COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
EXERCÍCIO DE DIREITO
DIREITOS SOCIAIS
Sumário

I - A competência é a medida de jurisdição de um tribunal e processualmente assume a estrutura de um pressuposto processual.
II - A competência em razão da matéria de deve aferir-se face à relação jurídica que se discute na ação, tal como desenhada pelo autor.
III - Cabem na previsão do art.º 128.º, n.º 1, alínea c), da LOSJ (“exercício de direitos sociais”) todas as acções cuja causa de pedir se prenda com questões internas de uma sociedade comercial, directamente relacionadas com o exercício de interesses sociais.
IV - Se da análise conjugada dos elementos da acção, à luz das normais jurídicas aplicáveis, não há qualquer conexão com o exercício dos direitos sociais, o Tribunal competente para a sua tramitação e decisão são os Juízos Centrais ou Locais Cíveis, como Tribunais com competência residual.

Texto Integral

Processo n.º 471/24.0T8VCT.P1

Comarca: [Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia (J2), Comarca do Porto]

Juíza Desembargadora Relatora: Lina Castro Baptista

Juiz Desembargador Adjunto: Artur Dionísio Oliveira

Juíza Desembargadora Adjunta: Anabela Andrade Miranda


*

SUMÁRIO

………………………………

………………………………

………………………………


*

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO

AA, residente no ..., ..., por si e na qualidade de cabeça de casal aberta por óbito de BB, e CC, residente na Rua ..., ..., Vila Nova de Gaia, por si e na qualidade de herdeira na herança aberta por óbito de BB, intentaram a presente ação especial de suspensão e destituição de representante comum de participação social contra DD, residente na Rua ..., n.º ..., 3.º direito, Porto, pedindo que:

a) Seja a presente ação julgada procedente, por provada;

b) Seja decretada, sem audiência prévia da Requerida, a título antecipatório e com natureza urgente, a suspensão imediata desta das funções de representante comum da quota indivisa;

c) Seja declarada nula qualquer deliberação tomada pela Requerida, à sua revelia, desde a propositura da presente ação até à prolação de uma decisão definitiva que lhe ponha termos;

d) Seja decretada a destituição da Requerida do cargo de representante comum da quota indivisa e, consequentemente, nomeado novo representante;

e) Seja a Requerida condenada no pagamento das custas e demais encargos legais.

Alegam, em síntese, que quer elas, quer a Requerida, são sócias da sociedade por quotas “A..., Lda.”, que tem por objecto a gestão de bens imobiliários, exploração agrícola e turismo rural, cultural e de habitação.

Expõem que, desde 2015, a sociedade tem o respectivo capital social representado pelas seguintes quotas: uma quota com o valor nominal de 75.000,00€ (setenta e cinco mil euros), representativa de 93,75% do capital social da sociedade, pertencente ao Sócio EE; uma quota com o valor nominal de 3.500,00€ (três mil e quinhentos euros), representativa de 4,375% do capital social da sociedade, pertencente à Sócia BB; uma quota com o valor nominal de 500,00€ (quinhentos euros), representativa de 0,625% do capital social da sociedade, pertencente à Sócia DD; uma quota com o valor nominal de 500,00€ (quinhentos euros), representativa de 0,625% do capital social da sociedade, pertencente à Sócia AA e uma quota com o valor nominal de 500,00€ (quinhentos euros), representativa de 0,625% do capital social da sociedade, pertencente à Sócia CC.

Declaram que o sócio EE faleceu em 10 de setembro 2016, no estado de casado em regime de comunhão de adquiridos com a Sócia BB e que, não se tendo alcançado a partilha, as duas quotas pertencentes a este e à sócia- cônjuge foram unificadas numa só quota, passando a pertencer aos herdeiros daquele: às ora Requerentes, à sócia BB, mãe de ambas, e à Requerida DD.

Mais declaram que, tendo a sócia BB falecido a 20 de outubro de 2021, elas, enquanto suas filhas, passaram a ocupar a posição de herdeira que a mãe detinha na herança aberta pelo óbito de sócio EE. Também que, neste seguimento, a Requerida foi nomeada Cabeça-de-Casal na herança indivisa aberta por óbito do Sócio EE, seu pai, no âmbito do processo de inventário n.º 16/22.6T8VNC, que corre os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível do Porto – Juiz 2.

Afirmam que, por ter sido judicialmente investida no cabecelato, a Requerida passou a assumir a qualidade de Representante Comum da quota de valor nominal de 78.500,00€.

Alegam que, desde então, a Requerida delibera sozinha, de acordo com a sua vontade exclusiva, como se fosse titular individual daquela quota e despreza a vontade das restantes comproprietárias, aqui Requerentes, que detêm a maioria aludida dentro da quota.

Afirmam que, desde a morte da Sócia BB todas as deliberações sociais tomadas em Assembleia Geral da Sociedade foram objeto de impugnação judicial.

Defendem que a gravidade dos factos alegados integra o conceito de justa causa de destituição de Representante Comum, motivo pelo qual fundamentam igualmente a exigida aparência séria do direito, que, por si só, justifica o efetivo periculum in mora.

Acrescentam que, à luz do sobredito, o exercício do seu direito não se compadece com a morosidade inerente ao incidente de remoção de Cabeça de Casal.

Foi proferido despacho liminar com o seguinte teor resumido: “Atentos os factos assim alegados, entende o Tribunal poder ocorrer uma excepção de erro na forma do processo, designadamente por o cargo de representante comum advir à ora Requerida da sua qualidade de cabeça-de-casal em processo de inventário em curso, noutro Tribunal, no âmbito do qual existem expedientes próprios para remoção a mesma de cargo que se entenda não estar a ser exercido de acordo com os deveres de actuação que a lei impõe.---

Por outro lado, resultando dos autos que a Requerida tem o seu domicílio no Porto, sempre seria este Tribunal territorialmente incompetente para conhecer os pedidos formulados, atendendo à previsão dos art.ºs 80.º, n.º 1 e 104.º, n.º 1, al. b) do CPC.---

Assim sendo e, antes do mais, ao abrigo da previsão do art.º 3.º, n.º 3 do CPC, notifiquem-se as Requerentes com vista, querendo e no prazo de 5 dias, exercerem o contraditório.---

As Requerentes vieram pronunciar-se no sentido de que intentaram a presente ação especial de suspensão e destituição de representante comum de participação social, nos termos e para os efeitos do artigo 1055.º, n.ºs 1 e 2 do Código do Processo Civil, por ser o expediente processual que lhes permite alcançar o efeito jurídico pretendido, a saber, a imediata suspensão e posterior destituição da Requerida do cargo de representante comum de uma quota indivisa.

Dizem ter cumprido para tal todos os requisitos essenciais para que lhe seja legítimo o recurso a esta ação especial, sendo que os factos expostos no Requerimento Inicial se coadunam com o fim para o qual foi estabelecida tal forma processual.

Também a Requerida se veio pronunciar, em sede de requerimento autónomo e de Contestação, alegando que, estando a herança de EE indivisa, as quotas que integram o património autónomo não pertencem às herdeiras em comum e sem determinação de parte, apenas lhes pertencendo um direito ao quinhão hereditário do referido património autónomo.

Defende que inexiste qualquer regime de compropriedade no que concerne às quotas em questão nos presentes autos, não sendo, portanto, aplicável o regime estabelecido nos artigos 222.º a 224.º, ambos do Código das Sociedades Comerciais.

Advoga ser manifesto que a ação é manifestamente desadequada às pretensões das Requerentes.

Admite que tem vindo a existir uma divergência entre as sócias, no que concerne à forma de gerir a sociedade.

Supletivamente defende que inexiste qualquer perigo para a sociedade que ela continue a representar a maioria de capital social por via do exercício do cabecelato na herança indivisa de EE, uma vez que nunca praticou qualquer ato que causasse qualquer prejuízo à sociedade ou à herança, inexistindo qualquer justa causa para a sua suspensão e destituição.

Pede que seja julgada procedente a exceção de erro na forma do processo e, consequentemente, absolvida da instância.

Sem prescindir nem conceder, pede que o pedido de suspensão e a ação sejam julgadas improcedentes, por não provadas, em virtude da inexistência de contitularidade das quotas em causa nos presentes autos e, consequentemente, da inexistência de um representante comum das mesmas.

Pede ainda que as Requerentes sejam condenadas como litigantes de má-fé, em multa e indemnização exemplares.

Ainda sem prescindir nem conceder, pede, no que concerne ao pedido de suspensão, que a ação seja julgada improcedente, por não provada, em virtude da falta de preenchimento dos pressupostos essenciais ao seu decretamento, bem como que as Requerentes sejam condenadas como litigantes de má-fé, em multa e indemnização exemplares.

No que concerne à contestação referente ao pedido de destituição do cargo, pede que a ação seja julgada improcedente, por não provada, em virtude da inexistência de contitularidade das quotas em causa nos presentes autos e, consequentemente, da inexistência de um representante comum das mesmas, bem como que as Requerentes sejam condenadas como litigantes de má-fé, em multa e indemnização exemplares.

Sem prescindir nem conceder, pede que a presente ação seja julgada improcedente, por não provada, em virtude da falta de pressupostos para o pedido de destituição;

Entretanto, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Em obediência ao princípio do contraditório e atendendo ao disposto no art. 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil notifique as partes para, em 5 dias, se pronunciarem quanto à (in)competência material deste tribunal.”

As Requerentes vieram pronunciar-se alegando, em resumo, que, não obstante o caso em concreto se encontrar revisto de determinadas especificidades e complexidades, o que se discute prende-se com direitos decorrentes da participação social das Requerentes (ou com ela relacionada), de direitos cujo exercício advém justamente da sua condição de participantes sociais, configurando-se como direito social o direito do sócio a propor uma ação judicial de suspensão e destituição de Representante Comum.

Acrescentam que a (má) gestão da Requerida, em preterição da vontade formada dentro da quota e a circunstância de esta não estar a transmitir à Sociedade a vontade da quota, está indubitavelmente a afetar a sociedade (tanto mais não seja face ao número de processos judiciais que tem vindo a ser instaurados e ao facto da vida da sociedade se encontrar quase que “inquinada”) e os direitos particulares das sócias – colocando em causa o direito destas ao voto.

Também a Requerida se veio pronunciar alegando, em síntese, que o litígio apresentado ao tribunal não configura o exercício de um direito social, precisamente porque a participação social não se encontra em regime de compropriedade, mas antes integra um património autónomo – herança indivisa -, portanto, o Juízo de Comércio não será competente para apreciar a presente ação, uma vez que o problema aqui exposto não configura um direito social.

Defende verificar-se um potencial indeferimento liminar da ação apresentada pelas Requerentes, porquanto falta um pressuposto essencial para apreciação da mesma, a falta de contitularidade e consequente inexistência da figura de representante comum de participação social.

Pede que a presente ação seja julgada improcedente, em virtude da exceção invocada por si, e, consequentemente, por motivos de economia processual, não deverá a ação ser remetida para os Juízos Cíveis competentes, uma vez que não podem apreciar este tipo de ação. Por outro lado, considerando que a ação apresentada pelas Requerentes não consubstancia o exercício de direitos sociais, não se poderá entender que será competente o Juízo de Comércio.

Sequencialmente foi proferido despacho, com a seguinte fundamentação resumida e decisão: “(…) A presente ação não é enquadrável nas alíneas a), b), d) a i) do n.º 1 do citado normativo, nem no n.º 2 do mesmo preceito legal, pelo que se nos coloca a questão de saber se estamos perante qualquer ação relativa ao exercício de direitos sociais.

As autoras interpuseram a presente ação contra a ré pretendendo que esta seja suspensa e destituída do cargo de representante comum da quota societária de um sócio de uma sociedade, sócio esse que faleceu.

Pedem, ainda, as autoras que seja declarada nula qualquer deliberação tomada pela Requerida, à revelia das Requerentes, desde a propositura da presente ação até à prolação de uma decisão definitiva que lhe ponha termo.

Ora, é indiscutível que o tribunal de Comércio é competente para apreciar pedidos de declaração de nulidade de deliberações sociais.

A verdade é que as autoras pretendem que este tribunal declare nulas quaisquer deliberações que possam ter sido tomadas pela ré, não concretizando minimamente qualquer deliberação que tenha sido aprovada, sendo que, inclusivamente, pode não existir.

As autoras reportam-se, assim, a hipotéticas deliberações que possam ter existido, não tendo invocado na petição inicial qualquer real, efetiva, específica e concreta deliberação, pelo que esse pedido carece totalmente de causa de pedir.

Com efeito, as autoras não alegam quaisquer factos concretos, suscetíveis de consubstanciar uma causa de pedir quanto a esse pedido, antes invocam uma dedução, uma suposição, um juízo conclusivo que efetuaram invocando eventuais deliberações que tenham sido tomadas.

Ora, de acordo com o preceituado no n.º 1 do art. 186° do Código de Processo Civil “é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial”. (…).

A ssim, não tendo sido alegados quanto a esse pedido quaisquer factos específicos, concretos que possam integrar a causa de pedir, verifica-se a falta desta e, consequentemente, a ineptidão da petição inicial, o que, nos termos do disposto art. 186º, nº1, al. a) do CPC, acarreta nulidade, exceção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da ré da instância quanto a esse pedido (cf. arts. 576º, nº 1 e 2 e 577º, al. b) do CPC).

Restaria o pedido de suspensão e destituição da ré do cargo de representante comum da quota indivisa e de nomeação de novo representante.

De acordo com as autoras EE era sócio da “A..., Lda.”

O mesmo terá falecido, sendo que a Representante Comum da quota indivisa era a Sócia BB que, por se tratar da cônjuge sobreviva do de cujus, era a Cabeça-de-Casal na herança indivisa aberta por óbito daquele.

Posteriormente faleceu a sócia BB.

Como consequência do óbito desta, as suas filhas, aqui autoras, passaram a ocupar a posição de herdeira que a mãe detinha na herança aberta pelo óbito de Sócio EE.

A ré foi nomeada Cabeça-de-Casal na herança indivisa aberta por óbito do Sócio EE, seu pai, no âmbito do processo de inventário n.º 16/22.6T8VNC, que corre os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível do Porto – Juiz 2.

Como é sabido, sendo uma quota social passível de constituir objeto de sucessão hereditária, falecendo o sócio que a detinha, e existindo uma pluralidade de herdeiros, enquanto a herança permanecer indivisa passará a verificar-se a contitularidade daquela participação social, sendo que os contitulares da quota indivisa devem exercer os direitos inerentes à mesma através de um representante comum e havendo cabeça-de-casal o mesmo é necessariamente esse representante comum, enquanto o cabeça-de-casal não for removido do cargo ou destituído do mesmo em ação intentada para esse efeito com fundamento em justa causa.

A presente ação visa a suspensão e destituição da ré desse cargo de representante comum. (…).

Ora, no caso em apreço as autoras não vêm através da presente ação exercer qualquer direito de natureza patrimonial contra a sociedade ou algum dos sócios, pois apenas se arrogam na posição de contitulares de uma quota societária e, apenas nessa qualidade, demandam a ré.

Também não está em causa a defesa de direitos participativos ou outros de idêntica natureza.

Não existe aqui qualquer conflito que oponha as autoras – ainda que apenas contitulares das participações sociais – à sociedade ou em relação aos demais sócios (que não os meros contitulares), mas com reflexos no seu “estado de sócia”. Não está em causa a discussão de um direito do sócio (que não o é por ser apenas um contitular) perante a pessoa sociedade.

O que existe é um conflito entre as contitulares de uma quota social indivisa quanto ao modo de agir da cabeça-de-casal que é representante legal dessa quota.

Ora, a sociedade não é convocada para a nomeação do representante comum e apenas o resultado da deliberação dos contitulares deve ser comunicado à sociedade.

Por outro lado, na falta de acordo entre as partes, quanto à nomeação de representante comum, dispõe a lei que qualquer dos contitulares pode pedi-la ao tribunal da comarca da sede da sociedade, neste caso os juízos cíveis.

Assim, por idêntica razão será também esse tribunal competente para apreciar o pedido de destituição do representante comum já que a relação estabelecida entre as contitulares da quota social indivisa não está relacionada com o direito societário.

Atendendo ao pedido e causa de pedir constata-se que as autoras não pretendem exercer um direito social, questionando, sim, a atuação da ré enquanto representante comum das participações sociais que fazem parte da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de um sócio, sendo que a ré é a cabeça-de-casal dessa herança.

A questão que se coloca situa-se, assim, ao nível das relações internas entre os diversos contitulares nas ações.

Tal como é mencionado no acórdão do Venerando tribunal da Relação do Porto de 7/1/2019, processo 153/17.9T8PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt “ação em que se discute se o cabeça-de-casal deve exercer as funções de representante geral (…), por se situar no domínio interno das relações entre os vários contitulares, não constitui uma ação destinada a exercício de direitos sociais, sendo competente em razão da matéria para preparar e julgar os juízos cíveis”.

Este tribunal adere na íntegra ao entendimento defendido nesse acórdão, considerando que a presente ação não visa o exercício de direitos sociais, sendo, por isso, competente em razão da matéria para a sua preparação e julgamento o tribunal comum.

A incompetência absoluta do tribunal é uma exceção dilatória que determina a absolvição da instância (cfr. artigo 278.º, n,º 1, do Cód. de Processo Civil).

Uma última nota apenas para salientar que a ré veio aos autos dizer que este tribunal deveria já julgar a presente ação improcedente, em virtude da exceção por si invocada.

Ora, não sendo este tribunal materialmente competente não lhe assiste qualquer razão uma vez que este tribunal, não sendo competente, não pode apreciar qualquer exceção deduzida.

Pelo exposto, julga-se verificada a exceção de incompetência absoluta em razão da matéria deste Tribunal quanto aos pedidos formulados nas alíneas b) e d) da petição inicial e, consequentemente, absolve-se a ré DD da instância quanto a tais pedidos e decide-se julgar verificada uma exceção de ineptidão da petição inicial quanto ao pedido formulado na alínea c) da petição inicial e, em consequência, absolve-se a ré DD da instância quanto a tal pedido.

Custas pela autora (art. 527.º do Código de Processo Civil).

Fixo o valor da presente ação em €30.000,01, nos termos dos artigos 296º, 303º e 306º do Código de Processo Civil.”

Inconformadas com esta decisão, as Requerentes interpuseram recurso, pedindo que se declare nula a sentença recorrida ao abrigo do disposto no art.º 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, por violação dos direitos basilares do Direito ao contraditório e a igualdade de “armas” das partes; que a sentença proferida seja revogada e substituída por outra que julgue improcedente a exceção dilatória de ineptidão da petição inicial e que se declare o tribunal recorrido competente em razão da matéria, revogando-se a decisão de procedência de exceção dilatória de incompetência material do Tribunal de Comércio, terminando com as seguintes

CONCLUSÕES:

1. O presente recurso vem interposto da douta sentença de fls., proferida pela Juiz 2 do Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, no âmbito do processo n.º 471/24.0T8VCT, que julgou “verificada a exceção de incompetência absoluta em razão da matéria deste Tribunal quanto aos pedidos formulados nas alíneas b) e d) da petição inicial e, consequentemente, absolve-se a ré DD da instância quanto a tais pedidos e decide-se julgar verificada uma exceção de ineptidão da petição inicial quanto ao pedido formulado na alínea c) da petição inicial e, em consequência, absolve-se a ré DD da instância quanto a tal pedido”.

2. Com o presente Recurso, pretendem as Recorrentes a alteração da sentença no que respeita à verificação da exceção dilatório de ineptidão da petição inicial no que ao pedido da formulado na alínea c) do Requerimento Inicial diz respeito.

3. Assim como, ver revogada a exceção dilatória de incompetência material, requerente ao Tribunal a quem que declare o Tribunal recorrido competente em razão da matéria.

4. Ora, no que respeita à decisão de absolvição da Recorrida da instância ancorada na alegada verificação da exceção dilatória da petição inicial quanto ao pedido constante da alínea c) do referido articulado, cumpre primeiramente referir que tal decisão constitui uma decisão surpresa.

5. Com efeito, a decisão recorrida viola o disposto no n.º 3, do artigo 3.º do CPC, integrando a violação do princípio do contraditório, o que, salvo melhor opinião, consubstancia a prática de uma nulidade processual, que influi no exame ou decisão da causa.

6. No caso vertente, compulsados os autos, constataram as Recorrentes que, no dia 21/05/2024, foi proferido um despacho pelo Tribunal recorrido, mediante o qual as partes foram notificadas “para, em 5 dias, se pronunciarem quanto à (in)competência material deste tribunal” (…) “Em obediência ao princípio do contraditório e atendendo ao disposto no art. 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil”.

7. Todavia, não foi preferido pelo Tribunal a quo qualquer despacho a notificar as partes para se pronunciarem acerca da alegada ineptidão da petição inicial que subjazeu à decisão de absolvição da Recorrida da instância no que se refere ao pedido previsto na alínea c) da petição inicial.

8. Dúvidas não existem de que, existe o dever de audição prévia, pois que está em causa uma questão de direito (a ineptidão da petição inicial) que constituiu a base da decisão de absolvição da instância da Recorrida, quanto ao pedido previsto constante da alínea c) da petição inicial.

9. Conforme melhor explanado em sede de motivações, a decisão de absolvição da Recorrida da instância quando ao pedido c) do Requerimento Inicial, configura uma decisão surpresa, pois que o Tribunal a quo, de forma absolutamente inopinada e apartada de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução sem ter dado às Recorrentes a possibilidade de contrapor os seus argumentos, isto é, de tomar posição sobre a concreta questão jurídica.

10. Assim, a sentença padece de nulidade no segmento decisório supra referido, ao abrigo do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, porquanto a juiz a quo tomou conhecimento de uma questão de que não podia tomar conhecimento, sem a audição prévia das partes.

11. À luz de tudo o que foi dito, deve a Sentença recorrida, na parte em que absolve a Recorrida do pedido previsto na alínea c) da petição inicial, ser revogada e, em consequência, ser proferida outra, em sua substituição, na qual declara a nulidade arguida e notifica as aqui Recorrentes para exercerem o contraditório. Sem prescindir,

12. No que diz respeito à (im)procedência da exceção dilatória de ineptidão da petição inicial, importa atender ao contexto em que o pedido formulado na alínea c) é feito a fim de se avaliar pela sua verificação - ou não.

13. Sumariamente, as Recorrentes vêm nos presentes autos peticionar a procedência da ação especial de suspensão e destituição de representante comum de participação social, nos termos e para os efeitos do artigo 1055.º, n.ºs 1 e 2 do Código do Processo Civil, expondo no seu Requerimento Inicial, o histórico de deliberações tomadas pela Recorrida, em benefício próprio, à revelia da vontade formada dentro da quota e, consequentemente, prejudicando a vida da Sociedade.

14. O pedido que o Tribunal a quo considerou inepto, é formulado nos termos do disposto no artigo 556.º, n.º 1 alínea b) do CPC, tratando-se de um pedido genérico, na medida em que, conforme melhor explicado em sede de motivações para as quais se remete, face à elevada probabilidade de que a Recorrida iria voltar a reunir e deliberar irregularmente em Assembleia Geral, fossem declaradas nulas e sem qualquer efeito as deliberações tomadas por esta, à revelia das Recorrentes, desde a propositura da presente ação até à prolação de uma decisão definitiva.

15. É certo que à data da propositura da ação as Recorrentes não tinham forma de determinar e/ou concretizar “minimamente qualquer deliberação que tenha sido aprovada”, pois que, tal pedido justifica-se na circunstância de ser altamente previsível que tal venha a ocorrer, e, nesse sentido, que fosse declarado nulo, face a ilegalidade que tal deliberação acarreta – por outras palavras e nos termos da lei, aquando da entrada da ação não era “ainda possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito”, sendo que, nos termos do artigo 358.º do CPC decorria ainda prazo para ser apresentado o correspondente incidente de liquidação a fim de tornar líquido o pedido genérico.

16. Todavia, o Tribunal a quo preteriu, ainda, o alegado no Requerimento apresentado pelas Recorrentes a 22/03/2024, Referência CITIUS 38560936 onde estas provaram que os fundados receios apresentados no seu Requerimento Inicial, não se tratavam, apenas e só de meras hipóteses e devaneios, mas que eram, efetivamente, justificados – tanto assim, que, conforme se previu, a Recorrida reuniu irregularmente em Assembleia Geral a 20/03/2024 e deliberou sobre três pontos da ordem de trabalho ora junta sob Documento n.º 1 com o aludido Requerimento.

17. A atuação da Recorrida é manifestamente abusiva e desconforme à boa fé negocial, agindo esta com abuso de direito, previsto no artigo 334.º do Código Civil.

18. No supramencionado documento é possível identificar quais foram as “específica[s] e concreta[s] deliberação[ões]” tomadas pelas Recorrida e que se pretende, com o pedido formulado, que sejam declaradas nulas e sem qualquer efeito.

19. O pedido em causa foi indicado de forma clara e percetível para ser perfeitamente compreendido pelo juiz e pela Recorrida, tendo em vista possibilitar verdadeiramente o exercício do contraditório (o que esta logrou fazer), permitir a definição dos contornos do direito no caso concreto e a prolação de uma decisão que seja definidora do conflito de interesses subjacente a este.

20. Deste modo, o pedido constante da alínea c) da petição inicial apresenta-se formulado com um caracter manifestamente determinado, não obstante a sua determinação ser genérica, mas suscetível de integrar a previsão do artigo 556.º do Código de Processo Civil, pelo que, consequentemente, s. m. o., a decisão proferida pelo Tribunal a quo, que absolveu a Requerida da instância relativamente ao pedido mencionado, merece censura, devendo, para o efeito, ser revogada.

21. No que diz respeito à decisão de absolvição da Recorrida da instância quanto aos pedidos formulados nas alíneas b) e d) da petição inicial, considerou o tribunal recorrido verificar-se a exceção dilatória de incompetência material do tribunal.

22. Com efeito, entendeu o Tribunal a quo que o Juízo de Comércio não é materialmente competente para conhecer, apreciar e julgar o presente processo, pois que, não está aqui em causa o exercício de direitos sociais, motivo pelo qual são os juízos cíveis competentes para dela conhecer.

23. Para sustentar a sua decisão, disse o Tribunal a quo que as Recorrentes e a Recorrida não são sócias, mas apenas contitulares de uma quota indivisa, em virtude de sucessão mortis causa do seu pai, anterior titular da quota, motivo pelo qual a ação de que lançaram mão não se destina ao exercício de direitos sociais, pois estes são os que derivam do estatuto de sócio.

24. Mais aventou que, são os juízos cíveis os competentes “para apreciar o pedido de destituição do representante comum já que a relação estabelecida entre as contitulares da quota indivisa não está relacionada com o direito societário”.

25. E ainda que a relação material controvertida se situa ao nível das relações internas entre as diversas contitulares da quota indivisa.

26. Entendem as Recorrentes que a decisão de absolvição da Recorrida da instância, em virtude de – segundo o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo – se verificar a exceção dilatória de incompetência material do tribunal, carece de fundamento jurídico, assentando numa interpretação errada das normas jurídicas aplicáveis.

27. Com efeito, a decisão proferida pelo Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 117.º, 130.º e 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (doravante LOSJ) e nos artigos 65.º e 96.º do CPC, pois que, com a presente ação pretendem as Recorrentes acautelar o seu direito de voto, que é um direito social, por se encontrar previsto no artigo 21.º, n.º 1, alínea b) do CSC.

28. Ora, de acordo com o disposto na alínea c), do n.º 1, do artigo 128.º da LOSJ, a preparação e julgamento das ações relativas ao exercício de direitos sociais compete aos juízos de comércio.

29. Ora, com a presente ação as Recorrentes pretendem acautelar os seus direitos participativos, ou seja, visam a destituição da Requerida do cargo de Representante Comum, em virtude de esta não transmitir à sociedade a vontade formada dentro da quota.

30. Efetivamente, a questão nuclear que as Recorrentes pretendem ver apreciada na presente ação não é uma questão que se situa ao nível das relações internas entre as diversas contitulares de uma quota, ao contrário do afirmado pelo Tribunal a quo, centrando-se, outrossim, na transmissão (pela representante comum da quota indivisa), à Sociedade, de deliberações em sentido divergente da deliberação alcançada dentro da quota.

31. No presente processo não se discute uma eventual discordância quanto à pessoa a quem a lei confere o cargo de representante comum da quota.

32. E é pelo facto de no presente processo não se discutir tal questão (mas sim uma outra, substancialmente diferente) que o Tribunal a quo, no entendimento das Recorrentes, e sempre com o devido respeito por opinião em sentido diverso, incorre numa falácia ao alicerçar a sua decisão no acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, de 07/01/2019, proferido no âmbito do processo n.º 53/17.9T8PRT.P1.

33. Isto porque, no processo que culminou na prolação do indicado acórdão, a questão que se discutia era precisamente essa – ou seja, o cerne da causa assentava na circunstância de os contitulares de quotas indivisas terem convocado uma assembleia de contitulares com o propósito de nomear o representante comum da quota, sabendo que tal nomeação era proibida, em virtude de o representante comum ser, ope legis, o cabeça de casal.

34. Ora, no caso em concreto, não só o pedido é diverso – suspensão e posterior destituição do representante comum, ao invés de nomeação –, como também o é a causa de pedir: ao passo que naquele processo se impugna a validade de uma deliberação tomada numa assembleia de contitulares (e que, em consequência, só aos conttulares vincula), por violar o disposto nos artigos 2079.º e 2087.º, n.º 1, ambos do Código Civil, no processo sub judice, pretende-se a destituição da Recorrida do cargo de representante comum, em virtude de esta, nas deliberações tomadas em todas as assembleias gerais realizadas desde outubro de 2021, votar em sentido divergente da vontade alcançada dentro da quota, deliberações essas que vinculam a sociedade!

35. As referidas questões nem sequer foram levantadas neste processo, sendo ainda de salientar a circunstância de a ação intentada no âmbito do processo n.º 153/17.9T8PRT.P1 não ser, sequer, a que se encontra prevista no artigo 1055.º do CPC. Mas mais,

36. Os direitos sociais, para o efeito de fixação da competência dos Juízos de Comércio, são aqueles que estão previstos na Lei das Sociedades Comerciais ou no contrato de sociedade.

37. ln casu, apreciando os pedidos formulados e a causa de pedir alegada, conclui-se que, com a presente ação, pretendem as Recorrentes que o tribunal conheça da ilicitude da atuação da Representante comum de uma quota indivisa, em virtude de essa atuação ilícita violar os seus direitos participativos.

38. Pois bem, tendo em conta as matérias invocadas, sempre se dirá que o que está em causa é precisamente o exercício de direitos sociais, que apenas podem ser exercidos pelas Recorrentes.

39. Sucede que, no caso em concreto, entendeu o Tribunal a quo que a presente ação não visa o exercício de direitos sociais, pelo facto de as contitulares não serem sócias.

40. Todavia, também neste aspeto, quanto a nós e salvo o devido respeito por opinião diversa, o Tribunal a quo não tem razão.

41. Isto porque, as contitulares da quota indivisa, enquanto herdeiras de um sócio falecido, são sempre sócias – neste sentido veja-se a jurisprudência e doutrina indicada nas alegações, para as quais se remete.

42. Acresce que, a criação dos juízos do comércio foi orientada pelo objetivo de melhorar a administração da justiça quando os conflitos emergem de aspetos específicos do direito comercial ou do direito das sociedades comerciais.

43. Ora, quando o acervo hereditário é composto por uma participação social indivisa, é no Código das Sociedades Comerciais que se encontra consagrado um regime próprio e especial, conforme melhor se expõe em sede de motivações para as quais se remete. Sendo certo que, tal regime especial – previsto nos artigos 222.º, 223.º e 224.º do CSC –, diverge quanto ao regime estabelecido no Código Civil no que concerne aos poderes, deveres e modo de atuar do cabeça de casal.

44. Motivo pelo qual, dúvidas não existem que, para analisar, compreender e determinar a solução a dar à presente ação é necessário conhecimentos específicos sobre o aludido regime especial, consagrado na lei comercial, para que estão mais vocacionados os tribunais a que foi atribuída competência especializada nessa área: os juízos de comércio.

45. Neste sentido, é paradigmático que o legislador tenha sentido a necessidade de incluir esta ação no capítulo XIV do Código de Processo Civil, sob a epígrafe Exercício de direito sociais e, dentro deste, na Secção II – Nomeação e destituição de titulares de órgãos sociais.

46. Ressalta à evidência que, se a presente ação não tivesse por objeto o exercício de direitos sociais, não teria o legislador consagrado a mesma dentro de um capítulo do Código de Processo Civil destinado especificamente à previsão de ações relativas ao exercício daqueles direitos!

47. À luz do exposto, é inequívoco que não tem razão o Tribunal recorrido quando afirma que são os juízos cíveis os competentes “para apreciar o pedido de destituição do representante comum já que a relação estabelecida entre as contitulares da quota indivisa não está relacionada com o direito societário”. Com efeito, se assim fosse, então, o Código das Sociedades Comerciais não consagraria um regime específico destinado a reger tal relação, que derroga (por ser especial) o regime geral previsto nas normas do direito sucessório, quanto às relações entre o cabeça de casal e demais herdeiros quando o acervo hereditário é composto por uma participação social.

48. Assim, estando em causa os pedidos de suspensão e destituição de representante comum de quota indivisa fundada na existência de justa causa, o seu conhecimento não cabe na competência residual atribuída aos juízos cíveis, motivo pelo qual deve a sentença, na parte em que declara que se verifica a exceção dilatória de incompetência material ser revogada e, consequentemente, deve aplicar-se o disposto no já referido artigo 128.º, n.º 1 alínea c) da LOSJ ex vi artigo 65.º, n.º 1 do CPC e, neste sentido, declarar-se o tribunal recorrido, competente em razão da matéria.

A Requerida apresentou contra-alegações pugnando por que se mantenha a decisão recorrida.

O presente recurso foi admitido como recurso de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

O tribunal recorrido pronunciou-se no sentido da inexistência da nulidade apontada.

Colhidos os vistos legais cumpre decidir.


*

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil[1], aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso.

As questões a dirimir, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes:

- Nulidade da sentença por excesso de pronúncia e omissão de contraditório;

- Apreciação da competência material do Juízo de Comércio para conhecer e julgar o presente processo.


*

III – EXCESSO DE PRONÚNCIA E OMISSÃO DE CONTRADITÓRIO

As Recorrentes invocam, como primeiro fundamento de recurso, que a decisão de absolvição da instância, ancorada na alegada verificação da exceção dilatória da petição inicial quanto ao pedido constante da alínea c) do referido articulado, constitui uma decisão surpresa.

Justificam que esta decisão viola o disposto no n.º 3, do artigo 3.º do C P Civil, integrando a violação do princípio do contraditório, o que consubstancia a prática de uma nulidade processual, que influi no exame ou decisão da causa.

Alegam que, no dia 21/05/2024, foi proferido um despacho pelo Tribunal recorrido, mediante o qual as partes foram notificadas “para, em 5 dias, se pronunciarem quanto à (in)competência material deste tribunal” (…) “Em obediência ao princípio do contraditório e atendendo ao disposto no art. 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil”. Mas que, todavia, não foi preferido pelo tribunal a quo qualquer despacho a notificar as partes para se pronunciarem acerca da alegada ineptidão da petição inicial que subjazeu à decisão de absolvição da instância no que se refere ao pedido previsto na alínea c) da petição inicial.

Entendem que existe o dever de audição prévia, pois está em causa uma questão de direito (a ineptidão da petição inicial) que constituiu a base da decisão de absolvição da instância quanto ao pedido previsto constante da alínea c) da petição inicial.

Concluem que a sentença padece de nulidade no segmento decisório supra referido, ao abrigo do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CP Civil, porquanto a juiz a quo tomou conhecimento de uma questão de que não podia tomar conhecimento, sem a audição prévia das partes.

Quanto à legalidade do pedido em causa, aduzem que o mesmo é formulado nos termos do disposto no artigo 556.º, n.º 1 alínea b) do CP Civil, tratando-se de um pedido genérico, na medida em que, face à elevada probabilidade de que a Recorrida iria voltar a reunir e deliberar irregularmente em Assembleia Geral, fossem declaradas nulas e sem qualquer efeito as deliberações tomadas por esta, à revelia das Recorrentes, desde a propositura da presente ação até à prolação de uma decisão definitiva.

Afirmam terem provado que os fundados receios apresentados no seu Requerimento Inicial, não se tratavam, apenas e só de meras hipóteses e devaneios, mas que eram, efetivamente, justificados.

Emitem a opinião de que a atuação da Recorrida é manifestamente abusiva e desconforme à boa fé negocial, agindo esta com abuso de direito, previsto no artigo 334.º do Código Civil.

Bem como que considerar o pedido formulado como “inepto” atenta contra o contexto do Requerimento Inicial e constitui uma interpretação incorreta de toda a panóplia de acontecimentos narrados nos autos.

Concluem que o pedido constante da alínea c) da petição inicial se apresenta formulado com um caracter manifestamente determinado, não obstante a sua determinação ser genérica, mas suscetível de integrar a previsão do artigo 556.º do CP Civil, pelo que, consequentemente, a decisão proferida pelo tribunal a quo, que absolveu a Requerida da instância relativamente ao pedido mencionado, merece censura, devendo, para o efeito, ser revogada.

O princípio da contradição ou do contraditório é um dos princípios gerais estruturantes do processo civil, intimamente ligado ao princípio da igualdade das partes e com uma matriz constitucional, assente no princípio de acesso ao direito e aos tribunais e no princípio da igualdade.

Tal como explica Lebre de Freitas[2]: “a proibição da chamada decisão-surpresa tem sobretudo interesse para as questões, de direito material ou de direito processual, de que o tribunal pode conhecer oficiosamente: se nenhuma das partes as tiver suscitado, com concessão à parte contrária do direito de resposta, o juiz – ou o relator do tribunal de recurso – que nelas entenda dever basear a decisão, seja mediante o conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve previamente convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer em casos de manifesta desnecessidade.

No mesmo sentido, a jurisprudência tem vindo paulatinamente a definir as situações típicas e as consequências da não observância deste princípio geral. Tem vindo, designadamente, a entender que o tribunal não pode proferir “decisões surpresa”[3], sem previamente dar cumprimento nos autos ao princípio do contraditório.

No caso dos autos, a decisão recorrida julgou verificada uma exceção de ineptidão da petição inicial quanto ao pedido formulado na alínea c) da petição inicial, absolvendo a Requerida da instância quanto ao mesmo.

Esta nulidade não foi invocada por nenhuma das partes e nunca foi aflorada pelo próprio tribunal até à ocasião da prolação da decisão final.

Não era, portanto, previsível que o tribunal enveredasse por este caminho, constituindo a decisão recorrida uma decisão surpresa.

Contudo, analisado o requerimento inicial, verifica-se que as Requerentes intentaram a presente ação especial pedindo que:

a) Seja a presente ação julgada procedente, por provada;

b) Seja decretada, sem audiência prévia da Requerida, a título antecipatório e com natureza urgente, a suspensão imediata desta das funções de representante comum da quota indivisa;

c) Seja declarada nula qualquer deliberação tomada pela Requerida, à sua revelia, desde a propositura da presente ação até à prolação de uma decisão definitiva que lhe ponha termos;

d) Seja decretada a destituição da Requerida do cargo de representante comum da quota indivisa e, consequentemente, nomeado novo representante;

e) Seja a Requerida condenada no pagamento das custas e demais encargos legais.

Invocam, em síntese, que quer elas, quer a Requerida, são sócias da sociedade por quotas “A..., Lda.”, que tem por objeto a gestão de bens imobiliários, exploração agrícola e turismo rural, cultural e de habitação.

Declaram que, tendo a sócia BB falecido a 20 de outubro de 2021, elas, enquanto suas filhas, passaram a ocupar a posição de herdeira que a mãe detinha na herança aberta pelo óbito de sócio EE. Também que, neste seguimento, a Requerida foi nomeada Cabeça-de-Casal na herança indivisa aberta por óbito do Sócio EE, seu pai, no âmbito do processo de inventário n.º 16/22.6T8VNC, que corre os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível do Porto – Juiz 2.

Afirmam que, por ter sido judicialmente investida no cabecelato, a Requerida passou a assumir a qualidade de Representante Comum da quota de valor nominal de 78.500,00€.

Alegam que, desde então, a Requerida delibera sozinha, de acordo com a sua vontade exclusiva, como se fosse titular individual daquela quota e despreza a vontade das restantes comproprietárias, aqui Requerentes, que detêm a maioria aludida dentro da quota.

Defendem que a gravidade dos factos alegados integra o conceito de justa causa de destituição de Representante Comum, motivo pelo qual fundamentam igualmente a exigida aparência séria do direito, que, por si só, justifica o efetivo periculum in mora.

À luz desta causa de pedir e pedidos finais, é para nós evidente que estamos perante uma situação de cumulação de pedidos, nos termos e para os efeitos do art.º 555.º do CP Civil, em que os pedidos formulados sob as alíneas b) e d) assumem o papel de pedidos principais e o pedido da alínea c) o papel de pedido acessório.

Explicam, a este propósito, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[4]: “A cumulação de pedidos tanto pode respeitar a relações jurídicas distintas (por exemplo, pede-se a condenação do réu no pagamento da dívida e na entrega de determinado bem de que o autor é proprietário) como à mesma relação jurídica (por exemplo, pede-se a condenação do réu na restituição da quantia mutuada e nos respetivos juros, ou a declaração do direito de propriedade do autor e a condenação do réu na entrega do prédio). No primeiro caso, os pedidos cumulados são autónomos, não sendo sequer exigida qualquer conexão entre eles; no segundo, os pedidos são principais e acessórios.”

No caso dos autos, apenas na eventualidade de serem procedentes os pedidos principais, ou um deles, de suspensão imediata da Requerida das funções de representante comum da quota indivisa e/ou de destituição da Requerida do cargo de representante comum da quota indivisa é que se justifica a apreciação do pedido acessório de declaração de nulidade de qualquer deliberação tomada pela Requerida, à sua revelia, desde a propositura da presente ação até à prolação de uma decisão definitiva.

Este pedido decorre da mesma relação jurídica, com carater acessório, na medida em que é uma mera consequência ou inerência da procedência pelo menos de um dos demais pedidos, não tendo autonomia por si só.

Em termos processuais, a lei processual civil exige, nestas situações, que exista compatibilidade entre os pedidos, identidade da forma de processo correspondente a todos eles e competência absoluta do tribunal para conhecer de todos eles (cf. leitura conjugada dos art.ºs 555.º e 37.º do CP Civil).

Aliás, nestes casos de formulação de pedidos principais e pedidos acessórios tem-se entendido que deve estender-se a competência dos pedidos principais aos acessórios[5].

Assim sendo, deverá primeiramente apreciar-se da competência material do Juízo de Comércio para apreciação e julgamento dos pedidos principais formulados sob as alíneas b) e d). Somente na eventualidade de procedência deste fundamento de recurso se justificará atentar nas consequências da omissão de cumprimento do princípio do contraditório e, num segundo momento, da legalidade da decidida ineptidão de tal pedido, já que, no caso de confirmação da decisão recorrida, tal apreciação ficará necessariamente prejudicada.

Relega-se, pois, para momento posterior a eventual apreciação completa deste fundamento de recurso.


*

IV – COMPETÊNCIA MATERIAL DO JUÍZO DE COMÉRCIO PARA CONHECER E JULGAR A PRESENTE CAUSA

O tribunal recorrido julgou verificada a exceção de incompetência absoluta em razão da matéria do Juízo de Comércio quanto aos pedidos formulados nas alíneas b) e d) da Petição Inicial, com a consequente absolvição da Requerida da instância.

As Requerentes/Recorridas pugnam pela competência material deste mesmo Juízo de Comércio.

Sustentam, em síntese, que com a presente ação pretendem acautelar os seus direitos participativos, ou seja, visam a destituição da Requerida do cargo de Representante Comum, em virtude de esta não transmitir à sociedade a vontade formada dentro da quota.

Dizem que, apreciando os pedidos formulados e a causa de pedir alegada, pretendem que o tribunal conheça da ilicitude da atuação da Representante comum de uma quota indivisa, em virtude de essa atuação ilícita violar os seus direitos participativos.

Defendem que, quando o acervo hereditário é composto por uma participação social indivisa, é no Código das Sociedades Comerciais que se encontra consagrado um regime próprio e especial, designadamente o previsto nos artigos 222.º, 223.º e 224.º. Entendem que este regime especial diverge quanto ao regime estabelecido no Código Civil no que concerne aos poderes, deveres e modo de atuar do cabeça de casal.

Cumpre apreciar e decidir.

Em obediência ao comando constitucional do art.º 211.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa[6], os Tribunais da primeira instância estão divididos em tribunais comuns e tribunais especializados.

Tal como já explicava Anselmo de Castro[7], o conceito de competência traduz-se na parcela de jurisdição pertencente a cada um dos órgãos jurisdicionais, determinada de harmonia com certos critérios, através dos quais se distribui a jurisdição entre os seus vários órgãos.

No mesmo sentido, refere-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/05/2003, tendo como Relator Neves Ribeiro[8] “O critério de atribuição de competência material ao juiz projeta a vocacionalidade, aptidão, adequação ou agilização do tribunal à causa. (…) Num Estado de Direito é fundamental a bondade da lei organizativa judiciária, no acerto e determinação dos fatores objetivos de conexão judiciária para que o Estado cumpra ao mais alto nível possível a qualidade da prestação pública.”

A competência é, portanto, a medida de jurisdição de um tribunal e processualmente assume a estrutura de um pressuposto processual.

É um pressuposto processual, no sentido de “condição para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa através de uma decisão de procedência ou improcedência.”[9]

A infração das regras de competência em razão da matéria, tal como as da hierarquia ou de competência internacional, gera incompetência absoluta (Cf. art. 96.º e ss. do CP Civil).

Em concreto, e atualmente, a Lei da Organização do Sistema Judiciário[10] desdobrou os tribunais judiciais de primeira instância nos seguintes Juízos de Competência Especializada: Central Cível, Local Cível, Central Criminal, Local Criminal, Local de Pequena Criminalidade, Instrução Criminal, Família e Menores, Trabalho, Comércio e Execução (cf. art.º 81.º, na redacção da Lei n.º 40-A/2016, de 22/12).

No caso em apreciação, a dúvida reside em definir se a competência material é do Juízo de Comércio ou do Juízo Local Cível.

Numa delimitação pela negativa, o art.º 65.º do CP Civil dispõe que “As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das seções dotados de competência especializada.”

Uma vez que, de acordo com o disposto no art.º 130.º, n.º 1, da LOSJ, os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respectiva área territorial quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada, a questão decide-se apurando se a presente causa está compreendida na zona da jurisdição dos Juízos de Comércio, enquanto Tribunal especializado.

Ora, os Juízos de Comércio, face ao disposto no art.º 128.º, n.º 1, alínea c), da LOSJ têm competência abstracta para – entre o mais – conhecer “As acções relativas ao exercício de direitos sociais.”

A lei, e em especial o Código das Sociedades Comerciais, não define o que sejam “direitos sociais.”, apenas nos permitindo concluir que os mesmos são regulados pela lei, pelo contrato de sociedade e por deliberações sociais dos sócios e/ou do órgão de administração.

O respectivo recorte dogmático tem vindo a ser feito pela doutrina e pela jurisprudência, de forma essencialmente coincidente.

Assim, e de forma exemplificativa, temos que João Labareda[11] explica que “(…) o direito social, para lá da complexidade que revela, tanto como realidade global, como nas múltiplas manifestações em que se concretiza, traduz sempre uma situação jurídica de quem toma parte numa sociedade, face à própria entidade a quem está ligado.”

De forma paralela, Brito Correia[12] defende que “Direitos sociais ou corporativos são os direitos que os sócios têm como sócios da sociedade e que tendam à protecção dos seus interesses sociais.”, categorizando-os entre direitos individuais, direitos gerais ou comuns e direitos especiais.

Quanto aos respectivos factos constitutivos, e continuando a seguir os ensinamentos do mesmo doutrinador[13], “há a considerar que certos direitos dos sócios se constituem por mero efeito do contrato de sociedade (ou de posterior deliberação que o altere v.g. aumente o capital – aquisição originária) pi então da aquisição (subsequente ou derivada) de participações sociais (entre vivos ou por morte). (…). Outros direitos ainda, pressupondo a qualidade de sócio, constituem-se por efeito de actos (v.g. deliberações sociais) posteriores à aquisição daquela qualidade, como a deliberação de distribuição de lucros (quanto ao direito aos lucros deliberados) e à deliberação de emissão de novas acções (quanto ao direito de preferência na mesma emissão).”

Ou seja, e em resumo, deve entender-se que cabem na previsão desta disposição legal todas as acções cuja causa de pedir se prenda com questões internas de uma sociedade comercial, directamente relacionadas com o exercício de interesses sociais.

A justificação desta estatuição relaciona-se com a circunstância de estarmos perante matérias que reclamam especial preparação técnica e sensibilidade[14].

Fixada a competência abstracta dos Juízos de Comércio, cabe afinar a nossa análise para a apreciação dos contornos da presente causa.

É pacífico que a competência, em razão da matéria, sendo um pressuposto processual, se deve aferir face à relação jurídica que se discuta na ação, tal como desenhada pelo autor[15]. Bem como que o enquadramento jurídico da situação trazida aos autos pelo autor não é elemento da causa de pedir, relevando apenas os factos alegados como fundamento para os pedidos formulados.

Cumpre, então, atender ao pedido e, essencialmente, à causa de pedir apresentada pelas Requerentes.

Nos presentes autos, como já se referiu, as Requerentes invocam, em síntese, que quer elas, quer a Requerida, são sócias da sociedade por quotas “A..., Lda.”, que tem por objeto a gestão de bens imobiliários, exploração agrícola e turismo rural, cultural e de habitação.

Declaram que, tendo a sócia BB falecido a 20 de outubro de 2021, elas, enquanto suas filhas, passaram a ocupar a posição de herdeira que a mãe detinha na herança aberta pelo óbito de sócio EE. Também que, neste seguimento, a Requerida foi nomeada Cabeça-de-Casal na herança indivisa aberta por óbito do Sócio EE, seu pai, no âmbito do processo de inventário n.º 16/22.6T8VNC, que corre os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível do Porto – Juiz 2.

Afirmam que, por ter sido judicialmente investida no cabecelato, a Requerida passou a assumir a qualidade de Representante Comum da quota de valor nominal de 78.500,00€.

Alegam que, desde então, a Requerida delibera sozinha, de acordo com a sua vontade exclusiva, como se fosse titular individual daquela quota e despreza a vontade das restantes comproprietárias, aqui Requerentes, que detêm a maioria aludida dentro da quota.

Defendem que a gravidade dos factos alegados integra o conceito de justa causa de destituição de Representante Comum, motivo pelo qual fundamentam igualmente a exigida aparência séria do direito, que, por si só, justifica o efetivo periculum in mora.

Pedem, sequencialmente, que:

a. Seja a presente ação julgada procedente, por provada;

b. Seja decretada, sem audiência prévia da Requerida, a título antecipatório e com natureza urgente, a suspensão imediata desta das funções de representante comum da quota indivisa;

c. Seja declarada nula qualquer deliberação tomada pela Requerida, à sua revelia, desde a propositura da presente ação até à prolação de uma decisão definitiva que lhe ponha termos;

d. Seja decretada a destituição da Requerida do cargo de representante comum da quota indivisa e, consequentemente, nomeado novo representante;

e. Seja a Requerida condenada no pagamento das custas e demais encargos legais.

A nossa interpretação e integração abstracta da causa de pedir e pedidos da acção não é coincidente com a das Recorrentes, mas sim com a do tribunal recorrido.

Em face da causa de pedir e dos correspectivos pedidos é para nós inquestionável que as Requerentes não invocam diretamente a aplicação de quaisquer regras jurídicas referentes a direitos sociais.

Os direitos sociais dos sócios não constituem elemento central da causa de pedir, mas apenas elemento acessório, como objecto das consequências da verificação da alegada situação de exercício ilegal e abusivo do cargo de representante comum da quota indivisa.

Tal como se refere na decisão recorrida, “Atendendo ao pedido e causa de pedir constata-se que as autoras não pretendem exercer um direito social, questionando, sim, a atuação da ré enquanto representante comum das participações sociais que fazem parte da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de um sócio, sendo que a ré é a cabeça-de-casal dessa herança. A questão que se coloca situa-se, assim, ao nível das relações internas entre os diversos contitulares nas ações.”

Estamos “tão-só” perante um conflito entre as contitulares de uma quota social indivisa que pertence a uma herança jacente quanto ao modo de agir da cabeça de casal.

Trata-se estruturalmente de uma questão não societária, que se relaciona com uma herança indivisa e com o exercício do cabecelato.

Em face desta causa de pedir e pedidos, as disposições legais que tratam deste exercício do cabecelato são as do art.º 2079.º e ss. do Código Civil que começam logo por enunciar a regra geral que “A administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal.”

Aliás, o art.º 223.º do Código das Sociedades Comerciais ressalva precisamente a situação de o representante comum ser designado por lei, analisando-se, a este propósito, no “Código das Sociedades Comerciais em Comentário, com coordenação de Jorge Coutinho de Abreu”[16]: “Decorre do CSC e do CCiv. que no caso de sucessão por morte o cabeça-de-casal é, por designação da lei, o representante comum. O n.º 1 do art.º 223.º aponta o caminho: primeiro, há que ver se a lei ou o testamento designam representante comum. Só quando tal não suceda é que os contitulares podem nomear o representante comum. Não estaremos, assim, perante um regime dispositivo. A segurança e a certeza no relacionamento entre a sociedade e os contitulares determinaram esse regime. Para já não falar nos interesses relacionados com a própria administração da herança. Por isso, havendo cabeça-de-casal, a ele compete atuar como representante comum.”

Regulando a legislação civil quem deve atuar como representante comum, serão necessariamente os Juízos Cíveis a decidir da eventual remoção do cabeça-de-casal, designadamente em situações de administração do património hereditário sem prudência e/ou zelo ou de incompetência para o exercício do cargo (cf. art.º 2086.º do Código Civil).

Estando pendente em Juízo Processo especial de Inventário (Processo n.º 16/22.6T8VNC, que corre os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível do Porto – Juiz 2), deverão as Requerentes lançar mão nesses autos do incidente próprio para o efeito.

Em síntese, a apreciação da causa reclama a aplicação do direito civil e não do direito comercial.

Decidindo um caso paralelo ao destes autos, refere-se – da mesma forma – no Acórdão da Relação de Coimbra de 03/05/16, tendo como Relator Fonte Ramos[17] que “Os direitos sociais são os direitos cuja matriz, directa e imediatamente, se funda na lei societária (lei que estabelece o regime jurídico das sociedades comerciais) e/ou no contrato de sociedade.”, concluindo-se paralelamente que “Não pretendendo a A. exercer direitos sociais reconhecidos ou previstos nas normas do Código das Sociedades Comerciais e importando apenas verificar e reconhecer direitos decorrentes da lei civil substantiva (no confronto com a invocada actuação dos Réus), a competência para a preparação e julgamento da causa está atribuída à Jurisdição Comum/Cível.”

Esta decisão prejudica a apreciação das demais questões suscitadas no recurso, designadamente a apreciação da consequência da falta de cumprimento do princípio de contraditório quanto à decidida ineptidão do pedido formulado sob a alínea c) e, num segundo momento, da legalidade da decidida ineptidão deste pedido.

A conclusão final é, pois, a da total improcedência do recurso.


*

V - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso das Requerentes/Recorrentes, confirmando-se decisão recorrida quanto à verificação da exceção de incompetência absoluta em razão da matéria quanto aos pedidos formulados nas alíneas b) e d) e julgando-se prejudicada a apreciação da julgada exceção de ineptidão da petição inicial quanto ao pedido formulado na alínea c).


*

Custas a cargo das Recorrentes/Requerentes (art.º 527.º do CP Civil).

Notifique e registe.


*

(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)


Porto, 08 de outubro de 2024
Lina Baptista
Artur Dionísio Oliveira
Anabela Miranda
_________________
[1] Doravante apenas designado por CP Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[2] In Introdução do Processo Civil – Conceito e princípios gerias à luz do novo código. 2013, 3.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 133. Veja-se ainda, no mesmo sentido, Lopes do Rego in Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2004, 2ª Edição, Almedina, pág. 33.
[3] Quanto à noção de “decisões surpresa” veja-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/09/2011, tendo como Relator Gabriel Catarino: “Há decisão surpresa se o juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correta e atinada decisão do litígio.” (proferido no Processo n.º 2005/03.0TVLSB.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão).
[4] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª Edição, 2017, Almedina, pág. 504.
[5] Veja-se, neste sentido e a título meramente exemplificativo, o Acórdão da Relação de Guimarães de 07/04/2016, tendo como Relatora Isabel Rocha, proferido no Processo n.º 41/15.0T8CBC.G1, e o Acórdão da Relação de Lisboa de 21/05/2015, tendo como Relator Jorge Leal, proferido no Processo n.º 2721/06.5TBMTJ-A.L1-2, ambos disponíveis em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[6] Na redação da Lei n.º 1/97, de 20/09.
[7] In Direito Processual Civil Declaratório, Vol. II, 1982, Almedina, pág. 16 e ss.
[8] Proferido no Processo n.º 03B1484 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[9] Tal como refere Miguel Teixeira de Sousa in A nova Competência dos Tribunais Civis, LEX, 1999, pág. 24.
[10] Aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto e doravante designada apenas por LOSJ.
[11] In “Sobre os processos destinados ao exercício de direitos sociais” in Direito e Justiça, Vol. XIII, 1999, Tomo I, Universidade Católica Portuguesa, pág. 44.
[12] In Direito Comercial – Sociedades Comerciais, Vol. II, 1997, AAFDL, pág. 306.
[13] In ob. cit., pág.. 309.
[14] Veja-se neste sentido, e a título meramente exemplificativo, o Acórdão da Relação de Coimbra de 22/09/2015, tendo como Relator Fonte Ramos e disponível em Colectânea de Jurisprudência Ano XL, Tomo IV, pág. 314.
[15] Veja-se, neste sentido e a título meramente exemplificativo, o Acórdão desta Relação de 13/10/2009, tendo como Relator Ramos Lopes, proferido no Processo n.º 1293/08.0TBPFR.P1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[16] Volume III, Almedina, 2011, pág. 405.
[17] Proferido no Processo n.º 851/14.9TBVLD-A.C1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.