RECONVENÇÃO
REJEIÇÃO NO SANEADOR
DECISÃO SURPRESA
NULIDADE
SUBSTITUIÇÃO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Sumário

(Da responsabilidade do relator - art.º 663º nº 7 do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26-06, e adiante designado pela sigla “CPC”)
I - A rejeição da reconvenção no despacho saneador com fundamento na ilegitimidade passiva (do autor) tem o valor de absolvição da instância.
II - Tal decisão não pode ser proferida sem que as partes tenham previamente tido a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão da ilegitimidade passiva que fundou aquela decisão.
III - Quando tal suceda, o despacho saneador constitui uma decisão-surpresa, devendo a violação do princípio do contraditório qualificar-se como nulidade tanto do processo (art.º 195º do CPC), como do despacho saneador (por conhecimento de questão de que o Tribunal não podia conhecer nos termos em que o fez - art.º 615º, nº 1 d), 2ª parte, do CPC, ex vi do art.º 613º, nº 3, 2ª parte, do mesmo código).
IV - Decorrendo aquela nulidade da omissão do contraditório no momento próprio, e situando-se tal momento a montante da decisão a anular, não tem lugar a aplicação da regra da substituição do Tribunal recorrido consagrada no art.º 665º do CPC, mas antes se deve anular aquela decisão, bem como os atos subsequentes, devendo o Tribunal recorrido proferir nova decisão e retomar o processado a partir da mesma (art.º 195º, nº 2 do CPC).

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
A intentou ação declarativa constitutiva e de condenação contra B, pedindo que o Tribunal declare a extinção do direito de uso e habitação da fração autónoma identificada pela letra “F”, integrada no prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua …, n.º .. e …., em …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º … da extinta freguesia de São Mamede e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Santo António sob o artigo … e, consequentemente, condene a ré a entregar-lha, livre de pessoas e bens.
Para tanto alegou, no que ora interessa, os seguintes factos
«1.º O Autor é filho da Ré e de AM,
2.º nasceu em 02 de Janeiro de 1992 – cfr. certidão do assento de nascimento que se junta como Documento n.º 1 e que se dá por integralmente reproduzido.
 a)      A doação do imóvel
3.º Em 2008, o pai do Autor decidiu doar um apartamento a cada um dos filhos no prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua …, n.º …, em …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º … da extinta freguesia de … e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de … sob o artigo …,
4.º garantindo, assim, a futura residência dos seus filhos e das famílias a constituir por estes.
5.º proporcionando-lhes um futuro, início de vida activa independente, menos penoso.
6.º À data, o Autor era menor e a sua irmã, embora já maior, era estudante.
7.º Ambos eram estudantes e viviam com a Ré,
8.º na fracção autónoma que o pai viria a doar ao Autor.  
9.º Assim, em 06 de Novembro de 2008, no Cartório Notarial de V , foi outorgada uma escritura pública de doação em que intervieram AM e a Ré – cfr. cópia da escritura que se junta como Documento n.º 2 e que se dá por integralmente reproduzido.
10.º De acordo com a escritura pública em questão, AM declarou:
“Que pela presente escritura procede às seguintes doações:
a) Doa à segunda outorgante, B, o uso e habitação sobre as duas referidas fracções autónomas, no valor global de cento e setenta e nove mil quatrocentos e oitenta e sete euros, ou seja, oitenta e nove mil setecentos e quarenta e três euros e cinquenta cêntimos, por cada uma;
b) Doa à representada da segunda outorgante, sua filha, CF, a nua propriedade da fracção autónoma acima identificada pela letra “H”, no valor de cento e nove mil seiscentos e oitenta e seis euros e cinquenta cêntimos.
c) Doa ao seu filho menor A, CN …, natural da freguesia da Sé, concelho do …, residente à Rua …, número …, …º …, na cidade de …, dezasseis anos de idade, a nua propriedade da fracção autónoma acima identificada pela letra “F”, no valor de cento e nove mil seiscentos e oitenta e seis euros e cinquenta cêntimos.
 Que as doações feitas, aos seus filhos, o são, por conta da quota legitima dos donatários.”
11.º
Por sua vez a Ré declarou:
“Que aceita para si e a sua representada as presentes doações, que a cada qual respeita, nos termos acima expostos”.
12.º A fracção autónoma doada ao Autor encontra-se registada em seu nome – cfr. certidão permanente do imóvel acessível com a introdução do código de acesso PP-…-…-… e que se junta como Documento n.º 3 e que se dá por integralmente reproduzido.
13.º As fracções autónomas identificadas que foram doadas ao Autor e à sua irmã têm cada uma a área bruta privativa de 232m2 e a área bruta dependente de 4,250m2 – cfr. Documentos n.ºs 4 e 5 que se dão por integralmente reproduzidos
14.º bem como um estacionamento.
15.º A doação, pelo pai do Autor à Ré, do direito de uso e habitação das duas fracções referidas não teve, pois, nada a ver com necessidades de habitação daquela. 
16.º Destinando-se unicamente a permitir que a Ré pudesse utilizar cada uma das fracções indistintamente para apoiar o Autor e a sua irmã até que iniciassem a sua vida adulta e independente.
17.º Efectivamente, na data em que foi outorgada a escritura pública de doação, a Ré tinha registado a seu favor a propriedade da fracção autónoma identificada pelas letras “AP” do prédio urbano sito na Rua …, lote …., Condomínio da …, Bloco …, Quinto Piso Direito, descrita na Conservatória do Registo Predial de …, freguesia de …, sob o n.º … – cfr. cópia do registo que se junta como Documento n.º 6 e que se dá por integralmente reproduzido.
18.º Esta fracção autónoma foi escolhida pela Ré,
19.º  tem cerca de 130m2, dois estacionamentos e arrecadação.
 b)      A ocupação do imóvel 
20.º Não obstante a fracção autónoma identificada pela letra “F” do prédio urbano n.º …. da Rua … em … ter sido destinada pelo pai do Autor para sua habitação quando iniciasse a sua vida independente,
21.º  é a Ré que continua a habitar a referida fracção.
22.º A Ré, porém, não se limita a habitar a fracção autónoma em questão, ou parte da mesma, uma vez que periodicamente a explora comercialmente.
23.º Isto porque a Ré aluga, regularmente, quartos da fracção autónoma de que o Autor é proprietário.
24.º apesar de a mesma se destinar exclusivamente a habitação
25.º e sem que tenha pedido a autorização do Autor.
26.º Tudo feito sem que a Ré tenha obtido licença para o efeito.
27.º Acresce ainda que a Ré aluga o lugar de estacionamento,
28.º também sem o consentimento do Autor,
29.º o que já motivou que este fosse obrigado a retirar o seu veículo do lugar do qual é proprietário,
30.º apenas para evitar ter de explicar a situação confrangedora.
31.º Ou seja, a Ré tem unicamente um interesse comercial na ocupação da fracção autónoma que foi doada ao Autor.
32.º Este negócio da Ré foi mantido continuadamente ao longo dos anos.
33.º O Autor chegou a pedir à Ré que se mudasse para sua casa ou para a casa da irmã deste, CF, sita no mesmo prédio e com áreas iguais às da fracção do Autor,
34.º visto que a sua irmã vivia em …,
35.º e tinha a casa desabitada.
36.º No entanto, a Ré ignorou os pedidos do Autor,
37.º continuando a fazer uso da casa como se fosse sua proprietária.
 c)      A Renúncia do Direito e a Constituição de Usufruto
38.º O Autor e a sua irmã sempre defenderam uma solução igual para os dois que passariam pela renúncia do direito de uso e habitação e ainda que a Ré – sua mãe – devia ir para o imóvel de que era proprietária.
39.º Em 2010, a Ré renunciou ao direito de uso e habitação da fracção autónoma identificada pela letra “H” da qual é proprietária a irmã do Autor.
40.º Atenta esta renúncia, o Autor e a sua irmã sempre procuraram que a Ré renunciasse também ao direito de uso e habitação relativamente à fracção autónoma de que é proprietário o Autor.
41.º Posteriormente, o Autor e a sua irmã tiveram conhecimento que a Ré tinha vendido o seu imóvel à irmã desta e tia do Autor,
42.º aquisição que apenas foi registada em 2014.  
43.º Como tal, a Ré alegava que não podia abandonar o imóvel de que é proprietário o Autor uma vez que não tinha outro imóvel para onde morar.
44.º Esta alegação não correspondia à verdade, dado que a Ré sempre foi a verdadeira proprietária da fracção sita na ....
45.º No entanto, com vista a encontrar uma solução, o Autor, a sua irmã e a Ré decidiram que os primeiros iriam adquirir a nua propriedade do apartamento na ... cuja propriedade se encontrava registada a favor da sua tia,
46.º enquanto que a Ré iria adquirir o usufruto vitalício,
47.º passando aquele apartamento a ser a sua habitação própria e permanente.
48.º Assim, por escritura pública outorgada no dia 13 de Setembro de 2017, o Autor e a sua irmã adquiriram a nua-propriedade da fracção autónoma identificada pelas letras “AP” do prédio urbano sito na Rua …, lote ….., Condomínio da …, Bloco …, Quinto Piso Direito, actual freguesia do …, descrita na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º … e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo …,
49.ºno mesmo acto a Ré adquiriu o usufruto vitalício da fracção autónoma identificada pelas letras “AP” do prédio urbano sito na Rua …, lote …, Condomínio da …, Bloco …, ... Direito, actual freguesia do …, descrita na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º … e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo …,
50.º tendo destinado o imóvel para sua habitação própria e permanente – cfr. cópia da escritura pública que se junta como Documento n.º 7 e cópia da caderneta predial que se junta como Documento n.º 8 os quais se dão por integralmente reproduzidos
51.º O usufruto encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial de … pela Ap. … de 2017/09/20 - cfr. certidão permanente do imóvel acessível com a introdução do código de acesso PP-…-…-…-… e que se junta como Documento n.º 9.
52.º A Ré é, assim, usufrutuária da fracção identificada pelas letras “AP”.
 d)      Os Eventos após a Constituição de Usufruto 
53.º Mesmo assim a Ré não renunciou ao direito de uso e habitação nem desocupou o apartamento sito na Rua … conforme havia sido combinado.
54.º Desta vez a Ré alegou que o apartamento da ... estava ocupado,
55.º pelo que era necessário que o apartamento da ... fosse restituído à Ré para implementar o acordado.
56.º Em 03 de Setembro de 2019, os ocupantes entregaram o apartamento sito na ....
57.º Acontece que quando o apartamento sito na ... foi restituído, o Autor foi viver para o estrangeiro.
58.º Assim, uma vez que iria estar fora do País, o Autor aceitou adiar até ao seu regresso a concretização daquilo que há muito tinha sido acordado, ou seja, a renúncia do direito de uso de habitação, a desocupação do apartamento sito na Rua ... e a ocupação pela Ré do apartamento da ....
e) O incumprimento da Ré 
59.º O Autor regressou recentemente a Portugal,
60.º pelo que procurou que a Ré – sua mãe – cumprisse o que tinha sido acordado.
61.º No entanto, a Ré mais uma vez não cumpriu com o acordado.
62.º Isto porque, esquecendo tudo aquilo que tinha sido acordado, a Ré pretende que lhe seja concedido o direito de uso e habitação de um apartamento no … – sua terra natal -  e ainda Eur. 500,00 (quinhentos euros) por mês.
63.º Ora, para além de incumprir o que tinha sido acordado, os pedidos da Ré são inaceitáveis.
64.º Sendo que estes pedidos apenas demonstram que a Ré não tem qualquer necessidade pessoal na ocupação do apartamento sito na Rua …, antes tem um interesse material decorrente do negócio que realiza com a aludida fracção.»
Citada a ré ,a mesma contestou,  invocando a exceções de caso julgado, autoridade de caso julgado, e abuso do direito, e impugnando parte da factualidade invocada pela autora na petição inicial.
Mais deduziu reconvenção, pedindo a condenação do autor a pagar-lhe “o valor de €102.600,00 mais os juros que, desde a notificação da A. para os termos da reconvenção, se vencerem sobre tal valor à taxa legal até efetivo e integral cumprimento”.
Na sustentação da exceção de abuso do direito e da reconvenção a ré alegou, nomeadamente o que segue:
«(…)
C- POR EXCEÇÃO (DO ABUSO DE DIREITO)
40º. A posição do A. nestes autos corresponde a um claro e grave abuso de direito.
41º. Nos termos do artigo 334.º do Código Civil “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”.
42º. Ora, conforme se demonstrará de seguida, todo o alegado pelo A. na sua PI demonstra, de forma cristalina, a postura abusiva e em clara má-fé com que o A. litiga. 
Na verdade,
43º. Pretende o A. convencer o douto Tribunal de que a R., sua mãe, usa de forma ilegítima, e em reiterado prejuízo do A., o imóvel sido na Rua ..., 
44º. O que a R. faz, segundo alega, por se recusar a residir no imóvel relativamente ao qual é usufrutuária sito no .... 
Sucede que,
45º. Como o A. bem sabe, jamais a R. ali constituiu a sua habitação própria e permanente ou residência. 
46º. O A., seguramente por amnésia, esqueceu-se de alegar na PI que é o mesmo que, em benefício próprio e da empresa da qual é sócio e beneficiário efetivo (A. F. … & … - IMOBILIÁRIA LDA. – NIF …), utiliza, desde julho de 2020, o imóvel do ...,
47º. Dando-lhe o uso que bem entende.
48º. Antes desta data (julho de 2020), e à data da aquisição pelo A. e pela sua irmã da referida fração sita no ..., o imóvel encontrava-se arrendado a terceiros, contrato que apenas findou nesse mês,
49º. Data em que o A. e a irmã tomaram posse efetiva do imóvel,
50º. Autorizando que o pai de ambos e a sua companheira ali residissem.
51º. A R. nunca teve, nem tem, as chaves de acesso a tal imóvel!
52º. É a empresa do A., aliás, que paga as despesas desse imóvel,
53º. É a empresa do A. que paga o condomínio desse imóvel,
54º. São as viaturas do A. que estão parqueadas na garagem do mesmo,
55º. É o pai do A., os amigos e o próprio A. que utilizam aquele imóvel a seu belo prazer, sem nada comunicar à R.
56º. Ora, o exercício que o A. faz na sua PI, mais não é do que uma tentativa vã de demonstrar que a R. tem outra casa para viver,
57º. O que pura e simplesmente não é verdade e o A. sabe-o bem!
58º. Quanto à alegada utilização comercial do imóvel sito da Rua ... por parte da R., o A. não faz, disso, sequer qualquer prova,
59º. E não faz porque não pode fazer: o A. sabe que isso não corresponde à verdade.
60º. Em suma, a. pretende exercer um direito (de propriedade) e obter uma consequência jurídica (extinção do direito de uso e habitação) de forma absolutamente abusiva e atentatória dos mais basilares princípios de direito, ao saber que a R. não residiu, não reside, nem pode residir, no imóvel do …, porque quem dele retira as respetivas utilidades é o… próprio A.
61º. A A. atua assim em claro abuso de direito,
62º. O que desde já se invoca,
63º. O que constitui exceção perentória para a qual se comina a absolvição da R. dos pedidos do A. (artigo 576º, n.º 3, do CPC).
(…)
DOS FACTOS
69º. A R. divorciou-se no ano de 2000 de AM, pai do A.
70º. Faziam parte do acervo patrimonial comum do casal quotas de quatro sociedades comerciais, entre elas, a sociedade comercial por quotas A. F. … &  … - IMOBILIÁRIA LDA. (NIF …).
71º. Para além dessas participações sociais, a R. e o seu ex-marido eram ainda proprietários de vários bens imóveis, nomeadamente de uma fração sita no …, em …, 
72º.  A qual, na sequência da partilha de bens comuns do casal, foi adjudicada ao pai do A. 
73º. No período que mediou entre o divórcio e o ano de 2004 a R. viveu com o A. no Funchal.
74º. Contudo, e apesar do divórcio, o pai do A. continuava a exercer violência física e psicológica sobre a R.,
75º. Razão pela qual a mesma decidiu vir residir para …, juntamente com o A., para o imóvel habitado já pela filha da R. e irmã do A.,
76º. Sito no …,
77º. Local que veio a ser, por decisão judicial, casa de morada de família (cfr. Documento nº 6 que se protesta juntar). 
78º. Sucede que, em 2006, a R. soube pela sua filha, irmã do A., que o pai do A. pretendia adquiriu um outro imóvel em … em nome de ambos os filhos.
79º. Contudo, apenas aceitaria realizar tal aquisição caso a R. lhe entregasse as chaves do imóvel do … (que ainda tinha em seu poder) e deixasse de residir no imóvel sito no …,
80º. Com a promessa, que se veio a concretizar formalmente em 2008, de lhe ser conferido os direitos de uso e de habitação relativamente aos imóveis da …, em …
81º. A R. aceitou, de boa-fé, o proposto pelo pai do A.
Assim,
82º. Em 2006, a sociedade … …, … IMOBILIÁRIA, S.A. (NIF … e atualmente designada …, S.A), da qual era sócio o pai do A. - AM – adquiriu dois apartamentos na Rua  …, n.º …, em …, respetivamente o 2.º e o 3.º andar ….
83º. A R. passou a residir desde 2006 num desses apartamentos (2º direito).
84º. Em 06.11.2008 o pai do A. adquiriu à referida sociedade a propriedade daquelas frações, tendo-as, em ato contínuo, doado ao A. e à irmã do A.  - vide doc. n.º 2 junto com a PI.
85º. Nesse ato, o pai do A. doou também à R. os direitos de uso e de habitação das referidas frações o que fez, não pelos fundamentos invocados pelo A., como o mesmo bem sabe, mas sim pelo facto de a R. ter proposto ao ex-marido, o que foi aceite, a venda da quota que a R. ainda detinha na sociedade A. F. … & … - IMOBILIÁRIA LDA.
86º. Ora, em momento algum, como o A. bem sabe, o seu pai lhe doou a fração correspondente ao 2º direito do prédio sito na Rua … para garantir “a futura residência dos seus filhos e das famílias a constituir por estes”,
87º. O que é falso,
88º. Tal como falsa é a alegação de que a doação à R. dos direitos de uso e de habitação das duas frações do imóvel sito na Rua ... em …, se deveu unicamente para a R. acompanhar os filhos.
89º .A R., desde 2006 e até à presente data, reside na fração correspondente ao 2º andar direito daquele imóvel,  
90º. Onde reside e estabeleceu o seu domicílio,
91º. Onde recebe família e amigos,
92º. Onde recebe correspondência.
93º. Quanto ao alegado nos artigos 31º a 37º da PI impõe-se repor a verdade,
94º. Desde já se consignando que é falso que o A. tivesse sido impedido de parquear uma das suas viaturas no lugar de estacionamento associado à fração correspondente ao 2º direito.
95º. A R. limitou-se, com a autorização do A. e da sua irmã, a arrendar um dos quartos da fração correspondente ao 2º direito porque o pai do A. não lhe pagou o que devia pela alienação da sua quota na referida sociedade (A. F. … & … - IMOBILIÁRIA LDA.)
96º. Pelo que, necessitando do valor da “renda” para a sua subsistência económica, veio assim a atuar,
97º. O que fez também para custear as obras que suportou sozinha na fração do 3º direito,
98º. Fração doada à filha da R.
99º. Desde abril de 2015 que o A. reside na fração correspondente ao 3º direito,
100º. Fração que se encontra arrendada pela irmã do A. à sociedade, adivinhe-se… A. F. … & … - IMOBILIÁRIA LDA.,
101º. Sociedade de que o A. é beneficiário.
102º. A narrativa do A. é falsa: a R. mantém a necessidade de habitar no 2º andar direito porque não tem onde morar; a necessidade de habitação da R. na fração “F” nunca de alterou e mantém-se nessa data,
103º. Até porque, como se referiu, a fração sita no … é utilizada pela empresa de que o A. é beneficiário,
104º. Sendo que o usufruto que foi constituído a favor da R., e como bem sabe o A., também não foi concretizado,
105º. Até porque a fração em causa é utilizada por empresa de que o A. é beneficiário.
106º. Por ser assim a R. sempre julgou que o A. nunca se atreveria a reclamar de si a posse do imóvel correspondente ao 2º direito da Rua …,
107º. Provocando, quando sabe que isso, materialmente, não corresponde à verdade, a extinção de direitos da R. que não só lhe foram formalmente conferidos como, na realidade, são pela mesma exercidos.
Mais,
108º. A filha da A., na escritura de 13.09.2017, bem sabia que o imóvel sito no ... não era a habitação própria e permanente da R.,
109º. Antes o 2º andar direito da fração da ...,
110º. Declaração que aquela fez exorbitando, inclusivamente, os poderes que lhe foram concedidos pela R. pela procuração de 11.09.2017 – cfr. procurações que se juntam como Documento n.º 7, 8 e 9 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido. 
111º. Como se referiu em cima, é o A. que, direta ou indiretamente, retira as vantagens e os benefícios do imóvel sito no ...,
112º. Que utiliza em seu exclusivo e único benefício.
113º. O A. é beneficiário efetivo e sócio (na proporção de 50%) da sociedade A. F. … & …. - IMOBILIÁRIA LDA. – cfr. Documento n.º 10 que se junta, 
114º. E, pelos menos desde julho de 2020, vem atuando sobre tal imóvel como se fosse dele proprietário e possuidor, 
115º. Sendo até a sociedade de que é sócio quem paga o respetivo condomínio - cfr. Documento n.º 11 que se junta,
116º. Aí parqueando, nos lugares 74 e 75, veículos da sua sociedade – cfr. fotografias e certidões que se juntam como Documentos n.ºs 12, 13, 14 e 15,
117º. Pagando fornecimento de eletricidade, de água e de gás,
118º. Ali pernoitando quando lhe apetece,
119º. Tal como o seu pai e companheira, 
120º. Tudo sem qualquer conhecimento ou autorização da R.
121º. Talvez o usufruto que resulta da escritura de 13.09.2017 não corresponda bem à verdade…,
122º. O que faz cair, por terra, a tese do A.
123º. Que não desconhece esta factualidade.
124º. A má-fé e abuso de direito do A. são tão claros que, seguramente, não deixarão de ser sancionados em sede própria.
Em conclusão,
125º. A R. reside no 2º andar direito do prédio sito na Rua … n.º …, em …,
126º. Exercendo os direitos de uso e de habitação que lhe foram conferidos,
127º. E não tem outro local onde possa residir,
128º. Porque o usufruto que o A. alega que a R. tem não existe,
129º. Facto que o A. bem sabe,
130º. Razão pela qual a pretensão do A. não pode proceder.
(…)
III. DA RECONVENÇÃO
139º. O presente pedido decorre da factualidade invocada a título de impugnação, pelo que, caso V. Exa. venha a considerar que o direito de uso e habitação da R. deverá ser extinto, então, nesse caso, a R. tem direito, sobre o A., de dele peticionar um valor a título de indemnização em virtude da utilização, pelo A., do imóvel do ….
140º.
(…).
141º. Emergindo o pedido reconvencional do(s) facto(s) jurídico(s) “que serve de fundamento à ação” (artigo 266º, n.º 2, alínea b), do CPC), o mesmo é legalmente admissível.
Ora, conforme já alegado, 
142º. O A. vem, desde pelo menos julho de 2020, a fazer uso exclusivo, direta ou indiretamente, do imóvel sito no ….
143º. O imóvel do … corresponde a um T2, com 129,38 m3 e localiza-se na Rua …, em … – vide doc. n.º 8 junto com a PI.
144º. Um apartamento com as condições e tipologia daquela fração, em localização menos nobre do ..., pode ser arrendado por €3.800,00/mês – cfr. anúncio que se junta como Documento n.º 16. 
145º. Na verdade, só o arrendamento de garagem, para o parqueamento de uma viatura, poderia importa o valor de €180,00 por mês – cfr. anúncio que se junta como Documento n.º 17. 
146º. O A. encontra-se desde julho de 2020 a utilizar, em exclusivo, o referido imóvel. 
147º. Dispõe o artigo 1439º do CC que: “Usufruto é o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância.”,
148º.  Mais podendo o usufrutuário “(…) usar, fruir e administrar a coisa (…)” (vide artigo 1446º do CC). 
149º. Já do n.º 1, do artigo 473º, do CC resulta que “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.”. 
150º.O enriquecimento sem causa, conforme previsto no artigo 473º e segs. do CC, é fonte autónoma de obrigações, sendo que a causa da deslocação patrimonial só releva na ausência de relação obrigacional, negocial ou legal e, designadamente, tratando-se de prestação sem qualquer finalidade típica tutelada.
151º.A utilização, pelo A., do imóvel sito no …, consubstancia-se no seu enriquecimento sem causa.
152º.
(…)
153º.
(…). 
154º.
In casu,
a) O A. utiliza o imóvel do … desde, pelo menos, julho de 2020;
b) Em contrapartida, a R. viu-se empobrecida porque, pelo menos desde esse mês, não retira de tal imóvel as faculdades que poderia retirar na qualidade de usufrutuária; 
c) a atuação do A. é assim causa direta do empobrecimento da R.;
d)      O A. não tem qualquer legitimidade para fruir do imóvel sito no …;
e) A R. não tem outra forma de poder ver o seu direito reconhecido e salvaguardado que não seja através deste pedido reconvencional. 
155º. No dizer de Pereira Coelho “O enriquecimento mostra-se injusto quando deve pertencer a outrem. (…) o que suscita a reacção da lei é a circunstância de determinado valor se achar no património de A, quando o seu lugar não é aí, mas antes no património de B, em função da ordem de atribuição ou destinação dos bens.” (…),
156º. O que se verifica nestes autos,
157º. Termos em que, à razão mensal de €3.800,00 por mês (que corresponde ao valor de arrendamento de um imóvel com a tipologia da fração sita no ...), deverá o A. ser condenado a pagar à R. a quantia total de €102.600,00 (cento e dois mil e seiscentos euros),
158º. Acrescida de juros de mora desde a notificação do A. para os termos da presente ação judicial até integral e efetivo pagamento. 
(…)»
No mesmo articulado a ré/reconvinte requereu, entre outras, as seguintes diligências de prova:
“A)    Para prova do alegado nos artigos 53.º e 118.º, requer-se a V. Exa. se digne oficiar a (i) Edp - Serviço Universal, S.A. (NIF ), com sede na R. …, … …; (ii) a EDP Comercial - Comercialização de Energia S.A. (NIF …), com sede na Avenida …, n.º …, … …; a (iii)  Galp Distribuição Portugal, S.A. (NIF …), com sede na  Avenida …, n.º …, Edifício … , …; e a (iv) Epal-Empresa Portuguesa das Aguas Livres S.A. (NIF …), com sede na Avenida …, … … …, para virem aos autos informar:
a) Se existem contratos de fornecimento ativos na morada Rua …, Lote …, Condomínio da …, Bloco …, …. Dto., …;
b) Em caso afirmativo, que seja ordenada a junção aos autos dos respetivos contratos de fornecimento; e que,
c) Seja informado quem é o/a titular daqueles contratos de fornecimento e qual o título apresentado para a sua celebração.
B) Para demonstração da efetiva utilização do imóvel por parte do A., requer-se a V. Exa. se digne oficiar a sociedade Urbicare, Lda., com sede na Rua …, n.º … – Loja …, …, para vir indicar o nome e morada atual da Porteira do Prédio sito na Rua …, ……, Condomínio da …, Bloco …., …; bem como,
C) Por que meio (carta registada ou email, indicando qual) e na pessoa de quem, procedem à notificação da sociedade A. F. … & … – Imobiliária, Lda. (NIF …) para o pagamento das quotas de condomínio do imóvel sito na Rua …, Lote …, Condomínio da …, Bloco …, ….., ….»
O autor/reconvindo replicou, impugnando a factualidade alegada pela ré no que resposta às exceções e à reconvenção, tendo sustentado nomeadamente o que segue:
“«
I – Impugnar o Pedido Reconvencional
1º Para procurar fundamentar o pedido reconvencional a Ré (Mãe do A.) deturpa e altera a realidade dos factos alegados e omite outros relevantes.
2º O A. e a sua irmã tudo têm feito para garantir à sua Mãe (Ré nos presentes autos) uma casa de elevada qualidade e conforto para sua habitação.
3º Nomeadamente através de ajudas económicas directas e indirectas,
4º que incluíram pagamento de impostos, condomínios e outros encargos sobre os imóveis (ou com eles relacionados) já referidos nos autos,
5º obras de conservação e melhoria dos mesmos,
 6º e pagamento de dívidas contraídas pela Ré (doc. 1).
7º E no caso específico do imóvel sito no … (fracção “AP” do prédio …freguesia dos …) pagaram também em 2019 elevada indemnização a terceiros (17.500 euros) para obter a sua entrega livre e devoluto, tendo para o efeito sido necessário intentar processos judiciais, cujas custas e demais encargos e despesas com os mesmos também custearam (Processo 24208/18.3T8LSB Juízo Central Cível – Juiz 6 e Processo 14641/18.6 T8LSB Juízo Central Cível – Juiz 5, ambos da Comarca de …), documentos 2, 3 e 4 que se dão por reproduzidos.
8º Assim como as despesas relacionadas com a constituição, aquisição e transmissão do direito de usufruto desse imóvel para a titularidade da Ré, sua Mãe, conforme documentos que protesta juntar,
9º que, conforme referido na petição inicial, incluiu também a aquisição pelo A. e pela sua irmã da nua propriedade desse imóvel.
10º O que tudo foi feito conforme acordo celebrado efectuado entre o A., a Ré (sua Mãe) e a sua irmã.
11º Nos termos desse acordo, que englobou os actos e despesas referidos nos números anteriores (6º a 10º), a Ré, Mãe do A., mudaria a sua residência para esse apartamento do … após renúncia ao direito de uso e habitação da fracção “F” do número ... da Rua …, em …. 
12º Ora, o A. e a sua irmã, conforme exposto, cumpriram as obrigações assumidas nesse acordo com a sua Mãe, continuando esta em incumprimento quanto ao acordado com os filhos.
13º Saliente-se que os pagamentos e actos anteriormente referidos foram efectuados no âmbito do acordo que tinha como condição
14º a sua Mãe passar a residir no imóvel do … com prévia renúncia do direito de uso e habitação sobre a fração “F” do número … da Rua …, em ….
15º O que aliás, na altura, era um desejo seu, entusiasticamente manifestado e assumido, já que aquele apartamento tinha, anos antes, sido escolhido por si para nele fixar residência e nele residir com os seus filhos (o A. e a sua irmã), como efectivamente aconteceu.
16º Desejo que, aparentemente, terá sido trocado pelo interesse em manter a exploração comercial que fez da fracção “F” do número ….. dt. da Rua …, em … (já que passa parte significativa do seu tempo no …),
17º e em alterar o referido acordo estabelecido com o A. e a sua irmã relativamente aos identificados imóveis sitos no … e na Rua …,
18º conforme referido no artigo 62º da p.i., que se dá por reproduzido.
19º Daí que o pedido reconvencional feito pela Ré contra o A. seja de todo inadmissível,
20º Já que a utilização feita pelo A. do apartamento do … resulta do incumprimento por parte da Ré (Mãe do A.) do acordo que previa a sua renúncia do direito de uso e habitação sobre a fracção “F” do número ….. da Rua …, em … e entrega da mesma ao A.
21º A não ser que a Ré pretenda que o A. (seu filho) vá morar para a rua para ela ter disponível mais um apartamento para os seus negócios de arrendamento.
22º Ou seja, a Ré fundamenta o seu pedido numa situação, por si criada e mantida, decorrente do seu incumprimento do acordo que celebrou com o A. e a sua irmã.
23º E na tentativa de obter mais e novas vantagens económicas, para além das acordadas, para cumprir esse acordo, numa atitude de clara chantagem.
24º Sem prejuízo do valor mensal atribuído pela sua Mãe ao imóvel do ... ser exagerado.
25º Não há qualquer enriquecimento por parte do A. na utilização do imóvel sito no ...,
26º porquanto o A. jamais pretendeu utilizá-lo.
27º O que faz contra a sua vontade e somente porque a sua Mãe não lhe entregou a fracção “F” do número …. da Rua …, como acordado.
28º Impugna-se assim, o pedido reconvencional contra o A. deduzido, bem como todos os factos alegados para o fundamentar.
(…)»
Na audiência de partes, o Tribunal a quo proferiu despacho saneador, no qual apreciou a admissibilidade da reconvenção nos seguintes termos:
“Vem a ré, no ponto III da contestação, deduzir pedido reconvencional.
Concretamente, pede subsidiariamente aos pedidos de procedência da excepção de caso julgado, ou procedência das excepções de autoridade de caso julgado ou abuso de direito, e na procedência da acção, que o autor seja condenado a pagar à ré o valor de €102.600,00 (cento e dois mil e seiscentos euros) correspondente ao valor de um arrendamento de imóvel idêntico ao apartamento sito no … e respectiva garagem, apartamento do qual a ré é usufrutuária e o réu utiliza desde Julho de 2020.—
Como resulta da leitura da contestação, a ré diz que reside na fracção a que se refere a petição inicial (a sita na Rua …) por não dispor de outra, invocando que a fracção de que é usufrutuária se encontra a ser usada "directa ou indirectamente pelo autor".—
Como também resulta da leitura da contestação, a empresa A.F. …& … – Imobiliária Lda. NIF …, utiliza desde Julho de 2020 o imóvel do …, empresa que paga as despesas do imóvel (cfr artigos 46º, 52º, e 53º da contestação).
Pretendendo a ré, ainda que a título de pedido subsidiário, ver-se compensada do uso que tenha sido feito daquela fracção, não é o aqui autor parte legítima nessa demanda, uma vez que no dizer da própria ré a fracção se encontra a ser utilizada por pessoa colectiva (ainda que o réu dela possa ser sócio) e não pelo réu pessoa singular.—
Assim, a relação material controvertida que resulte daquela ocupação, envolve sujeito diferente dos sujeitos processuais destes autos, razão pela qual se indefere o pedido reconvencional.—”
A prolação do despacho saneador não foi antecedida de qualquer decisão convidando as partes a pronunciar-se acerca da legitimidade passiva reportada à reconvenção.
Na mesma ocasião, apreciando o requerimento probatório da ré, o Tribunal a quo  determinou, nomeadamente o seguinte:
“Quanto ao mais requerido:
O autor reconhece na réplica que se encontra a ocupar o imóvel sito no ….
Assim, por inútil, indefere-se o requerido nos pontos A), B) e C) do requerimento probatório da ré.”.
Inconformada com o decidido relativamente quer no que respeita à rejeição da reconvenção, quer no que concerne ao indeferimento das diligências probatórias supra descritas a ré apresentou dois recursos de apelação, formulado as seguintes conclusões:
Recurso interposto do despacho saneador, na parte em que rejeita a reconvenção:

A. A Ré, Recorrente, apresentou um pedido reconvencional na sua contestação contra o Autor, Recorrido, exigindo o pagamento de €102.600,00, por aquele se encontrar a utilizar, pelo menos, desde meados de julho de 2020, o imóvel sito no …, do qual a Recorrente detém o usufruto.
B. Em sede de audiência prévia, o Tribunal a quo proferiu despacho saneador indeferindo o pedido reconvencional da Ré, aqui Recorrente, por considerar que a relação material controvertida não envolve o Autor, aqui Recorrido, mas sim a sociedade A.F. … & … – Imobiliária Lda., que não é parte do processo.
C. Ora, salvo o devido respeito, e conforme se explicitará, tal despacho saneador constitui uma decisão-surpresa sendo por isso nulo,
D. Mas ainda que assim não fosse – o que só à cautela se equaciona – sempre teria de se considerar que não existe qualquer fundamento jurídico-legal para o pedido reconvencional não ser admissível.
E. Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou gravemente o no art.º 3.º, n.º 3 do CPC, bem como os arts. 6.º, 547.º, 590.º, n.º 2, al. a) e 3 do mesmo diploma e, ainda, o art.º 160.º e 1484.º do CC e 6.º, n.º 1 do CSC.
VEJAMOS, DIGNOS VENERANDOS DA RELAÇÃO DE LISBOA,
F. Na audiência prévia de 18-03-2024, o Tribunal a quo indeferiu o pedido reconvencional da Recorrente.
G. Em nenhum momento – antes ou no início da audiência prévia – o Tribunal a quo mencionou a possibilidade de não admitir o pedido reconvencional, nem tão pouco convidou as partes a pronunciarem-se sobre tal circunstância.
H. Ora, o indeferimento de uma reconvenção equipara-se a uma absolvição da instância, pelo que o Tribunal a quo deveria ter ouvido as partes antes de indeferir o pedido reconvencional da Recorrente, conforme os arts. 3.º, n.º 3 e 6.º, n.º 1 do CPC.
I. O que o Tribunal a quo não fez, preterindo, assim, o cumprimento de uma formalidade essencial.
J. O despacho-saneador proferido, que não admite a reconvenção constitui, por isso, uma decisão-surpresa, violando dois princípios basilares do direito – o princípio do contraditório e da adequação formal – sendo nulo, nos termos e para efeitos do art.º 195.º, n.º 1 do CPC, o que, desde já, se requer que seja declarado.
K. Sendo declarada a nulidade deve, consequentemente, anular-se todo o processado desde o momento em que sucedeu a apontada omissão, com as legais consequências.
AINDA QUE ASSIM NÃO SE CONSIDERE, O QUE SÓ À CAUTELA SE EQUACIONA, SEMPRE SE DIRÁ QUE,
L. O Autor, Recorrido pede a extinção do direito de uso e habitação da Recorrente sobre um imóvel na Rua … e a entrega do mesmo livre de pessoas e bens;
M. Para o efeito, alega o Autor, Recorrido que:
- A Recorrente não precisa do imóvel para a sua habitação, pois detém o usufruto de outro imóvel, sito no ...;
- O pai do Recorrido doou o direito de habitação à Recorrente para que ela vivesse com os filhos até à sua maioridade;
- O Recorrido corre o risco de não ter uma casa para habitar se o direito de uso e habitação da Recorrente não for extinto.
N. Após ser citada, a Recorrente contestou a ação, apresentando defesa por exceção e impugnação, argumentando relativamente à matéria de impugnação que:
a. O único imóvel que tem para viver é o da Rua …;
b. Apesar de ter usufruto do imóvel do …, este está a ser utilizado pelo Autor (Recorrido), pai do Autor e companheira deste;
c. A Recorrente nunca imaginou que o seu filho, Recorrido, reclamaria a posse do imóvel da Rua ..., pois bem sabe que a sua mãe não tem para onde ir.
O. Ainda no articulado da contestação a Recorrente deduziu pedido reconvencional contra o Autor, Recorrido, peticionando que o mesmo fosse condenado a pagar à Recorrente o valor de €102.600,00, acrescido de juros, pela circunstância de o mesmo utilizar o imóvel do …, pelo menos, desde meados de julho de 2020, imóvel este que a Recorrente detém o usufruto.
P. Em sede de réplica, o Autor, aqui Recorrido alegou expressamente que utilizava o imóvel sito no ... a título pessoal!
Q. Na audiência prévia, o Tribunal a quo começou por indeferir o pedido reconvencional da Recorrente, por considerar que o Recorrido não é parte legítima na demanda, isto porque entendeu aquele Tribunal que a entidade que o ocupa é a sociedade A. F. … & … – Imobiliária, Lda. (detida pelo Recorrente), uma vez que é esta entidade quem procede ao pagamento das contas relativas ao imóvel do ….
R. Ainda durante a audiência prévia, o Tribunal a quo proferiu um outro despacho, acerca dos requerimentos probatórios apresentados pelas partes, indeferindo as diligências probatórias requeridas pela Recorrente, decidindo que as mesmas eram desnecessárias, porquanto o Autor tinha reconhecido na réplica que se encontrava a ocupar o imóvel do ….
S. Ora, é perentório concluir que existe uma contradição entre despachos:
- No despacho saneador, o imóvel do … – sobre o qual a Ré e Recorrente detém o usufruto – é ocupado por pessoa coletiva, por ser esta quem paga às despesas do imóvel.
- No despacho que se pronuncia sobre os requerimentos probatórios, o imóvel é ocupado pelo próprio Autor, aqui Recorrido, por ter confessado tal factualidade na réplica.
T. Surge, então, a dúvida: o Tribunal a quo entendeu que o imóvel do … está ocupado por uma pessoa coletiva? Ou pelo Autor? Ou, quiçá, por ambos?
U. Ora, como pode uma pessoa coletiva utilizar um imóvel se esta não tem existência física tangível?
V. O entendimento de que uma pessoa coletiva pode ocupar um imóvel e fruir do mesmo viola expressamente o princípio da especialidade previsto nos arts. 160.º do CC e 6.º, n.º 1 do CSC;
W. A capacidade das pessoas coletivas abrange, apenas, os direitos e obrigações necessários para a prossecução dos seus fins, excluindo os direitos reservados às pessoas singulares.
X. E o uso e a habitação são um direito exclusivamente das pessoas singulares, conforme é o entendimento da nossa jurisprudência e doutrina;
Y. (…).
Z. Ainda que assim não fosse – o que só à cautela se equaciona – o Recorrido reconheceu, na réplica, que utiliza o imóvel do … a título pessoal, referindo: “[a]não ser que a Ré pretenda que o A. (seu filho) vá morar para a rua”.
AA. Ora, morar num imóvel implica habitar e, segundo a nossa jurisprudência, isso significa uma vida íntima ou familiar, associada a uma vida doméstica, que – repisa-se – só as pessoas singulares podem ter.
BB. Sendo que, mal andou o Tribunal a quo a entender que quem usufrui o imóvel é quem paga as despesas relativas ao mesmo,
CC. Quem usufrui do imóvel é quem o utiliza!
DD. Sendo irrelevante se é o Autor, aqui Recorrido, quem paga as despesas associadas à fração, o seu pai, a companheira, a sociedade, ou qualquer terceiro.
EE. Não tem a Recorrente, nem tão pouco o Tribunal, de saber quem paga as despesas,
FF. Não podendo ser esse o critério admissível para aferir a legitimidade passiva;
GG. Acresce que, o Tribunal a quo deu ainda como comprovado que as despesas do imóvel eram pagas pela empresa do Recorrido (A.F. … & … – Imobiliária, Lda.), e não pelo próprio Recorrido, APENAS com base nas alegações da Recorrente na sua contestação – cf. consta do teor da ata de audiência prévia.
HH. Sendo que, a própria Recorrente alegou tal circunstância – que as despesas do imóvel são pagas pela empresa do Recorrido – sem total certeza,
II. Tanto assim é que requereu diligência probatórias no seu requerimento probatório junto com a contestação-reconvenção, o que também foi indeferido e objeto de recurso nos presentes autos.
A ACRESCER A TUDO ISTO, SEMPRE SE DIRÁ QUE,
JJ. O despacho-saneador sempre estará ferido de nulidade processual, por o Douto Tribunal a quo ter omitido a prática de um ato que a lei previa.
KK. A considerar-se que a pessoa coletiva é sujeito da relação material controvertida, no que diz respeito ao pedido reconvencional apresentado pela Ré, Recorrente, sempre seria parte processual em conjunto com o Recorrido, porquanto este reconheceu utilizar o imóvel,
LL. Existindo, nessa circunstância, uma pluralidade de Reconvindos,
MM. Ora, mal andou o Tribunal a quo em não ter convidado a Ré, Recorrente a, querendo, suprir tal ilegitimidade passiva, sob pena do pedido reconvencional ser indeferido,
NN. Isto porque ao abrigo do art.º 266.º, n.º 4 do CPC se o pedido reconvencional envolver outros sujeitos pode o réu suscitar a sua intervenção,
OO. Não tendo a Recorrente suscitado tal intervenção, deveria o Tribunal a quo proferir despacho a convidá-la a sanar tal ilegitimidade passiva, ao abrigo do art.º 6.º, n.º 2 e 590.º, n.º 2, al. d) e 3 ambos do CPC.
PP. O que o Tribunal a quo não fez!
QQ. Sendo, por isso, o despacho-saneador nulo, nos termos e para efeitos do art.º 195.º, n.º 1 do CPC, o que, também, desde já, vai alegado.
RR. Face a tudo o quanto foi exposto, conclui-se que o Tribunal a quo violou, não só o disposto no art.º 3.º, n.º 3 CPC, mas também o vertido nos arts. 6.º, 547.º, 590.º, n.º 2, al. a) e 3 do CPC e, ainda, o art.º 160.º e 1484.º do CC, bem como o art.º 6.º do CSC.
SS. Devendo o presente recurso ser declarado procedente, revogando-se o despacho-saneador recorrido e admitindo-se o pedido reconvencional apresentado pela Recorrente,
TT. Caso assim não se entenda – o que só à cautela se equaciona –, subsidiariamente, o despacho-saneador recorrido deve ser substituído por Acórdão que ordene a notificação da Recorrente para, em prazo e querendo, requerer a intervenção de terceiro, sob pena de ver o seu pedido reconvencional indeferido, por ilegitimidade passiva.”
Recurso interposto do despacho que não admite as diligências de prova supra descritas (A, B, e C), a apelante formulou as seguintes conclusões:

A. A Recorrente apresentou na contestação-reconvenção o seu requerimento probatório, requerendo a realização de diversas diligências, ao abrigo do art.º 432.º do CPC.
B. O Tribunal a quo indeferiu o pedido da Recorrente nos pontos A), B) e C) do requerimento probatório, por considerar que o Autor, Recorrido, reconheceu na réplica que se encontra a ocupar o imóvel sito no ....
C. A Recorrente não concorda com a decisão do Tribunal a quo, uma vez que tais diligências probatórias são fundamentais para a averiguação da factualidade essencial à boa decisão da causa.
D. Assim, entende a Recorrente que o Tribunal a quo violou os artigos 4.º, 6.º, 7.º, 411.º, 417.º e 547.º do CPC, bem como o art.º 13.º da Constituição da República Portuguesa, devendo tal despacho ser revogado por Acórdão que ordene a realização das diligências probatórias requeridas pela Recorrente.
VEJAMOS, DIGNOS VENERANDOS DA RELAÇÃO DE LISBOA,
E. O Autor, Recorrido pede a extinção do direito de uso e habitação da Recorrente sobre um imóvel na Rua ... e a entrega do mesmo livre de pessoas e bens;
F. Para o efeito, alega o Autor, Recorrido que:
- A Recorrente não precisa do imóvel para a sua habitação, pois detém o usufruto de outro imóvel, sito no ...
- O pai do Recorrido doou o direito de habitação à Recorrente para que ela vivesse com os filhos até à sua maioridade;
- O Recorrido corre o risco de não ter uma casa para habitar se o direito de uso e habitação da Recorrente não for extinto.
G. Após ser citada, a Recorrente contestou a ação, apresentando defesa por exceção e impugnação, argumentando relativamente à matéria de impugnação que:
- O único imóvel que tem para viver é o da Rua …;
- Apesar de ter usufruto do imóvel do …, este está a ser utilizado pelo Autor (Recorrido), pai do Autor e companheira deste;
- A Recorrente nunca imaginou que o seu filho, Recorrido, reclamaria a posse do imóvel da Rua …, pois bem sabe que a sua mãe não tem para onde ir.
H. Ainda no articulado da contestação a Recorrente deduziu pedido reconvencional contra o Autor, Recorrido, peticionando que o mesmo fosse condenado ao pagamento à Recorrente do valor de €102.600,00, acrescido de juros, pela circunstância de o mesmo utilizar o imóvel do ..., pelo menos, desde meados de julho de 2020, imóvel este que a Recorrente tem o usufruto.
I. Para efeitos da sua defesa por impugnação e sustentação do pedido reconvencional, a Recorrente requereu no requerimento probatório, junto com a Contestação, a realização de diversas diligências probatórias, a saber:
“A) Para prova do alegado nos artigos 53.º e 118.º , requer-se a V. Exa. se digne oficiar a (i) Edp - Serviço Universal, S.A. (NIF ….), com sede na R. …,  ...; (ii) a EDP Comercial - Comercialização de Energia S.A. (NIF …), com sede na Avenida …, n.º …, ...; a (iii) Galp Distribuição Portugal, S.A. (NIF), com sede na Avenida …, n.º 11, Edifício … , … ...; e a (iv) Epal-Empresa Portuguesa das Aguas Livres S.A. (NIF …), com sede na Avenida …, …  ..., para virem aos autos informar:
a) Se existem contratos de fornecimento ativos na morada Rua …, Lote …, Condomínio da …, Bloco …, … Dto., ...;
b) Em caso afirmativo, que seja ordenada a junção aos autos dos respetivos contratos de fornecimento; e que,
c) Seja informado quem é o/a titular daqueles contratos de fornecimento e qual o título apresentado para a sua celebração.
B) Para demonstração da efetiva utilização do imóvel por parte do A., requer-se a V. Exa. se digne oficiar a sociedade Urbicare, Lda., com sede na Rua …, n.º … – Loja …, … ..., para vir indicar o nome e morada atual da Porteira do Prédio sito na Rua …, Lote ….., Condomínio da …, Bloco C, …; bem como,
C) Por que meio (carta registada ou email, indicando qual) e na pessoa de quem, procedem à notificação da sociedade A. F. … & … – Imobiliária, Lda. (NIF …) para o pagamento das quotas de condomínio do imóvel sito na Rua …, Lote ….., Condomínio …, Bloco …...,  ….”.
J. Em sede de audiência prévia, o Tribunal a quo começou por indeferir o pedido reconvencional da Recorrente, por considerar que o Recorrido não é parte legítima na demanda, isto porque entendeu aquele Tribunal que a entidade que ocupa o imóvel é a sociedade A. F. … & … – Imobiliária, Lda. (detida pelo Recorrente), uma vez que é esta entidade quem procede ao pagamento das contas relativas ao imóvel do ....
K. Ainda em sede de audiência prévia, o Tribunal a quo profere um outro despacho, acerca dos requerimentos probatórios apresentados pelas partes – de que ora se recorre – indeferindo as diligências probatórias requeridas pela Recorrente, explicitando que as mesmas eram desnecessárias, porquanto o Autor reconhecida na réplica que se encontrava a ocupar o imóvel do ….
L. Ora, é perentório concluir que existe uma contradição flagrante entre despachos,
M. Sendo que, quanto à inadmissibilidade da reconvenção também irá a Recorrente, em sede própria, interpor o devido recurso;
N. Recurso esse que se for julgado procedente ordenará que o pedido reconvencional, apresentado pela Recorrente, seja admitido, competindo-lhe, posteriormente, o ónus da prova quanto aos factos ali alegados;
O. Ónus da prova que ficará gravemente prejudicado se não forem realizadas as diligências probatórias requeridas pela Recorrente, no seu requerimento probatório, nos pontos A), B) e C).
P. Isto porque o valor peticionado na reconvenção pela Recorrente tem por base a data de ocupação do imóvel pelo Recorrido, que remonta a meados de julho de 2020, daí que é necessário, que sejam oficiadas:
- as entidades de fornecimento de serviços essenciais (EDP, Galp e Epal) para indicarem se existem contratos de fornecimentos do imóvel do ... e a existir juntarem os mesmos aos autos;
- a sociedade que gere o condomínio do imóvel do ... (Urbicare, Lda.) para indicar o nome da porteira, para demonstrar quem e como utiliza a fração em causa, bem como para quem e como envia aquela sociedade o pagamento das quotas de condomínio, referentes à fração que a Recorrente detém o usufruto.
TODAVIA,
Q. A documentação requerida pela Recorrente no seu requerimento probatório é relevante para a boa decisão da causa, mesmo sem a reconvenção ser admitida.
R. A prova requerida é essencial para fundamentar as alegações da Recorrente na sua contestação,
S. Bem como, para o ÚNICO tema da prova fixado pelo Tribunal a quo: “Das razões da não ocupação do imóvel da ... pela ré”.
T. Face ao indeferimento dos meios probatórios, a Recorrente não poderá demonstrar cabalmente a razão da não ocupação do imóvel sito no ....
U. A principal razão para a Recorrente não ocupar o imóvel do ..., do qual detém o usufruto, é precisamente o Recorrido estar a ocupar o mesmo, utilizando-o em seu exclusivo benefício, agindo como se fosse o verdadeiro possuidor.
V. Acreditando a Recorrente que essa ocupação é intermediada – e somente intermediada – pela sociedade A. F. … & … – Imobiliária, Lda., da qual o Recorrido é beneficiário efetivo e sócio maioritário.
W. Porém, a Recorrente foi inibida de demonstrar essa ligação, com certeza, devido ao indeferimento dos meios probatórios solicitados, no caso a notificação à sociedade Urbicare, Lda. – gestora do condomínio – para indicar como e a quem notifica para pagamento das quotas de condomínio.
X. A Recorrente também alegou que o imóvel está ocupado Recorrido desde, pelo menos, meados de julho de 2020, acreditando que é este que paga as despesas eletricidade, gás e água.
Y. No entanto, a Recorrente não terá como comprovar tal circunstância, pois o Tribunal a quo indeferiu os meios probatórios requeridas, nomeadamente o pedido de informações e respetiva documentação aos fornecedores de serviços públicos (Edp, Galp e Epal).
Z. A Recorrente também alegou que o Recorrido pernoita no imóvel, assim como o pai deste e a companheira, a seu bel-prazer,
AA. Contudo, a Recorrente poderá não conseguir comprovar essa situação devido à recusa dos meios probatórios, nomeadamente a notificação da Urbicare, Lda. – gestora do condomínio – para indicar o nome e a morada da atual porteira do imóvel do …, que a Recorrente tem o usufruto, mas não usufrui.
BB. Como já referido, todos estes meios probatórios foram indeferidos com o fundamento de que o Recorrido reconheceu que ocupa o imóvel;
CC. O que é verdade, mas também é verdade que o Recorrido reconheceu a ocupação em termos genéricos e abstratos.
DD. Não tendo especificado quaisquer detalhes,
EE. Não há uma especificação pelo Recorrido sobre desde quando utiliza o imóvel do …, sendo crucial conhecer e comprovar tal período de utilização, sobretudo, se a reconvenção for admitida, em sede de recurso.
FF. Também não há uma especificação pelo Recorrido se utiliza o imóvel do … na sua totalidade, i.e., apartamento e garagem.
GG. Nem tão pouco foi reconhecido pelo Recorrido que a sua utilização impede totalmente a Recorrente de utilizar o imóvel do …, que detém o usufruto.
HH. A prova de tudo isto seria possível se os requerimentos probatórios da Recorrente, nos pontos A), B) e C) fossem admitidos, o que não sucedeu!
II. Repare-se que, durante a audiência de julgamento as alegações genéricas e abstratas do Recorrido podem ser detalhadas de forma prejudicial à Recorrente.
JJ. Sendo que, nesse momento e posteriormente, a Recorrente não poderá fazer contraprova, pois, os meios probatórios necessários estão na posse de terceiros, que foram indeferidos em sede de audiência prévia.
KK. Como resultado, a Recorrente corre o risco de ver a ação julgada procedente, já que não conseguirá provar cabalmente todas as alegações, nomeadamente a impossibilidade de utilizar o imóvel do ….
LL. Já para não falar que a ser admitida, a reconvenção, poderá ser a mesma julgada improcedente, pois a Recorrente não conseguirá provar que o Recorrido utiliza o imóvel, pelo menos, desde meados de julho de 2020, o que justificaria o valor pedido da reconvenção.
MM. Face ao exposto, a atuação do Tribunal a quo beneficiou processualmente o Recorrido em detrimento da Recorrente, violando, por isso, o princípio da igualdade, a paridade de armas e justa composição do litígio, tudo nos termos dos arts. 4.º e 547.º ambos do CPC e 13º da CRP.
NN. A decisão do Tribunal a quo constituiu um erro manifesto na aplicação da lei, contrariando o disposto no art.º 432.º do CPC, ao indeferir os meios probatórios requeridos pela Recorrente, nos pontos A), B) e C) da sua contestação-reconvenção.
OO. Assim o douto despacho recorrido violou não só o art.º 432.º do CPC, mas também princípios fundamentais como o da igualdade (art.º 4.º), a paridade de armas (art.º 547.º), e a justa composição do litígio (art.º 13.º da CRP). Além disso, foram violados, ainda, os deveres decorrentes do princípio do inquisitório (art.º 6.º) e do dever de cooperação para a descoberta da verdade material (arts. 411.º e 417.º do CPC), essenciais para a boa decisão da causa.
PP. Dessa forma, o recurso deve ser declarado procedente, revogando-se o despacho recorrido e substituindo-o por um Acórdão que, conhecendo do requerimento probatório da Recorrente, ordene o deferimento dos meios probatórios requeridos, nos termos constantes dos pontos A), B) e C) do requerimento probatório da Recorrente, junto com a contestação-reconvenção.”
O autor/reconvindo contra-alegou, pugnando pela manutenção das decisões apeladas.
2. Objeto das apelações
Conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do Código de Processo Civil[1], é pelas conclusões da alegação dos recorrentes que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[2]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art.º 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, a este Tribunal está vedado apreciar questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[3].
No caso em análise, considerando o teor das alegações de recurso apresentadas pela apelante, verifica-se que as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
a) A nulidade do despacho saneador-sentença, na parte em que rejeitou a reconvenção, por constituir uma decisão-surpresa;
b) A admissibilidade da reconvenção;
c) A pertinência e utilidade das diligências de prova requeridas pela ré e rejeitadas pelo Tribunal a quo.
3. Fundamentação
3.1. Os factos
Os factos a considerar são os vertidos no relatório que antecede.
3.2. Os factos e o Direito
3.2.1. Da nulidade do despacho saneador por constituir uma decisão surpresa
Invocando o disposto no art.º 195º do CPC sustentou a apelante que o despacho saneador-sentença é nulo, por ter rejeitado a reconvenção com fundamento na ilegitimidade ativa, sem que as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciarem sobre a matéria.
Vejamos então.
Estabelece o art.º 266º, nº 1 do CPC que “o réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor”.
Como ensina ANTUNES VARELA[4], pronunciando-se sobre correspondente preceito do CPC de 1961, “Na reconvenção, há um pedido autónomo formulado pelo réu contra o autor. Há uma contrapretensão (Gegenanspruch) do réu, do réu, há um verdadeiro contra-ataque desferido pelo reconvinte contra o reconvindo. Passa a haver assim uma nova acção dentro do mesmo processo. O pedido reconvencional é autónomo, na medida em que transcende a simples improcedência da pretensão do autor e os corolários dela decorrentes.”
A admissibilidade da reconvenção depende da verificação de requisitos substantivos e processuais, explicitados nos nºs 2 a 5 do mesmo art.º 266º do CPC.
A questão reside em determinar se o Tribunal pode rejeitar a reconvenção, com fundamento na sua inadmissibilidade, sem que as partes se tenham pronunciado sobre a questão.
Nos termos do art.º 3º, nº 3 do CPC “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
Trata-se da consagração expressa do princípio do contraditório na vertente da proibição da prolação de decisões surpresa, garantindo aquele preceito às partes a sua efetiva intervenção no desenvolvimento de todo o litígio, sob pena de nulidade da decisão que o não respeite: é o que se chama de contraditório dinâmico.
Como bem se aponta no ac. STJ 17-06-2014 (Mª Clara Sottomayor), p. 233/2000.C2.S1, “deve esclarecer-se, (…), que se tem entendido que o art.º 3.º do CPC não introduz no nosso sistema o instituto da proibição de decisões surpresa tal como foi configurado na Alemanha, país donde dimanou e tem longo historial, verificando-se importantes diferenças de regime entre o Código de Processo Civil português e o alemão.
O direito ao contraditório (Rechtliches Gehör), no direito alemão constitui um direito fundamental, baseado na dignidade da personalidade humana, e está consagrado no artigo 103.º, I, da Constituição Alemã, onde se afirma: «Perante o tribunal todos têm direito a ser ouvidos».
Este princípio constitucional tem seguimento nos §§139, n.º 2 e 278, n.º 3 da Zivilprozessordnung (Código de Processo Civil alemão), deles resultando que o legislador germânico confere ao direito ao contraditório uma dimensão que vai muito para além do que comporta, mesmo em interpretação extensiva, a lei portuguesa, até porque entre nós não existe preceito correspondente ao §139 da ZPO (cf. acórdão deste Supremo Tribunal, de 04-06-2009, processo n.º 09B0523, relatado pelo Conselheiro João Bernardo).
A doutrina aceita, contudo, o princípio da proibição das decisões surpresa, enquanto proibição de decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes, entendendo que esta vertente do direito ao contraditório tem fundamentalmente aplicação às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado. Neste sentido, antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem, seja qual for a fase do processo em que tal ocorra.”
Por seu turno, diz LEBRE DE FREITAS[5]:
“Por princípio do contraditório entendia-se tradicionalmente a imposição de que; a) formulado um pedido ou tomada uma posição poi uma parte devia à outra ser dada oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão; b) oferecida uma prova por uma parte, a parte contrária devia ser chamada a controlá-la e ambas sobre ela tinham o direito de se pronunciar. Assim se garantia o desenvolvimento do processo em discussão dialética, com as vantagens decorras da fiscalização recíproca das afirmações e provas feitas pelas partes.
A esta conceção, válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do rechtliches gehör germânico, entendida como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os  elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa. no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo.”
Sobre esta matéria da proibição das decisões-surpresa, e em  comentário ao ac. STJ 02-06-2020 (Lima Gonçalves), p. 496/13.0TVLSB.L1.S1, sustentou MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA:[6]
 “O CPC trata das nulidades processuais nos art.ºs 186.º a 202.º e das nulidades da sentença e do acórdão nos art.ºs 615.º, 666.º e 685.º. Perante isto, pode colocar-se a questão: por que motivo têm tratamento em diferentes lugares do CPC as nulidades processuais e as nulidades da sentença? Ou noutra formulação: dado que a sentença é um acto processual, qual o motivo para que a nulidade da sentença não esteja tratada em conjunto com as nulidades processuais? Ou noutra formulação ainda mais precisa: constando do art.º 195.º CPC uma regra geral sobre a nulidade dos actos, qual a justificação para que exista uma regulamentação específica sobre a nulidade da sentença?
A resposta tem a ver com a dupla perspectiva pela qual a sentença pode ser considerada (assim como qualquer outro acto processual) e é a seguinte: a sentença pode ser vista como trâmite ou como acto: no primeiro caso, atende-se à sentença no quadro da tramitação da causa; no segundo, considera-se o conteúdo admissível ou necessário da sentença.
Disto decorre que uma sentença pode constituir uma nulidade processual, se for considerada na perspectiva da sentença como trâmite: basta, por exemplo, que ela seja proferida fora do momento apropriado na tramitação processual. Um exemplo (naturalmente académico): se, no procedimento comum, o juiz proferir uma decisão logo a seguir ao termo da fase dos articulados, verifica-se uma nulidade processual nos termos do art.º 195.º, n.º 1, CPC, porque foi praticado um acto que a lei, naquele momento, não permite.
Importa notar, no entanto, que, atendendo à diferença da sentença como trâmite e como acto, a nulidade processual do art.º 195.º CPC nada tem a ver com a nulidade da sentença dos art.ºs 615.º, 666.º e 685.º CPC. É fácil verificar que assim é.
A nulidade processual decorrente do disposto no art.º 195.º, n.º 1, CPC existe mesmo que a sentença não padeça de nenhum outro vício, nomeadamente daqueles que estão enumerados no art.º 615.º CPC. Quer dizer: a sentença pode conter toda a fundamentação exigível, pode não padecer de nenhuma contradição entre os fundamentos e a decisão, pode não conter nenhuma omissão ou nenhum excesso de pronúncia e pode não condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, mas, ainda assim, porque é proferida fora do momento adequado, verifica-se a nulidade processual imposta pelo art.º 195.º, n.º 1, CPC.
Voltando ao exemplo (académico) acima referido: o proferimento da sentença logo depois da fase dos articulados constitui uma nulidade processual; no entanto, essa sentença pode não padecer de nenhum dos fundamentos de nulidade enumerados no art.º 615.º, n.º 1, CPC.
O inverso também é possível (e é, aliás, a situação mais frequente): se a sentença é proferida no momento processualmente adequado, mas se a mesma não contém toda a fundamentação exigível, padece de uma contradição entre os fundamentos e a decisão, contém uma omissão ou um excesso de pronúncia ou condena em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, não há nenhuma nulidade processual nos termos do art.º 195.º, n.º 1, CPC, embora se trate de sentença que é nula segundo o disposto nos art.ºs 615.º, n.º 1, 666.º e 685.º CPC.
Assente esta distinção básica entre a sentença considerada como trâmite e a sentença considerada como acto, importa tratar agora do problema relacionado com as decisões-surpresa e com a sua correcta solução jurídica. A questão a resolver é a seguinte: uma decisão-surpresa é uma nulidade processual nos termos do art.º 195.º, n.º 1, CPC ou uma nulidade da sentença de acordo com o estabelecido nos art.ºs 615.º, 666.º e 685.º CPC?
Segundo se pode imaginar, as dificuldades sentidas pela jurisprudência decorrem da circunstância de a decisão-surpresa resultar da omissão da audição prévia das partes e de, portanto, parecer que a ela está subjacente uma nulidade processual nos termos do art.º 195.º, n.º 1, CPC. Há aqui, no entanto, uma confusão que importa procurar desfazer.
A audição prévia das partes é um pressuposto ou uma condição para que a decisão não seja considerada uma decisão-surpresa. Quer dizer: a decisão-surpresa é um vício único e próprio: a decisão é uma decisão-surpresa quando tenha sido omitida a audição prévia das partes. Noutros termos: há um vício (que é a decisão-surpresa), e não dois vícios independentes (a omissão da audiência prévia das partes e a decisão-surpresa).
Em concreto: há um vício processual que é consequência da omissão de um acto. Se assim é, claro que o que há que considerar é o vício em si mesmo (a decisão-surpresa), e não separadamente a causa do vício e o vício. Em parte alguma do direito processual ou do direito substantivo se considera a causa do vício e o vício como duas realidades distintas. A única distinção que é possível fazer é ontológica: é a distinção entre a causa e a consequência.
Dado que a decisão-surpresa corresponde a um único vício e porque este nada tem a ver com a decisão como trâmite, o vício de que padece a decisão-surpresa só pode ser um vício que respeita à decisão como acto. Em concreto, a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art.º 615.º, n.º 1, al. d), CPC), dado que se pronúncia sobre uma questão sobre a qual, sem a audição prévia das partes, não se pode pronunciar.
Note-se que, como se tem vindo a repetir neste Blog, esta solução é a única que é compatível com a impugnação da decisão-surpresa através de recurso e com o objecto do recurso. O objecto do recurso é sempre uma decisão, pelo que, se houvesse uma nulidade processual, a mesma não poderia constituir objecto de recurso e teria de ser reclamada no tribunal a quo.[…]
Uma última observação: é preciso ler com muito cuidado toda e qualquer doutrina e toda e qualquer jurisprudência que se tenha pronunciado sobre o problema antes de ter surgido no panorama legislativo português a temática da decisão-surpresa.
Efectivamente, não se pode dizer que já antes não houvesse casos que, agora, seriam enquadráveis na decisão-surpresa. O que faltava na altura era a visão de que a decisão-surpresa constitui, em si mesma, um vício processual autónomo e próprio.”
Deste breve excurso decorre, pois, que a inobservância do princípio do contraditório subjacente à prolação de uma decisão surpresa pode ser enquadrada de dois modos diversos:
- como nulidade processual (secundária), nos termos previstos no art.º 195º, nº 1 do CPC – vd., entre outros, os acs. RP 27-01-2015 (M. Pinto dos Santos), p. 1378/14.4TBMAI.P1; RG 19-04-2018 (Eugénia Cunha), p. 533/04.0TMBRG-K.G1; RP 02-12-2019 (Eugénia Cunha), p. 14227/19.8T8PRT.P1; e STJ 13-01-2005 (Araújo de Barros), p. 04B4031;
ou
- como nulidade da sentença, decorrente de excesso de pronúncia, nos termos previstos no art.º 615º, nº 1, al. d) do mesmo código – vd. acs.; STJ 13-10-2020 (António Magalhães), p. 392/14.4.T8CHV-A.G1.S1, e STJ 16-12-2021 (Luís Espírito Santo, p. 4260/15.4T8FNC-E.L1.S1
Contudo, alguma jurisprudência vem salientando que a preterição do direito ao contraditório seguida da prolação de sentença pode configurar simultaneamente uma nulidade processual, e uma nulidade da sentença, por excesso de pronúncia – vd., entre outros os acs. RP 15-12-2021 (Isoleta Almeida Costa), p. 2577/20.5T8AGD-A.P1; bem como o ac. STJ 23-06-2016 (Abrantes Geraldes), p. 1937/15.8T8BCL.S1.
Cremos, porém, que a qualificação de tais situações como concurso das duas nulidades, com eventual conjugação dos respetivos regimes permite alcançar respostas satisfatórias àquelas interrogações, respeitando a letra e espírito dos preceitos que regulam as duas figuras.
Assim sendo, entendemos que se poderá falar em concurso dos dois vícios nas situações em que a primeira nulidade por omissão de uma formalidade legal anterior à prolação da sentença não deva considerar-se sanada por falta de invocação atempada.
Tal sucederá em todas as situações em que tal nulidade apenas se revela com a prolação da sentença.
Este regime é aplicável à generalidade dos despachos que não sejam de qualificar como de mero expediente, ex vi do art.º 613º, nº 3, 2ª parte, do CPC.
No caso vertente, está em causa a decisão inserta no despacho saneador, que rejeitou a reconvenção, porquanto a mesma se estribaria em factos praticados por uma sociedade comercial, e não pelo autor. Tal significa que o fundamento da rejeição da reconvenção radica na ilegitimidade passiva do autor, na medida em que este estaria carecido de interesse em contradizer o pedido reconvencional.
Com efeito, embora sem definir cabalmente o conceito de legitimidade processual, o art.º 30º do CPC reporta-o ao interesse em demandar ou contradizer.
E, no nº 2 do mesmo preceito esclarece-se que o interesse em demandar se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação, enquanto que o interesse em contradizer se exprime pelo prejuízo que dela advenha.
Estas regras aplicam-se quer às situações de legitimidade singular, quer às situações de legitimidade plural, ou seja, aos casos de litisconsórcio e coligação (vd. arts. 32º a 36º do CPC).
Finalmente, e de acordo com o nº 3 do mesmo art.º 30º do CPC, o critério supletivo para aferição da titularidade do interesse relevante para o efeito da legitimidade é o da titularidade da relação material controvertida tal como o autor a configura.
Mantém-se por isso atual a definição doutrinária de legitimidade processual proposta por CASTRO MENDES[7]: “A legitimidade é uma posição de autor e réu, em relação ao objecto do processo, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu, ocupar-se em juízo desse objecto do processo.”
Em sentido semelhante sustenta PAULO PIMENTA[8] que “a legitimidade consiste numa relação concreta da parte perante uma causa. Por isso a legitimidade não é uma qualidade pessoal, antes uma qualidade posicional da parte face à acção, ao litígio que aí se discute”.
Do mesmo modo, dizem RITA LOBO XAVIER, INÊS FOLHADELA, E GONÇALO ANDRADE E CASTRO[9] que “ser parte legítima é ter uma relação direta com o objeto do litígio”.
Finalmente, esclarecem ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, E LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA[10] que “o autor é parte legítima se, atenta a relação jurídica que invoca, surgir nela como sujeito suscetível de beneficiar diretamente do efeito jurídico pretendido; já o réu terá legitimidade passiva ser for diretamente prejudicado com a procedência da ação. A exigência de um “interesse” emergente da pronúncia judicial, reconduz-nos a um interesse direto e indica que é irrelevante para o efeito um mero interesse indireto, reflexo, ou mediato, ou ainda um interesse diletante ou de ordem moral ou académica”.
Não obstante, os mesmos autores advertem para a circunstância de que “casos há (…) em que é a própria lei que identifica o detentor da legitimidade ativa ou passiva, prevalecendo tal indicação sobre a eventual alegação do autor em sentido inverso (…)”.
No caso em apreço e na ótica do Tribunal a quo, estaria precisamente em causa a ilegitimidade passiva por considerar que não seria o autor, mas antes uma sociedade comercial, quem vem praticando os factos que sustentam o pedido reconvencional, a saber, os atos de ocupação indevida da fração autónoma sita no ….
Ora, como bem se apontou no ac. STJ 30-03-2017 (Abrantes Geraldes), p. 6617/07.5TBCSC.L1.S2, «O art.º 266º do NCPC (art.º 274º do anterior CPC), a respeito dos requisitos formais e substanciais da reconvenção, prescreve a sua “inadmissibilidade” que não é mais do que uma forma de extinção da instância reconvencional equiparada à absolvição da instância. O mesmo se verifica quando, como prescreve o art.º 583º, nº 2, do NCPC, o reconvinte se abstém de indicar o valor da reconvenção, em que a respectiva instância finda por verificação do seu “não atendimento”. Ou ainda quando, nos termos do art.º 41º do NCPC, é declarada a “ineficácia da defesa” (na qual pode incluir-se a reconvenção) por falta de superação do pressuposto do patrocínio judiciário.»
Daqui decorre que a não admissão da reconvenção, com fundamento na falta de verificação dos pressupostos previstos no art.º 266º, nº 2 do CPC, configura uma situação de absolvição do autor da instância (reconvencional). Esta conclusão é, aliás reforçada pela circunstância de o nº 5 do mesmo preceito se referir expressamente a absolvição da instância (reconvencional).
Aqui chegados impõe-se concluir que, no caso vertente, ao absolver o autor da instância reconvencional com fundamento na ilegitimidade passiva sem, previamente, ter dado às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão, o Tribunal a quo proferiu uma decisão-surpresa, o que configura uma nulidade simultaneamente do processo (art.º 195º, nº 1 do CPC) e daquela decisão (art.º 615º, nº 1 al. d) do mesmo Código).
Em consequência, deve a decisão apelada ser anulada.
Aqui chegados, cumpre determinar as consequências da anulação da decisão apelada, sendo certo que duas possibilidades se descortinam: a substituição do Tribunal a quo pelo Tribunal da Relação, nos termos previstos no art.º 665º do CPC, passando este Tribunal a apreciar a admissibilidade da reconvenção, e, caso conclua pela sua admissão, a pronunciar-se sobre os meios de prova rejeitados; ou a mera anulação daquela decisão, bem como dos atos subsequentes, devendo o Tribunal a quo convidar as partes a exercer o direito ao contraditório, e de seguida proferir nova decisão, isto nos termos do disposto no art.º 195º, nº 2 do CPC.
Refletindo acerca desta questão referiu o ac. RL 09-05-2024 (Arlindo Crua), p. 16858/22.0T8SNT-A.L1-2:
 «Relativamente às consequências extraíveis do reconhecimento de tal nulidade, temos defendido a posição de que, prima facie, tal determinaria, na presente fase, decisão a determinar (nesta instância de recurso, ou com prévia baixa dos autos à 1ª instância)dar efectivo conhecimento às partes do pretendido enquadramento jurídico, suscitando a sua intervenção e pronúncia, nos termos e para os efeitos do prescrito no nº. 3, do art.º 3º, do Cód. de Processo Civil, fixando prazo em conformidade.
Todavia, nas situações em que as partes, no enformar do objecto recursório, em sede de alegações e contra-alegações, já emitiram pronúncia acerca de tal matéria, ou seja, já enunciaram os fundamentos argumentativos tradutores da sua posição relativamente ao enquadramento jurídico efectuado – in casu, a verificação da excepção dilatória de falta de título executivo -, temos concluído no sentido de resultar que o exercício do aludido contraditório já se mostra assegurado através das alegações, e sua resposta, apresentadas, não se justificando a emissão de comando determinante da concessão de nova pronúncia.
E, assim sendo assegurado aquele exercício e a pronúncia das partes, concluiríamos pela aplicabilidade da regra da substituição, nos termos do nº. 1, do art.º 665º, do Cód. de Processo Civil, surgindo igualmente injustificada a necessidade de se proceder à prévia audição inscrita no nº. 3 do mesmo normativo, a qual sempre se configuraria, neste enquadramento, como a prática de acto inútil e, como tal, legalmente ilícito – cf., art.º 130º, do Cód. de Processo Civil.
Acrescente-se que, a entender-se que estaríamos perante efectiva causa de nulidade da sentença, por verificação de excesso de pronúncia, pelo facto do Tribunal recorrido ter conhecido de questão – não dispor a Exequente título válido e eficaz – de que, pela forma como se efectivou, não podia tomar conhecimento, os efeitos práticos em equação não seriam diferenciados. Com efeito, tal sempre determinaria reconhecimento de nulidade da sentença, com consequente eventual juízo de substituição – igualmente nos quadros do mesmo art.º 665º, do Cód. de Processo Civil -, no conhecimento da (im)pertinência do juízo que reconheceu a aludida excepção dilatória, conducente à absolvição do Executado da instância executiva.»
Esta abertura a soluções de compromisso, que admitam que a omissão do contraditório possa ser suprida no âmbito de subsequente recurso de apelação tem, contudo, merecido reservas.
Com efeito, como sublinhou o ac. RL 26-09-2023 (Diogo Ravara), p. 7165/22.9T8LSB.L1-7, relatado pelo ora relator, «nos casos de violação do p. do contraditório não se coloca a questão do o Tribunal da Relação se substituir ao Tribunal a quo, nos termos previstos no art.º 665º do CPC, visto que a anulação dos efeitos de uma decisão surpresa pressupõe que todas as partes se possam vir a pronunciar sobre a questão, antes de a mesma ser apreciada.
Nesta conformidade, cumpre anular a decisão apelada, e anular a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra na qual o Tribunal a quo exponha a sua posição relativamente à eventual (i)legitimidade ativa, e determine o convite do exequente e dos executados para, querendo, se pronunciarem sobre a questão, após o que deve ser proferida nova decisão sobre a matéria”.
E, em sentido idêntico se manifestou o ac. RP 05-02-2024 (José Eusébio Almeida), p. 489/22.7T8VCD-A.P1, sustentando que “esta nulidade, no entanto, não implica, nem justifica, a substituição ao tribunal recorrido. Com efeito, o disposto no artigo 665, n.º 1 do CPC só tem cabimento nos casos de nulidade (de sentença/despacho) pelos fundamentos constantes do artigo 615 do mesmo diploma legal. Diversamente, no caso em apreço, a violação das normas processuais que impõem o contraditório, tornando a decisão ilegal, determinam a revogação e substituição desta pela determinação do cumprimento do procedimento omitido, com prejuízo dos demais atos incompatíveis praticados em primeira instância”.
Continuamos a rever-nos inteiramente no último entendimento exposto.
Para nós, se a omissão do contraditório que inquina a decisão-surpresa decorre da falta de audição das partes no momento adequado, e este deve anteceder a prolação da decisão, então a consequência da anulação da decisão implica necessariamente que o processo seja retomado no ponto em que o contraditório foi emitido.
Como bem refere o já citado ac. STJ 16-12-2021, “O respeito pelo princípio do contraditório, genericamente consagrado no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, não depende de um juízo subjectivo do juiz quanto à necessidade, segundo o seu entendimento pessoal, de ouvir ou não ouvir as partes, aquilatando se elas ainda têm algo a dizer-lhe que ache relevante para o que há a decidir, mas é, bem pelo contrário, substantivamente assegurado pela imposição do dever processual, que especialmente lhe incumbe, de garantir às partes o direito (que lhes assiste) de dizer aquilo que, no momento processualmente adequado (definido previamente pela lei), ainda entenderem ser, do seu ponto de vista, relevante” (sublinhado nosso).
Acresce também que só esta solução permite que os argumentos de ambas as partes sejam não apenas ponderados pelo Tribunal a quo, como, se as partes assim o entenderem, reponderados pelo Tribunal da Relação, evitando-se assim a supressão de um grau de jurisdição que necessariamente resultaria da aplicação do mecanismo de substituição do Tribunal a quo pelo Tribunal da Relação, consagrado no art.º 665º do CPC.
Nesta conformidade, cumpre anular o despacho saneador apelado, devendo realizar-se nova audiência prévia, na qual as partes tenham a possibilidade de se pronunciar sobre a questão da legitimidade passiva reportada à instância reconvencional (nos termos previstos no art.º 591º, nº 1, al. b) do CPC), após o que deverá ser proferido novo despacho saneador, seguido dos atos subsequentes (identificação do objeto do litígio, enunciação dos temas de prova, pronúncia sobre meios de prova, etc.).
3.2.2. Da admissibilidade da reconvenção
Face ao supra decidido, fica prejudicada a apreciação desta questão (art.º 608º, nº 2 do CPC, aplicável ex vi do art.º 663º, nº 2 do mesmo código)
3.2.3. Da pertinência e utilidade das diligências de prova requeridas pela ré/reconvinte e rejeitadas pelo Tribunal a quo
A procedência da apelação que incidiu sobre o despacho saneador implica a anulação deste e de todos os atos subsequentes, incluindo o despacho que se pronunciou sobre meios de prova. Nesta conformidade, a apelação que incidia sobre este despacho ficou sem objeto, pelo que a sua apreciação resulta prejudicada (art.º 608º, nº 2 do CPC, aplicável ex vi do art.º 663º, nº 2 do mesmo código).
3.2.4. Das custas
Nos termos do disposto no art.º 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
A interpretação desta disposição legal, no contexto dos recursos, deve atender ao elemento sistemático da interpretação.
Com efeito, o conceito de custas comporta um sentido amplo e um sentido restrito.
No sentido amplo, as custas tal conceito inclui a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cf. arts. 529º, nº1, do CPC e 3º, nº1, do RCP).
Já em sentido restrito, as custas são sinónimo de taxa de justiça, sendo esta devida pelo impulso do processo, seja em que instância for (arts. 529º, nº 2 e 642º, do CPC e 1º, nº 1, e 6º, nºs 2, 5 e 6 do RCP).
O pagamento da taxa de justiça não se correlaciona com o decaimento da parte, mas sim com o impulso do processo (vd. arts. 529º, nº 2, e 530º, nº 1, do CPC). Por isso é devido quer na 1ª instância, quer na Relação, quer no STJ.
Assim sendo, a condenação em custas a que se reportam os arts. 527º, 607º, nº 6, e 663º, nº 2, do CPC, só respeita aos encargos, quando devidos (arts. 532º do CPC e 16º, 20º e 24º, nº 2, do RCP), e às custas de parte (arts. 533º do CPC e 25º e 26º do RCP).
Tecidas estas considerações, resta aplicar o preceito supracitado.
E fazendo-o diremos que no caso em apreço, tendo o apelado pugnado pela improcedência de ambas as apelações, deve o mesmo considerar-se vencido e, consequentemente, suportar as inerentes custas, na modalidade de custas de parte.
4. Decisão
Pelo exposto, acorda-se em:
a) Julgar a apelação interposta do despacho saneador procedente, julgando este último nulo, devendo realizar-se nova audiência prévia, na qual as partes tenham a possibilidade de se pronunciar sobre a questão da exceção de ilegitimidade passiva reportada à instância reconvencional, após o que deverá ser proferido novo despacho saneador, seguido dos atos subsequentes (identificação do objeto do litígio, enunciação dos temas de prova, pronúncia sobre meios de prova, etc.).
b) Considerar prejudicada a apreciação da apelação interposta do despacho que apreciou os requerimentos de prova.
Custas, em ambas as apelações, pelo apelado.

Lisboa, 08 de outubro de 2024
Diogo Ravara
José Capacete
Ana Mónica Mendonça Pavão

_______________________________________________________
[1] Aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26-06, e adiante designado pela sigla “CPC”.
[2]  Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-116.
[3] Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 116.
[4] “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 2ª Ed., 1985, p. 323.
[5] Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil – Conceito e princípios gerais à luz do novo código”, 4.ª Edição, Gestlegal, 2017, pp. 126-127.
[6] “Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária” in Blog do IPPC, disponível no seguinte endereço:
https://blogippc.blogspot.com/2020/09/nulidades-do-processo-e-nulidades-da.html
[7] “Direito processual civil”, II vol., AAFDL, 1987, p. 187.
[8] “Processo Civil declarativo”, 2ª ed., Almedina, 2018, p. 75.
[9] “Elementos de direito processual civil – Teoria geral – Princípios – Pressupostos”, Universidade Católica Portuguesa Editora – Porto, 2014, p. 164
[10] “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, Almedina, 2018, p. .