DECISÃO FINAL
OBJETO DO RECURSO
FACTOS INSTRUMENTAIS
NULIDADES DE SENTENÇA
ERRO
ANULABILIDADE
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Sumário

I – Transitado em julgado o despacho saneador que conheceu parcialmente do mérito da causa, julgando improcedente o pedido principal de declaração de nulidade da partilha extrajudicial de herança, não pode a recorrente obter a anulação ou revogação desse despacho saneador por via do recurso interposto da sentença final, que não conheceu daquele pedido principal.
II – Os factos puramente instrumentais – aqueles que permitem a afirmação, por indução, de factos essenciais – têm a sua sede própria na motivação da decisão sobre a matéria de facto, o contrário não resultando do artigo 5.º do CPC, pelo que a sua não inclusão no elenco dos factos provados ou não provados não gera a nulidade da sentença.
III – As causas de nulidade estão taxativamente enunciadas no artigo 615.º do CPC, cujo elenco não contempla a contradição entre os fundamentos, pelo que esta não gera, por si só, a nulidade da sentença, a não ser que importe alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
IV – O erro consiste na ignorância ou falsa representação de circunstâncias passadas ou presentes, isto é, relativas à situação existente no momento da celebração do negócio; distingue-se da pressuposição, que consiste na representação de um acontecimento ou realidade futura que acaba por não vem a verificar, assim se traduzindo numa imprevisão e não num erro.
V – Configurando a nossa lei civil a anulabilidade como um vício genético do negócio jurídico, esta figura da pressuposição não se enquadra na previsão do n.º 1 ou do n.º 2 do artigo 251.º do CC, relativo ao erro do declarante sobre os motivos determinantes da vontade (que não se refiram à pessoa do declaratário ou a ao objecto do negócio).
VI – Consequentemente, também não se enquadra na previsão do artigo 253.º, n.º 1, do CC, relativa ao dolo, pois este pressupõe um erro do declarante, que tenha sido induzido ou mantido com recurso a alguma sugestão ou artifício, ou que tenha sido dissimulado, pelo declaratário ou por terceiro.
VII – A acção de enriquecimento sem causa é sempre subsidiária ou residual. O empobrecido só pode lançar mão dessa acção se a lei não lhe facultar outros meios para ser ressarcido.

Texto Integral

Proc. n.º 118/16.8T8OBR.P1.P1







Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório[1]

AA, residente na Rua ..., Lugar ..., ..., ..., intentou a presente acção declarativa comum contra BB, residente na Avenida ...., ....

Alegou, em síntese, o seguinte:

CC faleceu a ../../2012, no estado de casado em segundas núpcias, no regime imperativo de separação de bens, com DD, tendo deixado como herdeiras a esposa e as ora autora e ré, suas filhas. Ainda durante o mês de janeiro de 2012, a autora, a ré e a madrasta (a quem chamavam madrinha) contactaram o escritório de advogados EE e FF que diligenciou pela elaboração e acompanhamento da partilha extrajudicial lavrada na Conservatória do Registo Predial de ... a0s 4/12/2012. A autora, quando se apercebeu que na partilha por morte de seu pai estava a ser prejudicada, suscitou a questão aos senhores advogados e a resposta foi que a partilha tinha de ser feita como estava, mas que depois haveria as necessárias correções à morte da madrinha. Os bens da herança não foram avaliados para assim a ré conseguir ludibriar e enganar a autora convencendo-a de que a partilha estava a ser feita equitativamente. Pouco depois, a 20/12/2012, a ré conseguiu persuadir a madrinha a alterar o testamento que tinha feito ainda em vida do marido, e em que deixava os bens às enteadas em partes iguais, tendo passado a deixar a maioria dos bens à ré. Esta, porém, ainda não contente com o que tinha feito, aproveitou a fragilidade e falta de saúde da madrinha e induziu-a a outorgar novo testamento do qual a ré é a única beneficiária. E mais uma vez a ré teve ajuda do referido escritório de advogados. Após a morte da madrasta (a quem chamavam madrinha) ficou a autora a saber que esta tinha instituído única e universal herdeira dos seus bens a ora ré. A autora, a quem tinham dito e garantido que o testamento da madrinha beneficiava as ora autora e ré em partes iguais, ficou estupefacta e desesperada com o facto.

Conclui pedindo:

a) que seja decretada a nulidade da partilha efetuada na Conservatória do Registo Civil/Predial/Comercial de ..., em 04/12/2012, e, consequentemente, ordenando-se que os bens partilhados sejam divididos entre A. e Ré em conformidade com a lei sucessória portuguesa com as legais consequências daí advenientes, nomeadamente, seja ordenada a anulação dos registos efetuados na sequência dessa partilha a favor da Ré, bem como informados os Serviços de Finanças da respetiva anulação por nulidade da respetiva partilha;

b) caso assim se não entenda, seja decretada a anulabilidade da partilha efetuada na Conservatória do Registo Civil/Predial/Comercial de ..., em 04/12/2012, e, consequentemente, ordenando-se que os bens partilhados sejam divididos entre A. e Ré em conformidade com a lei sucessória portuguesa com as legais consequências daí advenientes, nomeadamente, seja ordenada a anulação dos registos efetuados na sequência dessa partilha a favor da Ré, bem como informados os Serviços de Finanças da respetiva anulação por anulabilidade da respetiva partilha;

c) seja notificada a Conservatória do Registo Civil/Predial/Comercial de ...;

d) sem prescindir e subsidiariamente, deve ser considerado provado e procedente o enriquecimento sem causa e consequentemente ser a Ré ordenada a restituir à A. os bens e dinheiro que ilicitamente se locupletou à luz deste instituto.

A ré apresentou contestação, na qual invocou: a caducidade do direito da autora de arguir a anulabilidade da partilha que outorgou a 04/12/2012; a prescrição do direito da autora de exigir da ré a restituição dos “bens e dinheiro de que ilicitamente se locupletou”, a título de enriquecimento sem causa. Mais alegou que o procedimento de partilha foi efetuado de acordo com as indicações da autora, da ré e da madrinha e que esta se manteve sempre consciente, lúcida e orientada, fazendo o que desejava, de sua livre vontade.

A autora respondeu às excepções invocadas na contestação, pugnando pela sua improcedência.

Convidada a aperfeiçoar a petição inicial, a autora apresentou o requerimento de 04/10/2018.

Foi proferido despacho saneador que absolveu a ré do pedido de decretamento da nulidade da partilha.

Foi identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

Veio a realizar-se audiência de julgamento, na sequência da qual foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente e absolveu a ré de todos os pedidos.


*

Inconformada, a autora apelou desta sentença, formulando as seguintes conclusões:

«A) O presente recurso vem interposto da douta Sentença proferida que considerou a acção totalmente improcedente e, em resultado disso, absolveu a Ré de todos os pedidos.

B) A ora recorrente completamente irresignada com a improcedência in totum, vem, em sede de recurso demonstrar, que houve erro de julgamento do Tribunal a quo. Assim,

C) A primeira discordância prende-se com a Decisão da Mma Juiz tomada no Despacho Saneador. Em 10.07.2020, foi proferido nos autos, Despacho Saneador. Tendo a Mma. Juiz a “quo” se

pronunciado sobre varias questões.

D) O Tribunal a “quo”, decidiu pronunciar-se, nomeadamente, de que não existe conluio entre Advogados e clientes. Ora, com o devido respeito que é muito, o conluio existiu e ficou sobejamente provado nos autos. E,

E) No modesto entendimento da recorrente, o art. 240º do CC, aplica-se extensivamente aos presentes autos.

F) Pese embora os Senhores Advogados, não sejam partes no processo, resultou inequívoco da prova produzida em julgamento, bem como da prova documental junto aos autos, que se não fosse a participação activa e a conivência destes, a recorrida nunca teria conseguido que fosse outorgada uma partilha em que esta ficasse largamente beneficiada em relação à sua irmã.

G) A prova produzida em julgamento, expôs de forma clara que a Mma Juiz a “quo” precipitou-se ao decidir no Despacho Saneador o Pedido Principal (nulidade) e não relegar a decisão para julgamento. Isto porque,

H) Com todo o respeito se diz que, no Despacho Saneador a Mma Juiz a “quo” não detinha todos os elementos necessários, para proferir uma decisão conscienciosa e justa.

I) Assim sendo, a decisão de questões suscitadas no processo na fase do saneador, só poderá suceder quando, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, a matéria de facto não deixar dúvidas a ninguém sobre a sua procedência ou improcedência dessas questões. O que manifestamente não sucedeu in casu. Sem prescindir,

J) A Mma Juiz a quo, no modesto entendimento da recorrente violou o disposto no art artigo 607.º do CPC, na medida em que não sustenta de facto e de direito a decisão tomada de vários prismas.

K) O Tribunal a quo decidiu o Pedido Principal sem especificar quais os fundamentos de facto que levaram a tal decisão, na medida em que não se pronuncia sobre se estão provados ou não provados os factos articulados na Petição Inicial e quais os factos que deverão permitir concluir pela absolvição da Ré do pedido principal.

L) A decisão de mérito, só deve ter lugar quando haja uma muito razoável margem de segurança quanto à solução a proferir, pois de outro modo o aparente ganho de economia processual pode resultar, pela via da revogação da decisão em recurso, em perda real na duração do processo. Como sucedeu in casu.

M) Nesta medida a Decisão recorrida violou o art. 607.º do CPC e é nula nos termos da alínea b) e c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, devendo a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que inclua a matéria de facto e de direito que sustente a decisão de mérito tomada pelo Tribunal em relação ao pedido principal (nulidade). Sem conceder,

N) O vício que afecta uma decisão-surpresa é um vício que respeita ao conteúdo da decisão proferida; a decisão só é surpreendente porque se pronuncia sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes sobre a matéria; a decisão padece de um vício de conteúdo e, por isso, é nula por excesso de pronúncia (art.615.º, n.º 1, al. d).

O) Concluindo, o tribunal a quo julgou o pedido principal no despacho saneador, sem primeiro ter assegurado o exercício do contraditório quanto ao mérito da causa, omitindo deste modo um ato prescrito por lei (omissão da audição das partes quanto ao mérito da causa, como estatuído no art. 3º, nº 3, do CPC, e não estando a questão suficientemente debatida nos articulados.).

P) Destarte, procedendo, nesta parte, o recurso, há que declarar nula a decisão proferida pelo tribunal a quo, por excesso de pronuncia (no caso, decisão que conhece de matéria que, perante a não audição das partes, não podia conhecer).

Q) O vício que afecta uma decisão-surpresa é um vício que respeita ao conteúdo da decisão proferida; a decisão só é surpreendente porque se pronuncia sobre algo de que não podia conhecer antesde ouvir as partes sobre a matéria; a decisão padece de um vício de conteúdo e, por isso, é nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d).

R) Com todo o respeito se diz, mais uma vez que houve precipitação da Mma Juiz a “quo” em decidir no Saneador a improcedência do pedido principal /nulidade da partilha invocada.

Da nulidade da partilha outorgada em 04.12.2012

S) Na situação vertente resulta provado que autora/recorrente, recorrida e madrinha D. DD, procuraram o escritório do Dr. FF e do Dr. EE, a fim de este escritório tratar da Partilha por morte de CC, respectivamente pai e marido destas.

T) É facto notório que os Senhores Advogados ao prepararem e efectuarem a partilha não atenderam a determinados factos relevantes para a feitura da mesma.

U) A partilha efectuada pelos Senhores Advogados Dr. FF e Dr. EE, está tecnicamente mal efectuada, nomeadamente, por nessa partilha não ter sido levado em linha de conta os bens já partilhados por morte da mãe de recorrente e recorrida e por conseguinte em parte já pertença destas. Com efeito,

V) A mãe de recorrente e recorrida faleceu em ../../1975. Por força de seus filhos serem menores, houve lugar a inventário obrigatório n.º ...4/75 (Docs 8, 8cont, 8 cont. 2). Da partilha efectuada nesse inventário foram adjudicados os bens e preenchidos os quinhões dos herdeiros. Assim,

1- Coube ao cabeça-de-casal (pai de recorrente e recorrida), no que interessa para os presentes autos

* 9/12 da verba n.º 15 – Imóvel – casas ...

1- Autora: AA

• 1/12 da verba n.º 15 – Imóvel – casas ...

• ¼ da verba n.º 29 – Imóvel sito na ...

2- Ré: BB

• 1/12 da verba n.º 15 – casas ...

• ¼ da Verba n.º 29 – Imóvel – Casa antiga da ....

3- GG

• 1/12 da verba n.º 15 – ...

• ½ da Verba n.º 29 – Imóvel – Casa antiga da ....

W) Os senhores Advogados elaboraram vários mapas de partilha Doc. 18 da P.I. a fls 77 a 79 dos autos, mas nenhum contempla a herança por morte da mãe de recorrente e recorrida.

X) É inequívoco que desses mapas nada consta acerca de autora e ré terem 1/12 avos, quer da casa antiga da ..., quer do Prédio .... Nesta senda,

Y) Compulsados os referidos mapas de partilha, constata-se inequivocamente que a autora para além de ficar com um imóvel antigo e de valor inferior ao apartamento .... Fica com um imóvel que em parte já era seu e não tem qualquer compensação financeira pelo apartamento que ficou para a ré que também lhe pertencia em parte.

Z) Resulta inequivocamente destes mapas, que em todos eles consta que o quinhão hereditário da viúva é de 1/3 (quota disponível deixada pelo marido por testamento outorgado em 1980, constante dos autos como Doc. 20 da P.I fls 158 a 160) mais 2/9 avos resultante da legítima da viúva.

AA) Mais é evidente em todos os mapas de partilha efectuados pelos Senhores Advogados, todos eles violam a Lei sucessória, nomeadamente, o art. 2159 n.º 1, dispõe este artigo que: “A legítima do cônjuge e dos filhos, em caso de concurso, é de dois terços da herança.”

BB) Os senhores Advogados elaboraram vários mapas de partilha Doc. 18 da P.I. a fls 77 a 79 dos autos, mas nenhum contempla a herança por morte da mãe de recorrente e recorrida.

CC) É inequívoco que desses mapas nada consta acerca de autora e ré terem 1/12 avos, quer da casa antiga da ..., quer do Prédio .... Nesta senda,

DD) Mais se afere ostensivamente que nesses mapas de partilha, consta que o quinhão hereditário da viúva é de 1/3 (quota disponível deixada pelo marido por testamento de outorgado em 1980, constante dos autos como Doc. 20 da P.I fls 158 a 160) mais 2/9 avos resultante da legítima da viúva.

EE) O que não se aceita, muito menos se compreende, é que perante as percentagens acima referidas, existam vários mapas de partilha com valores diferentes para os mesmos bens. Os mapas de partilha constam dos autos a fls 79 e 49 e 123 a 129. A discrepância entre eles é evidente e não existe qualquer justificação para a mesma. Ao que se crê seriamente, os Senhores Advogados de forma ardilosa colocaram as percentagens correctas, no entanto, no segmento do conluio existente entre a ré/recorrente e estes ilustres Causídicos e com o objectivo conseguido, de atirar areia para os olhos da autora, com a desculpa da quota disponível atribuíram valores díspares nos vários mapas de partilha.

FF) A Pratica forense dita que o advogado antes de iniciar o processo de partilha tem que aferir quem são os herdeiros do de cujus, os bens que este deixou como acervo hereditário e como é que esses bens vieram à sua posse. Em face do supra exposto, impunha-se aos Senhores Advogados, confrontar o acervo hereditário da mãe da recorrente e requerida com o acervo hereditário do pai destas.

Para assim se puder aferir o que já pertencia a autora e ré por morte da mãe e consequentemente, o que lhes iria caber por morte do seu pai, herança a que concorriam com a D. DD. Bem como aferir se existiam ou não testamentos.

GG) Cumpre de sobremaneira ressalvar que os aludidos mapas de partilha também não contemplam o disposto no testamento outorgado por CC em 24.04.1980 no cartório notarial ... – Doc. 20 – Dispõe este testamento que atribuiu a quota disponível à sua esposa e que o preenchimento dessa quota começa com o prédio ..., que detém em compropriedade com os seus filhos seguidamente se houver lugar a isso pelo dinheiro que então existir. E, por outro lado, os Senhores Advogados estavam plenamente inteirados que o valor do Prédio urbano ... em 1980 era menor do que o Valor do mesmo em 2012. Existindo testamento o mesmo deve ser interpretado de acordo com aquilo que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento.

HH) Não é crível que os Senhores Advogados não tenham perguntado às suas clientes se havia dinheiro. E, mesmo que estas tivessem dito que não pretendiam partilhar o dinheiro, estes tinham a obrigação profissional de lhes comunicar que tinham que cumprir o disposto no testamento do Pai e marido destas.

II) Por último ainda em relação à partilha de 04.12.2012, há por parte dos Senhores Advogados a omissão de um imóvel – casa nova da ... – Cuja construção foi a expensas do pai de recorrente e recorrida, face ao regime imperativo de separação de bens. Com a agravante de tal imóvel ter sido construído, num terreno que pertencia exclusivamente aos seus filhos. Havendo assim preterição de uma formalidade essencial, que inquina a partilha de 04.12.2012 de nulidade. Ora,

JJ) O Tribunal a quo ao abrigo do disposto no art. 6º do CPC, após confronto com ambas as verbas certamente constatou que a mesmas respeitam ao mesmo imóvel. Só que a verba n.º 3 fala unicamente da casa antiga da ... construída pelos pais da recorrente e recorrida e nada refere em relação ao terreno e à casa aí edificada pelo pai destas, denominada casa nova da ....

KK) Quer a recorrente quer a recorrida nos depoimentos prestados falaram da construção dessa casa, no terreno que já era dos seus pais e que depois ficou unicamente para os filhos, por lhes ter sido adjudicada a verba n.º 29 no inventário. E, fizeram-nos respectivamente o depoimento de parte e declarações de parte, prestados no dia 25.11.2021 e acima transcritas. E, para onde se remete por uma questão de economia processual.

LL) Os ilustres causídicos violaram o disposto no ar. 2187º, nº1 do CC, e com tal violação inequívoca (pois em lado nenhum da partilha efectuada consta dinheiro a partilhar e existia dinheiro como infra se demonstrará), mais uma vez inquinaram a partilha em crise de nulidade. Neste sentido Ac. do TRP de 14.04.2021 – Proc. n.º 463/10.6TBGDM.P2.

MM) Dúvidas não subsistem que a partilha efectuada pelos Senhores Advogados Dr. FF e Dr. EE é nula por omissão de bens, por adjudicação de bens que já eram das partes, por disparidade na composição dos quinhões e principalmente por falsidade, pois não reflecte a partilha que deveria ser feita, e por manifesta ilegalidade, dado que a feitura da mesma viola o disposto na Lei sucessória.

NN) Numa primeira análise, não se encontra explicação para os erros crassos cometidos pelos Senhores Advogados. Com o devido respeito se diz que é inverosímil que os Senhores Advogados com a experiencia adquirida ao longo do exercício da advocacia, tenham cometido tantos erros, alguns deles grosseiros. E, tal só se explica com o invocado conluio existente entre os Senhores Advogados e a ré, para prejudicarem a autora. E tal conluio está devidamente demonstrado. Vejamos:

OO) O comportamento reprovável dos Senhores Advogados, está patenteado em vários actos por eles praticados:

- A elaboração dos vários mapas de partilha; que de nada serviram, a não ser para tentar convencer a autora/recorrente a outorgar a partilha, mesmo sabendo que estava prejudicada. O que malogradamente lograram conseguir.

- O facto de terem diligenciado pelo aumento do valor patrimonial da casa antiga da ..., para tentar diminuir a diferença de valor Patrimonial entre a casa antiga da ... e o imóvel ... correspondente à fracção M. Esta diligência não partiu da ré, muito menos da autora. E, só alguém com conhecimentos jurídicos, nomeadamente de Direito Fiscal adoptaria tal comportamento.

- A conduta censurável dos Senhores Advogados na Contestação que apresentaram, e que aqui se dispensa de mais comentários, remetendo para peça processual.

- A leitura que a autora faz do Parecer da Ordem dos Advogados junto aos autos, é que ao longo do parecer a Ordem dos Advogados considera a conduta do Dr. FF no mínimo repreensível e violadora dos arts. 83º n.º 1 e 99º n.ºs 1 e 5 do E.O.A. Como se alcança deste Parecer e para onde se remete por uma questão de economia processual.

- Mais considera a Ordem dos Advogados que para além do Dr. FF, foi também avogado da autora o Dr. EE.

E disso a autora não tem dúvidas:

* A Procuração foi outorgada em nome dos dois;

* O Cheque emitido pela autora para pagamento de honorários

* O recibo emitido do pagamento dos honorários.

* O documento da Banco 1... onde o cheque foi descontado. Estando todos estes documentos devidamente identificados supra.

PP) Pese embora os Senhores Advogados não serem partes, tendo em atenção o conluio que efectivamente existiu, entre a recorrida e os Senhores Advogados e as consequências nefastas e prejudiciais para a recorrente, esta entendeu poder haver uma interpretação extensiva do art. 240º do CC. O negócio jurídico – Partilha outorgada em 04.12.2012 – e nesta sede sindicado, está inquinado de nulidade seja por simulação, seja por falsidade, nos termos do art. 240º do CC.

QQ) Como resulta da P.I. o acordo simulatório na situação vertente não é entre as outorgantes (aqui partes), mas entre a ré e os Advogados com o intuito claro de prejudicar a autora. Como resulta da P.I., da prova documental acima identificada e prova testemunhal, nomeadamente, as declarações de parte da autora e o depoimento da testemunha HH. Remetendo-se para as transcrições acima indicadas.

RR) A talho de foice se diz que não é comum, nem correcto, que os Senhores Advogados, estando a representar ambas as partes, E, posteriormente, passados 16 dias O Dr. FF se prestem a ser testemunha junto com a sua funcionária num testamento que beneficia em larga escala uma das suas representadas (aqui recorrida) e consequentemente prejudica a outra (aqui recorrente). Vide testamento fls 463 a 465 dos autos.

SS) Pese embora os Senhores Advogados não serem parte, no humilde entendimento da recorrente, estão reunidos todos os pressupostos da simulação (a divergência entre a vontade real e a declarada, acordo simulatório e intuito de prejudicar terceiros). E, por conseguinte, in casu, haverá uma aplicação extensiva do art. 240º do CC.

TT) No fundo o que a autora pretendia com a invocação da simulação e a divergência entre a vontade real e a declarada, fazendo assim alusão ao disposto no art. 240º e 252º ambos do CC, era invocar o conluio existente entre os Senhores Advogados e a ré que efectivamente perante a prova testemunhal produzida se verificou que existiu. E, que sem embuste maquiavélico, a recorrente não tinha assinado a partilha de 04.12.2012. E, tal também resulta provado à saciedade, ao longo da prova supra transcrita.

UU) A hipótese bizarra dos autos espelha uma situação de simulação (Conluio entre os Senhores Advogados e a ré/recorrida) por servem-se da escritura de partilha para conseguirem um fim proibido por lei, pelo que, se mais não houvera, a decisão deve obstar ao objectivo anormal prosseguido por estes (art. 612.º do CPC).

Das Nulidades da Sentença recorrida

VV) A violação das normas processuais que disciplinam, em geral e em particular (artigos 607º a 609º do Código de Processo Civil), a elaboração da sentença enquanto ato processual que é, consubstancia vício formal ou error in procedendo e pode importar, designadamente, alguma das nulidades típicas previstas nas diversas alíneas do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.

WW) O dever de gestão do processo reporta-se à gestão de cada processo pelo Juiz titular, tanto genericamente, em termos de atitude do Juiz perante o processo, como na regulação concreta de determinadas actuações que o legislador entende exprimirem essa atitude. No que ao aspecto instrumental diz respeito, salienta o Autor que “O dever de condução do processo que recai sobre o juiz serve-se, como instrumento, do poder de simplificar e de agilizar o processo, isto é, o poder de modificar a tramitação processual ou actos processuais: A gestão processual é a direcção activa e dinâmica do processo civil, com vista, desde logo, a uma rápida e justa resolução do litígio. A satisfação do dever de gestão processual destina-se a garantir uma mais eficiente tramitação da causa, a satisfação do fim do processo ou a satisfação do fim do ato processual. O dever de gestão do processo encontra-se particularmente ligado ao princípio da adequação formal, previsto no artigo 547º do Código de Processo Civil. Com efeito,

XX) A gestão processual comporta um aspecto substancial e um aspecto formal.

O primeiro expressa-se no dever de condução do processo que recai sobre o Juiz, dever que é justificado pela necessidade de promover um andamento célere do processo, e, nessa medida promover as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção e recusar o que é impertinente. Neste caso, pode dizer-se que o Juiz está munido de um poder de “direcção do Processo” e de um poder de “Correcção do Processo.” – Art. 6º do CPC-

O segundo reveste um aspecto instrumental ou adequação formal (boa gestão processual) ou seja, uma decisão justa do processo, com os menores custos, a maior celeridade e menor complexidade possível e ajustável ao caso concreto. – Art. 547º do CPC -.

YY) No essencial, o dever de gestão do processo determina que o Juiz tem o dever de condução activa do processo de forma a obter com eficiência a composição justa e célere do litígio. O dever de gestão processual é instrumental relativamente à garantia de acesso aos tribunais e de obtenção de uma resolução do litígio em prazo razoável (nº 4 do artigo 20º da Constituição e artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem).

ZZ) As nulidades da sentença são taxativas. O art.º 615.º do CPC dispõe, no seu n.º 1, alínea d), que a sentença é nula, “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

AAA) Na situação dos autos a Mma Juiz a quo ao Decidir no Despacho Saneador o Pedido principal – Nulidade da partilha – e ressalvando sempre o devido respeito por melhor opinião e diferente entendimento, sem estar munida de todos os elementos para decidir, incorreu numa nulidade por excesso de pronúncia. Por sua vez, a nulidade da sentença por omissão ou por excesso de pronúncia, resulta da violação do disposto no n.º 2 do art. 660.º do CPC.

BBB) Ocorre nulidade por excesso de pronúncia quando na Sentença a Mma Juiz a “quo” conhece e decide alguma questão jurídica que não podia conhecer, ou que ainda não dispunha de todos os elementos para poder decidir. - Art. 615º nº 1, als. d) e e) do CPC.

CCC) A “omissão de pronúncia” enquanto nulidade decorre da exigência prescrita no n.º 2 do artigo 608º do CPC, nos termos do qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.

DDD) Deste modo, violou a Meritíssima Juiz a quo um dos mais elementares princípios processuais, nomeadamente, o princípio do contraditório consagrado no artigo 3.º n.º 3 do CPC.

EEE) Face ao exposto, não restam dúvidas de que a prolação da decisão final é proferida com preterição de uma formalidade essencial e, que se encontra prescrita na lei, ou seja, foi a mesma efectuada sem que as partes tivessem oportunidade de se pronunciar em relação às questões de facto e de direito. Sem prescindir,

FFF) A Mma Juiz “a quo” não se pronunciou na Sentença, sobre a não inclusão na partilha quer do terreno pertencente à verba n.º 29 do Inventário e verba n.º 3 da partilha de 04.12.2012, quer da casa que aí foi edificada.

GGG) E, consequentemente, incorreu numa nulidade por omissão de pronúncia. A nulidade por omissão de pronúncia verifica-se quando a decisão é omissa ou incompleta relativamente às questões que a lei impõe que o tribunal conheça, ou seja, às questões de conhecimento oficioso, e às questões cuja apreciação é solicitada pelos interessados processuais. Neste sentido, Ac. do STJ de 15.12.2011.

HHH) Como uniformemente tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça, a omissão de pronúncia sobre questões que lhe sejam submetidas pelas partes e como tal tem que resolver, ou de que deva conhecer oficiosamente. Ora,

III) No caso dos autos, a Mma. Juiz a “quo”, não decidiu sobre a omissão de bens na partilha de 04.12.2012, o que gerou uma preterição de uma formalidade essencial. E, tal omissão de pronúncia, interferiu no desenlace da Lide.

JJJ) Em conformidade com o disposto no art. 615º, n.º 1, al. d) do CPC, é nula a Sentença quando o Juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar Ac. do TRP, de 04.05.2022 – Proc. 2774/16.8T8PRT.P2.

KKK) A “omissão de pronúncia” enquanto nulidade decorre da exigência prescrita no n.º 2 do artigo 608º do CPC, nos termos do qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”. Nesta conformidade, verifica-se a nulidade da Sentença a “quo” por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615º n.º 1, al. d) e art. 608º n.º 2, ambos do CPC. Sem conceder,

LLL) Sempre com o devido respeito por melhor opinião e diferente entendimento, a recorrida entende que Mma Juiz a quo incorreu também numa nulidade por Contradição entre os factos provados (fundamentos) e a Decisão. Com efeito,

MMM) A Mma Juiz a quo dá como provado a partilha efectuada no inventário por morte da Mãe de recorrente e recorrida. Assim, como dá como provado na partilha de 04.12.2012, as adjudicações aí efectuadas. E, dá ainda como provado que a verba n.º 29 do inventário corresponde à verba n.º 3 da partilha outorgada em 04.12.2012.

NNN) Dito de outro modo, a Mma Juiz a quo dá como provados os factos constantes nos pontos 1,2,3,4,5,8,12,15 e 16 da Sentença. No entanto, na Sentença proferida não decide em conformidade com os factos que deu como provados. Assim sendo,

OOO) E, com todo o respeito se diz que, face aos factos provados, o Tribunal à quo tinha que considerar nula a partilha efectuada em 04.12.2012. E, não o fez. E, assim a Sentença proferida é nula por contradição entre os factos provados e a decisão.

PPP) Nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. c), a sentença é nula quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão”, o mesmo é dizer quando a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. “Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente.

QQQ) Ressalvando sempre o devido respeito por melhor opinião e diferente entendimento, a Mma Juiz a quo na Sentença proferida incorreu em mais uma contradição. Por um lado a Mma Juiz a quo dá como provado o vertido no ponto 30 dos factos provados: “A A. ficou surpreendida, indignada e revoltada pois estava convencida de que os bens da madrasta seriam divididos em partes iguais pelas duas enteadas.”

RRR) Por outro lado, a Mma Juiz dá como não provado que: “g) a A. outorgou a partilha plenamente convencida de que iria ser ressarcida posteriormente do prejuízo financeiro em que sabia estar a ser penalizada; h) a A. apenas assinou a escritura de partilha por estar certa de que seria herdeira da madrasta na mesma proporção da Ré.”

SSS) Do teor do ponto 30, dúvidas não subsistem que a Mma Juiz a quo deu como provado que a recorrente estava convencida de que os bens da madrasta seriam divididos em partes iguais pelas duas enteadas.”

TTT) Ao dar como provado o referido no ponto 30, que colide com o que decide nos factos não provados, a Mma Juiz a quo incorre numa contradição, que influiu na decisão da causa e por conseguinte é geradora de nulidade.

UUU) A acrescer ao supra referido, diz-se que existe prova testemunhal à saciedade de que a recorrente estava plenamente convencida que à morte da madrinha os bens iriam ser partilhados de igual forma pelas duas.

VVV) Resulta dos factos provados e existe prova idónea nos presentes autos que o pai da recorrente e recorrida estava casado com a Sra. D. DD no Regime Imperativo de Separação de Bens.

WWW) O regime da separação caracteriza-se assim, nos dias de hoje, por uma efectiva autonomia dos patrimónios encabeçados pelos dois cônjuges, quer no que respeita ao domínio, fruição e administração dos bens, quer no que concerne à sua alienação e oneração.

XXX) Ora, o facto de no regime de separação haver duas massas de bens autónomas, resulta inequívoco, que não existe bens comuns.

YYY) O acima referido para o regime de separação de bens convencionado, aplica-se por maioria de razão ao regime imperativo de separação de bens. Neste regime por força da imperatividade são proibidas as doações entre os cônjuges. Existem apenas bens próprios um do outro.

ZZZ) No sentido de contornar a questão da proibição das doações, o pai de recorrente e recorrida, outorga um contrato promessa de compra e venda de uma fracção “N” - doc. n.º 12, a fls 61 a 64 dos autos. No entanto quem vai outorgar a escritura de compra e venda é a sua esposa DD. Vide doc. n.º13, a fls 65 a 68 dos autos.

AAAA) Está devidamente comprovado nos autos que a D. DD era Doméstica e não auferia qualquer rendimento relativo a uma profissão ou doutra ordem. Pelo que resulta evidente que não tinha possibilidades económicas para adquirir o aludido apartamento.

BBBB) Existindo, em tal situação, violação do princípio de imutabilidade dos regimes de bens artº 1714º do Cód. Civil, e susceptível de determinar a nulidade da “doação” realizada, por força do prescrito no artº. 294º, do mesmo diploma legal. Neste sentido Ac. do TRL de 7.7.2022 – Proc. 19171/19.6T8LSB.L1-2

CCCC) Inexistindo património comum em razão do regime de separação, e por maioria de razão no regime imperativo de separação de bens, resta considerar que o dinheiro com que a D. DD adquiriu a aludida fracção “N” pertencia exclusivamente ao pai de recorrente e recorrida. E,

DDDD) Por força do supra exposto o apartamento fracção “N” tem que voltar ao acervo hereditário do pai da recorrente e recorrida por ser bem próprio deste.

EEEE) Assim, o enriquecimento consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista. Os factos assentes impõem-no e um argumento contra factual revela-o: poderá considerar-se racional entender que o pai da recorrente visou, afinal, beneficiar a sua esposa, mas estava impedido por Lei de o fazer.

FFFF) Inexistindo património comum em razão do regime de separação, e por maioria de razão no regime imperativo de separação de bens, resta considerar que o dinheiro com que a D. DD adquiriu a aludida fracção “N” pertencia exclusivamente ao pai de recorrente e recorrida.

GGGG) A Lei é clara, neste regime o dinheiro angariado por cada cônjuge pertence exclusivamente a este, mesmo que esteja numa conta conjunta. Ora,

HHHH) Está sobejamente provado nos presentes autos que o pai da recorrente e requerida recebeu de herança por morte da sua primeira esposa a quantia de 10.673,12$ - Dez mil seiscentos e sessenta e três escudos e dez centavos.

- Ressalta-se que nenhum dos filhos, recebeu tornas por parte do seu pai, que se cifram no valor de 289.566,32$ - Duzentos e oitenta e nove mil, quinhentos e sessenta e seis escudos e trinta e dois centavos.

- Com a permuta do prédio ... o pai de recorrente e recorria, recebeu para além de um apartamento 20.000.00$ Vinte mil contos. Ou seja, com os negócios que fez arrecadou pelo menos, 30.673,12$.

IIII) Está provado à saciedade nos autos, que quer o pai, quer a madrinha da recorrente e recorrida eram pessoas poupadas e os rendimentos que o pai auferia provinham das vinhas e dos produtos hortícolas que plantava e fazia, mas fundamentalmente do produto das rendas das casinhas ... até à permuta.

JJJJ) Resulta também assente que a D. DD era Dona de casa e apesar de ajudar muito o pai das recorrentes e recorridas, o dinheiro que entrava era produto dos bens próprios do pai destas. Como se comprova pela prova documental acima referida. E, também testemunhal. Vide Pags. 90 e 91 supra.

KKKK) Na situação sub judice, a Mma Juiz erroneamente considerou, que as contas bancárias poderiam ser bens comuns, o que não se concede, por a Lei não o permitir.

LLLL) O erro-vício a que se refere o n.º 1 do artigo 252.º constitui o que correntemente se designa como “erro sobre os motivos”. Cabem nesta modalidade de erro, situações múltiplas, mas entre todas pode-se encontrar como factor comum o respeitarem a fins ou móveis de natureza subjectiva do declarante.

MMMM) A autora acreditou nos advogados, mas fundamentalmente, ela sempre acreditou que nem a sua madrinha, nem a sua irmã a iriam prejudicar por alguma forma.

NNNN) Era completamente impensável para a recorrente que quer a irmã, muito menos a sua madrinha a quisessem prejudicar. E, como os Senhores Advogados para ela mereciam a máxima confiança, dado o facto de serem indicados pelo “II”, em quem confiava inteiramente. Quer a autora/recorrente, quer o seu marido acreditaram piamente no que lhes estava a ser dito.

Minuto 30:44 – Confiávamos plenamente naquilo que nos estava a ser apresentado na altura… se fosse hoje, a saber aquilo que sabemos, com certeza que não o tínhamos feito. Minuto 30.

OOOO) A anulação da partilha pressupõe dolo ou má-fé dos outros interessados, seja quanto à preterição, seja quanto ao modo como a partilha foi preparada.

PPPP) O artigo. 437º fala expressamente de “uma alteração anormal”. Isso significa que só um desvio que ultrapasse os limites da normalidade pode ser relevante. Como resulta dos presentes autos.

QQQQ) E, foi o que sucedeu nos presentes autos. A recorrente nunca teria outorgado a partilha se sequer suspeitasse que não iria ser ressarcida mais tarde.

RRRR) Não estamos perante uma erro qualquer, normal, mas sim perante uma situação invulgar e impensável, dado que nunca passou pela cabeça da recorrente que os Senhores Advogados tivessem a conduta desonrosa que tiveram.

SSSS) “O erro-motivo ou erro-vício inquina a própria formação da vontade negocial, quer a falsa ou inexacta representação de alguma circunstância decisiva para essa formação se refira a factos passados, quer se reporte a circunstâncias futuras.”

TTTT) É indubitável que o choque que a recorrente teve quando soube, constitui um desvio “anormal” Sendo que esse choque está directamente ligado à ideia da Justiça e boa-fé.

UUUU) A vontade negocial deve ser livre, esclarecida, ponderada e formada, o que in casu, manifestamente não aconteceu. Resta por fim dizer-se que estamos concomitantemente perante um erro vicio (como de resto encontra-se sobejamente alegado na P.I.). A este respeito e a título meramente exemplificativo cita-se o Ac. do STJ de 17.1.2017 – Proc. 457/14.9T8FNC.L1.S1

VVVV) É, pois, indubitável que estamos perante um erro-vício sobre os motivos mas que incide sobre a base do negócio (cfr. Ac. do STJ de 18/06/2013, proc. 493/03.4TVLSBA.L1, disponível in www.dgsi.pt).

WWWW) O erro sobre as circunstâncias que constituem a base do negócio tanto pode conduzir à anulabilidade deste, como à sua modificação segundo a equidade.

XXXX) A esta distância, confirma-se que a ré orquestrou um plano maquiavélico para sair largamente beneficiada nas partilhas quer por óbito do pai, quer por óbito da madrasta.

YYYY) O Comportamento processual e extra-processual recorrida, demonstrado nos autos, principalmente através das várias tentativas de acordo, da recorrente ter ido falar com ela antes de instaurar a presente acção e esta dizer que se iria cumprir a vontade da madrinha, como está provado pelo depoimento de JJ e para onde se remete por uma questão de economia processual.

ZZZZ) É inequívoco que a recorrida se aproveitou da boa-fé e ingenuidade da recorrente para se locupletar à sua custa. O que se apraz dizer é que a ré é visceralmente má.

AAAAA) O presente recurso vem também interposto da douta Sentença proferida em relativamente a alguns factos dados erroneamente como não provados pelo Tribunal “a quo” Com efeito,

BBBBB) O presente recurso é de facto e de direito, incidindo também sobre a prova produzida em audiência de julgamento e gravada em suporte magnético.

CCCCC) Com o presente recurso a recorrente invoca junto do Venerando Tribunal “ad quem” o exercício do duplo grau de jurisdição e consequente reapreciação da prova produzida.

DDDDD) E, com isto não se pretende a realização de um segundo julgamento, mas tão-somente a análise e reapreciação da prova nos termos do art. 662º n.º 2 do CPC.

EEEEE) E, com isto não se pretende a realização de um segundo julgamento, mas tão-somente a análise e reapreciação da prova nos termos do art. 662º n.º 2 do CPC.

FFFFF) O Principio da livre apreciação da prova, plasmado no art. 607º n.º 5 do CPC, vigora para a Primeira Instância, e, de igual modo para a Relação quando é chamada a reapreciar a decisão proferida sobre a matéria de facto.

GGGGG) Nesta senda, se requer a apreciação e modificação da matéria de facto efectuada pelo Tribunal de primeira instância.

HHHHH) Pese embora doutamente elaborada, a Sentença recorrida enferma de erro de julgamento quanto à valoração dos factos dados como não provados.

IIIII) Assim e no que concerne ao ponto h g) a A. outorgou a partilha plenamente convencida de que iria ser ressarcida posteriormente do prejuízo financeiro em que sabia estar a ser penalizada, a Mma Juiz a quo deveria ter dado como provado tal item, face à prova produzida.

JJJJJ) Em especial a prova testemunhal - declarações da recorrente, nomeadamente, o que está dito por esta nos minutos 22:00 a 31:00 “Mma. Juiz – Ó sra. Dra. mas se via que a partilha não era justa porque é que a aceitou?

- Ele ao me dizer que á morte da viúva tudo ia ser rectificado, eu acreditei.

Mma. Juiz – Mas a viúva nem sequer era vossa mãe.

- Ela não era nossa mãe, mas ela tinha...

Mma. Juiz – juridicamente como é que era rectificado, não se procurou informar?

- Não, não procurei informar, acreditei, confiei! Confiei... eu estava longe, porque a minha madrinha como disse não era nossa mãe, mas ela sempre nos tratou como filhas, sempre...

E confiei quando o Dr. FF me disse que á morte da viúva tudo ia ser rectificado, são palavras dele e eu acreditei.... Fui ingénua? Pois...

KKKKK) A confiança da recorrente na seriedade do seu pai e madrinha era cega, total. Esta confiança já vem de sempre, como de resto se deixou dito supra (pág. 37). Não foi só quando lhe dei jeito que invocou a confiança que sempre teve na palavra do pai, da sua madrinha e mesma da sua irmã.

LLLLL) A Mma Juiz a quo não valorou a confiança cega que a recorrente depositava no seu pai e madrinha e até mesmo na sua irmã. A recorrente sempre se pautou por valores de honestidade, verdade, onde a palavra vale, não é coisa vã… e na sua vida nunca prejudicou quem quer que fosse. Como diz o velho ditado, quem mal não faz, mal não pensa.

MMMMM) Já acima está referido que quer a recorrente, quer o seu marido confiavam inteiramente nos Advogados, por terem sido indicados pelo “II”, pessoa da extrema confiança deles. E, que nunca vislumbraram motivos, sequer lhes passou pela cabeça que o prejuízo com que a recorrente ficou nessa partilha, já era resultado de um plano maquiavélico orquestrado pelos Advogados e a ré/recorrida. E desta forma o ponto g) deveria ter sido dado como provado.

NNNNN) No que tange ao ponto h) factos não provados “a A. apenas assinou a escritura de partilha por estar certa de que seria herdeira da madrasta na mesma proporção da Ré;”

OOOOO) Está provado nos autos que a D. DD tratava as duas enteadas como filhas e os filhos destas como netos. E, esse sempre foi esse o convencimento da autora. E, tal certeza resultava do tratamento que a D. DD dispensava a todos, nomeadamente, às suas enteadas.

1:24:04 – A autora refere que sempre pensou ser herdeira da madrinha, porque ela sempre as tratou como filhas.

A madrinha sempre disse nos tratou como filhas. A madrinha sempre nos disse que nos tinha criado como filhos e o que havia para dividir era da mesma maneira por todos.

PPPPP) Sobre esta questão existe Prova abundante nos autos. O convencimento da autora resultava fundamentalmente da relação que tinha com a D. DD.

QQQQQ) A ré, e as testemunhas KK, HH e Dr. II. São unanimes em afirmar que a D. DD era uma pessoa extremamente correcta. E, que a harmonia familiar entre eles sempre existiu, e só se desfez quando a recorrente soube do testamento de10.09.2014.

RRRRR) A atitude da autora faz jus ao ditado “cego é aquele que não quer ver” Sendo sempre uma pessoa crédula e que não via maldade em ninguém. Aliás, desde que soube do testamento de ..., a autora sempre acreditou que a sua irmã reflectisse e retrocedesse na sua decisão. E, senão fosse a totalidade do que lhe era devido, pelo menos em parte. Mas o tiro saiu-lhe pela culatra.

SSSSS) No que respeita ao ponto e) dos factos não provados a A. estava convicta de que o apartamento que recebeu de permuta com a A..., L.da, lhe tinha sido dado pelo pai e não para preenchimento do seu quinhão hereditário por morte da mãe.

TTTTT) A autora foi esclarecedora nas suas declarações quanto a esse facto:

“Quando o prédio foi construído, ele e o prédio ainda em construção, ele disse, olha, eu o negócio que eu fiz, “Vou Ficar com 4 apartamentos desses, 4 eu vou, quero dar um para cada filho e tinha o Meu Irmão ainda era vivo e fico com um”

00:15:50 - -Mas foi o seu pai que comprou?

00:15:53 -Foi meu pai, comprou sim, foi meu pai, comprou.

….

-Olhe, portanto, é o seu pai deu 5000 Contos a cada um.

00:18:39

-Sim.

UUUUU) Era um convencimento erróneo, mas era o que pensavam e não é de admirar, uma vez que o seu pai assumiu até à sua morte todo o património, pelo que a herança da mãe já estava esquecida era tudo do pai. E, por isso foi ele que deu.

VVVVV) Apesar de estar provado nos autos que o contrário, nomeadamente através dos documentos n.ºs 9,10 e 11 dos autos. A Mma Juiz, atenta as circunstancias deveria ter dado como provado esse convencimento da recorrente.

WWWWW) Até porque não foi só ela que pensou dessa maneira, a sua irmã partilhou a mesma posição. “- Sim, quando o meu pai e a minha madrinha resolveram vender a um construtor, eu recebi um apartamento, o meu irmão recebeu outro e a minha irmã recebeu outro. (52:03)

- E quando receberam esses apartamentos receberam-nos por herança da sua mãe?

- Não Dra.”

XXXXX) No que toca ao facto dado como não provado pela Mma Juiz a quo “os Senhores Advogados disseram à A., quando esta manifestou que estava a ser prejudicada na partilha, que a partilha tinha de ser feita como estava, mas que haveria as necessárias correcções à morte da madrinha.”

YYYYY) Com o devido respeito se diz que não assiste razão à Mma Juiz a quo da forma como valorou esta prova. Está provado à saciedade o conluio entre os Senhores Advogados e a recorrida, para prejudicarem a recorrente, que começou na partilha de 04.12.2012, depois no testamento de 20.12.2012 e terminou com o testamento de 10.09.2014. Ora,

ZZZZZ) Os Senhores Advogados dizerem verbalmente que as partilhas iriam ser regularizadas á morte a viúva, face às regras de experiência comum e aos graves atropelos à Lei e à Deontologia profissional. Afigura-se uma questão mais que óvia, pois se essa afirmação a recorrente não assinava a partilha e eles não podiam dar seguimento ao restante plano, como efectivamente fizeram.

AAAAAA) No que tange ao facto dado como não provado que: b) a Ré ficou com o dinheiro que existia, à data da morte do pai, nas contas deste no Banco 2.... Uma coisa é certa a autora nunca viu a cor desse dinheiro, e seja a ré seja a madrinha face ao regime imperativo da separação de bens, nenhum delas podia usar o dinheiro a seu belo prazer e tal dinheiro tem que anulada a partilha regressar ao acervo hereditário do pai da recorrente e recorrida.

BBBBBB) Estando assente que o dinheiro que entrava nas contas bancárias era proveniente dos rendimentos dos bens próprios do pai da recorrente e recorrida; está desta forma ilidida a presunção do art. 1736º n.º 2 do CC.

CCCCCC) Uma vez que esse saldo bancário é bem próprio do pai de recorrente e recorrida. Como de resto melhor ficou demonstrado supra e para onde se remete por uma questão de economia processual. Flui do exposto que o saldo das contas bancárias, apesar de serem conjuntas, e elidida a presunção, pertence integralmente ao pai de recorrente e recorrida.

DDDDDD) No que concerne ao ponto h) A recorrente sempre acreditou que iria ser herdeira da madrasta na mesma proporção que a recorrida, resulta do acima exposto e da confiança que esta depositava na sua madrinha que sempre considerou como mãe e uma pessoa séria incapaz de prejudicar quem quer que seja, muito menos a ela.

EEEEEE) A recorrente acreditava piamente que entre ela e a madrinha havia uma relação de mãe e filha. E, atenta a harmonia familiar que sempre existiu, nunca a recorrente sequer pensou que a sua madrinha a prejudicasse no que quer que seja, muito menos com a amplitude que foi. 1:24:04 – A autora refere que sempre pensou ser herdeira da madrinha, porque ela sempre as tratou como filhas. A madrinha sempre disse nos tratou como filhas. A madrinha sempre nos disse que nos tinha criado como filhos e o que havia para dividir era da mesma maneira por todos.

FFFFFF) E, nada a demove de que não foi intenção da sua madrinha prejudicá-la, nem a si, nem aos seus filhos que considerava como netos, e de quem tanto gostava.

GGGGGG) Está certa que foi a sua irmã que a persuadiu, mesmo a chantageou a fazer o que fez. A sua madrinha era uma pessoa extremamente correcta e de todo fazia, o que fez sem ser ter sido pressionada e coagida a faze-lo.

HHHHHH) Tais factos deveriam ter sido ser dados como provados.

Os fundamentos da impugnação e os meios probatórios que sustentam uma decisão diferente da que foi proferida pela 1.ª instância são aqueles que constam das páginas 67 a 95 da motivação do recurso (cfr. Ac. do STJ de 01.10.2015, Relatora Ana Luísa Geraldes).

Do enriquecimento sem causa.

IIIIII) Calcorreando o presente recurso e da matéria de facto apurada, resulta inequívoco que a recorrida no segmento de um plano maquiavélico engendrado com os Advogados, conseguiu locupletar-se à custa da recorrente.

JJJJJJ) In casu a recorrida com o embuste conseguido, ficou com quatro apartamentos na ... na linha da praia. Mais dinheiro e outros haveres.

KKKKKK) Encontram-se verificados os requisitos para que subsidiariamente, sendo caso, seja decretado o enriquecimento sem causa e a recorrida seja obrigada a restituir/indemnizar a recorrente. Uma vez que o beneficio obtido pelo enriquecido resultou de um prejuízo do empobrecido.

LLLLLL) A Sentença recorrida violou nomeadamente os arts. 240º, 252º e 2187 do CC, 608º, 615, 660,547 e 3º do CPC

ESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO V.EXAS. DEVE SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E,

- SER DECRETADA NULIDADE DA SENTENÇA DE PRIMEIRA INSTÂNCIA, SER A SENTENÇA RECORRIDA SER CONSIDERADA NULA COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS; SEMCONCEDER,

- SER REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA ANULADA, COM AS LEGAIS CONSEQUENCIAS DAÍ ADVENEINETES,

- SEREM DADOS COMO PROVADOS OS FACTOS, NÃO PROVADOS NA SENTENÇA A QUO E ASSIM MODIFICADA A DECISÃO RECORRIDA

- SER SUBSIDIARIAMENTE DECRETADO O ENRIQUECIMENO SEM CAUSA».


*

A recorrida respondeu à alegação da recorrente, pugnando pela total improcedência do recurso interposto.

Mais requereu, ao abrigo do artigo 636.º do CPC, a ampliação do objecto do recurso, com vista à apreciação das exceções de caducidade do direito de arguir a anulabilidade do negócio e de prescrição do direito de restituição com base no enriquecimento ilícito.

Formulou as seguintes conclusões (na parte relativa à ampliação do objecto do recurso):

«(…)

T) O Tribunal “a quo” não se pronunciou sobre as exceções apresentadas pela Ré/Recorrida em sede de contestação, concretamente, a caducidade do direito da Autora de arguir a anulabilidade da partilha que outorgou a 04/12/2012 e a prescrição do direito da A. de exigir da Ré a restituição dos “bens e dinheiro de que ilicitamente se locupletou”, a título de enriquecimento sem causa.

U) Quanto a caducidade do direito de arguir a anulabilidade determina o n.º 1 do art.º 287º do Código Civil, que a anulabilidade, tem de ser suscitada “dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento”.

V) Ficou provado que o instrumento/escritura de partilhas foi celebrada em 04.12.2012, tendo sido assinada pelas outorgantes, pelo autorizando e pela Senhora Conservadora que presidiu ao ato.

W) Pelo menos nessa data as partes outorgantes (Autora/Recorrente, Ré/Recorrida e a viúva, DD) tomaram conhecimento dos bens que compunham a herança deixada por óbito de CC e da forma como se procedeu à partilha.

Y) A presente ação deu entrada 27 de fevereiro de 2016, pelas 18:42:55 GMT, conforme se verifica de certificação digital da peça processual na plataforma Citius.

Z) Verifica-se que entre a data da celebração da partilha (04.12.2012), momento em que a Autora/recorrente teve pleno conhecimento de todas as circunstâncias que envolviam o negócio (bens pertencentes á herança, valor de quinhão hereditário, valor dos bens a partilhar, adjudicações efetuadas entre outros) e a data em deu entrada a presente ação decorreram mais de três anos, pelo que força do n.º 1 do art.º 287º do Código Civil encontra-se precludido o direito de suscitar a pretendida anulabilidade.

AA) No referente à exceção de prescrição do direito de restituição com base no enriquecimento ilícito, importa referir que o artigo 482º do Cód. Civil estabelece que “O direito à restituição por enriquecimento prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do enriquecimento.”

BB) Tendo a partilha sido concretizada (04.12.2012), momento em que a Autora/recorrente teve pleno conhecimento de todas as circunstâncias que envolviam o negócio e dos direitos que lhe competiam, caso tenha existido locupletamento ilícito por parte da ré, em prejuízo da autora, o direito à restituição prescreveria passados três anos, em 04.12.2015.

CC) A presente ação, como já foi referido deu entrada em 27 de fevereiro de 2016, pelo que nessa data o direito se encontrava prescrito.

DD) Deve portanto, à luz do art. 636 do CPC, o âmbito do presente recurso ser ampliado e ser considerada admissível a dedução do pedido reconvencional.

EE) Em face de tudo quanto foi exposto, cabe concluir pela falta manifesta, completa e absoluta de fundamento do recurso apresentado pela Autora/Recorrente que, assim, deve ser julgado improcedente, exceto na parte alvo de ampliação».


*

A recorrente pronunciou-se, pugnando pela improcedência da ampliação do objecto do recurso, mais solicitando a condenação da recorrida como litigante de má-fé.

*

A Sra. Juíza a quo pronunciou-se sobre as nulidades da sentença arguidas pela recorrente, pugnando pela sua não verificação.

*

II. Objecto do Recurso

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).

As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente e, no que respeita ao pedido de ampliação do objecto do recurso, são as seguintes:

1. A nulidade da decisão de mérito proferida no despacho saneador, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), do CPC;

2. A nulidade da partilha extrajudicial celebrada no dia 04.12.2012;

3. A nulidade da sentença recorrida, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alíneas c), d) e e), do CPC;

4. O erro do julgamento quanto à matéria de facto;

5. A anulabilidade da partilha extrajudicial celebrada no dia 04.12.2012;

6. O enriquecimento sem causa da ré;

7. A caducidade do direito de anular o contrato de partilha;

8. A prescrição do direito indemnizatório com fundamento no enriquecimento sem causa.


*

III. Fundamentação

A. Os Factos
1. Factos julgados provados pelo Tribunal a quo
São os seguintes os factos julgados provados pelo tribunal de primeira instância:
1 – Por óbito de LL, falecida a ../../1975, correu termos inventário obrigatório com o n.º ...4/75 da comarca de Vagos, no qual foi cabeça de casal o cônjuge supérstite CC, tendo ficado como herdeiros os filhos do casal AA, de 12 anos, BB, de 11anos e GG, de 9 anos de idade – fls. 120/122 (A).
2 – Na conferência de interessados de 24/07/1975 houve acordo sobre a composição dos quinhões, que foram preenchidos da forma constante de fls.110/114 (B).
3 – O mapa da partilha de fls. 123/127 foi homologado por sentença de 13/10/1975, transitada em julgado a 24/10/1975 – fls. 119/127 (C).
4 – No dia ../../1976, contraíram casamento católico CC e DD sob o regime imperativo de separação absoluta de bens – fls. 44 (D).
5 – CC faleceu a ../../2012, no estado de casado com DD – fls. 35 (E).
6 – Entre a “A..., L.da”, representada pelo seu sócio-gerente MM (1.º outorgante), e CC (2.º outorgante) foi celebrado o contrato-promessa de compra e venda junto a fls. 61/62, nos termos do qual a 1.ª outorgante prometeu vender ao 2.º outorgante, e este prometeu comprar, por 13.500.000$00, um apartamento tipo T1, ao nível do r/c do Bloco ... do edifício composto por três blocos designados pelas letras “A”, “B” e “C”, que está a ser construído num terreno sito na Av. ..., na Praia ..., freguesia ..., concelho ..., obra esta autorizada pelo alvará de licença de construção n.º ...4/97 emitido pela Câmara Municipal ....
7 – Por escritura de 20/01/1988, DD comprou à “A..., L.da”, por 9.000.000$00 (pagos e recebidos) a fração designada pela letra “N”, destinada a habitação, correspondente ao r/c direito do Bloco ... do prédio urbano sito na Avenida ... – Praia ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...09 – fls. 66/67 (F).
8 – GG faleceu a ../../2002, no estado de solteiro – fls. 70 (G).
9 – DD faleceu a ../../2015, no estado de viúva de CC - fls. 72 (H).
10 – Deixou testamento, outorgado a 10/09/2014, no qual instituiu como única e universal herdeira BB, solteira, maior, e revoga o testamento outorgado a 20/12/2012, exarado de fls. 90v. a fls. 92 do livro de notas para testamentos públicos e escrituras de revogação nº 6 do Cartório Notarial ... – fls. 75/76 (I).
11 – No dia 20/12/2012, no Cartório Notarial ..., DD outorgou testamento no qual deixa à sua enteada BB os seguintes bens imóveis: um – casa de habitação, logradouro e quintal, sita em ..., freguesia ..., inscrita na matriz urbana sob o artigo ...14; dois – fração autónoma designada pela letra “N”, destinada a habitação, no r/c do prédio urbano sito à Av. ..., Praia ..., freguesia ..., ..., inscrita na matriz urbana sob o artigo ...34...; três – terra de cultura e vinha, em ..., freguesia ..., inscrita na matriz rústica sob o artigo ...08. E legou à sua enteada AA: quatro – fração autónoma designada pela letra “O”, destinada a habitação, no 1º andar do prédio urbano sito à Av. ..., Praia ..., freguesia ..., ..., inscrita na matriz urbana sob o artigo ...34.... Do remanescente dos seus bens móveis, imóveis, dinheiro, ouro e outros haveres pessoais institui herdeira universal a referida BB. Revoga qualquer outra disposição de última vontade que haja feito – fls. 463/465.
12 – No dia 24/04/1980, DD fizera o seu primeiro testamento de fls. 165/166 a instituir seu único e universal herdeiro o marido CC e, no decesso deste, as filhas deste AA e BB em partes iguais (J).
13 – AA nasceu a ../../1963 e foi registada como filha de CC e de LL – fls. 85 (K).
14 – BB nasceu a ../../1964 e foi registada como filha de CC e de LL – fls. 90 (L).
15 – Por testamento de 24/04/1980, CC instituiu única e universal herdeira de todos os bens, direitos e ações que, no momento da sua morte, compuserem toda a quota disponível, sua atual esposa DD (…), começando o seu preenchimento pela quota-parte que tem no prédio urbano sito na Praia ..., freguesia ..., concelho ..., e que lhe pertence em compropriedade com os três filhos do primeiro matrimónio e, seguidamente, se houver lugar a isso, pelo dinheiro que então existir – fls. 158/160 (M).
16 – Por escritura de partilha da herança deixada por óbito de CC, falecido a ../../2012, realizada a 04/12/2012, a sua viúva DD e as duas filhas AA e BB, precedendo escritura de habilitação de herdeiros nº ...65/2012, realizada a 22/03/2012, procederam à partilha da herança deste pela forma constante de fls. 93/97, nos termos da qual foram adjudicados: 1º - à viúva, DD, a verba nº 1 – fração autónoma designada pela letra “O”, correspondente ao 1º andar direito, Bloco ..., destinado a habitação, que faz parte do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...09/19981014; 2º - à interessada AA as verbas nºs. 3, 4, 5, 6 e 11; à interessada BB as verbas nºs. 2, 7, 8, 9 e 10 (N).
17 – Todas as verbas foram adjudicadas pelo valor matricial, sendo que a DD declarou ter recebido as tornas devidas e que HH, marido da AA, deu autorização a esta para a prática do ato (O).
18 – A escritura está devidamente assinada pelas outorgantes, pelo autorizando e pela Senhora Conservadora que presidiu ao ato (P).
19 – Por escritura, de habilitação e permuta de 13/12/1996, de fls. 140/148, CC, AA, BB e GG cederam à “A..., L.da”, os três prédios identificados a fls. 143/144 e receberam em troca as quatro frações também ali identificadas acabadas, livres de ónus ou encargos, prontas a habitar e licenciadas – fls. 145/146 (Q).
20 – Os cônjuges de CC (DD) e de AA (HH) prestaram consentimento para o ato – fls. 147 (R).
21 – Esta escritura foi retificada pela de fls. 154/157, quanto à identificação das frações, no sentido de que pertencem ao Bloco ... e ao lado das frações, correspondendo a que está identificada em primeiro lugar ao 1.º andar esquerdo (fração P), a segunda, ao 2.º andar esquerdo (fração R), a terceira ao 1.º andar direito (fração O) e a quarta ao r/c esquerdo (fração M) (S).
22 – À data da sua morte, CC era contitular de contas, no Banco 2..., no valor de € 88,97 e de € 13.877,16 – fls. 345 (T).
23 – Estes montantes foram transferidos para DD – fls. 347 (U).
24 – E tinha no Banco 3... conta com o saldo de € 16.817,86, de que era contitular com a mulher DD – fls. 351/355 (V).
25 – A A., a Ré e a madrasta DD contactaram o escritório de advogados do Dr. EE e do Dr. FF, por indicação de II, com quem a Ré tinha anteriormente vivido em união de facto.
26 – Foi o Dr. FF quem acompanhou a partilha da herança referida em 16 dos Factos Provados.
27 – A A. deixou sempre que os bens que herdou por morte da mãe fossem administrados pelo seu pai, com exceção do apartamento que lhe coube em consequência da escritura de escritura de habilitação e permuta referida em 19 dos Factos Provados.
28 – A A. teve conhecimento, após a morte do pai, da existência dos testamentos da madrasta e do pai referidos, respetivamente, em 12 e 15 dos Factos Provados.
29 – A A. teve conhecimento, após a morte da madrasta, dos testamentos referidos em 10 e 11 dos Factos Provados.
30 – A A. ficou surpreendida, indignada e revoltada pois estava convencida de que os bens da madrasta seriam divididos em partes iguais pelas duas enteadas.
31 – A A. dirigiu-se ao escritório do Dr. FF que lhe disse que tinha minutado e acompanhado a feitura de um testamento anterior, tendo-lhe facultado a cópia da minuta junta a fls. 73.
32 – A A. dirigiu-se, então, ao Cartório Notarial ... para obter uma cópia do testamento celebrado no dia 20/12/2012 e referido em 11 dos Factos Provados.
33 – A Senhora Notária disse-lhe que a D. DD tinha lá estado para revogar este testamento e fazer um novo a beneficiar só uma das enteadas.
34 – A Senhora Notária achou que a D. DD estava lúcida mas indecisa quanto ao que fazer, pelo que a aconselhou a ir para casa pensar melhor no que queria fazer, o que foi aceite pela D. DD.
35 – O dinheiro que se encontrava depositado na conta referida em 24 dos Factos Provados foi transferido para uma conta do Banco 3... de que eram contitulares DD e as ora A. e Ré.
36 – A A. e a Ré foram levantar, a 13/02/2015, a quantia de € 16.500,00 que se encontrava depositada na conta do Banco 3... referida em 35 dos Factos Provados – fls. 402.
37 – A Ré ficou com a quantia que constituía o saldo desta conta bancária em seu poder.
38 – Por força do acervo hereditário por morte da mãe da A., coube à A. 1/4 do imóvel urbano descrito na verba nº 29 do inventário, cabendo também 1/4 deste imóvel à ora Ré e 1/2 ao irmão GG, falecido a ../../2002 (do qual foi herdeiro o pai CC).
39 – O prédio urbano da verba nº 29 do inventário corresponde à verba nº 3 da partilha referida em 16 dos Factos Provados.
40 - A fração identificada em 7 dos Factos Provados foi paga com dinheiro pertencente ao pai da A. e da Ré.
41 – O advogado Dr. FF e a funcionária do seu escritório NN foram as testemunhas do testamento referido em 10 dos Factos Provados.

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2. Factos julgados não provados pelo Tribunal a quo
O tribunal recorrido julgou não provados os seguintes factos:
a) o dinheiro que existia na conta identificada em 24 dos Factos Provados era pertença exclusiva do pai da A. e da Ré;
b) a Ré ficou com o dinheiro que existia, à data da morte do pai, nas contas deste no Banco 2...;
c) a Sra. Notária Dra. OO disse à A. que a Ré tinha acompanhado a madrinha no dia em que esta se deslocou ao Cartório de ... para fazer a revogação do testamento de 20/12/2012;
d) a D. DD disse à Senhora Notária que não queria prejudicar a ora A. mas que estava a ser pressionada;
e) a A. estava convicta de que o apartamento que recebeu de permuta com a A..., L.da, lhe tinha sido dado pelo pai e não para preenchimento do seu quinhão hereditário por morte da mãe;
f) os Senhores Advogados disseram à A., quando esta manifestou que estava a ser prejudicada na partilha, que a partilha tinha de ser feita como estava, mas que haveria as necessárias correções à morte da madrinha;
g) a A. outorgou a partilha plenamente convencida de que iria ser ressarcida posteriormente do prejuízo financeiro em que sabia estar a ser penalizada;
h) a A. apenas assinou a escritura de partilha por estar certa de que seria herdeira da madrasta na mesma proporção da Ré;
i) a Ré aproveitou a fragilidade e a falta de saúde da madrinha e induziu-a a outorgar os novos testamentos, valendo-se do facto de ser enfermeira e viver mais próxima da madrinha..
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B. O Direito
1. Da nulidade e do erro de julgamento do saneador-sentença
Embora interponha recurso da sentença final proferida em 12.02.2024, a recorrente começa por afirmar que a primeira discordância se prende com a decisão proferida no despacho saneador que, conhecendo parcialmente do mérito da causa, julgou improcedente o pedido principal e absolveu a ré do mesmo – cfr. conclusões A) a C).
Concretizando esta alegação, a recorrente enumera o que considera serem causas de nulidade daquela decisão, nos termos previstos no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), do CPC. De seguida, descreve as razões pelas quais entende que o tribunal a quo devia ter julgado procedente o primeiro dos pedidos por si deduzido e, por conseguinte, declarado a nulidade da partilha extrajudicial outorgada pela autora, pela ré e pela madrasta destas em 04.12.2012 – cfr. conclusões D) a UU).
A improcedência desta argumentação é absolutamente manifesta e indiscutível.
Desde logo porque o recurso da sentença que conheceu de parte do mérito da causa não é o meio próprio para obter a alteração do saneador-sentença que já havia conhecido da parte restante.
Mas também – e sobretudo – porque a decisão de mérito proferida no despacho saneador já transitou em julgado, pelo que este Tribunal ad quem já não pode sindicar aquela decisão, ainda que por via dos seus poderes de apreciação da sentença final.
Nos temos do artigo 628.º do CPC, a decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação. Assim, como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2019, p. 751), «[q]uando a decisão é susceptível de recurso ordinário, tal efeito consuma-se no momento em que se encontram esgotadas as possibilidades de interposição de recurso. Nas demais situações, ocorre no fim do prazo (que é o geral, de 10 dias – art. 149.º) para a eventual arguição de nulidades ou da reforma da sentença, nos termos dos artigos 615.º, n.º 4, e 616.º, n.º 3» do CPC.
No caso concreto, a decisão que, em sede de saneador, julgou improcedente o pedido de declaração de nulidade da partilha extrajudicial em discussão nos autos e, por conseguinte, absolveu a ré do pedido principal, era susceptível de recurso, nos termos previstos no artigo 629.º, n.º 1, do CPC, atento o valor da acção e o total decaimento da autora no pedido que deduziu a título principal.
Acresce que aquela decisão admitia apelação autónoma, ao abrigo do artigo 644.º, n.º 1, al. b), do CPC, nos termos do qual cabe recurso de apelação do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa (ou absolva da instância o réu ou algum dos réus) quanto a algum ou alguns dos pedidos. Tal significa que aquela decisão podia ser imediata e isoladamente impugnada por via de apelação – que, por essa razão, a lei adjectiva como autónoma –, não tendo essa impugnação de aguardar a prolação da decisão final, como sucede com as decisões a que se referem os n.ºs 3 e 4 do mesmo artigo 644.º.
O prazo para interpor recurso do saneador-sentença era, portanto, de 30 dias contados desde a sua notificação, nos termos previstos no artigo 638.º do CPC, o qual se esgotou muito antes da interposição do presente recurso de apelação e da própria prolação da sentença recorrida.
Não tendo sido interposto recurso do saneador-sentença, o mesmo transitou em julgado, com os efeitos previstos no artigo 619.º do CPC, que preceitua assim: «Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º».

Nestes termos, o pedido de declaração de nulidade da partilha em discussão nos autos já foi definitivamente julgado, não podendo essa decisão ser sindicada por via de recurso, pelo que improcede a pretensão da recorrente de ver aqui declarada a nulidade do despacho saneador, bem como de ver declarada a nulidade da partilha extrajudicial celebrada no dia 04.12.2012, ali julgada improcedente.

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2. Da nulidade da sentença recorrida
Veio, de seguida, a recorrente invocar a nulidade da sentença recorrida, com fundamento no disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas c), d) e e), do CPC – cfr. conclusões VV) a TTT).
Para o efeito, começa por a alegar que, ao decidir no despacho saneador o pedido principal – nulidade da partilha – sem estar munida de todos os elementos para decidir, incorreu numa nulidade por excesso de pronúncia. Mas deste modo está, verdadeiramente, a alegar novamente a nulidade do saneador-sentença e não a nulidade da sentença final. Ora, já vimos que este tribunal não pode sindicar a decisão proferida naquele saneador-sentença. De resto, nem se consegue compreender como poderia o conhecimento de uma questão no despacho saneador configurar um excesso de pronúncia da sentença que não conheceu daquela questão.
Num raciocínio muito rebuscado e de difícil compreensão, a recorrente parece pretender afirmar que o excesso de pronúncia reside no facto de a sentença final ter sido proferida sem que as partes tenham tido a oportunidade de se pronunciar sobre as questões de facto e de direito apreciadas no despacho saneador. Mas o que decorre desta argumentação é que a alegada violação do contraditório teria inquinado a decisão de mérito proferida no próprio saneador-sentença, sendo o não conhecimento do pedido principal na sentença final uma mera decorrência do esgotamento do poder jurisdicional do tribunal sobre essa matéria, nos termos previstos no artigo 613.º, n.ºs 1 e 3, do CPC. Se a recorrente não impugnou o saneador-sentença no momento e pelo meio adequados, não pode agora pretender que a sentença final foi proferida sem prévio exercício do contraditório relativamente a questões que, por terem sido apreciadas naquele despacho, já não o podiam ter sido na sentença final.
Alegou ainda a recorrente que a M.ª Juíza a quo não se pronunciou, na sentença, «sobre a não inclusão na partilha quer do terreno pertencente à verba n.º 29 do Inventário e verba n.º 3 da partilha de 04.12.2012, quer da casa que aí foi edificada» e, «consequentemente, incorreu numa nulidade por omissão de pronúncia».
Nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Decorre desta norma que o juiz não pode deixar de apreciar alguma questão cuja resolução a lei lhe imponha, ou seja, não pode deixar de conhecer as questões, de facto ou de direito, suscitadas pelas partes ou de que deva conhecer oficiosamente, que se mostrem relevantes para o resultado da lide. Recorde-se que, como já está implícito na exposição que antecede, os vícios formais (error in procedendo) da decisão sobre a matéria de facto são, hoje, vícios da sentença, por força da integração neste acto da pronúncia sobre a matéria de facto. A este respeito, vide Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª ed., Almedina, 2014, 601 e 602.
A imposição legal em apreço não se reporta a cada um dos argumentos esgrimidos pelas partes, exigindo apenas que o tribunal não deixe de apreciar a questão essencial. Em consonância com o exposto, escreve-se no ac. do STJ, de 05.05.2021 (proc. n.º 64/19.3T9EVR.S1.E1.S1) que a omissão de pronúncia geradora de nulidade da sentença «[o]corre quando o tribunal deixa de apreciar e julgar questões de facto e/ou de direito que lhe foram submetidas pelos sujeitos processuais ou que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos e não argumentos mais ou menos hipotéticos, opinativos ou doutrinários».
As questões de facto cuja omissão (ou excesso) de pronúncia são susceptíveis de gerar este vício reconduzem-se aos factos essenciais, ou seja, aos factos constitutivos e aos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor, pois são esses os factos que o tribunal está obrigado a apreciar e a julgar provados ou não provados, como decorre do disposto nos artigos 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, al. d), 574.º, 576.º, 607.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, todos do CPC, e nos artigos 342.º e seguintes do CC. Neste sentido, vide Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, cit., p. 606.
Determinar quais são os factos constitutivos do direito do autor (cujos ónus de alegação e prova impendem, em princípio, sobre este), por contraposição aos factos impeditivos, modificativos e extintivos desse direito (cujos ónus de alegação e prova impendem, em princípio, sobre o réu), é algo que só com recurso ao direito substantivo se pode fazer. Como diz Anselmo de Castro (Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Coimbra 1982, p. 353), «não há por natureza factos constitutivos, impeditivos ou extintivos. Seria, por isso, erro dar invariavelmente a um facto uma outra natureza. O que para um direito ou no domínio de uma relação jurídica é facto impeditivo, para outro bem pode ser facto constitutivo. É, pois, à respectiva norma ou normas aplicáveis e só a elas, que há que recorrer. Assim, mais do que de factos constitutivos, impeditivos ou extintivos, se deve falar de normas constitutivas, impeditivas, ou extintivas».
Subjacente a esta construção está a teoria das normas de Rosenberg, generalizadamente aceite entre nós, que Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora (Manual de Processo Civil, p. 455) expressivamente sintetizam da seguinte forma: «Cada uma das partes terá assim (o ónus) de alegar e provar os factos correspondentes à previsão da norma que aproveita à sua pretensão ou à sua excepção. Cada uma das partes tem de provar os factos que constituem os pressupostos da norma que lhe é favorável».
Voltando ao caso concreto, os factos cuja omissão a recorrente invoca não configuram factos essenciais para a decisão da causa.
No que concerne ao pedido deduzido por via principal, de declaração de nulidade da partilha extrajudicial, a questão já nem sequer se coloca, visto que o mesmo já foi definitivamente julgado improcedente. Seria, assim, inútil – e, por isso, proibido – analisar aqui se a omissão de bens na partilha é constitutiva de alguma das causas de nulidade invocadas pela autora ou de outra que incumbisse ao tribunal conhecer oficiosamente.
Quanto ao pedido, apreciado na sentença recorrida, de anulabilidade da mesma partilha extrajudicial com fundamento em vício da vontade, a alegada omissão de bens da herança seria, quando muito, um facto instrumental. Mas, nessa medida, teria a sua sede própria na motivação da decisão sobre a matéria de facto e não nesta matéria. Note-se que o contrário não resulta do artigo 5.º, n.º 2, al. a), do CPC. Neste sentido, escrevem o seguinte Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (cit., p. 29): «Quanto aos factos instrumentais (aqueles que permitem a afirmação, por indução, de factos cuja prova depende o reconhecimento do direito ou da excepção), não se mostra imprescindível a sua alegação, isto é, não há ónus de alegação quanto aos mesmos, não havendo também qualquer tipo de preclusão, pelo que poderão ser livremente averiguados e discutidos na audiência final em torno da produção e valoração dos meios de prova e em face dos temas da prova enunciados. Sobre os mesmos não tem de existir necessariamente uma pronúncia judicial, na medida em que sirvam apenas de apoio à formação da convicção acerca da restante factualidade, maxime quando, a partir deles, se possam inferir outros factos mediante presunções judiciais (arts. 607.º, n.º 4, 5.º, n.º 2, al. a)), situações em que basta que sejam enunciados na motivação da sentença (cf. anot. aos arts. 186.º, 552.º e 607.º)» (sublinhados nossos).
Em todo o caso, como veremos melhor quando apreciarmos a questão de direito, tanto este como o último dos pedidos deduzidos – de restituição com fundamento no enriquecimento sem causa – devem improceder ainda que se julguem provados todos os factos alegados pela autora, como se decidiu na sentença recorrida, pelo que a eventual omissão de pronúncia quando a algum facto essencial oportunamente alegado sempre se revelaria irrelevante.
Pelo exposto, improcede também a alegação da nulidade por omissão de pronúncia.
A recorrente invocou ainda a nulidade da decisão recorrida por contradição entre os pontos 1 a 5, 8, 12, 15 e 16 dos factos provados e a decisão, alegando que a M.ª Juíza a quo deu como provada a partilha efectuada no inventário aberto por morte da mãe das partes e as adjudicações efectuadas na partilha extrajudicial de 04.12.2012, dando ainda como provado que a verba n.º 29 daquele inventário corresponde à verba n.º 3 desta partilha de 04.12.2012, mas não decidiu em conformidade com estes factos, pois estes impunha que considerasse nula a partilha efectuada em 04.12.2012.
Mais uma vez, esta argumentação desconsidera o trânsito em julgado do saneador-sentença. Os factos descritos nos pontos 1 a 5, 8, 12, 15 e 16 já haviam sido julgados provados em sede de saneador, aí descritos sob as alíneas A) a E), G), J), M) e N). Não obstante, como vimos, foi aí julgado improcedente o pedido de declaração de nulidade da partilha extrajudicial outorgada em 04.12.2012. Como também já dissemos, o tribunal não voltou a apreciar este pedido, nem o podia ter feito, na sentença final, agora sob recurso. Por conseguinte, a haver alguma contradição entre aqueles fundamentos de facto e a decisão, a mesma reportar-se-ia ao saneador-sentença e não à sentença final. Ora, como também já dissemos, aquele saneador-sentença transitou em julgado, por falta de impugnação oportuna e processualmente válida, não podendo ser agora sindicado por este Tribunal. Pelo exposto, cai pela base a alegada nulidade.
Por fim, a recorrente insistiu na nulidade da sentença, desta feita por contradição entre o ponto 30 dos factos provados e os pontos g) e h) dos factos provados.
Sucede que as causas de nulidade da sentença são apenas as taxativamente previstas no artigo 615.º do CPC, como a própria recorrente admite, não integrando o respectivo elenco a contradição entre os fundamentos, mas apenas a oposição entre os fundamentos e a decisão.
Compreende-se que assim seja. A este respeito afirma-se o seguinte no acórdão do STJ de 03.03.2021 (proc. n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1): «Há que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual – nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma – ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma». Ora, a oposição entre os fundamentos e a decisão afecta necessariamente a regularidade do silogismo judiciário. O mesmo não sucede com a contradição entre os próprios fundamentos, a não ser que estes importem alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, o que, no caso, não se afigura ocorrer e nem sequer foi alegado pela recorrente.
O que a alegação da recorrente procura sustentar é que a demonstração do ponto 30 dos factos provados devia ter levado o tribunal a julgar igualmente provados os pontos g) e h) dos factos não provados, ou seja, que ocorreu um erro no julgamento destes últimos factos, que serve de fundamento à impugnação da decisão sobre a matéria de facto que, efectivamente, deduziu. É, portanto, nesta sede que a questão deve ser analisada, não correndo a invocada nulidade.
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3. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto

a. Nos termos do artigo 640.º, n.º 1, do CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, (a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, (b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e (c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, conforme preceitua a al. a), do n.º 2, do mesmo artigo.

Dispõe, por sua vez, o artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

As normas dos artigos 640.º e 662.º do CPC concretizam o papel que o legislador pretendeu atribuir aos tribunais de segunda instância no âmbito da reapreciação da matéria de facto, assumindo-a como uma função normal da Relação, por contraste com a excepcionalidade que, no passado, a caracterizava, mas rejeitando soluções maximalistas que a transformassem numa repetição do julgamento, rejeitando igualmente a possibilidade de interposição de recursos genéricos sobre a matéria facto.

Assim se compreendem as exigências em que se traduzem os ónus primários acima descritos, previstos no n.º 1, do artigo 640.º, do CPC, os quais devem ser interpretados à luz do aludido papel ou função. O mesmo sucede com o ónus secundário previsto na al. a), do n.º 2, do mesmo artigo, sem perder de vista que este visa possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, isto é, a localização, no suporte que contém a gravação dos depoimentos invocados, das passagens da gravação em que se funda o recurso.

Deste modo, vem sendo reafirmado pela jurisprudência que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Como escreve Abrantes Geraldes (cit., p. 200), «[t]rata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo».

Mas, pelas mesmas razões, associadas à impossibilidade de proferir despacho de aperfeiçoamento relativamente ao recurso da decisão da matéria de facto (cfr. artigo 639.º, n.º 3, do CPC), o Supremo Tribunal de Justiça vem alertando para a necessidade de não se exponenciarem os apontados requisitos formais e de se compaginar a sua interpretação e aplicação com os princípio da proporcionalidade e da razoabilidade.

Concatenando os ónus acima referidos, a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, com o ónus de alegar e formular conclusões consagrado no artigo 639.º do CPC, que impende sobre o recorrente independentemente do recurso visar a matéria de facto e/ou a matéria de direito, Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6.ª ed., Coimbra 2020, pp. 196 e s.) sintetiza assim o sistema que vigora sempre que a apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

- O recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;

- Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;

- Relativamente aos factos cuja impugnação se funde em prova gravada, deve indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes (podendo proceder à transcrição dos excertos que considere oportunos);

- O recorrente deve ainda deixar expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Voltando ao caso concreto, pese embora a extrema prolixidade da alegação da recorrente, inclusivamente das respectivas conclusões, dificultar seriamente a delimitação do objecto do recurso, temos como certo que os apontados ónus foram cumpridos no que concerne aos pontos e), f), g) e h) dos factos não provados, visto que a recorrente os indicou de forma expressa e discriminada nas conclusões como pontos de facto que considera incorretamente julgados, fundamentou a sua discordância nos concretos meios de prova que descreve e analisa ao longo da sua alegação e concluiu que esses factos devem ser julgados provados.

Embora a recorrente aluda, ao longo da sua extensa alegação, a uma miríade de factos – uns relevantes e outras totalmente irrelevantes para a decisão da causa – e à prova sobre eles produzida, num emaranhado de considerações de facto e direito, acaba por não indicar de forma discriminada, nas conclusões, quaisquer outros pontos concretos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados.

Concluímos, assim, que a impugnação da decisão da matéria de facto tem como objecto os referidos pontos e), f), g) e h) dos factos não provados, sendo certo que, de um ponto de vista formal, nada obsta ao conhecimento dessa impugnação.
b. É jurisprudência pacífica que a Relação não deve reapreciar a matéria de facto se a alteração pretendida não tiver qualquer relevância jurídica, isto é, se for inócua para a decisão da causa, se for insusceptível de fundamentar a sua alteração, sob pena de levar a cabo uma actividade processual inútil que, por isso, lhe está vedada pela lei (artigo 130.º do CPC).
Neste sentido, afirma-se o seguinte no ac. do TRC, de 16.02.2017 (proc. n.º 52/12.0TBMBR.C1): «Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente».
No mesmo sentido, afirma-se no ac. do TRG, de 11.11.2021 (proc. 671/20.1T8BGC.G1) que «[n]ão se deve proceder à reapreciação da matéria de facto quando a alteração nos termos pretendidos pelos Recorrentes, tendo em conta as específicas circunstâncias em causa, não tenha qualquer relevância jurídica, sob pena de, assim não sendo, se estarem a praticar atos inúteis, que a lei não permite».
Ainda no mesmo sentido se pronunciou o TRL, no seu ac. de 26.09.2019 (proc. n.º 144/15.4T8MTJ.L1-2).
Também o STJ sufraga esta jurisprudência, afirmando o seguinte no seu ac. de 14.07.2021 (proc. 65/18.9T8EPS.G1.S1): «Se o facto que se pretende impugnar for irrelevante para a decisão, segundo as várias soluções plausíveis, não há qualquer utilidade naquela impugnação da matéria de facto, pois o resultado a que se chegar (provado ou não provado) é sempre o mesmo: absolutamente inócuo. O mesmo é dizer que só se justifica que a Relação faça uso dos poderes de controlo da matéria de facto da 1ª instância quando essa actividade da Relação recaia sobre factos que tenham interesse para a decisão da causa, ut artº 130º do CPC. Quando assim não ocorre, a Relação deve abster-se de apreciar tal impugnação».
É, precisamente, o que ocorre no caso vertente. Como foi afirmando na decisão recorrida e melhor decorrerá da exposição subsequente sobre o recurso da matéria de direito, mesmo que viessem a ser julgados provados os factos impugnados, como pretende a recorrente, os dois pedidos que ainda estão em apreciação seriam julgados improcedentes, em virtude de os factos alegados pela autora serem insuficientes para se concluir pela anulabilidade da partilha extrajudicial em virtude de algum vício da declaração negocial ou para se concluir pelo direito da autora à restituição de bens com fundamento em enriquecimento sem causa.
Pelo exposto, porque a prova dos factos impugnados sempre se revelaria irrelevante para a decisão da causa, abstemo-nos de apreciar a pretendida alteração da decisão sobre os mesmos.


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4. Da anulabilidade da partilha extrajudicial celebrada no dia 04.12.2012

Veio a autora recorrente invocar a anulabilidade da partilha extrajudicial outorgada por si, pela ré e pela madrasta de ambas em 04.12.20212, com fundamento em erro sobre os motivos determinantes da vontade, nos termos do artigo 251.º do CC.

A declaração da vontade negocial é constituída por em elemento externo – a declaração propriamente dita – e outro interno – a vontade real do declarante.

Entre estes dois elementos pode existir divergência, por falta ou desvio de algum dos sub-elementos em que se desdobra o elemento interno (vontade de acção, vontade de acção como declaração e vontade de declaração negocial), divergência que pode ser intencional (o declarante tem consciência dela, mas emite livremente a declaração) e não intencional (o declarante não tem consciência da divergência ou, tendo-a, é forçado a emitir a declaração). Nestas situações de divergência não intencional estaremos perante o erro-obstáculo ou erro na declaração, previsto e regulado no artigo 247.º do CC.

E pode haver perturbações no processo formativo da vontade, de tal sorte que, embora não haja divergência entre a vontade real (elemento interno) e a declaração propriamente dita (comportamento que exterioriza aquela vontade), aquela se mostra “viciada”. O nosso direito dá relevância autónoma a diversos vícios da vontade, entre eles o erro-vício e o dolo.

Há dolo quando o erro do declarante é determinado por determinado comportamento do declaratário ou de terceiro, seja por sugestão ou artifício, seja por dissimulação do erro – artigo 253.º do CC.

Há erro-vício quando a vontade é determinada por ignorância ou por uma ideia falsa. A lei prevê o erro sobre a pessoa do declaratário (contrata-se um empregado na convicção errónea de ele saber cozinhar), sobre o objecto do negócio (julga-se que a coisa comprada é de ouro e afinal é de latão) e sobre os motivos – cfr. artigos 251.º e 252.º do CC. Este erro sobre os motivos é uma figura residual de erro sobre os motivos determinantes da vontade que não respeitem à pessoa do declaratário nem ao objecto do negócio. Contempla o erro acerca da causa do negócio (de direito e de facto) e sobre a pessoa de terceiro.

Por força do disposto no artigo 247.º do CC, para onde remete o artigo 251.º, o erro sobre o objecto do negócio só releva se declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.

De harmonia com o disposto no artigo 252.º, n.º 1, o erro que recaia sobre os motivos determinantes da vontade, mas que não se refira à pessoa do declaratário nem ao objecto do negócio, só é causa de anulação se as partes houverem reconhecido, por acordo, a essencialidade do motivo.

Se, porém, recair sobre as circunstâncias que constituem a base do negócio, é aplicável ao erro do declarante o disposto sobre a resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias vigentes no momento em que o negócio foi concluído – cfr. n.º 2, do mesmo artigo 252.º.

No caso concreto, é absolutamente inequívoco que da matéria de facto alegada pela autora (tanto a que foi julgada provada como a que foi julgada não provada na decisão recorrida) não resulta qualquer divergência entre a vontade declarada por esta na escritura pública de partilha da herança aberta por óbito do seu pai e a sua vontade real, tal c0mo não resulta que a vontade de proceder à partilha da herança nos termos ali acordados tenha sido viciada por algum erro sobre a pessoa do declaratário (no caso as demais herdeiras da herança em questão) ou sobre o objecto do negócio (recorde-se que a própria recorrente sempre afirmou estar consciente, no momento em que outorgou a referida escritura de partilha, da omissão de bens a partilhar e da inclusão de bens que não integravam a herança).

De resto, como vimos, a recorrente não se baseia nos artigos 247.º ou 251.º do CC, mas antes no artigo 252.º, afirmando que apenas aceitou outorgar a escritura de partilha, que considerava prejudicial dos seus interesses, por estar convicta de que seria herdeira da sua madrasta na mesma proporção que a sua irmã, aqui ré, convicção que se veio a revelar errada.

Mas o que resulta dos factos documentalmente demonstrados nos autos é que, na data em que foi outorgada a escritura pública de partilha alegadamente anulável (04.12.2012), a madrasta da autora da ré ainda não tinha revogado o testamento que havia outorgado em 24.04.1980, no qual havia contemplado as duas em igual proporção – cfr. ponto 12 dos factos provados.

Este testamento apenas veio a ser revogado em 20.12.2012, data em que a sua autora outorgou um outro testamento, onde continuou a contemplar as duas enteadas, mas favorecendo a aqui recorrida – cfr. ponto 11 dos factos provados.

Também este testamento veio a ser revogado em 10.09.2014, data em que a sua autora outorgou um terceiro testamento, onde instituiu como sua única e universal herdeira a aqui recorrida – cfr. ponto 10 dos factos provados.

Verifica-se, assim, que no momento em que celebrou a escritura de partilha extrajudicial em discussão nestes autos, a alegada convicção da recorrente não estava errada, o que apenas veio a suceder supervenientemente.

Assim, mais do que um verdadeiro erro, esta a alegação da autora convoca a figura designada, na esteira de Windscheid, por pressuposição, que Mota Pinto caracteriza «como a convicção por parte do declarante, decisiva para a sua vontade de efectuar o negócio, de que certa circunstância se verificará o futuro ou de que se manterá um certo estado de coisas» (Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., Coimbra, 1990, p. 506). Como acrescenta o mesmo autor, «[s]egundo o ensinamento tradicional a pressuposição refere-se ao futuro (faltará quando houver uma alteração superveniente de circunstâncias) e o erro refere-se ao presente ou ao passado. O erro consiste numa ignorância ou falsa representação, relativas a circunstâncias passadas ou presentes, isto é, à situação existente no momento da celebração do negócio. A pressuposição consiste numa representação inexacta de um acontecimento ou realidade futura que se não vem a verificar (a pressuposição, quando falha, não traduz um erro, mas uma imprevisão)» (cit., p. 507).

Configurando a nossa lei civil a anulabilidade como um vício genético do negócio jurídico, não cremos que esta figura da pressuposição se possa enquadrar na previsão do n.º 1, do artigo 252.º.

Em todo o caso, dispondo aquele n.º 1 que o erro que recaia sobre os motivos determinantes da vontade, mas que não se refira à pessoa do declaratário nem ao objecto do negócio, só é causa de anulação se as partes houverem reconhecido, por acordo, a essencialidade do motivo, esta norma nunca teria aplicação no caso dos autos, pois nada na matéria de facto alegada pela autora permite concluir pela existência de um tal acordo, expresso ou tácito.

Como escreve Mota Pinto com a sua habitual clareza, esta norma «permite a anulação, desde que haja uma cláusula (expressa ou tácita) no sentido de a validade do negócio ficar dependente da existência da circunstância sobre que versou o erro (…). Seria irrazoável permitir a anulação, uma vez provado, simplesmente, o conhecimento pela contraparte da essencialidade do motivo que levou o errante ao negócio, pois a contraparte normalmente não daria o seu acordo ao contrato, se este ficasse na dependência da circunstância cuja suposição levou o enganado a contratar. Também se compreende que não baste o conhecimento ou a cognoscibilidade do erro, pois, dado o acréscimo enorme de litígios e demandas a que esse regime daria lugar, a estabilidade dos negócios seria atingida e isso repercutir-se-ia na celeridade e segurança da contratação. Justifica-se, pois, que se tenha exigido uma efectiva estipulação (expressa ou tácita), tornando a validade do negócio dependente da verificação da circunstância sobre que incidiu o erro, o que deve acontecer raramente» (cit., pp. 514-515).

No mesmo sentido, Ana Filipa Morais Antunes (Comentário ao Código Civil, Parte Geral, 2.º ed., UCP, 2023, p. 739) afirma que «o erro sobre os motivos é juridicamente irrelevante se não for demonstrada, pela parte que negociou em erro, a existência do referido acordo que atesta a essencialidade do elemento sobre que recaiu o erro e que é distinto e autónomo do acordo exigido para a celebração do negócio jurídico. Esta circunstância compreende-se e justifica-se considerando o princípio da irrelevância jurídica dos motivos no Direito civil: «[e]nquanto elementos puramente subjectivos e correspondentes a interesses individuais dos sujeitos, a respectiva relevância jurídica depende da verificação dos requisitos suplementares estabelecidos pelo legislador» - v. Morais Antuntes, 2016: 80».

Voltando ao nosso caso, a existência de tal acordo não decorre, como dissemos, dos factos carreados para os autos, inclusivamente da matéria constante do ponto f) dos factos não provados. Na verdade, da circunstância de os advogados (que a própria recorrente, a recorrida e a madrasta de ambas haviam contratado para tratar da partilha da herança de que todas eram herdeiras – cfr. pontos 25 e 26 dos factos provados) terem dito à autora, quando esta manifestou que estava a ser prejudicada na partilha, que a mesma tinha de ser feita como estava, mas que haveria as necessárias correções à morte da madrinha, não decorre que as restantes herdeiras tivessem reconhecido, por acordo celebrado com a autora, a essencialidade destas futuras “correcções” para a celebração da escritura pública de partilha da herança.

Mesmo quando conjugada com a alegação – sobre a qual o tribunal a quo não chegou a pronunciar-se – de que a ré se serviu dos referidos advogados para prejudicar a autora na partilha, a matéria fatual carreada para os autos apenas poderia, quando muito, sustentar o conhecimento ou a cognoscibilidade, por parte da ré, do erro da autora, mas já não o conhecimento ou a cognoscibilidade deste erro por parte da outra contratante ou, menos ainda, o acordo entre as três sobre a essencialidade do motivo sobre que incidiu tal erro. Corroborando este entendimento, a autora antes citada escreve (cit., p. 740) que não pode «ser considerado como tal o silêncio pela contraparte que se seguiu à afirmação pública, pelo declaratário, da essencialidade do motivo. Neste sentido, v. Carvalho Fernandes, 2010: 222 – que ensina que o simples assentimento de celebração do negócio depois de o declaratário ter afirmado a essencialidade que para ele assume determinado motivo não pode valer como acordo tácito. (…) Por outro lado, no que respeita à existência de um acordo tácito, exige-se, nos termos gerais do artigo 217.º, n.º 1, 2.ª parte, que se individualize um comportamento concludente, para o que se impõe a prova de um comportamento positivo, inequívoco e significante».

Assim afastada a aplicabilidade do artigo 251.º, n.º 1, importa aferir a aplicabilidade do n.º 2, do mesmo artigo, igualmente invocado pela recorrente, nos termos do qual se o erro recair sobre as circunstâncias que constituem a base do negócio, é aplicável ao erro do declarante o disposto sobre a resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias vigentes no momento em que o negócio foi concluído.

Cremos que tal aplicabilidade continua a esbarrar na natureza genética do vício aqui previsto.

Embora Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vil. I, 4.ª ed., Coimbra, 1897, p. 236) e Mota Pinto (cit., pp. 515-516) pareçam admitir a relevância, para os efeitos desta norma, da falsa representação de circunstâncias futuras, ou seja, da não verificação da pressuposição, este último autor acaba por reconhecer que os coronation cases (os casos de várias pessoas que arrendaram por alguns dias apartamentos em determinadas ruas por onde passariam os cortejos da coroação do rei Eduardo VII de Inglaterra, que veio a ser adiada por doença súbita deste, as quais se recusaram a pagar as respectivas rendas, recusa que foi julgada legítima pelos tribunais), «não são rigorosamente casos de erro, subsumíveis ao artigo 252.º, mas casos de alteração anormal das circunstâncias ou de pressuposição não verificada («error in futurum»), directamente integráveis na previsão do artigo 437.º», «dado que a desconformidade com a realidade da circunstância suposta só no futura se verifica».

Isso mesmo é afirmado por Ana Filipa Morais Antunes ao longo da sua anotação ao n.º 2, do artigo 252.º (cit., pp. 741-744), onde podemos ler o seguinte:

«Para a distinção dos dois regimes jurídicos, rejeitando a aplicação do artigo 252.º, n.º 2 do CC, v. Ac. do STJ de 10.04.2018 (16/14.0TVLSB.L1.S1): “V. Alegando a ré – proprietária de loja em centro comercial – uma falsa representação de acontecimentos futuros, o erro invocado, sobre a base do negócio, não é meio adequado para o efeito pretendido de modificação do contrato (traduzida na redução dos valores que contratualmente se obrigou a pagar); adequado será o instituto da modificação do contrato por alteração das circunstâncias”.

Os requisitos de relevância que cumpre ponderar para efeitos de anulação do negócio viciado por erro sobre a base do negócio são os seguintes: em primeiro lugar, o desconhecimento ou a falsa representação da realidade deve respeitar às circunstâncias (passadas ou presentes) em que as partes fundaram a decisão de contratar; em segundo lugar, essas circunstâncias devem ser comuns às partes e determinantes para o negócio [no sentido de: i) serem conhecidas por ambas as partes, ii) terem sido tomadas em consideração na celebração do negócio e iii) terem determinado os termos concretos do conteúdo negocial] ou, sendo relativas a uma das partes, a outra parte não pode deixar de aceitar a circunstância como condicionante do negócio, sem violação grave dos princípios da boa fé; em terceiro lugar, a subsistência do negócio celebrado sem a verificação da circunstância determinante para a decisão de negociar tem de afectar gravemente os princípios da boa-fé».

Em suma, pelas razões expostos, os factos alegados pela autora não permitem a anulabilidade do contrato de partilha extrajudicial celebrado em 04.12.2012 por erro sobre os motivos.

Mas, pelas mesmas razões, também não permitem a anulabilidade daquele contrato com fundamento em dolo da ré e/ou dos advogados que prestaram serviços jurídicos às partes contratantes.

Nos termos do artigo 253.º, n.º 1, do CC, entende-se por dolo qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante.

Nestes termos, o dolo pressupõe um erro do declarante, que tenha sido induzido ou mantido com recurso a alguma sugestão ou artifício, ou que tenha sido dissimulado, pelo declaratário ou por terceiro.

Note-se que, como afirma Ana Filipa Morais Antunes em anotação àquela norma (cit., p. 746), «[o] dolo a que alude o preceito sob anotação constitui uma modalidade de erro-vício e releva, por isso, no plano dos vícios na formação da vontade. Está em causa um erro provocado por outrem (o declaratário ou um terceiro …)».

No caso concreto falha, precisamente, este primeiro requisito: o erro da autora.

Embora esta afirme que a ré, com a ajuda dos advogados, levou a cabo um plano maquiavélico para a prejudicar, não decorre dos factos por si alegados que algum deles a tenha induzido ou mantido em erro, tal como não resulta que tenham dissimulado algum erro em que a recorrente laborasse. Quando muito, decorre desses factos que os advogados, em “conluio” com a ré, reforçaram a pressuposição da autora de que, por morte da sua madrasta, iria herdar metade dos seus bens, o que só posteriormente se tornou inviável, por força dos testamentos que esta última decidiu celebrar já depois da partilha aqui impugnada. Diferente seria se, aquando desta partilha, a madrasta da autora e da ré já tivesse decidido alterar o seu testamento inicial, essa decisão fosse do conhecimento da ré e/ou dos advogados e estes a tivessem ocultado da autora, sabendo que esta apenas aceitava celebrar a partilha agora impugnada por acreditar que iria receber metade dos bens da herança da sua madrasta. Mas nada disto foi alegado. Pelo contrário, na petição inicial a autora afirma que, já depois da celebração da partilha, a ré «conseguiu persuadir a sua madrinha a alterar o testamento que tinha feito em vida do seu pai» – cfr. artigo 167.º da petição inicial – e que, mais tarde, aproveitando-se da fragilidade e falta de saúde da madrinha, induziu-a a outorgar novo testamento, desta feita sendo a ré a única beneficiária – cfr. artigos 175.º e 176.º da petição inicial.

Em suma, pelas razões expostos, os factos alegados pela autora não permitem a anulabilidade do contrato de partilha extrajudicial celebrado em 04.12.2012 por erro sobre os motivos, aqui se incluindo o erro causado por dolo, pelo que o pedido de anulabilidade da partilha com esse fundamento sempre estaria votado ao fracasso.


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5. Do enriquecimento sem causa

Alegou, por fim, a recorrente que da matéria de facto apurada resulta inequívoco que a recorrida, no seguimento de um plano maquiavélico engendrado com os advogados, conseguiu locupletar-se à custa da recorrente, ficando com quatro apartamentos na linha da praia ..., dinheiro e outros haveres, encontram-se verificados os requisitos para que, subsidiariamente, seja decretado o enriquecimento sem causa e a recorrida seja obrigada a restituir/indemnizar a recorrente.

Dispõe assim este artigo 473.º:

«1 – Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.

2 – A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou».

Para existir enriquecimento sem causa é, assim, necessário que haja um enriquecimento, um empobrecimento, um nexo causal ou correlação entre um e outro e, ainda, a falta de causa justificativa da deslocação patrimonial verificada – ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido.

Segundo Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. I, p. 399 e seguintes) o enriquecimento consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista. Umas vezes a vantagem traduzir-se-á num aumento do activo patrimonial (preço da alienação de coisa alheia; lucro da edição de obra alheia ou da representação de peça alheia; recebimento de prestação não devida, porque a obrigação nunca existiu ou já havia sido cumprida ou fora cedida entretanto; bens adquiridos ou benfeitorias realizadas pelo gestor; etc.); outras, no uso ou consumo de coisa alheia ou no exercício de direito alheio, quando estes actos sejam susceptíveis de avaliação pecuniária (instalação em casa alheia; apascentação do rebanho próprio em prédio de outrem; consumo de alimentos pertencentes a terceiro; utilização da assinatura de outrem no teatro ou no ópera; etc.); outras, ainda, na poupança de despesas (A, por exemplo, alimenta o descendente de B, porque julga erroneamente tratar-se do seu filho).

De acordo com o ac. do STJ de 24.03.2017 (proc. n.º 1769/12.5TBCTX.E1.S1), «[p]ode (…) dizer-se que «o enriquecimento carece de causa, quando o Direito o não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios jurídicos, justifique a realizada deslocação patrimonial», hipótese em que a lei «obriga a restabelecer o equilíbrio patrimonial por ele rompido, por não desejar que essa vantagem perdure, constituindo o «accipiens» no dever de restituir o recebido». Deste modo, operando-se deslocação patrimonial mediante uma prestação, a causa há-de ser a relação jurídica que essa prestação visa satisfazer, e se esse fim falta, a obrigação daí resultante fica sem causa».

De harmonia com o disposto no artigo 474.º do CC, a acção de enriquecimento é sempre subsidiária ou residual. Não pode haver acção alternativa. O empobrecido só pode lançar mão da acção de enriquecimento se a lei não lhe facultar outros meios para ser ressarcido. Só depois de se apurar que as normas directamente reportadas ao litígio (v.g. nulidade, anulação do negócio jurídico, repetição do indevido, reivindicação) não garantem a tutela da situação em concreto é que pode recorrer-se complementarmente ao instituto do enriquecimento.

Na decisão recorrida, depois de enunciar os requisitos do enriquecimento sem causa, a Sra. Juíza a quo acrescentou o seguinte: «No caso desenvolvido na presente ação, enquanto o testamento não for declarado nulo ou anulado, existe causa justificativa para a aquisição dos bens pela Ré. Essa causa justificativa da atribuição patrimonial é precisamente o testamento; ou, talvez melhor, é a vontade expressa no testamento de que todos os bens venham, por morte da testadora DD, a pertencer, como única e universal herdeira, à Ré BB, sua enteada. A ação tem de improceder, pois, também com esta causa de pedir do enriquecimento sem causa».

Esta afirmação é indiscutível que concerne aos bens que a autora admite terem ingressado validamente no património da sua madrasta.

Mas a conclusão não é distinta relativamente aos bens que a autora considera não terem ingressado validamente naquele património, seja porque foram dissimuladamente doados pelo seu pai à sua madrasta, em violação da lei que proíbe as doações entre cônjuges casados no regime imperativo de separação de bens, e assim subtraídos à partilha da herança do primeiro, seja porque foram indevidamente considerados na partilha desta herança, apesar de já então pertencerem à autora (e à sua irmã) por sucessão mortis causa da sua mãe, seja ainda porque o dinheiro que integrava a herança aberta por óbito do seu pai não integrou a partilha da sua herança, estando agora na posse da ré.

Por um lado, como afirma a decisão recorrida, os factos apurados não revelam a falta de causa justificativa para a transferência destes bens para a esfera jurídica da ré (sendo certo que cabia à autora o ónus da prova dessa falta), antes revelando que a causa que justifica tal transferência ou enriquecimento é, precisamente, o último testamento da madrasta das partes.

Por outro lado, a autora dispunha de meios processuais alternativos para demonstrar que tais bens não ingressaram validamente na esfera jurídica da sua madrasta e pedir a sua restituição, consoante o caso, à herança aberta por óbito do seu pai ou ao seu próprio património: pedindo ao tribunal a declaração da nulidade por simulação da compra e venda descrita no ponto 7 dos factos provados e da doação dissimulada; pedindo a declaração da nulidade da partilha da herança aberta por óbito do seu pai por na parte em que abrangeu bens que não a integravam, nos termos do artigo 2123.º; intentando uma acção de petição da herança, ao abrigo do disposto no artigo 2075.º do CC, relativa ao dinheiro que não foi partilhado.

Facultando a lei estas acções alternativas, não pode a autora lançar mão da acção subsidiária ou residual de enriquecimento sem causa para obter a respectiva tutela.

Pelo exposto, improcede igualmente o último dos pedidos deduzidos.


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6. Da ampliação do objecto do recurso

Perante a total improcedência da apelação, fica naturalmente prejudicado o conhecimento das questões que o Tribunal a quo não chegou a apreciar em virtude da solução dada ao litígio, designadamente a caducidade do direito de anular o contrato de partilha e a prescrição do direito fundado no enriquecimento sem causa (questões que caberia a este tribunal conhecer oficiosamente, por força do disposto no artigo 665.º, n.º 2, do CPC, mesmo que tal não tivesse sido solicitado pela recorrida, caso se tivessem julgado verificados os pressupostos da anulabilidade da partilha ou do enriquecimento sem causa).
No requerimento em que exerceu o contraditório sobre a pretensão da recorrida de ampliação do objecto do recurso, a recorrente, extravasando a finalidade desse requerimento, veio colmatar o que considerou serem insuficiências da sua alegação, chegando mesmo a suscitar questões nunca antes discutidas, como a suspensão da instância ao abrigo do artigo 272.º do CPC. Como nos parece óbvio, este aditamento à alegação de recurso é totalmente inadmissível, pelo que não podia ser tido em conta.
No mesmo requerimento, a recorrente veio ainda pedir a condenação da recorrida como litigante de má-fé, em multa e numa indemnização de valor não inferior a 2.500,00 €, bem como no pagamento dos honorários da mandatária da recorrente. Mas fê-lo exclusivamente com fundamento na conduta da recorrida anterior à prolação da decisão da primeira instância. Deste modo, este pedido não passa de uma tentativa ínvia de reverter a decisão da primeira instância, que já havia julgado improcedente o pedido de condenação da ré (e da própria autora) como litigante de má-fé, sem que a recorrente tenha oportunamente impugnado essa parte da decisão.
Pelo exposto, vai indeferido o referido pedido.


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Em face de tudo quanto ficou exposto, improcede totalmente o recurso interposto, pelo que importa confirmar a decisão recorrida em condenar a recorrente nas custas da apelação, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.

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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):

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IV. Decisão
Pelo exposto, os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto julgam improcedente a apelação e confirmam a decisão recorrida.

Custas pela recorrente (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

Registe e notifique.


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Porto, 8 de Outubro de 2024

Relator: Artur Dionísio Oliveira

Adjuntos: Maria da Luz Seabra

Márcia Portela

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[1] Seguimos de perto o relatório da sentença recorrida, dada a sua clareza e síntese.