ACÇÃO DE ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
ESCOLHA DO ACOMPANHANTE
VONTADE DO ACOMPANHADO
PESSOA DE CONFIANÇA
DELEGADO DE SAÚDE
Sumário

1 – A auscultação da vontade do acompanhado quanto à identidade do acompanhante a ser-lhe nomeado constitui diligência probatória essencial nos processos de acompanhamento de maior, sem prejuízo de outras diligências compreendidas na natureza de jurisdição voluntária destes processos;
2 – Sem prejuízo do referido em 1), a designação do acompanhante pelo tribunal deverá recair sobre pessoa da confiança do acompanhado, o que - mesmo não se conseguindo apurar a existência desta última – não acontece com o delegado de saúde, atentas as suas competências funcionais.

Texto Integral

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

Relatório
A 28.06.2021, o Ministério Público instaurou ação de acompanhamento de maior relativamente ao requerido, alegando, em suma, que o mesmo padece, pelo menos desde 2012, de doença psiquiátrica, sem diagnóstico nosológico claro, que já lhe determinaram internamento no âmbito do proc., que determina dificuldade em cumprir, por si, todos os direitos e deveres, pelo que é indispensável nomear alguém que acompanhe a sua pessoa, no tocante a consultas e à terapêutica, e à gerência da sua vida.
Não tendo sido conseguida a citação pessoal do requerido, cumpriu-se o disposto no artigo 21.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
 Teve lugar exame médico, o qual, além do mais, concluiu que o examinando apresenta sintomatologia compatível com o diagnóstico de Esquizofrenia Paranoide, detém alguma autonomia reconhecendo e demonstrando capacidade de gestão quotidiana mas não apresentando qualquer crítica para a doença, negando a necessidade de tratamento e acompanhamento em psiquiatria, mantendo-se autónomo nas atividades básicas de vida diária e mantém capacidades cognitivas que lhe permitiram responder de forma minimamente adequada às questões colocadas; conclui que se justifica uma medida de acompanhamento que vise a adequada assistência/supervisão quanto às ocorrências da vida pessoal quotidiana do Examinando, sem prejuízo da sua esfera de autonomia compatível com as suas capacidades.

A audição do requerido e a inquirição da testemunha tiveram lugar a 16.05.2024.
Foi prolatada Sentença a 08.07.2024, que concluiu com a seguinte Decisão:
“a) Decreto o acompanhamento a favor do beneficiário;                                             
b) Aplica-se a favor do mesmo: - no plano pessoal, a medida de representação especial, consistente na assistência/supervisão e o controlo quanto a assegurar o necessário acompanhamento médico (para definição e adoção de terapêutica adequada e prevenção quanto a uma eventual evolução clínica desfavorável) tal como a toma de medicação necessária.
c) Consigna-se que a medida se tornou conveniente desde 31.12.2012;
d) Consigna-se que o beneficiário não outorgou testamento vital ou procuração para cuidados de saúde;
e) Determina-se que a medida seja revista decorridos cinco anos, a não ser que se justifique a revisão, alteração ou cessação anterior;
f) Nomeia-se, como acompanhante do beneficiário, o delegado de saúde coordenador da USP.”
A Sentença considera-se notificada a 11.07.2024
É desta decisão que vem interposto recurso por parte do acompanhante nomeado, o qual apresentou as suas Alegações a 25.07.2024, terminando pela revogação da mesma, na parte em que nomeia o recorrente como acompanhante de maior do requerido.
São estas as Conclusões:
“A - Vem o presente recurso interposto do douto despacho saneador proferido pelo Meritíssimo Juiz a quo, que na ação especial de acompanhamento em referência, designou o Recorrente enquanto Acompanhante de, por ser o Delegado de Saúde Coordenador do Agrupamento de Centros de Saúde (ACES).
B - Nos termos ainda da douta sentença, foi aplicada a favor do beneficiário, no plano pessoal, a medida de representação especial, consistente na assistência/supervisão e o controlo quanto a assegurar o necessário acompanhamento médico (para definição e adoção de terapêutica adequada e prevenção quanto a uma eventual evolução clínica desfavorável) tal como a toma de medicação necessária.
C - Decidindo, neste âmbito, que “o acompanhamento visará a adequada assistência/supervisão quanto às atividades da vida pessoal quotidiana do beneficiário, sem prejuízo da sua esfera de autonomia compatível com as suas capacidades, cabendo ao acompanhante, o controlo quanto a assegurar o necessário acompanhamento médico (para a prossecução de terapêutica indicada à patologia diagnosticada, prevenção quanto a uma eventual evolução clínica desfavorável) e toma de medicação.”
D - Em face da aplicação da referida medida de acompanhamento, o Tribunal recorrido nomeou acompanhante ao beneficiário, “o delegado de saúde coordenador da USP ora Recorrente.
E - Esta nomeação assentou no facto de o beneficiário não ter parente próprio nem amizade vinculativa para além do filho que, por não ter contacto com o pai há mais de 10 anos e por não existirem quaisquer laços de familiaridade e proximidade entre ambos, o Tribunal recorrido considerou não estar em condições de ser designado para o referido cargo, por dificilmente estar em condições de coligir o beneficiário a qualquer medida terapêutica. F - Salvo o devido respeito, que é muito, esta decisão não se pode manter na ordem jurídica.
G - Conforme consta da decisão recorrida, o Recorrente é uma autoridade de saúde de âmbito local, denominado delegado de saúde coordenador, que exerce por inerência as funções de coordenador da USP do ACES.
H – Do disposto no DL n.º 82/2009, de 02/04, que estabelece as regras de designação, competência e funcionamento das entidades que exercem o poder de autoridade de saúde, decorre que, as atribuições das autoridades de saúde, ou seja, o complexo de fins ou interesses públicos que a lei as incumbe de prosseguir, são a promoção da intervenção em situações de grave risco para a saúde pública e a vigilância das decisões dos órgãos do Estado em matéria de saúde pública.
I - O mesmo é dizer que, os interesses públicos postos por lei a cargo das autoridades de saúde são, assim, a saúde pública e a prevenção de situações de grave risco para a saúde pública.
J - Para levarem a cabo essas atribuições, a lei confere-lhes um complexo de poderes funcionais, que se denomina competência.
K - Entre essas competências, supracitadas, situam-se a vigilância sanitária, a fiscalização de estabelecimentos comerciais que vendem produtos relacionados com a saúde, a investigação de surtos de doenças, e, conforme mencionado na decisão recorrida, “desencadear de acordo com a Constituição e a lei, o internamento ou a prestação compulsiva de cuidados de saúde a indivíduos em situação de prejudicarem a saúde pública” (art.º 5.º, n.º 3 do DL 82/2009).
L - A atuação e competências dos delegados de saúde situam-se, assim, no âmbito da proteção da saúde pública, competindo-lhes identificar e responder rapidamente a potenciais ameaças à saúde da comunidade de molde a garantir a saúde e a segurança da comunidade.
M - Ora, salvo o devido respeito, o exercício da função de acompanhante de maiores acompanhados, portadores de doença mental, como é o caso, com vista a assegurar o respetivo acompanhamento médico e a toma de medicação necessária, não se integra no leque das competências atribuídas às autoridades de saúde.
N - E, de acordo com o princípio da legalidade da competência, consagrado no art.º 29.º do CPA, a competência não se presume, tem que resultar da lei (cfr. douto acórdão do STA, de 06.12.2011., Proc. n.º 0924/10, in www.dgsi.pt).
O - Com efeito, a lei não atribui, nem sequer implicitamente, às autoridades de saúde a competência para assegurar medidas de caráter pessoal, necessárias para garantir a saúde e o bem-estar de utentes individualizados, como sejam o seu acompanhamento para tratamento clínico, a marcação de consultas e a comparência às mesmas e a tomada de decisões quanto a tudo o que diga respeito ao estado de saúde desses utentes, nomeadamente quanto à adesão às terapêuticas prescritas.
P - E nem se diga que tal competência decorre implicitamente da competência para desencadear o internamento ou a prestação compulsiva de cuidados de saúde a indivíduos em situação de prejudicarem a saúde pública.
Q – Pois, o exercício desta competência tem primacialmente em vista a promoção da saúde pública e não a da saúde concreta deste ou daquele indivíduo, e, por outro lado, consubstancia-se, na prática, e apenas, na emissão de mandados de condução que resultam na apresentação dos “indivíduos em situação de prejudicarem a saúde pública” a uma avaliação clínico-psiquiátrica urgente – cfr. art.º 29.º da Lei n.º 35/2023, de 21 de julho (Lei da Saúde Mental).
R – Assim, e porque segundo o princípio da legalidade da competência, qualquer órgão se encontra limitado pela sua própria competência, não podendo praticar atos que exorbitem a esfera de competências que a lei lhes confiou e, por outro lado, não podem praticar atos sobre matérias estranhas às atribuições que lhes estão cometidas, a decisão recorrida, na parte em que nomeou o Recorrente como acompanhante do beneficiário não se poderá manter, uma vez que o Recorrente não tem competência para exercer essas funções.
 S - E, para além de não ter competência para exercer a referida função de acompanhante do beneficiário, não é a pessoa adequada/idónea para levar a cabo as concretas medidas fixadas pelo Tribunal a quo.
T - Como decorre do citado art.º 146.º do C.Civil, a finalidade do acompanhamento do maior é garantir e promover o seu bem-estar e a sua recuperação, razão pela qual a escolha do acompanhante e o exercício da sua função deve nortear-se sempre pela salvaguarda do interesse imperioso do acompanhado e do seu bem-estar e recuperação.
U - Cabe assim ao tribunal, de acordo com o critério do “imperioso interesse do beneficiário”, designar um acompanhante, o qual “deve estar em condições de exercer um conjunto de poderes-deveres de cuidado e diligência, dirigidos a promover, nos termos do art.º 146.º, n.º 1 do CCivil, o bem-estar e a recuperação do acompanhado, na concreta situação considerada” (Acórdão do STJ de 10.03.2022 e Acórdão da Relação do Porto de 11.10.2022, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
V - E a nomeação do acompanhante não pode ser desligada, ademais, das medidas de acompanhamento fixadas para o beneficiário, devendo a designação do acompanhante levar em conta as medidas concretas fixadas, e a adequação/idoneidade do acompanhante para as levar a cabo.
X - Revertendo ao caso concreto, e considerando a situação concreta do beneficiário, em especial a doença mental de que o mesmo padece, e as medidas concretas fixadas – assegurar o acompanhamento médico e a toma de medicação necessária – é cristalino que o Tribunal não atendeu à existência de Serviços de Saúde Mental, que atuam nos domínios da prevenção da doença mental e da promoção da saúde mental, do bem-estar e qualidade de vida das pessoas, orientando-se para a recuperação integral das pessoas – art.º 3.º do DL n.º 113/2021, de 14 de dezembro.
Y – Efetivamente, nos termos dos arts. 15.º a 18.º do DL n.º 113/2021, de 14/12, os serviços locais de saúde mental, concretamente as equipas comunitárias de saúde mental, são as entidades competentes e adequadas a assegurar o acompanhamento de saúde mental a indivíduos que delas careçam.
Z - E face às respetivas valências, composição e regras de coordenação com os demais serviços de saúde, estas equipas são as entidades competentes e mais adequadas e idóneas para exercer as funções de acompanhante do beneficiário, as quais deverão recair sobre o chefe da equipa comunitária de saúde mental da área de residência do beneficiário, atendendo a que o acompanhante tem de ser uma pessoa singular.
AA – Assim, e em conclusão, a decisão recorrida não podia ter nomeado o Recorrente para exercer as funções de acompanhante do beneficiário, uma vez que o mesmo não tem competência legal, expressa ou implícita, para o efeito, não se revelando, para além do mais, a pessoa mais adequada/idónea para o efeito, uma vez que a lei atribui competências específicas em matéria de acompanhamento de saúde mental, aos serviços locais de saúde mental, os quais representam, efetivamente, a melhor solução para a recuperação do acompanhado.
AB - Assim, ao decidir pela nomeação do Recorrente como acompanhante do beneficiário o Tribunal recorrido viola o princípio legal da competência enunciado no art.º 24.º do CPA, assim como o disposto no art.º 143.º do CCivil.”
O Ministério Público apresentou Contra-Alegações a 02.08.2024, nas quais conclui:
“Assim, a decisão a proferir não podia ser diferente da que foi vertida na sentença que ora é posta em crise: de nomear como acompanhante quem já vem exercendo tais funções, auxiliando o beneficiário nas suas necessidades e salvaguardando o seu bem-estar, fim último do acompanhamento”.
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Questões a Decidir
São as Conclusões da Recorrente que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de actuação do tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, Abrantes Geraldes[1]), sendo certo que, tal limitação, já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.
In casu, e na decorrência das Conclusões do Recorrente, destaca-se:
 - Da legalidade da nomeação do acompanhante.
Corridos que se mostram os Vistos, cumpre decidir.
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Fundamentação de Facto (como consta da sentença recorrida)
- Factos provados, com interesse para a decisão da causa
1.O requerido nasceu a 10.07.1960, e é divorciado;
2. Tem um filho com quem não contacta há mais de 10 anos e que demonstrou processualmente não ser capaz de lidar com a convivência com o pai e ficar ansioso face à possibilidade de qualquer aproximação;
3. O Beneficiário apresenta o diagnóstico de esquizofrenia paranoide;
4. O requerido já esteve internado compulsivamente no âmbito do processo.
5. Subsequentemente foi seguido na psiquiatria, durante um período não especificado, tendo abandonado o acompanhamento e declarando que o mesmo “não tinha qualquer efeito”.
6. A 18.12.2020, o requerido dirigiu carta à Sra. Procuradora Geral da República em que afirma que na sequência de informações sobre Sá Carneiro, os militares de Abril estão há 15 anos a sabotar a sua escrita, por inveja, e que se vê impossibilitado de pensar livremente, entre outras afirmações sem sentido que constam de documento junto e que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
7. A 22.02.2021, o requerido dirigiu carta ao D.A. dizendo que há vozes e comandos que o controlam e manipulam desde 2006 e que, numa emissão radiofónica geral, há 14 anos que aproveitam ideias dele que depois lê no Expresso, entre outras afirmações sem sentido que constam de documento junto e que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
8. A 03.05.2021, o requerido dirigiu carta ao Tribunal de Sintra dizendo que o engenheiro de som das forças armadas lhe põe na cabeça todos os sons que lhe apetecer, entre outras afirmações sem sentido que constam de documento junto e que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
9. A 23.05.2024 remeteu a este mesmo processo manuscrito dirigido à Sra. PGR “Dra. …” informação dando nota de que o seu pai foi “morto à distância por ordens do Coronel A”, e informando ter sido contactado por B através do Alm. C e suspeitando estar em perigo a democracia. Acrescenta ainda que “pretende agir em conformidade”, tudo consoante escrito ao processo, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
10. Apresentou-se calmo e colaborante, está orientado no espaço e no tempo.
11. Reside sozinho, referindo ser autónomo para a alimentação, aquisição e sua confeção e para a limpeza da roupa e da casa.
12. Abandonou o acompanhamento em psiquiatria, declarando que o mesmo não tinha qualquer efeito, não apresentando crítica para a sua patologia e necessidade de tratamento.
13. Conhece o dinheiro, tendo noção do seu valor em pequenos montantes e gere o seu quotidiano autonomamente, fazendo as suas compras.
14. Paga as contas da água, luz, impostos.
15. O requerido não outorgou testamento Vital e/ou procurador de cuidados de saúde;
16. A data provável do início da afeção é 31.12.2012.
17. Não lhe são conhecidos para além do filho quaisquer outros parentes ou amigos.
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- Consideraram-se não provados os seguintes factos com interesse para a decisão da causa:
a) O beneficiário tem uma perceção esbatida das suas necessidades pessoais, tais como alimentar-se, vestir-se e higiene pessoal.
b) Não sabe os preços dos produtos do supermercado.
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- Fundamentação de facto:
Para formar a sua convicção, o Tribunal baseou-se nos seguintes meios de prova documental e pericial juntos aos autos, analisados segundo as regras da experiência e da racionalidade dos quais foi possível extrair a factualidade provada, tendo a audição do requerido permitido comprovar a situação do requerido descritas na petição inicial e no relatório pericial.
O Tribunal cotejou, assim os seguintes elementos de prova:
- Certidão de nascimento do beneficiário relativamente a 1;
- Declarações do filho do beneficiário prestadas em audiência de julgamento, referente ao expresso em 2 e 17.
- As informações processuais e até a inquirição a respeito do beneficiário permitiram a comprovação de 4 e 5 e 16.
- Escritos juntos aos autos para 6 a 9;
- Auto de audição do requerido conjugado com o teor do relatório pericial, para comprovação do exposto de 10 a 17.
Da conjugação do relatório pericial com a audição do beneficiário, o tribunal logrou de verificar que o mesmo sendo capaz de governar a sua pessoa (no que a higiene e alimentação concerne, por exemplo), mas apresenta sérias limitações na capacidade de gerir as necessidades médicas, não tendo capacidade nem para gerir a marcação de consultas ou a toma de medicação (que recusa) – exemplificativamente, mantém o discurso fantasioso, argumentando que não ouve vozes mas que estas estabelecem consigo verdadeira comunicação através de um sistema auricular instalado no seu próprio cérebro.
No entanto, mostrou-se capaz de gerir os seus negócios (pelo menos os mais prementes e relativos ao seu quotidiano) e o seu património próprio é apenas a casa em que habita e a reforma por invalidez que percebe mensalmente (e que segundo se sabe tem sido capaz de gerir, não havendo informação contrária nos autos).
Conhecia os preços genéricos dos alimentos, designadamente de pão e peixe e explicou o modo como gere o quotidiano de compras e da vida próprio, deu nota dos montantes das contas de água e eletricidade e da forma de pagamento demonstrando autonomia e compensação no que às questões funcionais diz respeito.”
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Apreciação da Matéria de Facto
No caso dos autos, a questão recursal é estritamente de direito, porquanto não foi impugnada a decisão de facto ao nível da primeira instância para efeitos da norma do art.º 640º do CPC.
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Fundamentação de Direito
 - Da legalidade da nomeação do acompanhante
Prescreve o art.º 138º do Código Civil (CC):
O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código”.
São, pois, dois os requisitos de decretamento de uma medida de acompanhamento:
- a impossibilidade reiterada de se autodeterminar quanto ao cumprimento dos seus deveres ou de exercício dos seus direitos relativamente a algum ou a todos os domínios da vida do beneficiário;
 - que essa impossibilidade se funde em razões de saúde (integram-se patologias de ordem física, psíquica e mental) ou deficiência. Quanto a esta última, trata-se de “qualquer perda ou anomalia da estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatómica, comtemplando quer as alterações orgânicas, quer as funcionais[2].
O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença, como resulta do art.º 140º, nº 1 do CC.
O elenco das medidas de acompanhamento é diversificado e gradativo. Com efeito, de acordo com a norma do art.º 145º nº 2 do CC, estendem-se desde a mera assistência prévia para prática de determinados atos ou categoria deles até a representação geral em todos os negócios jurídicos, que equivale à tutela, com a faculdade de dispensa da constituição do Conselho de Família (art.º 145º, nº 3 do CPC).
A decisão obedece aos princípios da subsidiariedade e da necessidade.
Nessa decorrência, o acompanhante, consoante o caso, poderá ser investido das seguintes responsabilidades (art.º 145º n.º 2 do CC):
a) Exercício das responsabilidades parentais ou dos meios de as suprir, conforme as circunstâncias;
b) Representação geral ou representação especial com indicação expressa, neste caso, das categorias de atos para que seja necessária;
c) Administração total ou parcial de bens;
d) Autorização prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos;
e) Intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas”.
De todo o modo, como decorre do art.º 147º, nº 1 do CC, o acompanhado não fica privado do exercício de direitos pessoais, nem impedido de celebrar negócios da sua vida corrente, a menos que a própria decisão judicial determine o contrário ou da lei o impeça.
Consideram-se “pessoais, entre outros, os direitos de casar ou de constituir situações de união, de procriar, de perfilhar ou de adotar, de cuidar e de educar os filhos ou os adotados, de escolher profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de estabelecer relações com quem entender e de testar” ( art.º147º, nº 2 do CC)
A obrigação de meios a que o acompanhante fica sujeito é descrita no  art.º 146º do CC nos seguintes moldes: “no exercício da sua função, o acompanhante privilegia o bem-estar e a recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação considerada” (nº 1), e que “o acompanhante mantém um contacto permanente com o acompanhado, devendo visitá-lo, no mínimo, com uma periodicidade mensal, ou outra periodicidade que o tribunal considere adequada” (nº 2).
No que respeita à escolha do acompanhante, prescreve o art.º 143.º do CC:
1 - O acompanhante, maior e no pleno exercício dos seus direitos, é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente.
2 - Na falta de escolha, o acompanhamento é deferido, no respetivo processo, à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário, designadamente:
a) Ao cônjuge não separado, judicialmente ou de facto;
b) Ao unido de facto;
c) A qualquer dos pais;
d) À pessoa designada pelos pais ou pela pessoa que exerça as responsabilidades parentais, em testamento ou em documento autêntico ou autenticado;
e) Aos filhos maiores;
f) A qualquer dos avós;
g) À pessoa indicada pela instituição em que o acompanhado esteja integrado;
h) Ao mandatário a quem o acompanhado tenha conferido poderes de representação;
i) A outra pessoa idónea.
3 - Podem ser designados vários acompanhantes com diferentes funções, especificando-se as atribuições de cada um, com observância dos números anteriores” (sublinhado nosso).
Por seu lado, densifica o art.º 146.º do mesmo diploma:
1 - No exercício da sua função, o acompanhante privilegia o bem-estar e a recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação considerada.
2 - O acompanhante mantém um contacto permanente com o acompanhado, devendo visitá-lo, no mínimo, com uma periodicidade mensal, ou outra periodicidade que o tribunal considere adequada”.
Ou seja, não há sucesso da medida de acompanhamento de maior sem uma cuidadosa escolha do acompanhante, pois apenas dessa forma se promove o bem-estar, a recuperação, o pleno exercício de todos os direitos e o cumprimento dos deveres do acompanhado, tal como embandeirado pelo n.º 1 do art.º 140.º do CC.
Naturalmente – na falta de escolha do acompanhado, como é o caso dos autos -, a pessoa encarregue de tal exigente incumbência deve ser, preferencialmente, da “confiança do acompanhado, porquanto essa confiança promove o seu bem-estar emocional, dado que lhe transmite um sentimento de segurança contribuindo, por isso, para que o mesmo desfrute de uma vida mais saudável.
E o inverso, a desconfiança, despromove, pelas mesmas razões, o seu bem-estar emocional” .[3]
Posto isto, que soluções concretas?
O requerido é divorciado e tem um filho, com quem não existe relacionamento há mais de 10 anos.
Nos termos do art.º 1874º, do CC, pais e filhos estão também mutuamente vinculados aos deveres de respeito, auxílio e assistência, sem sujeição a condição resolutiva ou causa extintiva.
Além disso, pais filhos são herdeiros legitimários entre si, como resulta das normas dos arts. 2133º e 2157º ambos do CC.
Revertendo à matéria assente, releva o consignado em 2:
“Tem um filho com quem não contacta há mais de 10 anos e que demonstrou processualmente não ser capaz de lidar com a convivência com o pai e ficar ansioso face à possibilidade de qualquer aproximação”
Em termos de convicção probatória, a sentença recorrida identifica o depoimento do filho do requerido, ouvido por WhatsApp.
A situação tem alguns contornos de semelhança com a contextualizante do acórdão da Relação de Guimarães de 20 de janeiro de 2022[4], onde se verteu, de forma pertinente e acutilante:
Relembre-se que os filhos não podem escusar-se a ser acompanhantes, pelo que os problemas de saúde nunca relevariam como fundamento da alegada indisponibilidade. Esses problemas de saúde, a existirem, o que está por demonstrar, apenas poderiam levar à não nomeação como acompanhante por a pessoa por eles afetada não ter condições para exercer as funções e, nessa medida, a sua nomeação não salvaguardar o interesse imperioso da beneficiária.
Portanto, e em suma, no caso em apreço, das pessoas sobre quem deve recair em primeira linha o exercício do cargo de acompanhante, e que são os filhos da beneficiária, nenhuma delas se voluntariou para o efeito.”
Na ora sentença recorrida, foi afastada a nomeação do filho do requerido como seu acompanhante com os seguintes argumentos:
 - “o beneficiário para além do filho (com quem não tem qualquer contacto há mais de dez anos) não tem parente próprio nem amizade vinculativa”;
- “É certo que o mesmo tem um filho, no entanto inexiste com este qualquer laço de familiaridade e proximidade, ademais, considerando a necessária medida de acompanhamento verificada, afigura-se-nos a insusceptibilidade de este coligir o beneficiário a qualquer medida terapêutica, pelo que em concreto e excecionalmente somos de entendimento de não poder ser este indivíduo designado para o cargo.”
Não concordamos com o fatalismo relacional que subjaz a uma tal conclusão, para mais porque – não consta nos factos nem na convicção probatória – nem sequer foi o requerido ouvido quanto à questão essencial de saber qual a sua posição relativamente à nomeação do acompanhante, como o exige a norma do art.º 143º n.º 1 do CC.
Acresce que, atentos os factos assentes sob os números 10) a 14), o requerido terá, com certeza, condições para  se pronunciar sobre tão importante questão, a saber, quem pretende que lhe venha a ser nomeado acompanhante, sendo-lhe devidamente explicado o âmbito das funções respetivas e elucidando-o sobre as opções legais residuais, previstas no mesmo  art.º143º do CC, sem deixar de vincar o significado das normas dos arts. 1874º, 2133 e 2157º todos deste último diploma.
Sem desconsiderar, porém, a omissão de diligência essencial no processo, como seja a da  audição do requerido acerca da nomeação do acompanhante, entende-se que, em nome da economia processual e da celeridade que se impõe da estabilização do efetivo acompanhamento do requerido – porque transitada em julgado a decisão no que tange à necessidade respetiva -, para prevenir a possibilidade de a primeira instância repetir a sentenciada nomeação do Delegado de Saúde Coordenador do Agrupamento de Centros de Saúde (ACES), ora recorrente, como acompanhante do requerido, parte-se para o conhecimento imediato do mérito do recurso, sem prescindir – como se verá - da devida audição do beneficiário do acompanhamento decretado, por terem de prosseguir os autos em primeira instância.
Assim sendo, analisemos.
 Vem o presente recurso interposto da parte decisória da sentença em que foi designado o Recorrente enquanto Acompanhante do requerido, por ser o Delegado de Saúde Coordenador do Agrupamento de Centros de Saúde (ACES).
Como vimos e se encontra juridicamente estabilizado, foi aplicada a favor do beneficiário, no plano pessoal, a medida de representação especial, consistente na assistência/supervisão e no controlo quanto ao acompanhamento médico (para definição e adoção de terapêutica adequada e prevenção quanto a uma eventual evolução clínica desfavorável) e à toma de medicação necessária., tudo sem prejuízo da sua esfera de autonomia compatível com as suas capacidades.
O Recorrente é uma autoridade de saúde de âmbito local, denominado delegado de saúde coordenador, que exerce por inerência as funções de coordenador da USP do ACES.
Em sede de sentença, é assim justificada a nomeação do ora recorrente para o cargo de acompanhante:
“No entanto, perscrutando a Lei de saúde pública denota-se no DL n.º 135/2013 de 4 de setembro,  art.º 5.º que se impõe às autoridades de saúde compete, em especial, de acordo com o nível hierárquico técnico e com a área geográfica e administrativa de responsabilidade desencadear, de acordo com a Constituição e a lei, o internamento ou a prestação compulsiva de cuidados de saúde a indivíduos em situação de prejudicarem a saúde pública.
Ora, tendo em consideração as funções cometidas ao delegado de saúde local na preservação das condições de saúde comunitária e de acompanhamento afigura-se-nos que, inexistindo qualquer outra pessoa que possa desempenhar a função de acompanhante, e bem assim, as medidas de acompanhamento preconizadas deverá proceder-se à nomeação de autoridade de saúde local para o efeito de acompanhamento do beneficiário nos cuidados de saúde a impor à patologia de que padece.”
Como na própria sentença se transcreve, “as funções cometidas ao delegado de saúde local na preservação das condições de saúde comunitária” constituem a sua matriz. Nada de diferente resulta do DL n.º 82/2009, de 02/04, que estabelece as regras de designação, competência e funcionamento das entidades que exercem o poder de autoridade de saúde. Com efeito, aí se prescreve que as atribuições das autoridades de saúde, ou seja, o complexo de fins ou interesses públicos que a lei as incumbe de prosseguir, são a promoção da intervenção em situações de grave risco para a saúde pública e a vigilância das decisões dos órgãos do Estado em matéria de saúde pública.
Como bem nota o recorrente, tais funções são asseguradas através da atribuição de competências ao delegado de saúde, a saber, “a vigilância sanitária, a fiscalização de estabelecimentos comerciais que vendem produtos relacionados com a saúde, a investigação de surtos de doenças, e, conforme mencionado na decisão recorrida, “desencadear de acordo com a Constituição e a lei, o internamento ou a prestação compulsiva de cuidados de saúde a indivíduos em situação de prejudicarem a saúde pública” (art.º 5.º, n.º 3 do DL 82/2009).’
As competências em causa estão definidas por lei, estando vedado ao juiz determinar a sua alteração, como seria o caso, ao vincular o delegado de saúde ao controlo do acompanhamento médico particular e da toma da medicação de alguém que padece de doença do foro mental ou outra, mesmo que não tivesse qualquer outra pessoa para o acompanhar.
Aliás, em termos da orgânica funcional do nosso estado, o acompanhamento médico está deferidos aos profissionais de saúde e o acompanhamento social à Segurança Social.
Ora, no limite, retius, na ausência de escolha viável do requerido e de indisponibilidade aceitável do filho deste último, tal como referiu o recorrente, “os Serviços de Saúde Mental, que atuam nos domínios da prevenção da doença mental e da promoção da saúde mental, do bem-estar e qualidade de vida das pessoas, orientando-se para a recuperação integral das pessoas – art.º 3.º do DL n.º 113/2021, de 14 de dezembro.
Efetivamente, nos termos dos arts. 15.º a 18.º do DL n.º 113/2021, de 14/12, os serviços locais de saúde mental, concretamente as equipas comunitárias de saúde mental, são as entidades competentes e adequadas a assegurar o acompanhamento de saúde mental a indivíduos que delas careçam.”
Last but not least, viola a regra basilar do contraditório processual radicada, além do mais, na norma do  art.º3º do CPC, a tomada de decisão processual sem prévio contraditório, neste caso, da pessoa a nomear como acompanhante, o que não poderá voltar a suceder na sequência da baixa dos autos à primeira instância, para prosseguirem em vista da realização das diligências necessárias (legal e faticamente) à nomeação de acompanhante  idóneo.
Com esta decisão, fica sem efeito a nomeação de acompanhante ao requerido, o que torna incompleto, logo, inviável o acompanhamento de maior decretado.
Nesta decorrência, a par da revogação da decisão no que à nomeação do acompanhante diz respeito e porque este tribunal não dispõe de dados de facto essenciais à nomeação do acompanhante, determina-se que o tribunal a quo, antes de decidir, leve a cabo as diligências probatórias necessárias (legal e faticamente) à nomeação de acompanhante  idóneo, à cabeça das quais a audição do requerido e daquele que venha a ser cogitado/escolhido como acompanhante[5].
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Da responsabilidade tributária
Este processo está isento de custas, nos termos do art.º 4º n.º 2 h) do Regulamento das Custas Processuais - RCP.
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DECISÃO
Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas:
- em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogar a decisão recorrida na parte em que nomeou o apelante como acompanhante do beneficiário;
- em determinar o prosseguimento dos autos na primeira instância, para que o tribunal a quo, antes de decidir, leve a cabo as diligências probatórias necessárias (legal e faticamente) à nomeação, ao beneficiário, de acompanhante idóneo, diverso do ora recorrente, incluindo-se obrigatoriamente nessas diligências as supra mencionadas.
Sem Custas.
Notifique e, oportunamente, remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º do CPC).
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Lisboa, 8 de outubro de 2024
Augusta Ferreira Palma
Alexandra Castro Rocha
João Bernardo Peral Novais

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[1] António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183.
[2] Segundo a definição da Organização Mundial de Saúde (https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/44575/9788564047020_por.pdf, pesquisa de 12.10.2021).
[3] Cfr. o acórdão da Relação de Coimbra – Alberto Ruço - , de 03.11.2020, processo 156/19.9T8OHP.C1, in www.dgsi.pt.
[4] Processo 215/20.5T8EPS.g1 – Rosália Cunha -, in www.dgsi.pt.
[5] Desde logo, na audição do requerido e do filho, por forma a:
 - aferir da vontade (devida e previamente esclarecida quanto ao âmbito das funções do acompanhante e elucidando-o sobre as opções legais residuais, previstas no mesmo art.º 143º do CC, sem deixar de vincar o significado das normas dos arts. 1874º, 2133 e 2157º todos deste último diploma) do requerido quanto à nomeação do acompanhante;
- aferir junto do filho de requerido (devida e previamente esclarecido quanto ao âmbito das funções do acompanhante e elucidando-o sobre as opções legais residuais, previstas no mesmo  art.º143º do CC, sem deixar de vincar o significado das normas dos arts. 1874º, 2133 e 2157º todos deste último diploma) sobre a sua posição quanto à sua nomeação como acompanhante do pai.
 No caso de o mesmo recusar tal cargo, deverá fundamentar as razões de tal recusa, as quais deverão ser aferidas pelo Tribunal a quo, advertindo-se o filho do requerido de que, por força da natureza de jurisdição voluntária dos presentes autos ( art.º986º do CPC), o tribunal decide, de acordo com o seu critério, em vista da boa decisão, as diligências probatórias a empreender.
Ainda na eventualidade da dita recusa, e de acordo com a liberdade probatória inerente à jurisdição voluntária, a audição deverá abranger o chefe da equipa comunitária de saúde mental da Unidade Local de Saúde (ou similar) a que o requerido pertence.