ESTABELECIMENTO DA PATERNIDADE
DIREITO ESPECIAL DA MÃE A ALIMENTOS
DIREITO DA MÃE A INDEMNIZAÇÕES
Sumário

I – No art. 1884º nº1 do C. Civil consagra-se um direito especial a alimentos a favor da mãe relativos ao período da gravidez e ao primeiro ano de vida do filho, alimentos esses a que está obrigado o pai que não está casado com aquela; tal obrigação do pai ocorre desde a data do estabelecimento da paternidade.
II – O cálculo dos alimentos ali previstos obedece aos requisitos gerais da carência ou necessidade da mãe e das possibilidades do pai (art. 2004º do C. Civil), como decorre do art. 2014º nº2 daquele mesmo diploma, e «abrange as despesas com sustento, habitação e vestuário (art. 2003º/1 CC), bem como despesas com consultas de ginecologia, medicamentos, exames, alimentação especial, encargos com o pagamento de serviços e com o parto, na medida em que seja dado ao vocábulo “sustento” um sentido amplo».
III – O direito a indemnizações também reconhecido à mãe naquele art. 1884º nº1 enquadra-se no instituto da responsabilidade civil por factos ilícitos e permite à mãe reclamar danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes da gravidez ou do parto, sendo nele equacionável, designadamente, a falta de assistência e abandono por parte do progenitor à mulher grávida.
IV – Enquadrando-se tal direito naquele instituto, o mesmo está sujeito aos prazos de prescrição previstos no art. 498º nº1 do C. Civil: de três anos, que começa a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito à indemnização, e de vinte anos – prazo ordinário da prescrição (art. 309º do C. Civil) –, que começa a correr desde o facto danoso, isto é, do evento desencadeador dos danos.
V – Ocorrendo o facto danoso, integrado pelo abandono da autora quando grávida por parte do réu, em 1982 (ano do nascimento da filha de ambos), e tendo a ação apenas dado entrada a 6/2/2023, aquando desta data já tinha decorrido o prazo ordinário de prescrição, o que tem como consequência a extinção do direito indemnizatório em causa.

Texto Integral

Processo nº380/23.0T8PNF.P1

(Comarca do Porto Este – Juízo Central Cível de Penafiel – Juiz 3)

Relator: António Mendes Coelho

1º Adjunto: Jorge Martins Ribeiro

2º Adjunto: Teresa Maria Sena Fonseca

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório

AA instaurou a ação declarativa comum contra BB pedindo a condenação deste a pagar-lhe o montante de € 10.500,00 (dez mil e quinhentos euros) a título de alimentos a si devidos e € 50.000,00 (cinquenta mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos na gravidez e após o nascimento da sua filha CC, acrescidos de juros desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Para tanto, e em síntese, alegou o seguinte:

- é mãe e o réu é o pai de CC, nascida a ../../1982;

- o réu sempre se recusou assumir a paternidade daquela sua filha, tendo inclusivamente esta vindo a intentar um processo de reconhecimento judicial de tal paternidade que correu termos no Juízo de Família e Menores de Marco de Canaveses sob o nº310/21.3T8MCN e no âmbito do qual, a 21/11/2022, foi proferida sentença que a reconheceu;

- nasceu em Amarante no ano de 1958 e nos anos de 1981 e 1982 prestou trabalhos agrícolas para os pais do réu;

- durante esse vínculo laboral conheceu o réu, com quem manteve uma relação amorosa e relações sexuais, sendo que à data de tal relação aquele era casado;

- fruto daquelas relações sexuais, ficou grávida;

- quando soube que estava grávida, informou o réu e este disse-lhe para abortar, recusando-se a perfilhar a sua própria filha;

- sentiu-se envergonhada, humilhada e revoltada por ter confiado nas promessas do réu e este tê-la abandonado e inclusivamente negado toda e qualquer responsabilidade quanto à paternidade da sua filha; tal causou-lhe grande sofrimento, vergonha e desgosto, pois que, tratando-se de uma pequena cidade, piores foram as críticas, comentários negativos e apreciações jocosas a si; sofreu com isso vexame, que resultou no seu isolamento e na perda do seu bom nome na cidade onde nascera e crescera, tendo-lhe sido vedada a possibilidade de na sua cidade natal constituir família, pois que a nível social não se encontrava igualada às restantes mulheres; ficou aos olhos de vizinhos, conhecidos, e em geral de toda a população da sua terra natal, como pessoa promíscua e de má índole e, consequentemente, sentiu-se desvalorizada enquanto mulher e culpada de tudo o que acontecera, o que causou uma destruição ascendente na sua autoestima, que nunca conseguira recuperar totalmente;

- por força da atitude adotada pelo réu, foi obrigada a mudar de cidade, deslocando-se de Amarante para o Porto, fugindo da vergonha e do estigma e em busca de trabalho; teve que recomeçar do zero, numa cidade desconhecida para si

- ficou gravemente prejudicada pela resignação absoluta do réu às suas obrigações enquanto pai da sua filha e, em virtude da toda a situação vivida, causada pelo réu, pelo total incumprimento e desrespeito enquanto progenitor da criança que havia gerado, nunca teve possibilidades de adquirir competências profissionais nem de apostar na sua formação, pois que se tivera que dedicar a 100% a garantir a sobrevivência, quer da sua filha, quer sua.

- sofre até aos dias de hoje uma grande mágoa, vergonha e enorme desgosto, pela recusa do réu em assumir a paternidade da sua filha e contribuir para o seu crescimento e desenvolvimento sadio;

- embora já tenham passado alguns anos, enquanto grávida e mãe solteira ao longo destes anos nunca desfrutou de um verdadeiro bem-estar psicológico nem emocional; passou por períodos de enormes dificuldades económicas e financeiras;

- tem ainda uma profunda marca psicológica por todo o abandono, dor, miséria, trabalho, exclusão social, privação de alimentos e de conforto que sentiu e sofreu na pele durante a gravidez e crescimento da sua filha;

- recaiu sobre si todas as obrigações de, com os seus parcos rendimentos, prover pelo sustento, segurança, saúde, desenvolvimento físico, intelectual e moral da sua filha;

- que, nos termos do art. 1884º nº1 do C. Civil, lhe assiste o direito a alimentos ali previsto, relativos ao período da gravidez e ao primeiro ano de vida da sua filha, e bem assim a indemnização por danos não patrimoniais por si sofridos, sendo que aqueles alimentos devem ser fixados em 500 euros mensais e a indemnização por aqueles danos – “decorrentes da negação da paternidade da sua filha CC, e do abandono, dor, desgosto, transtorno, vergonha, humilhação, discriminação, exclusão e pobreza que sofreu na gravidez e após o nascimento da filha” (artigo 60º da p.i.) – dever ser fixada em 50.000 euros.

O réu deduziu contestação, excecionando o abuso do direito (alegando que viola a boa fé vir pedir alimentos passados mais de 40 anos após o nascimento da filha, tanto mais que a autora refere que nunca teve dúvidas de que o réu era o pai biológico, pelo que teve todas as condições para os ter peticionado há muitos anos atrás, assim como para pedir o reconhecimento judicial dessa paternidade, pelo que, se não o fez, tal ficou a dever-se, única e exclusivamente, à atuação/omissão da mesma), a prescrição do direito a alimentos por parte da mãe, [defendendo que é aplicável ao mesmo, em termos que interpreta, o prazo de prescrição de cinco anos do art. 310º, al. f), do C. Civil] e a prescrição do direito à indemnização [alegando que a indemnização extravasa o período temporal que por lei poderia abarcar (período da gravidez e 1º ano de vida da filha) e o prazo de prescrição aplicável é o previsto no art. 498º, n.º 1, do CC, ou seja, 3 anos, o qual há muito se extinguiu, tendo inclusive decorrido o prazo de prescrição ordinário de 20 anos]. Em sede de impugnação defendeu: que não se mostra preenchido o pressuposto “culpa” necessário à sua responsabilização pela indemnização peticionada; que, em relação aos alimentos, ocorre a sua incapacidade económica para os prestar, do que decorre a sua inexigibilidade; que a autora não demonstrou qualquer circunstância que justificasse o seu dever de assistência; e, a final, impugnou a factualidade alegada pela autora no sentido das pretensões por esta deduzidas. Por fim, pediu a condenação da autora como litigante de má-fé em multa e indemnização a fixar pelo tribunal, sugerindo que a última não seja inferior a 2000 euros.

A autora pronunciou-se quanto às exceções deduzidas e quanto à litigância de má-fé, pugnando pela sua improcedência.

Teve lugar audiência prévia, tendo-se nesta proferido despacho saneador – em sede do qual se relegaram para a sentença as exceções invocadas – e ulterior despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.

Procedeu-se a julgamento, tendo na sequência deste sido proferida sentença em que se julgou improcedente a ação e absolveu o réu do pedido, assim como se absolveu a autora do pedido de condenação como litigante de má-fé contra si formulado.

De tal sentença veio a autora interpor recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

“I) A Recorrente não se pode conformar com a sentença que julgou manifestamente improcedente a ação para que “a) se condene o Réu pelo montante de €10.500,00 (dez mil e quinhentos euros) a título de alimentos devidos à Autora; b) se condene o Réu pelo montante de €50.000,00 (cinquenta mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais.”.

II) A aqui Recorrente rejeita, assim, veementemente, a decisão que indeferiu a ação em causa, nomeadamente, na condenação do Réu no pagamento de alimentos, bem como na condenação pelo pagamento devido à responsabilidade civil.

III) O Tribunal ad quo entendeu que que estava em causa a prescrição do direito a alimentos, bem como da responsabilidade civil que se lhe imputa ao Réu.

IV) Ao Recorrido incutia uma obrigação de apoio à Recorrente e à sua filha, até por conta das dificuldades económicas das mesmas, ao contrário do que se passava com o Recorrido, ao qual sempre ignorou.

V) A Meritíssima Juiz ad quo vem a considerar a CC como filha do Recorrido há já 40 anos, porém, tal facto só se vem a dar com a constituição da paternidade, por sentença datada a 21 de novembro de 2022.

VI) Pelo que, a obrigação de prestar alimentos por parte do Recorrido, só se inicia com a sentença (cfr. artigo 1884º, n.º 1 do Código Civil).

VII) E por consequência, a Recorrente, não poderia em momento anterior à sentença de constituição de paternidade, exigir alimentos por parte do Recorrido, dado que até à data era um terceiro da relação familiar.

VIII) O prazo de prescrição de alimentos, regulado no artigo 310.º, alínea f) do Código Civil, nasce, então, com a constituição da paternidade.

IX) Por conta da expressão do artigo 306º, n.º 1 do Código Civil, “quando o direito puder ser exercido”, este se refere de um ponto de vista de o titular poder atuar, tendo em conta o seu carácter objetivo. (cfr. Ana Filipa Morais Antunes, Prescrição e Caducidade, 2ª edição, pág. 83).

X) No qual, é necessário ter em conta que o prazo de prescrição se inicia quando existirem condições objetivas de exercício do direito (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, processo 1123/09.6TBOLH-G.E1).

XI) Portanto, a Recorrente vem a requerer o direito a alimentos na presente data, dado que o Recorrido só vem a ser considerado como pai, por sentença a 21 de novembro de 2022, não lhe sendo possível requerer alimentos em fase prévia.

XII) Por consequência, o exposto aplicado ao prazo de prescrição do direito a alimentos, é ainda aplicável à indemnização por danos não patrimoniais, dado que está em causa a violação dos deveres enquanto pai e dos danos que isso causou na Requerente.

XIII) Pelo que devem V./Exas., Venerandos Desembargadores julgar procedente o presente recurso e revogar a decisão recorrida, declarando que não há qualquer fundamento de improcedência da ação, o qual deverá prosseguir os seus ulteriores termos com as legais consequências daí advenientes.

XIV) Como com toda a certeza o farão, realizando como sempre a Justiça material.”

O réu apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.

Foram dispensados os vistos ao abrigo do art. 657º nº4 do CPC.

Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), são as seguintes as questões a tratar:

a) – dos alimentos peticionados pela autora e, nesse âmbito, se ocorre a prescrição do respetivo direito;

b) – da indemnização peticionada pela autora e, nesse âmbito, se ocorre a prescrição do respetivo direito.


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II – Fundamentação

É a seguinte a factualidade a ter em conta (a da sentença recorrida, a qual não se mostra questionada no recurso):

Factos provados

1. A Autora, é mãe de CC, nascida em ../../1982.

2. Sendo o Réu pai da referida de CC.

3. A CC intentou o processo n.º 310/21.3T8MCN, que correu termos no Juízo de Família e Menores de Marco de Canaveses do Tribunal Judicial da Comarca de Porto, com vista ao reconhecimento judicial da sua paternidade.

4. No âmbito do qual, aos dias 21 de novembro de 2022 foi proferida sentença judicial, a qual declarou: “A) Julgo improcedente a exceção da caducidade do direito da Autora; B) Julgo a presente ação procedente por provada e consequentemente decido: (…) II) Declarar que BB é o pai da Autora, CC, nascida em ../../1982, filha de AA, ordenando o correspondente averbamento no tocante à paternidade e à avoenga paterna assento de nascimento da Autora, n.º 4195 do ano de 2008. III) Condenar o Réu BB como litigante de má-fé, na multa processual de 2 UC (duas unidades de conta) e em indemnização à Autora, consistente no reembolso das despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindoos honorários dos mandatários ou técnicos, a fixar ulteriormente.”.

5. A Autora nasceu em Amarante, no ano de 1958.

6. O Réu declarou recusar assumir a paternidade de CC, quando a Autora, logo após o conhecimento da gravidez, lhe comunicou a mesma e de que era o pai, e durante todo o processo judicial identificado no anterior ponto 3.

7. Nesses referidos dois momentos, o Réu declarou não assumir qualquer responsabilidade enquanto pai da filha da Autora, sendo que, nos momentos temporais posteriores a cada um daqueles, nunca o Réu praticou nenhum ato demonstrativo de uma vontade contrária àquela vontade declarada de recusar assumir a paternidade.

8. O comportamento do Réu provocou na autora sofrimento, dor, vergonha, vexame e humilhação.

9. A Autora cuidou da sua filha sem ajuda do Réu e com muito esforço, labor e lágrimas, para satisfazer todas as necessidades da mesma desde o nascimento até à sua idade adulta, entrada no mercado de trabalho e ganho de meios próprios para a sua autossubsistência.

10. Nunca tendo o Réu prestado qualquer tipo de apoio emocional ou financeiro à sua filha e à mãe da mesma, a aqui Autora.

11. Nunca tendo contribuído com um único cêntimo para prover o sustento da sua filha, apesar de Autora, num momento inicial e, pelo menos até ter constituído família com o seu companheiro, disso necessitar.

12. O que efetivamente trouxe dor, sofrimento e vergonha à Autora, que ainda jovem numa sociedade profundamente machista e preconceituosa teve que ser pai e mãe em prol de garantia a subsistência da sua filha.

13. A autora nasceu no seio de uma família humilde e tradicional.

14. Tendo trabalhado na agricultura de forma a ajudar os seus pais e contribuir para a subsistência da sua família.

15.Nos anos de 1981 e 1982, prestou trabalhos agrícolas para os pais do Réu.

16. Quando soube que estava grávida, a aqui Autora informou o Réu, sendo que este recusou-se a perfilhar a CC.

17. A Autora sentiu-se envergonhada, humilhada e revoltada com o facto de o Réu ter negado toda e qualquer responsabilidade quanto à paternidade da CC.

18.Tendo-lhe causado sofrimento, vergonha e desgosto, pois que, tratando-se de uma pequena cidade piores foram as críticas, comentários negativos e apreciações jocosas à Autora, tendo esta sofrido vexame, naquela altura.

19. Naquela altura, o vexame provocou o isolamento da Autora e a perda do bom nome da mesma, na cidade onde nascera e crescera.

20. Naquela altura, a Autora, ao nível social, não se encontrava igualada às restantes mulheres, estando sim, numa posição inferior.

21. Ficando, naquela altura, aos olhos de vizinhos, conhecidos, e em geral de toda a população da sua terra natal, como pessoa promíscua.

22. E, consequentemente, naquela altura a Autora sentiu-se desvalorizada enquanto mulher e culpada de tudo o que acontecera.

23. Causando, naquela altura, uma diminuição da sua autoestima.

24. Naquela época, uma mulher com uma gravidez pré-matrimonial e sem qualquer intenção das partes contraírem casamento era considerado um ultraje aos bons costumes.

25. Ainda para mais, sendo que o Réu cometera adultério.

26. Em consequência dos factos descritos, fruto dos ditames sociais da época, bem como, tratando-se de uma zona rural, a Autora decidiu mudar de cidade, deslocando-se de Amarante para o Porto, fugindo da vergonha e do estigma e em busca de trabalho.

27. Tendo a Autora recomeçado do zero, numa cidade desconhecida para si, sendo ainda jovem, mãe solteira, sozinha, inicialmente sem emprego e sem residência.

28. Após procura, a aqui Autora arranjou emprego.

29. Em consequência dos factos descritos, a autora nunca conseguiu adquirir competências profissionais nem de apostar na sua formação, pois que se tivera que dedicar a 100% a garantir a sobrevivência, quer da sua filha, quer sua, em virtude das limitações de tempo e recursos despendidos para a sobrevivência e educação da filha de ambos, que sempre fora a sua máxima prioridade.

30. Os factos descritos, ainda hoje, quando os tem de recordar, fazem a autora reviver a mágoa, vergonha e desgosto que sentiu.

31. Recaiu sobre a autora todas as obrigações de, com os seus rendimentos, prover pelo sustento, segurança, saúde, desenvolvimento físico, intelectual e moral da sua filha, sem prejuízo de a partir do quarto ano de vida desta ter passado a contar com o apoio do companheiro com quem constituiu família.

32. A filha da autora, com a anuência desta, foi perfilhada por um terceiro.

33. A autora não requereu judicialmente o reconhecimento da paternidade da filha.

34. A autora constituiu família com um terceiro (que não o Réu e o referido perfilhante).

35. Com o qual estabeleceu família, quando a CC tinha quatro anos de idade.

36. Tendo aquele, a partir dessa data, desempenhado o papel de Pai.

37. Durante 40 anos, a autora nunca exigiu do réu alimentos.

38. A autora deixou passar quase 40 anos para revelar a verdade à Filha.

39. O Réu provém de uma família de origens humildes, que dependia de uma agricultura de autossubsistência para criar e alimentar os seis Filhos que compunham o respetivo Agregado Familiar.

40. À época, o Réu trabalhava à “jorna” (ao dia) na construção civil.

41. À época, o agregado familiar do Réu era composto pelo próprio, respetiva esposa e o filho de ambos (nessa altura com 15 anos de idade).

42. O réu recebe uma pensão no valor de € 352,12 (trezentos e cinquenta e dois euros e doze cêntimos) mensais.

43. A referida pensão é consumida pelos custos associados às despesas da vida corrente do Réu, entre as quais, as decorrentes dos tratamentos médicos e medicamentosos a que está sujeito.

44. A partir do quarto ano de idade da respetiva filha, aquela pôde contar com o apoio económico-financeiro e emocional da pessoa com quem, nesse entretanto, a autora passou a viver como marido e mulher.

45. O processo de determinação da paternidade e a atitude do réu durante esse processo em negar essa mesma paternidade, levou a Autora a reviver o momento em que comunicou ao Réu que estava grávida e a reviver a dor, o desprezo e o abandono que naquele momento sentiu.


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Factos não provados

1. O comportamento do Réu tivesse causado transtorno e sofrimento à CC durante toda a vida desta.

2. O discurso carinhoso e amoroso que o Réu mantinha até então, quando soube que a Autora estava grávida, alterou.

3. Quando a Autora disse ao Réu que estava grávida, este lhe tivesse dito para abortar.

4. O Réu tivesse feito promessas à Autora antes desta engravidar.

5. A Autora jamais tivesse conseguido, na sua cidade natal, constituir família.

6. A Autora nunca tivesse conseguido recuperar totalmente a sua autoestima.

7. O emprego que a Autora arranjou não fosse suficientemente compensatório a nível económico para que esta conseguisse sobreviver com dignidade.

8. Ao longo destes anos, a Autora nunca desfrutou de um verdadeiro bem-estar psicológico nem emocional.

9. A Autora tivesse passado por períodos de enormes dificuldades económicas e financeiras.

10. A Autora tivesse vivido na miséria, e bem assim que a exclusão social que sentiu inicialmente na sua terra natal tivesse perdurado até aos dias de hoje, sofrendo, ainda, de discriminação.

11. A Autora se tivesse visto sujeita a racionar alimentos para alimentar a sua filha, pouco alimento reservando para si própria.

12. A Autora nunca tivesse tido momentos de lazer, por não lhe ser possível vivê-los.

13. A Autora não tivesse tido apoio familiar.

14. O Réu, à data, provinha de uma família com recursos e possibilidades financeiras.

15.A circunstância de a filha da autora ter sido perfilhada por um terceiro, que a reconheceu como pai, associada ao facto de se constar que, no período da conceção, aquela se relacionava com diferentes homens, criou no Réu a convicção de que o mesmo não seria o Pai da ora reconhecida Filha.

16. O Réu estivesse convicto de que não seria o pai da filha da Autora e que não estava obrigado a alimentos.

17. O Réu, em razão da perfilhação da filha por um terceiro, só tivesse ficado ciente da respetiva paternidade aquando do resultado do teste de paternidade realizado no âmbito da “Ação de Investigação de Paternidade”.

18. Todo o trabalho agrícola desenvolvido pelos pais do Réu o fosse com recurso às denominadas “tornas”, em que as diferentes famílias da localidade (que à semelhança dos pais do Réu também dependiam da lavoura para poder sobreviver), se ajudavam mutuamente, cada um à sua vez.

19. À época, o trabalho do Réu fosse mal remunerado, que não chegava sequer para suprir as necessidades financeiras do respetivo agregado familiar.

20. O Réu dependa para sobreviver da pensão de reforma que apuradamente recebe.

21. Para além dos dois momentos referidos nos factos provados, o réu tivesse voltado a declarar expressamente recusar-se a assumir a paternidade.

22. Em consequência da negação da paternidade do Réu, a Autora tivesse vivido sempre em situação de pobreza e exclusão, e que esta vivência de pobreza e exclusão lhe tivessem trazido profundas cicatrizes, que ainda hoje são sentidas.


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Vamos à primeira questão enunciada.

Prevê-se no nº1 do art. 1884º do C. Civil, com a epígrafe “Alimentos à mãe”, que “O pai não unido pelo matrimónio à mãe do filho é obrigado, desde a data do estabelecimento da paternidade, a prestar-lhe alimentos relativos ao período da gravidez e ao primeiro ano de vida do filho, sem prejuízo das indemnizações a que por lei tenha direito”.

A autora pretende exercitar o direito a alimentos ali previsto através da ação dos autos, que deu entrada a 6/2/2023.

Analisemos.

Naquela disposição consagra-se um direito especial a alimentos a favor da mãe relativos ao período da gravidez e ao primeiro ano de vida do filho, alimentos esses a que está obrigado o pai que não está casado com aquela.

Tal obrigação do pai, como ali expressamente se prevê, ocorre desde a data do estabelecimento da paternidade.

Tendo a paternidade sido estabelecida por sentença proferida a 21 de novembro de 2022 – a qual, porque dos autos nada documentalmente resulta em contrário, terá transitado em julgado logo que decorrido o prazo para o recurso (no máximo de 40 dias – art. 638º nºs 1 e 7 do CPC) –, é de concluir que a autora está, por via da ação dos autos, a acionar aquele direito a alimentos cerca de um mês depois do trânsito em julgado daquela sentença.

Como tal, não faz qualquer sentido considerar, como se fez na sentença recorrida, que se verifica a prescrição daquele direito.

Por um lado, porque o prazo de prescrição de 5 anos previsto na alínea f) do art. 310º do C. Civil, que se teve como aplicável, de todo não se aplica ao caso concreto.

Efetivamente, como naquela alínea se dispõe, a prescrição ali prevista é para prestações alimentícias vencidas. Isto é, com obrigação de pagar tais prestações já fixada em concreto a alguém e cujo pagamento, por referência ao tempo do seu cumprimento, já se tornou exigível.

Ora, tal não acontece no caso vertente, pois o direito a alimentos em referência só agora, através da ação dos autos, está a ser exercido e, como vimos, logo cerca de um mês depois do trânsito em julgado da sentença que estabeleceu a paternidade.

Por outro lado, porque estando em causa um direito a alimentos, e não um direito de indemnização por factos ilícitos, não lhe é aplicável, como em contrário se considerou na sentença recorrida, a prescrição prevista no art. 498º do C. Civil.

Assim, é de concluir que o direito a alimentos exercido na ação não se mostra prescrito.

Aqui chegados, cumpre agora apurar da procedência do pedido formulado pela autora a tal título.

O cálculo dos alimentos previstos no art. 1884º nº1 do C. Civil obedece aos requisitos gerais da carência ou necessidade da mãe e das possibilidades do pai (art. 2004º do C. Civil), como decorre do art. 2014º nº2 daquele mesmo diploma, e «abrange as despesas com sustento, habitação e vestuário (art. 2003º/1 CC), bem como despesas com consultas de ginecologia, medicamentos, exames, alimentação especial, encargos com o pagamento de serviços e com o parto, na medida em que seja dado ao vocábulo “sustento” um sentido amplo»[1].

Reportando-se aquele direito da mãe a alimentos relativos ao período da gravidez e ao primeiro ano de vida do filho, a autora teria que ir atrás no tempo e, reportando-se àquele período temporal, provar a necessidade de tais alimentos, nomeadamente concretizando as despesas que no sentido acima referido fez, a sua incapacidade económica para as custear por si e a possibilidade de os prestar por parte de quem a eles está obrigado (art. 2004º nºs 1 e 2 do C. Civil), como factos constitutivos daquele seu direito (art. 342º nº1 do C. Civil).

Ora, como decorre da factualidade apurada nos autos, a autora não fez prova de quaisquer despesas subsumíveis às anteriormente mencionadas e até acabou por se provar (vide factos provados sob os nºs 9, 31 e 37) que conseguiu custear por si as despesas – que não se sabe em concreto quais – que terá tido durante aquele período de tempo e com a possível abrangência acima referida.

Neste conspecto, note-se que a autora, como se vê do alegado nos artigos 52, 53 e 54 da sua petição inicial, invoca um montante de alimentos de 500 euros mensais que, dado o seu montante, só o pode ser por referência ao momento temporal presente e não ao período temporal previsto no art. 1884º nº1 – o qual, face à data de nascimento da filha da autora e réu, se situou no último mês de 1981, no ano de 1982 e alguns meses de 1983 –, e, além disso, “atira” para os autos este valor mensal sem nada concretizar quanto aos termos a que ele chega e sem o referenciar a quaisquer despesas que tenha tido durante aquele período temporal e que pudessem estar abrangidas pelo direito a alimentos em referência nos termos sobreditos.

Estando o direito a alimentos em análise limitado ao período temporal referido no preceito legal que o prevê e não tendo a autora provado quer a efetivação de despesas por ele abrangidas nos termos referidos, quer a sua concreta incapacidade para por si as custear, é de concluir que a mesma não fez prova dos factos constitutivos daquele direito, do que decorre a improcedência do peticionado quanto a tal.

Passemos agora para a segunda questão enunciada.

Prevê-se na parte final daquele mesmo art. 1884º nº1 do C. Civil, ao lado do direito especial a alimentos por referência ao período temporal ali previsto analisado na questão anterior, um direito a “indemnizações” também a favor da mãe.

Este direito a indemnizações reconhecido à mãe, como refere Maria Clara Sottomayor (ob. cit. na nota 1, pág. 877) “enquadra-se no instituto da responsabilidade civil por factos ilícitos e permite à mãe reclamar danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes da gravidez ou do parto (p. ex. danos pela interrupção ou suspensão da sua vida profissional ou da formação profissional). Estas indemnizações terão sido pensadas para os casos em que as relações sexuais procriadoras resultaram de um crime contra a liberdade sexual ou autodeterminação sexual da mãe, ou de um ilícito civil, como o caso de uma promessa de casamento seguida de retratação nos termos do art. 1594º/1 CC. Mas também é equacionável, como facto gerador de responsabilidade criminal e civil, a vitimação da mulher grávida por violência doméstica (art. 152º CP) ou perseguição (art. 154º-A CP), suscetível de perturbar o desenvolvimento da gravidez, ou a falta de assistência e abandono da parte do progenitor, que tenham causado danos patrimoniais e não patrimoniais à mulher grávida” (os sublinhados são nossos).

Enquadrando-se tal direito no instituto da responsabilidade civil por factos ilícitos, o mesmo está sujeito aos prazos de prescrição previstos no art. 498º nº1 do C. Civil: de três anos, que começa a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito à indemnização, e de vinte anos – prazo ordinário da prescrição (art. 309º do C. Civil) –, que começa a correr desde o facto danoso, isto é, do evento desencadeador dos danos.

No caso dos autos, a autora pede a condenação do réu em indemnização no montante de 50.000 euros por danos não patrimoniais “decorrentes da negação da paternidade da sua filha CC, e do abandono, dor, desgosto, transtorno, vergonha, humilhação, discriminação, exclusão e pobreza que sofreu na gravidez e após o nascimento da filha” (artigo 60º da p.i.), pelo que, face ao alcance do direito indemnizatório previsto no referido art. 1884º já atrás dilucidado, aquele pedido é enquadrável na falta de assistência e abandono por parte do progenitor à mulher grávida.

Face à factualidade apurada sob os nºs 6, 7, 8, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22 e 23 dos factos provados, são de considerar como verificados danos não patrimoniais com aquele enquadramento.

No entanto, e independentemente do momento temporal que se tenha como termo inicial do conhecimento daquele direito de indemnização para se equacionar do decurso do prazo de prescrição de 3 anos previsto no art. 498º nº1 – a partir do estabelecimento da paternidade, como defende a recorrente (conclusões XI e XII do recurso), ou a partir do conhecimento da sua gravidez e imediata imputação da mesma ao réu, como considerado na sentença recorrida –, o que é certo é que o facto danoso, integrado pelo abandono da autora quando grávida por parte do réu, ocorreu em 1982 (ano do nascimento da filha de ambos) e a ação apenas deu entrada a 6/2/2023, do que decorre que, aquando desta data, desde o facto danoso já tinham decorrido mais de 40 anos.

Como tal, já tinha decorrido o prazo ordinário de prescrição também previsto naquele preceito legal, o que tem como consequência a extinção do direito indemnizatório em causa.

Deste modo, improcede o pedido de indemnização deduzido pela autora.

Na sequência de tudo quanto se veio de analisar, é de julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença recorrida, ainda que por razão diversa da primeira instância quanto ao peticionado a título de alimentos.

As custas do recurso ficam a cargo da recorrente, que nele decaiu (art. 527º nºs 1 e 2 do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário concedido.


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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):

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III – Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.


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Porto, 7/10/2024
Mendes Coelho
Jorge Martins Ribeiro
Teresa Fonseca
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[1] O texto citado pertence a Maria Clara Sottomayor, in “Código Civil Anotado”, Livro IV, Direito da Família, Clara Sottomayor (Coord.) 2ª edição, Almedina, pág. 877; no sentido da aplicação dos requisitos gerais dos arts. 2003º e 2004º do C. Civil ao direito a alimentos em causa, vide o Acórdão da Relação de Coimbra de 28/9/2020, proferido no proc. nº2965/18.7T8LRA.C1 e disponível em www.dgsi.pt.