoração do referido artigo 129º, então podia ter activado oficiosamente a produção de tais meios de prova. E mais, se considerasse que a produção dessa prova era necessária para a descoberta da verdade, tinha mesmo o dever processual de convocar tais testemunhas, conforme decorre do disposto no artigo 340º nºs 1 e 2 do CPP.

3.3. Valoração de prova proibida – o declarado pelo arguido aos polícias

O que está em causa, em resumo, é o seguinte: as duas testemunhas, agentes policiais, disseram em julgamento que, depois de lhes ter sido apontado por outras pessoas que se encontravam nas imediações que o responsável pelo acidente era um que estava sem camisa, chegaram junto de dois indivíduos e que o que estava sem t-shirt disse espontaneamente que era ele o condutor do automóvel em questão.

O tribunal recorrido considerou tal relato em julgamento meio de prova inválido, sujeito à proibição prevista nos artigos 356º nº 7 e 357º nº 2 do CPP.

Contrapõe o Ministério Público no recurso que a informação prestada informalmente pelo arguido, em momento anterior à sua investidura nessa qualidade processual não está sujeita àquela proibição.

As declarações prestadas pelo arguido em inquérito perante órgão de polícia criminal não podem valer como prova para a sua condenação. O artigo 357º nº 1 do CPP, interpretado a contrario sensu não permite de modo algum a sua leitura em julgamento. E por isso, o artigo 356º nº 7, aplicável ex vi artigo 357º nº 3, ambos do CPP, também não permite que os órgãos de polícia criminal que as tiverem recebido sejam inquiridos como testemunhas sobre o seu conteúdo. Esta regra especial, estabelecida para garantir, de maneira reforçada, que o julgador, indirectamente, através de artifícios fraudulentos, não é influenciado na formação da sua convicção com base numa prova que a lei não admite, mais do que uma proibição de valoração é mesmo uma proibição de produção de prova, na medida em que dela resulta que a testemunha nem sequer pode ser inquirida sobre tais factos.

Para além disso, por igualdade de razões, é entendimento doutrinal e jurisprudencial corrente que declarações prestadas informalmente pelos arguidos aos órgãos de polícia criminal, em inquérito, ou mesmo antes da sua abertura, se das circunstâncias resultar que a pessoa já devia ter sido constituída arguida para prestar declarações beneficiando das garantias legais conferidas a esse estatuto, nomeadamente as que decorrem do formalismo imposto pelo artigo 142º do CPP, são igualmente inválidas.

Porém, dentro de certos condicionalismos, a jurisprudência tem vindo a aceitar a validade das declarações informais como prova há bem mais de uma década – ver, por exemplo, os acórdãos do STJ de 11JUL2001 (CJSTJ, ano IX, tomo 3, pág. 166), STJ de 30OUT2001 (1) e STJ de 3OUT2002 (2), TRP de 18OUT2000 (CJ, ano XXV, tomo 1, págs. 232) e TRC de 15DEZ2004 (CJ, ano XXIX, tomo 5, pág. 53).

Vejamos então o caso concreto.

Os órgãos de polícia criminal, recebendo a notícia de um eventual crime, devem, como já referido atrás, colher informação cautelar que permita chegar à identificação do respectivo agente (artigos 55º e 249º nº 2 al. b) do CPP). Note-se que não se trata de diligências de inquérito, mas sim de competências próprias, cautelares, dos órgãos de polícia criminal, cuja execução pode ser anterior à existência de qualquer processo.

Em especial, tratando-se da suspeita de crime relacionado com a circulação rodoviária, as autoridades policiais, a quem compete a respectiva fiscalização, estão investidas dos mesmos poderes, nomeadamente o de sujeitar os condutores de veículos intervenientes em acidentes de viação ao teste de pesquisa de álcool no sangue, com vista a apurar a eventual responsabilidade criminal (artigos 152º nº 1 al. a) e 156º nº 1 do CE).

Foi exactamente o que fizeram os agentes policiais que depuseram em julgamento, quando chegaram ao local e colheram informações das pessoas que ali se encontravam com vista à identificação do condutor do automóvel interveniente no acidente para o sujeitarem ao competente exame de pesquisa de álcool no sangue.

Essas pessoas indicaram que o condutor seria, no grupo de dois indivíduos que apontaram, o que estava sem camisa, pelo que os agentes policiais se dirigiram a ele para confirmar essa indicação. Como referido acima, não há qualquer invalidade nem proibição de valoração da prova assim obtida e depois produzida em julgamento.

Chegados ao indivíduo em questão, ora arguido, que correspondia à descrição obtida, já que se encontrava sem t-shirt, o mesmo, como consta no auto de notícia e foi relatado pelas testemunhas em julgamento, de forma espontânea e colaborante, disse que o condutor era ele, embora tivesse negado a existência de qualquer acidente. Note-se que os órgãos de polícia criminal podem identificar quaisquer suspeitos encontrados em lugar público (artigo 150º do CPP) e que uma pessoa interveniente em acidente de viação está obrigada a identificar-se ao agente policial de fiscalização, pois isso decorre do dever geral de obediência às ordens desses agentes e por maioria de razão do dever de se identificarem perante os restantes intervenientes (artigos 4º e 89º nº 1 do CE).

Na sequência, como prescreve o artigo 152º nº 1 al. a) do CE, a pessoa em causa foi sujeita ao teste de pesquisa de álcool no sangue e veio a verificar-se que tinha conduzido em estado de embriaguez, com uma TAS era superior a 1,2g/l, o que a tornou imediatamente suspeita da autoria do crime correspondente e legitimou o levantamento do competente auto de notícia e a constituição como arguido, nos termos previstos nos artigos 170º e 171º do CE e também do artigo 58º nº 1 al. d) do CPP.

É determinante ter em consideração que o que o arguido declarou aos agentes policiais e que o tribunal recorrido considerou não poder ser valorado como prova contra ele, ocorreu antes da abertura do inquérito criminal, que só teve lugar quando o teste de pesquisa de álcool no sangue que se seguiu o tornou suspeito da prática de um crime e levou à elaboração daquele auto e constituição como arguido. A partir deste momento, com a qualidade de arguido, nem foram prestadas declarações aos agentes policiais nem estes as relataram em julgamento como testemunhas.

Do que se acaba de expor, resulta já que o tribunal recorrido fez uma interpretação errada da proibição do artigo 356º nº 7 do CPP.

Em primeiro lugar, se era entendimento do tribunal que as declarações em causa estavam sujeitas àquela proibição, as mesmas não deveriam sequer ter sido admitidas. A norma estabelece uma proibição de produção da prova – “não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas” – e não apenas uma proibição de valoração.

Mas, de todo o modo, para além disso, aquela norma não é aplicável às informações fornecidas de forma espontânea por uma pessoa, ainda antes sequer de ser suspeita, sobre o facto de ser a condutora de um automóvel interveniente em acidente de viação, ainda para mais estando legalmente obrigada a identificar-se como tal aos agentes policiais, antes do início de qualquer procedimento criminal contra si. Uma informação assim fornecida, obtida e depois relatada em tribunal, não se integra no conceito de “declarações cuja leitura não for permitida”. A ser como decidido na sentença, o dever legal de identificação, que impende sobre condutores intervenientes em acidentes de viação, ficaria vazio de utilidade.

É este, aliás, o entendimento correntemente seguido nesta Relação, do qual não há razão válida para nos afastarmos – ver, por todos, os seguintes acórdãos: TRE, de 4jun2013, no processo 40/11.4GTPTG.E1, e TRE, de 17set2013, no processo 48/09.8GCTAR.E1 (3).

Chegamos assim à conclusão que a prova controvertida, isto é, o que as testemunhas disseram sobre o arguido as ter informado que era ele o condutor, é prova válida, que tem de ser analisada para a determinação dos factos provados.

3.4. Erro de julgamento da matéria de facto

O Ministério Público impugna a decisão da matéria de facto ao abrigo do artigo 412º nºs 3 e 4 do CPP.

Consideramos suficientemente cumprido o ónus de alegação imposto naquele artigo 412º, interpretado de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 3/2012, de 18 de Abril (DR nº 77, série I, de 18ABR2012). Estão indicados com precisão os factos que se consideram mal julgados e as provas que, no entender do recorrente, impõem decisão diversa, além de referenciada a localização dos depoimentos no registo áudio.

O decidido anteriormente torna já claro que houve erro de julgamento da matéria de facto, pois o tribunal deixou de considerar provas que devia ter ponderado e por isso, sem essas provas determinantes, ficou numa situação de dúvida.

Não há a mínima dúvida que o arguido era o condutor do automóvel. Isso resulta dos depoimentos das testemunhas BB e CC, que relataram em tribunal, de forma inteiramente credível, que no local obtiveram indicação de que o condutor era uma pessoa que estava sem camisa e que o arguido, que correspondia a essa descrição, confirmou essa informação de forma espontânea e colaborante.

As objecções suplementares que se encontram na motivação da sentença não colhem. A possibilidade de o condutor ser a outra pessoa que estava com o arguido, que podia ser o co-gerente da sociedade em nome da qual se encontrava registada a propriedade do automóvel, não tem qualquer plausibilidade, à luz das regras que a experiência comum mostra corresponderem à normalidade do acontecer. Em primeiro lugar, era ele que estava sem t-shirt, o que correspondia à descrição do condutor pelas pessoas presentes no local, e não se vê porque haveria o outro de se ter vestido e o arguido de se ter despido, naquele curto espaço de tempo. Em segundo lugar, se o condutor fosse o outro indivíduo, o arguido não se iria identificar como tal nem sujeitar de forma colaborante ao teste de pesquisa de álcool no sangue, sabendo que tinha bebido em excesso e que com toda a probabilidade viria a incorrer em responsabilidade criminal. Podia recusar-se a fazer o teste e esse seria o comportamento típico de quem não fosse o condutor.

Que o arguido conduzia em estado de embriaguez, também não há qualquer dúvida, pois isso está plena e incontestavelmente documentado no processo. Ele conduzia com uma TAS de 1,406 g/l.

No que respeita ao local e data dos factos, a sua prova é igualmente segura, pois resulta do auto de notícia, confirmado em julgamento pelas testemunhas acima referidas.

Finalmente, a prova que o arguido sabia que tinha ingerido bebidas alcoólicas em quantidade suficiente para incorrer em responsabilidade criminal, que conduziu na via pública com essa consciência e vontade e que o fez sabendo que isso era proibido, está da mesma maneira estabelecida com toda a segurança.

Não decorrendo, nem dos depoimentos testemunhais nem de qualquer outro elemento de prova, o mínimo indício que o arguido não estivesse no pleno uso das capacidades mentais e físicas de uma pessoa em situação de absoluta normalidade, decorre da objectividade dos factos apurados que a sua actuação foi voluntária e consciente contra uma proibição legal que conhecia. Primeiro, porque qualquer pessoa sabe quando bebe em excesso e que depois de beber não pode conduzir. Depois, porque, se dúvida houvesse, o facto de o arguido se ter afastado do local do embate e depois ter negado o acidente, mostra bem que ele tinha perfeita consciência da situação em que se encontrava e das respectivas consequências.

Sendo assim, em conformidade com o disposto no artigo 431º al. b) do CPP, modificando a decisão da primeira instância, ficam provados os seguintes factos:

- No dia 13 de abril de 2024, pelas 22:25h, na Avenida …, em …, concelho de …, o arguido AA conduziu o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula …;

- O arguido conduziu nessas circunstâncias com uma taxa de álcool no sangue de 1,406g/l, correspondente à taxa de 1,48g/l registada pelo alcoolímetro quantitativo, deduzido do erro máximo admissível de 5%;

- O arguido sabia que tinha ingerido bebidas alcoólicas em quantidade que lhe determinaria uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l e conhecia as características da via e do veículo;

- Não obstante, quis conduzir o referido veículo a motor na via pública e realizou tal propósito;

- Agiu livre, voluntária e conscientemente, conhecedor do carácter penalmente proibido e punido da sua conduta.

3.5. Responsabilidade criminal

Prosseguindo na apreciação do recurso, uma vez que para tanto dispomos de todos os elementos, a modificação da sentença recorrida na enumeração dos factos provados determina a necessidade de proceder a uma nova subsunção dos factos ao direito. Não merece controvérsia a conclusão de que os factos provados preenchem os elementos objectivos e subjectivos do crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido nos termos dos artigos 292º nº 1 e 69º nº 1 al. a) do CP. O arguido, com intenção, isto é, dolosamente, na modalidade de dolo directo, ingeriu bebidas alcoólicas de modo a acusar uma TAS superior a 1,2g/l no sangue, tendo nesse estado conduzido um automóvel na via pública, com capacidade de actuar de outra maneira, evitando a condução, e com consciência de que ao fazê-lo violava proibições penais.

3.6. Determinação da pena

No acórdão de fixação de jurisprudência do STJ, nº 4/2016, de 21JAN2016 (Diário da República n.º 36/2016, Série I de 2016-02-22) decidiu-se que: «Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 374.º, n.º 3, al. b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, als. a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do CPP».

Compete-nos, portanto, determinar a pena, sem necessidade de quaisquer diligências de prova, visto o processo conter todos os elementos necessários para isso.

O crime em questão é punível com prisão até 1 ano ou multa até 120 dias e com a pena acessória de proibição de condução de veículos com motor entre 3 meses e 3 anos.

Nos termos do artigo 70º do CP, deve optar-se pela pena de multa se esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Ou seja, se assegurar convenientemente as finalidades de prevenção especial e geral e de protecção dos bens jurídicos.

Sendo embora certo que o arguido tem uma condenação anterior por crime rodoviário, também em multa, a verdade é que essa condenação ocorreu há vários anos e não há informação que tivesse voltado a delinquir. Por outro lado, tratando-se de pessoa com inserção profissional, familiar e social, não se vê que uma pena privativa da liberdade fosse necessária para o motivar para a necessidade de se afastar de comportamentos anti-normativos. Finalmente, embora se conheçam os efeitos negativos dos perigos resultantes da condução em estado de embriaguez, não se está numa daquelas situações em que a efectividade da protecção dos bens jurídicos reclama a aplicação da pena na sua espécie mais gravosa.

O arguido deve, pois, ser condenado em multa, mas em multa que tenha significado e seja sentida como uma verdadeira sanção, para que a pena cumpra as finalidades a que está destinada.

Para a determinação dos dias de multa, entre o mínimo de 10 e o máximo de 120, tendo em conta que a culpa fixa o máximo possível (artigo 40º nº 2 do CP), há que considerar que a actuação culposa em apreço se qualifica num nível acima da mediania. O crime foi praticado com o grau de vontade e de representação e intencionalidade na acção ilícita que não ultrapassa o plano da normalidade. Simplesmente, tratando-se de uma segunda condenação por crimes estradais, era mais exigível ao arguido que se abstivesse de conduzir naquelas circunstâncias. Quem já foi condenado por um crime e incorre depois em crime de alguma maneira relacionado com o anterior, adopta um comportamento antijurídico mais censurável.

No plano da ilicitude da acção, consideramo-la mediana. O arguido conduziu com uma TAS não muito afastada do limite a partir do qual a lei define a acção como crime.

No plano da prevenção geral, as exigências são elevadas. A condução em estado de embriaguez é frequente e causa de muitos acidentes de viação, que por sua vez provocam não raras vezes mortes e ferimentos. Trata-se, assim, de uma ofensa com importante repercussão social, em que a afirmação da validade jurídica da norma violada através da pena é especialmente importante.

Quanto às exigências de prevenção especial, embora exista uma condenação anterior, o que se conhece da situação pessoal do arguido aponta para que esteja socialmente inserido. Com uma vida ajustada a comportamentos normativos, a assimilação pessoal dos efeitos de reintegração social da pena não exige uma reacção muito intensa para motivar o arguido para a necessidade de se afastar da repetição de comportamentos ilícitos futuros, desta natureza ou de outra, sob pena de violação dos princípios da necessidade e proporcionalidade.

Não existe, contudo, que se veja, qualquer sinal positivo de arrependimento, o que releva como factor de agravação.

Nesta conformidade, tendo em conta os critérios dos artigos 71º do CP, a pena de 85 dias, defendida no recurso, é ajustada à gravidade dos factos e à culpa neles revelada.

Já não o é a proposta taxa diária de 6 euros.

O artigo 47º nº 2 do CP manda fixar cada dia de multa entre 5 e 500 euros.

O arguido não tem um rendimento muito elevado, é certo, mas tem uma situação profissional estável, não tem um agregado familiar com dependentes, tem bens e não tem encargos fixos relevantes.

O legislador, quando fixou os limites do quantitativo diário da multa, não ignorava que a generalidade das pessoas em Portugal tem rendimentos modestos. Isso significa que o legislador quis que a multa nunca deixasse de representar um sacrifício económico importante, pois é mesmo essa a natureza de uma sanção penal. A quantia de 6 euros está praticamente no mínimo admissível. Ela não representaria o sacrifício inerente à pena.

Consideramos adequada à situação económica do arguido a taxa diária de 9 euros.

No que respeita à pena acessória, a sua fixação da pena acessória, prevista no artigo 69º nº 1 al. a) do CP, está vinculada a razões de prevenção e obedece, no essencial, aos mesmos critérios da pena principal.

Os 4 meses propostos no recurso são insuficientes porque se trata da segunda condenação por crimes estradais e porque essa medida é demasiado desproporcional em relação à medida da pena de multa, tendo em conta que os critérios legais são essencialmente os mesmos. Porém, ao mesmo tempo, sendo o Ministério Público o titular da representação da pretensão punitiva do Estado no Processo Penal, esta circunstância também deve ser levada em conta.

As finalidades de prevenção reclamam assim que a pena acessória seja fixada em 5 meses, medida que se afigura necessária e adequada para cumprir as finalidades de dissuasão inerentes às exigências de prevenção especial. Uma pena acessória sem um custo elevado não alcança a sua natureza preventiva.

4. Decisão

Pelo exposto, acordamos em julgar o recurso procedente e em revogar a sentença recorrida, condenando o arguido AA por um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto nos artigos 292º nº 1 e 69º nº 1 al. a), do CP, na pena de oitenta e cinco dias de multa, à taxa diária de nove euros, e na pena acessória de cinco meses de proibição de condução de veículos com motor.

Fixa-se em 4 UC a TJ a cargo do arguido pela decisão condenatória.

Évora, 8 de Outubro de 2024

Manuel Soares

António Condesso

Artur Vargues

1 http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/de0cfcef8adf6db280256d1a0038467d?OpenDocument

2 http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b509f6438f3ad13280256ce00037c790?OpenDocument

3 Ambos consultáveis em www.jurisprudencia.csm.org.pt.