ARTICULADO SUPERVENIENTE
FACTOS ESSENCIAIS
DESPACHO LIMINAR
REJEIÇÃO LIMINAR
Sumário

I - Os factos alegados em sede de articulado superveniente, (art. 588º do CPC) hão necessariamente de ser factos essenciais para o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.
II - O articulado superveniente está sujeito a despacho liminar, devendo ser rejeitado se nele são alegados apenas factos “novos” que não interessam ao mérito da causa, mas interessam apenas ao conhecimento de exceções dilatórias.
III - Porém, há que atentar que, não obstante o princípio da concentração da defesa e da preclusão, o nº 2 do art. 573º do CPC permite ainda ao réu a defesa tardia “oficiosa”, que pode ser deduzida após a apresentação da contestação, na qual se integram todos aqueles meios defensionais que o tribunal pode e deve conhecer oficiosamente.

Texto Integral

Proc. n.º 1081/23.4T8PVZ-C.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto -Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim - Juiz 3

Juíza Desembargadora Relatora:

Alexandra Pelayo

Juízes Desembargadores Adjuntos

João Proença

Artur Dionísio Oliveira

SUMÁRIO:

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Acordam os Juízes que compõem este tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO:

Nos autos de ação popular com processo comum que CITIZENS’ VOICE – CONSUMER ADVOCACY move a A..., S.A., citada a ré veio deduzir contestação, tendo-se defendido, invocando, para além do mais, as seguintes exceções dilatórias: incompetência territorial; incompetência absoluta em razão da matéria; litispendência; ineptidão da p.i e ilegitimidade ativa.

Em 27.6.2024, veio a Ré A..., S.A., ao abrigo dos artigos 588.º e seguintes do Código de Processo Civil apresentar ARTICULADO SUPERVENIENTE, requerendo que, “seja admitido o presente articulado superveniente e os documentos com este oferecidos e, consequentemente, serem julgadas procedentes as exceções de incompetência material e de ilegitimidade e a ação ser julgada manifestamente improcedente.”

Sobre a pretensão da ré recaiu o seguinte despacho:

“A ré apresentou articulado superveniente em 9/04/2024.

Deduz douta argumentação da qual conclui pela verificação da exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria, e da exceção dilatória de ilegitimidade processual ativa.

Nos termos do art. 588.º, n.º 1, do CPC, os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão.

A invocação de exceções dilatórias não se subsume à alegação de factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito. A procedência de uma exceção dilatória tem efeitos apenas na relação processual e não nos direitos litigados.

A ré pretende aditar à contestação tempestivamente apresentada estas duas exceções, cujo conhecimento pelo tribunal tem por base o pedido e causa de pedir tal como expostos na petição inicial e a relação material controvertida configurada na petição inicial, nos termos do art. 30.º, n.º 3, do CPC.

Nos termos do art. 573.º, n.º 1, do CPC, toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado. Já o n.º 2 acrescenta que depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.

Trata-se do princípio da concentração da defesa na contestação, com exceções previstas neste mesmo normativo, que implica a preclusão da alegação de outra factualidade ou invocação de outras exceções em momento posterior. Excetuam-se apenas os factos modificativos, impeditivos ou extintivos do direito litigado que sejam posteriores a contestação, e as exceções de conhecimento oficioso.

A faculdade de a ré invocar exceções dilatórias não constantes da contestação, com vinculação do tribunal a pronúncia sobre as mesmas está assim precludida, sem prejuízo de o tribunal poder conhecer oficiosamente destas exceções, caso as julgue verificadas.

Pelo exposto decide-se rejeitar o articulado superveniente apresentado pela ré em 9/04/2024.”

Inconformada a Ré A..., S.A. veio interpor o presente recurso de APELAÇÃO, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

“1ª – O despacho proferido decidiu rejeitar o Articulado Superveniente referindo expressamente que “A faculdade de a ré invocar exceções dilatórias não constantes da contestação, com vinculação do tribunal a pronúncia sobre as mesmas está assim precludida, sem prejuízo de o tribunal poder conhecer oficiosamente destas exceções, caso as julgue verificadas”.

2ª – O que significa que para decidir rejeitar o Articulado Superveniente o Tribunal partiu do entendimento que a Recorrente estava a invocar pela primeira vez as exceções dilatórias de Incompetência Material Absoluta e Ilegitimidade.

3ª – Porém, a Recorrente invocou expressamente tais exceções em sede de contestação, designadamente nos artigos 9º a 18º e 54º a 63º, respetivamente.

4ª – O Despacho foi proferido com base em erro grave, uma vez que toda a construção jurídica que dele consta parte de um fundamento errado, pois a realidade é que a Recorrente tinha invocado ambas as exceções em sede de contestação, facto que alegou expressamente no Articulado Superveniente.

5ª – Em face do que precede existe uma oposição entre os fundamentos processuais que deveriam ter sido considerados – uma vez que constam claramente dos autos – e a decisão proferida, Processo Civil, o que expressamente se invoca.

Sem prescindir,

6ª – Nos termos do disposto no nº 2 do artigo 573º do CPC, o Articulado Superveniente é admissível para a dedução de exceções que sejam supervenientes ou de que se deva tomar conhecimento oficioso;

7ª – Nos termos do disposto no artigo 588º nº 1 do CPC, os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes, podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado pela parte a quem aproveitem até encerramento da discussão;

8ª – No dia 09.04.2024 a Recorrente deu entrada a um Articulado Superveniente no qual invocou razões de direito e alegou matéria de facto que, no seu entender preenchem as exceções de Incompetência Material Absoluta e Ilegitimidade da Recorrida, alegando expressamente que tal matéria era complementar relativamente à invocação de tais exceções já feita em sede de contestação;

9ª – As exceções de Incompetência Material Absoluta e Ilegitimidade são exceções dilatórias previstas pelo disposto no artigo 577º a) e e) do Código de Processo Civil, sendo que tal natureza determina, nos termos do disposto no artigo 578º do mesmo diploma legal que são exceções de conhecimento oficioso pelo Tribunal.

10ª - Não obstante toda a defesa dever ser deduzida na contestação como resulta do disposto no artigo 573.º, n.º 1, do CPC, a lei também permite exceções à concentração da defesa, atento o disposto no n.º 2 do artigo 573.º do CPC, designadamente a apresentação de meios de defesa de que o tribunal possa conhecer oficiosamente, como sucede com as exceções dilatórias (artigo 578.º do CPC).

11ª – Assim, e sem necessidade de mais considerandos, levando em consideração que o Articulado Superveniente continha a invocação de exceções – que tinham sido já invocadas em sede de contestação – o mesmo sempre teria que ser admitido nos autos, sob pena de se ter violado como violou o disposto nos artigos 573º nº 2 e 578º ambos do Código de Processo Civil, o que expressamente se invoca.

Ainda sem prescindir,

12ª – A Recorrente para além de invocar expressamente as exceções dilatórias citadas nas conclusões antecedentes e de o fazer complementarmente à defesa apresentada em contestação, invocou expressamente as datas em que teve conhecimento de tais factos, assim dando cumprimento ao disposto no artigo 588º do Código de Processo Civil, uma vez que alegou e ofereceu prova da superveniência do conhecimento dos factos e razoes de direito invocados relativamente à data de apresentação da contestação.

13ª – Desde que tempestivamente apresentado, o articulado superveniente só poderá ser liminarmente rejeitado pelo Juiz caso a factualidade nova nele vertida se, e obviamente tendo sempre em consideração as várias soluções plausíveis da questão de direito, manifestamente nenhum interesse têm para a boa decisão da causa.

14ª – No caso concreto, o Despacho não teceu qualquer consideração quanto aos factos alegados nem quanto às questões de direito trazidas aos autos, o que terá que ser entendido como uma aceitação de que os mesmos efetivamente relevam para a boa decisão da causa.

15ª – Caso o Tribunal pretendesse indeferir o Articulado Superveniente com base no disposto no artigo 588º nº 4 teria que se ter pronunciado acerca do interesse dos factos alegados para a boa decisão da causa, o que manifestamente não fez.

16ª – De igual modo, o Tribunal também não conheceu sobre a superveniência dos factos e alegação feita pela Recorrente, pese embora esta tenha indicado datas concretas e junto aos autos documentos probatórios, a realidade é que o Tribunal não conheceu dos mesmos limitando-se a indeferir o Articulado com base no entendimento de que o mesmo era violador do disposto no artigo 573 nº 1 do Código de Processo Civil.

17ª – Em face da total ausência de pronuncia crítica sobre os factos e sobre a superveniência dos mesmos, o Despacho não tinha outra solução senão a de ter admitido o Articulado, uma vez que a única razão que invoca para a sua rejeição é a preclusão do direito de defesa com o fim do prazo da contestação, o que faz em clara violação do disposto no artigo 573º nº 2, 578º e 608º nº 1 do Código de Processo Civil.

18ª – Ao decidir como decidiu o Tribunal violou, além do mais, o disposto no artigo 588º nº 1, 2, 3 e 4 do Código de Processo Civil, na medida em que impendia sobre o Tribunal o dever de cumprir o disposto neste artigo e admitir a junção aos autos do Articulado, uma vez que o mesmo foi apresentado em cabal cumprimento da lei.

19ª – Em face do que precede, o despacho proferido é ilegal e violador do disposto nos artigos 573º nº 2 e 578º e 588º do Código de Processo Civil, devendo ser revogado e substituído por outro que admita a junção do Articulado Superveniente aos autos e dos documentos que o acompanham com todos os devidos e legais efeitos.

Termos em que declarando a nulidade do despacho recorrido ou, caso assim não se entenda que o mesmo seja revogado por absolutamente ilegal e violador dos normativos atrás alegados, substituindo o despacho por outro que indefira a intervenção principal provocada, sendo certo que caso assim decidam farão V. Exas., a costumada JUSTIÇA!”

Não foram oferecidas contra-alegações.

O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II-OBJETO DO RECURSO:

As questões decidendas delimitadas pelas conclusões do recurso são as seguintes:

-nulidade do despacho e;

-(in)admissibilidade do articulado superveniente.

III-FUNDAMENTAÇÃO:

Dão-se aqui por reproduzidos os atos processuais supra referidos no relatório.

IV-APLICAÇÃO DO DIREITO

4.1 Da nulidade

O Réu apelante vem arguir a nulidade do despacho recorrido, alegando que existe uma oposição entre os fundamentos processuais que deveriam ter sido considerados – uma vez que constam claramente dos autos – e a decisão proferida, o que determina a nulidade do despacho nos termos do disposto no artigo 615º nº 1 c) do Código de Processo Civil, o que expressamente se invoca.

Isto porque, diz a apelante, no despacho recorrido diz-se expressamente que “A faculdade de a ré invocar exceções dilatórias não constantes da contestação, com vinculação do tribunal a pronúncia sobre as mesmas está assim precludida, sem prejuízo de o tribunal poder conhecer oficiosamente destas exceções, caso as julgue verificadas”, quando ao invés, a Ré invocara oportuna e expressamente tais exceções em sede de contestação, designadamente nos artigos 9º a 18º e 54º a 63º, respetivamente.

Assim, toda a construção jurídica do despacho parte de um fundamento errado, pois a realidade é que a Recorrente tinha invocado ambas as exceções em sede de contestação, facto que alegou expressamente no Articulado Superveniente.

Vejamos.

Como é sabido, os vícios determinantes da nulidade da sentença (decisão) estabelecidos no art. 615º nº 1 do CPC, correspondem a casos de irregularidades que afetam formalmente a sentença e provocam dúvidas sobre a sua autenticidade, como é a falta de assinatura do juiz, ou ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia).

São sempre, vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afetada.

Dispõe o art. 615.º, n.º 1, al. c) CPC. que a sentença é nula quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.

Esta nulidade remete para o princípio da coerência lógica da decisão uma vez que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica, i.e., a decisão proferida não pode seguir um caminho diverso daquele que apontava a linha de raciocínio plasmado nos fundamentos. Tem-se entendido que esta nulidade está relacionada, por um lado, com a obrigação de fundamentação da decisão prevista nos art. 154º e 607º nº 3 do CPC e, por outro, pelo facto da decisão dever constituir um silogismo lógico-jurídico em que a decisão deverá ser a conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor).

Não há, porém que confundir entre nulidades de decisão e erros de julgamento (seja em matéria substantiva, seja em matéria processual). As primeiras (errores in procedendo) são vícios de formação ou atividade (referentes à autenticidade, à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão, isto é, trata-se de vícios que afetam a regularidade da decisão ou do silogismo judiciário) da peça processual que é a decisão, nada tendo a ver com erros de julgamento (errores in iudicando), seja em matéria de facto seja em matéria de direito. As nulidades ditam a anulação da decisão por ser formalmente irregular, as ilegalidades ditam a revogação da decisão por ser destituída de mérito jurídico (ilegal).

Neste sentido, o Prof. Antunes Varela[1] salienta que “…não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário …”.

Na situação em apreço, não estamos seguramente perante uma situação suscetível de configurar um vício de natureza formal da decisão recorrida, tal como o contemplado na alínea c) do art. 615º do CPC – quando os “fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível” - mas perante a invocação dum eventual erro de julgamento, isto é ter o tribunal partido do pressuposto erróneo (segundo a apelante) das exceções da incompetência e ilegitimidade não terem sido oportunamente arguidas na contestação oportunamente apresentada pela Ré.

Assim sendo tal questão será analisada se seguida, julgando-se desde já improcedente a arguida nulidade da decisão.

4.2 Da (in)admissibilidade do articulado superveniente

Importa decidir se é ou não admissível o articulado superveniente apresentado pela Ré, importando para tanto aferir se se mostram ou não preenchidos os requisitos estabelecidos no art. 588º do CPC.

A petição inicial é o articulado no qual o autor deve expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação (artigo 552º nº 1, al. d), do CPC).

Por sua vez, a contestação é o articulado do réu destinado à exposição das razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor e dos factos essenciais em que se baseiam as exceções deduzidas, se as houver, devendo toda a defesa ser deduzida na contestação (artigos 572º e 573º do mesmo diploma).

O art. 573º estabelece um dos princípios estruturantes da defesa que é da concentração da defesa na contestação, o qual se encontra intimamente ligado ao princípio da preclusão.

Como refere Lebre de Freitas,[2]“Corolário do princípio da concentração é a preclusão. O réu tem o ónus de, na contestação, impugnar os factos alegados pelo autor, alegar os factos que sirvam de base a qualquer exceção dilatória ou perentória (excetuadas apenas as que forem supervenientes) e deduzir as exceções não previstas na norma excecional do art. 573º nº 2. Se não o fizer, preclude a possibilidade de o fazer.

Este n.º 2 do artigo 573.º do CPC, porém, introduz exceções na preclusão, admitindo a possibilidade de apresentação pelo réu de “meios de defesa supervenientes”.

No âmbito da defesa posterior, isto é aquela que pode ser apresentada após a contestação, cabe a “defesa superveniente”, isto é a defesa fundada em factos objetiva ou subjetivamente supervenientes (arts. 588º e 589º do CPC).[3]

O art. 588º do CPC, permite, com efeito, a alegação, em momento posterior, de factos, abrangendo quer os casos em que o facto em que eles se baseiam se verifica supervenientemente (superveniência objetiva), quer aqueles em que esse facto é anterior à contestação, mas só posteriormente é conhecido pelo réu (superveniência subjetiva), devendo em ambos os casos ser alegado em articulado superveniente (art. 588º nº 2 do CPC.

O artigo 588º nº 1, do CPC, estatui que os “factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito” que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão.

E para esse efeito consideram-se supervenientes os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos para a apresentação dos articulados normais da ação, como os factos anteriores de que a parte só tenha conhecimento depois de findarem esses prazos, devendo, nesse caso, produzir-se prova da superveniência (n.º 2 do preceito citado).

Estando em causa factos supervenientes que sejam constitutivos, modificativos ou extintivos dos direitos das partes, eles podem ser deduzidos, como se referiu, em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão da causa.

Pode acontecer que, determinados factos constitutivos do direito ocorram (ou cheguem ao conhecimento do autor) depois de apresentada a petição. É igualmente possível que ocorram (ou cheguem ao conhecimento do réu), factos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele direito depois do oferecimento da contestação. Estes são os chamados factos (objetiva ou subjetivamente) supervenientes. Face ao prescrito no art. 611º nº 1 impõe-se carrear para o processo factos, sendo essa a função dos articulados supervenientes, regulando a lei diversos momentos para a alegação de factos supervenientes.[4]

Assim, relativamente ao réu, a possibilidade de alegar factos supervenientes, tanto de natureza modificativa, como de natureza extintiva do direito do autor, constitui um desvio ao princípio da concentração da defesa na contestação (art. 573º nº 1 do CPC), podendo apelidar-se de defesa superveniente.

Porém a apresentação da defesa superveniente apenas é admissível, nos restritos moldes permitidos pelos arts. 588º e 589º do C.P.C.

Quanto aos termos em que são admitidos os articulados supervenientes, preceitua-se no art.º 588.º, do Cód. Proc. Civil, que:

“1.–Os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão.

2.–Dizem-se supervenientes tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos marcados nos artigos precedentes como os factos anteriores de que a parte só tenha conhecimento depois de findarem esses prazos, devendo, neste caso produzir-se prova da superveniência.

3.–O novo articulado em que se aleguem factos supervenientes será oferecido:

a)- Na audiência prévia, quando os factos hajam ocorrido ou sido conhecidos até ao respetivo encerramento;

b)- Nos 10 dias posteriores à notificação da data designada para a realização da audiência final, quando não se tenha realizado a audiência prévia;

c)- Na audiência final, se os factos ocorreram ou a parte deles teve conhecimento em data posterior às referidas nas alíneas anteriores.

4.– O juiz profere despacho liminar sobre a admissão do articulado superveniente, rejeitando-o quando, por culpa da parte, for apresentado fora de tempo, ou quando for manifesto que os factos não interessam à boa decisão da causa ; ou ordenando a notificação da parte contrária para responder em 10 dias, observando-se, quanto à resposta, o disposto no artigo anterior. (…) ”.

Daqui decorre que o articulado superveniente é de rejeitar caso se verifique um dos fundamentos taxativamente nele previstos, ou seja, a sua extemporaneidade ou a sua manifesta impertinência, por os factos alegados não interessarem à decisão da causa.[5]

Posto isto, resta analisar os concretos factos invocados no articulado superveniente oferecido pela Ré, para aferir se, tal como defende a apelante, se mostram observados os legais requisitos de que depende a admissão do articulado superveniente que apresentou, ao contrário do que decidiu o tribunal recorrido.

Do seu teor resulta que a Ré invoca a incompetência absoluta do Tribunal, defendendo que a competência em razão da matéria pertence aos tribunais criminais.

Junta um sentença proferida no âmbito do processo n.º 2674/23.5T8VFR, que corre termos no Juiz 2 do Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – em que figuram as mesmas partes aqui em litígio, alegando que a matéria objeto de ação é em tudo semelhante à dos presentes autos e na qual, aquele Tribunal se julgou materialmente incompetente para conhecer do objeto e do mérito da ação, assim a indeferindo liminarmente e, em consequência, absolveu a Ré da instância – conforme artigos 96.º, alínea a), 97.º, n.º 1, 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea a) do CPC.

Invoca ainda que no mesmo sentido decidiu o STJ, em acórdão de 12.10.2023, proferido no P 898/22.1T8VRL.S1.

Constata-se, porém que a Ré na contestação invocara já oportunamente, nos termos dos art.s 96º e ss do CPC, a exceção da incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria.

No articulado em apreço limita-se a invocar jurisprudência (dum tribunal de primeira instancia e dum tribunal superior), que secunda a posição que defendeu em sede da arguição da incompetência absoluta.

Nenhum facto superveniente é invocado, a não ser a invocação de jurisprudência que é favorável à parte, posterior.

Apesar de muitas vezes, a distinção entre matéria de facto e matéria de direito apresentar alguma controvérsia, quer na jurisprudência quer na doutrina, entendemos que é questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior; e é questão de direito, tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei.

Sendo factos materiais as ocorrências da vida real, isto é, ou os fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os atos e factos dos homens, e entendendo-se por factos jurídicos os factos materiais vistos à luz das normas e critérios do direito, temos de forçosamente concluir que, relativamente à exceção da incompetência absoluta (já oportunamente arguida na contestação), que não foram sequer alegados quaisquer factos supervenientes, no articulado em apreço, pelo que não pode aquela alegação ser fundamento de articulado superveniente.

A Ré apelante, veio ainda, justificando a superveniência dos factos que alega, (dizendo que deles apenas teve agora conhecimento no âmbito do processo n.º 2751/24.5T8LSB, que corre os seus termos no Juiz 6 – Juízo Central Cível de Lisboa Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa), alegar novos factos, com eles pretendendo demonstrar a exceção dilatória da ilegitimidade ativa.

É certo que, na contestação, invocara já esta exceção. Porém agora vem aduzir novos factos, pretendendo com eles demonstrar fundamento diverso para a ilegitimidade da autora, nesta ação popular.

Veio assim alegar em suma que:

- O número de associados da Autora é inferior ao número mínimo exigido pelo artigo 17.º, n.º 2, da LDC (lei de Defesa do Consumidor);

- A Autora não tem nenhum histórico efetivo na defesa dos consumidores;

- A Autora prossegue a defesa de alegados interesses difusos/interesses individuais homogéneos como uma atividade empresarial, funcionando como um veículo de angariação de lucros para os seus membros e para terceiros, tendo, por conseguinte, fins lucrativos;

- A personalidade jurídica da Autora e os interesses por esta prosseguidos confundem-se com a personalidade jurídica e os interesses dos seus fundadores e até do seu financiador B... Ltd.;

- A B... Ltd. (que financiou a Autora noutra ação e que poderá ou não vir a financiar a Autora nesta ação) tem ligações significativas com os associados da Autora;

- Verifica-se um manifesto conflito de interesses, senão efetivo, seguramente potencial, entre os interesses dos associados, do mandatário e porventura do seu financiador e os interesses e direitos dos consumidores alegadamente representados pela Autora, o que é revelador de que a representação exercida pela Autora não é adequada, não estando demonstrado, pelo contrário, que a Autora tenha como objetivo principal a proteção dos direitos e os interesses dos consumidores.

Para concluir que, “Termos em que, não estando preenchidos os requisitos estabelecidos nos artigos 3.º da LAP e 17.º da LDC, a Autora não dispõe de legitimidade ativa para intentar a presente ação, pelo que a Ré deve ser dela absolvida.”

Ora, a legitimidade, constitui um pressuposto processual subjetivo relativo às partes, refere-se à sua posição perante o objeto da lide, prende-se com o interesse que estas têm na relação jurídica concreta trazida a juízo e é apreciada pela relação da parte com o objeto da causa, pelo interesse que a relaciona com esse objeto, pelo que as partes devem ser os titulares do interesse em litígio – cfr. art. 30º do CPC.

Acresce no caso em apreço, a legitimidade decorrente do disposto no art. 31º do CPC, já que estamos perante uma ação para a tutela de interesses difusos e ainda a legitimidade para a ação popular – Lei 83/95 de 31.8, com as alterações entretanto introduzidas.

Trata-se uma exceção dilatória, que a verificar-se conduz à extinção da instância e é de conhecimento oficioso do tribunal (arts. 576º nº 1 e 257º al. e) e 578º do CPC.), obstando dessa forma a apreciação do mérito da causa.

O articulado superveniente previsto no art. 588º do CPC, não é o local apropriado para deduzir exceções dilatórias.

Como bem se assinala no despacho recorrido, os factos invocados pela Ré não tem a natureza de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito da autora.

Ora a admissibilidade do articulado superveniente está limitada à necessidade de alegação de factos essenciais à decisão de mérito da causa, não à decisão de questões adjetivas e processuais.

Os “novos” factos trazidos a juízo pela Ré, através do articulado superveniente em apreço, são factos que nada tem a ver com o direito (material) que a autora pretende exercer contra a ré nesta ação, (não são suscetíveis de conduzir à absolvição da Ré do pedido), são factos que pretendem outrossim, demonstrar a falta de um pressuposto processual - legitimidade – da Ré para propor esta ação destinada à tutela de interesses difusos, ou seja são factos conducentes à eventual absolvição a Ré da instância.

Desta forma, o articulado superveniente previsto no art. 588º do CPC não é o meio processual certo para introduzir em juízo tais factos e discutir as consequências jurídicas dos mesmos.

É que as normas de direito processual civil ordenam, encadeiam e articulam, lógica e temporalmente, os atos concretizadores da atividade dos sujeitos processuais, desenvolvidos numa unidade pré-ordenada à realização da heterocomposição do litígio.[6], estando ao serviço do direito substantivo, mas não o definem.

Com efeito, a pretensão da Ré de ver discutidos na ação novos factos, isto é factos não anteriormente por si invocados, com fundamento na superveniência subjetiva – por deles só agora ter tido conhecimento – não se coaduna com o meio processual escolhido – articulado superveniente – uma vez que tal meio processual, visa apenas permitir-lhe a possibilidade de alegação tardia de factos supervenientes, que tenham natureza modificativa ou extintiva do direito do autor.

Desta forma, não deverá ser admitido o novo articulado, por não se encontrarem preenchidos os requisitos estabelecidos desde logo no nº 1 do art. 588º nº 1 do CPC.

Concordamos assim com a afirmação feita no despacho recorrido:, a invocação de exceções dilatórias não se subsume à alegação de factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito. A procedência de uma exceção dilatória tem efeitos apenas na relação processual e não nos direitos litigados.

Para concluir: “A faculdade de a ré invocar exceções dilatórias não constantes da contestação, com vinculação do tribunal a pronúncia sobre as mesmas está assim precludida, sem prejuízo de o tribunal poder conhecer oficiosamente destas exceções, caso as julgue verificadas”.

Não é um qualquer facto, ainda que objetiva ou subjetivamente superveniente, que é suscetível de ser carreado para os autos em sede de articulado superveniente, antes deve ele ser essencial, e não manifestamente impertinente, para o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa, e segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.

Os factos alegados em sede de articulado superveniente, hão-de necessariamente de ser factos essenciais para o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa, e segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.

Uma vez que os factos alegados pela ré respeitam questões de natureza adjetiva, visando demonstrar exceções dilatórias, estão fora da previsão legal do art. 588º do CPC e como tal, são conducentes à rejeição do articulado superveniente dada a sua manifesta impertinência para a decisão de mérito a proferir.

Do exposto resulta ainda que, apesar da apelante se insurgir contra o facto do tribunal não se ter pronunciado sobre a por si invocada superveniência dos factos, não lhe ter permitido fazer prova, fá-lo sem razão, uma vez que são sendo admissível o incidente, tal redundaria na prática de um ato inútil, (art. 130º do CPC).

É pois de confirmar o despacho recorrido, que rejeitou o articulado superveniente.

Não obstante a rejeição, que entendemos ser de manter, há que ter em consideração que o nº 2 do art. 537º do CPC.

Sendo um dos princípios estruturantes da defesa, o princípio da concentração da defesa na contestação, como vimos, a regra da concentração da defesa na contestação conhece ainda a limitação, que o próprio artigo 573º reconhece, da ocorrência de meios de defesa de conhecimento oficioso do tribunal.

Trata-se nas palavras de Paulo Pimenta[7] da chamada “defesa oficiosa”, que pode ser deduzida após a apresentação da contestação, “na qual se integram todos aqueles meios defensionais que o tribunal pode conhecer oficiosamente. É o que se verifica com quase todas as exceções dilatórias (art. 578º) e com parte das exceções perentórias.”

Ou seja, a impor-se o conhecimento oficioso pelo juiz da causa, de determinadas questões, não está vedada à parte, in casu ao réu, vir suscitar a sua apreciação ao tribunal, a não ser que tal invocação tenha ficado precludida.

Uma vez que o despacho recorrido que rejeitou o articulado superveniente, considerou tal faculdade (melhor dizendo poder/dever do tribunal de conhecer oficiosamente as exceções dilatórias), ressalvando expressamente tal situação, ao afirmar “sem prejuízo de o tribunal poder conhecer oficiosamente destas exceções, caso as julgue verificadas”, restará confirmar o despacho recorrido na íntegra.

V-DECISÃO:

Pelo exposto e em conclusão acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso e em confirmar o despacho recorrido que rejeitou o articulado superveniente da ré.

Custas pela apelante.


Porto, 8 de outubro de 2024
Alexandra Pelayo
João Proença
Artur Dionísio Oliveira
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[1] In “Manual de Processo Civil”, pg. 686.
[2] In A Ação Declarativa Comum – À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, páginas 97 e 98
[3] Ver Paulo Pimenta in Processo Civil Declarativo, Almedina, pg. 177.
[4] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, in CPC anotado, Vol I, Almedina, pg 670.
[5] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 1984, pág. 351.
[6] Rita Lobo Xavier, Inês Folhadela e Gonçalo Andrade e Castro, Elementos de Direito Processual Civil. Teoria Geral, Princípios e Pressupostos, 2014, págs. 90 e 98.
[7] Obra cit., pg. 177