ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA
ÓNUS PROBATÓRIO
PEDIDO RECONVENCIONAL
ADMISSIBILIDADE
Sumário

I. Nas ações de simples apreciação negativa o ónus probatório é, assim, repartido: i) o autor justifica na petição a necessidade de recurso à via judicial com base na arrogância extrajudicial do réu; ii) o réu deverá demonstrar os factos constitutivos do direito que se arroga e iii) feita essa prova, cabe ao autor demonstrar a existência de factos impeditivos ou extintivos do direito do réu.
II. A maioria da jurisprudência vem entendendo que, na ação de simples apreciação negativa, a formulação de pedido reconvencional é dispensável por ser redundante.
III. Todavia, não se acompanha essa jurisprudência, entendendo-se que é de admitir a formulação de pedido reconvencional porquanto:  numa ação de simples apreciação negativa, a contestação pode ter um âmbito mais restrito visando, apenas, a improcedência da ação ou, pelo contrário, um âmbito mais abrangente visando também o reconhecimento definitivo do direito a que o réu se arroga; o tribunal não pode declarar a existência de um direito sem que seja formulado pedido expresso nesse sentido (principio do pedido; artigo 3º, nº1, do Código de Processo Civil ); o tribunal não pode condenar em objeto diverso do pedido (Artigo 609º, nº1, do Código de Processo Civil ); a atribuição do ónus da prova ao réu  não vale como uma reconvenção “oculta”; uma decisão de improcedência vale apenas como decisão negativa, não podendo ser convolada numa decisão positiva, ou seja, uma decisão de improcedência contra uma parte não pode transformar-se numa decisão de procedência a favor de outra parte.

(Sumário da responsabilidade do Relator)

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de (...):

RELATÓRIO
BB intenta ação de simples apreciação negativa contra DD, FF, GG e HH, formulando os seguintes pedidos:
1 – Ser declarada a nulidade da escritura de justificação notarial outorgada pelas duas primeiras Rés em doze de Março de dois mil e vinte e um.
2 – Ordenar-se o cancelamento do registo de aquisição do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o número (...), obtido em virtude do título declarado nulo e a que correspondeu a AP. 4863 de 11.02.2022.
3 – Ordenar-se o cancelamento do registo de aquisição por doação a favor do terceiro e da quarta Ré e a que correspondeu a Ap. 2880 de 14.11.2022.
4 – Ordenar-se o cancelamento da inscrição matricial em nome dos Réus junto dos Serviços de Finanças competentes.
Fundamentando tais pretensões, alega a Autora que herdou dos pais duas casas abarracadas com os nºs 6A e 7, que faziam parte do prédio urbano sito na Travessa (...), sendo que, quando a autora foi diligenciar pelo registo em nome da herança deixadas por óbito dos pais, foi confrontada com o registo da propriedade, em comum e sem determinação de parte, em nome das duas primeiras rés, cuja causa de aquisição foi usucapião declarada em escritura pública de justificação de 12.3.2021.
Nessa escritura foram outorgantes DD, FF (1ªs outorgantes), JJ, KK e LL (2ºs outorgantes), declarando os primeiros outorgantes:
«Que, em comum e sem determinação de parte ou direito são donos e legítimos possuidores com exclusão de outrem, do seguinte prédio: Urbano: Casa de um piso, cora a área coberta de noventa e dois virgula zero três metros quadrados, sito na Travessa (...) e (...), números 6-A e 7, denominado “Casa T, freguesia de (...), concelho de (...), inscrito na matriz sob o artigo (...) (proveio do artigo 165 de (...), pela reorganização administrativa que resultou por sua vez do artigo 156 da freguesia de (...) por desdobramento de freguesias e que este teve origem no artigo 499 da freguesia de (...)), com o valor patrimonial tributário e atribuído de setenta e dois mil setecentos e oitenta euro;- a desanexar do descrito na Conservatória de Registo Predial de (...) sob o número (...)/(...), inscrito em favor de MM pela inscrição Ap, 1/19440329.
E ACRESCENTARAM;
Que, são os únicos herdeiros devidamente habilitados por escritura pública de vinte e três de Junho de dois mil e oito, iniciada a folhas quatro do livro de notas para escrituras diversas duzentos e quarenta e três, do Cartório Notarial de (...), a cargo da Lic. (...) por morte de sua ascendente, NN, (…), ocorrida no dia doze de Setembro de dois mil e sete, no estado de viúva, desde catorze de Maio de mil novecentos e setenta e seis, e que foi casada no regime da comunhão de adquiridos com PP.       Que, a sua referida e finada ascendente adquiriu o identificado prédio em meados do ano de mil novecentos e noventa e sete, por dação em cumprimento acordada de forma verbal e nunca formalizada por escritura pública com QQ, com última residência conhecida na Rua (…), 2-3D, (...).         
Que, a dação em cumprimento foi ajustada como pagamento do valor indemnizatório reclamado e que a dita QQ estava obrigada a pagar à falecida NN, decorrente dos prejuízos causados com o abatimento do telhado comum do prédio retro melhor identificado no telhado e parede da casa número oito contígua e pertença da sua falecida ascendente.
Que, por sua vez e quanto foi possível e apurar o prédio veio à posse da dita QQ por doação verbal efetuada em meados da década de mil novecentos e setenta por JCF, que havia adquirido o prédio à titular inscrita nos idos anos da década de mil novecentos e sessenta.
Que, muito embora e apesar das insistentes diligências efetuadas não lograram até ao momento localizar quaisquer títulos translativos válidos das anteditas transmissões.
Todavia, em consequência da predita dação em cumprimento, a sua finada mãe, NN, entrou de imediato na posse e fruição do prédio desde aquele ano de mil novecentos e noventa e sete, em nome próprio, à vista e com o conhecimento de todos e mandou retirar os escombros que ameaçavam desabar sobre quem passava na frente das ruínas. Que, desde então e até à sua morte no mês de Setembro de dois mil e sete, a finada NN sempre cuidou daquelas habitações de igual forma procedendo com assiduidade à sua limpeza, mandando limpar e desmatar os quintais, bem como mandou proceder à reparação e realização de pequenas obras que permitiram garantir a salubridade do prédio, reforço das suas estruturas e a limpeza do mesmo.
Que, por morte da sua referida ascendente aqueles atos passaram a ser praticados regularmente pelas primeiras outorgantes, únicos sucessores da legítima possuidora do imóvel operando-se, assim, por morte do possuidor ipso jure e automaticamente a transmissão a favor das primeiras outorgantes da posse do prédio com todas as características e para todos os efeitos, que assim, adquirem em comum e sem determinação de parte ou direito o mencionado prédio.            
Que, não obstante a inexistência de um título translativo de propriedade subjacente à dação em cumprimento efetuada pela sua ascendente com a dita QQ, o certo é que desde aquele ano de mil novecentos e noventa e sete, pela autora da herança e por elas, únicos seus sucessores, detêm a posse pacífica, contínua, à vista e com o conhecimento de toda gente do prédio, de boa fé, por ignorar lesar direito alheio e que expressamente vêm invocar para aquisição por usucapião do identificado prédio urbano.                     DISSERAM POR SUA VEZ OS SEGUNDOS OUTORGANTES:
Que, confirmam inteiramente as declarações anteriores por serem exatas e verdadeiras.»
A autora impugna as afirmações vertidas em tal escritura.
Contestando extensamente (duzentos e cinquenta e um artigos…), os Réus sustentaram que: desde 1993, a Autora e a sua mãe nunca se preocuparam com o mau estado em que se encontravam as casas 6-A e 7; esse mau estado levou a que, em 1997, NN se visse obrigada a acordar com os inquilinos da casa nº8 a resolução do contrato de arrendamento; a mesma foi reclamar da mãe da autora o ressarcimento dos danos causados; a mãe da autora afirmou não ter interesse pelas casas 6-A e 7, que não pagaria nenhuma indemnização e que a referida NN fizesse suas as casas, sendo que esta aceitou a dação em cumprimento; a referida NN e os filhos praticaram atos de posse sobre as casas de molde a adquiri-las por usucapião, tendo-se completado o prazo para usucapir em julho de 2012.
Com base na factualidade alegada, os réus deduzem pedido reconvencional e terminam a contestação :
«NESTES TERMOS, E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V. EXA. DOUTAMENTE SUPRIRÁ:
1. Deverá a presente ação ser julgada improcedente, considerando-se provado e existente o direito de propriedade adquirido por usucapião relativamente às casas 6-A e 7, por parte das justificantes, em virtude da transmissão da posse operada em julho de 1997 ou por abandono por parte da Autora e nova posse por parte de NN, a partir de julho de 1997, mantendo-se os registos nos exatos termos em que se encontram em virtude da escritura de justificação notarial outorgada em 12 de março de 2021;
2. E, consequentemente, deverá considerar-se plenamente válida a doação posterior das casas 6-A e 7, efetuada por FF e DD a favor de HH e GG.
3. Deverá a Autora ser condenada como litigante de má-fé, em multa a favor do Estado e em indemnização aos RR. para reembolso das despesas suportadas com a sua mandatária judicial a qual nãodeverá ser inferior ao montante de €10.000,00, acrescido do IVA à taxa legal;
4. Deverá declarar-se que a Autora, pelo menos desde julho de 1997, nunca praticou, relativamente às casas 6-A e 7, quaisquer atos de posse e/ou de propriedade;
5. Deverá ainda reconhecer-se que a Autora age em abuso de direito.»
 A Autora apresentou réplica em que pugna pela inadmissibilidae do pedido reconvencional deduzido pelos réus, mais impugnando
« (…) que a intimação referida nos arts.. 5º e 34º da contestação e doc. n.º 5 junto pelas RR tenha tido por destinatária a Autora ou apenas esta.

Impugna-se que a Autora ou sua mãe alguma vez tenham tido conhecimento das intimações invocadas ao longo dos arts. 11 a 44 da contestação.

Impugna-se, por desconhecer, o vertido nos arts.47 a 49 e, por não corresponder à verdade o vertido nos arts. 50 a 62 da contestação.

Impugna-se, por não ser do seu conhecimento ou, não corresponder à verdade, toda a matéria que não tenha natureza conclusiva vertida nos arts. 63 a 245 da contestação, assim como por não serem da sua autoria ou deles ter conhecimento, se impugnam os documentos juntos com a contestação.»
Em 23.4.2024, foi proferido despacho saneador [impugnado] com o seguinte teor:
«O Tribunal é competente. O processo é o próprio.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias. São legítimas.
*
Os Réus deduziram contestação, na qual peticionam, além do mais, que se reconheça como provado e existente o direito de propriedade adquirido por usucapião, por parte das justificantes, em virtude da transmissão da posse, e, consequentemente, plenamente válida a doação posterior das casas 6-A e 7, efectuada pelas 1ª e 2ª Rés a favor dos 3º e 4º Réus.
Estes pedidos são qualificados pelos Réus como reconvenção (conforme se constata dos artigos 249º a 251º da contestação).
A presente acção é declarativa de simples apreciação, pois que, aqui, a Autora peticiona, apenas, a declaração de que se mantém proprietária do imóvel identificado nos autos, por efeito da pretendida nulidade da escritura de justificação notarial.
É sabido que as acções de simples apreciação visam obter a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto – não exigem, embora também não excluam, a efectiva e actual violação ou lesão do direito.
Já a reconvenção consiste, basicamente, numa acção declarativa – condenatória, constitutiva ou de mera apreciação – proposta através da contestação, pelo réu contra o autor, e que provoca, no caso de ser admissível, uma acumulação, no processo pendente, de acções cruzadas ou sincrónicas – a acção inicial e a acção reconvencional. Sendo o pedido formulado na reconvenção a conclusão lógica dos seus fundamentos, é necessário que tenha autonomia face do pedido do autor constante da petição inicial, em termos tais que, não apenas possa afastar o direito alegado pelo autor, mas, ao invés, possa obter do Tribunal um efeito distinto da mera improcedência do pedido formulado pelo autor, i.e., conter uma pretensão nova, própria e autónoma.
A acção de simples apreciação (positiva ou negativa) destina-se a definir uma situação jurídica tornada incerta. Como tradicionalmente a doutrina e a jurisprudência têm ensinado, não, sendo admissível uma situação de non liquet, opera-se uma autêntica inversão do ónus da prova, pois que, nestas acções, caberá aos demandados provar que o seu direito existe (não é ao demandante que incumbe provar que não existe). Mas, se assim é, dessa tarefa probatória resultará, não só a improcedência da acção de simples apreciação negativa, mas, também, a procedência da pretensão dos réus; sendo que, para isso (aliás, como alega a Autora), não é necessário (e sempre seria inadmissível) a dedução de reconvenção.
Pelo exposto, por falta de fundamento legal, não admito a reconvenção.
Valor da acção: € 80.000,00
*
Inexistem quaisquer outras questões prévias, excepções ou nulidades de que importe nesta fase conhecer.
Consigno, nos termos e para os efeitos dos artigos 547º e 596º, n.º 1 do C.P.C., como:
A. Objecto do litígio
O reconhecimento, a favor da Autora, do seu direito de propriedade sobre o imóvel em questão nos autos, por efeito da declaração de nulidade da escritura de justificação notarial outorgada em 12.03.2021.
*
B. Temas da prova
1. Circunstâncias em que o imóvel foi objecto de dação em cumprimento a favor de NN e, a partir daí, os actos de posse por esta praticados como se o mesmo de bem próprio se tratasse;
2. Factos constitutivos do exercício da posse pelas 1ª e 2ª Rés na qualidade de herdeiras de NN.
3. A litigância de má-fé da Autora.
*
Nos autos a prova documental já junta pelas partes.
Igualmente nos autos os róis de testemunhas, sendo o da Autora aquele organizado por requerimento ref. 48468785 (a notificar) e o dos Réus aquele constante da contestação, com excepção da testemunha prescindida em sede de audiência prévia, também a notificar.
Admito a prova por depoimento de parte da Autora, à matéria da contestação indicada pelos Réus (indeferindo-se o demais requerido nesta sede por falta de fundamento legal – artigo 357º do Código Civil), e por declarações de parte do 2º Réu.»
*
Não se conformando com a decisão, dela apelaram as Rés, formulando, no final das suas alegações, as seguintes
CONCLUSÕES:
1) O presente recurso incide sobre o Despacho Saneador de 23/04/2024, na parte em que decidiu não admitir o pedido reconvencional, bem como sobre as nulidades incorridas por omissão de pronúncia e falta de fundamentação.
2) A Autora/Recorrida intentou a presente ação de simples apreciação negativa, com vista à anulação da escritura notarial de justificação de usucapião, realizada em 12/03/2021 pelas 1.8 e 2.8 Rés, relativamente ao prédio urbano sito na Travessa (…), n.º 5-B e (...), casas n.ºs 6-A e 7, freguesia de (...), em (...), descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º (...) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º (...).
3) Além disso, a Autora/Recorrida peticiona que, em consequência da declaração de nulidade da referida escritura notarial de usucapião, seja declarada nula a escritura pública celebrada posteriormente, a qual teve por objeto a doação do referido imóvel por parte das 1.ª e 2.ª Rés aos 3.º e 4.ª Réus.
4) Em sede de contestação e reconvenção, os RR. pugnaram pela manutenção da plena validade das referidas escrituras públicas, peticionando o reconhecimento da aquisição originária do seu direito de propriedade sobre o imóvel, alegando e demonstrando os atos de posse que ao longo dos anos têm vindo sobre ele a praticar.
5) Além disso, os RR. alegam ainda as circunstâncias em que lhes adveio a posse, afirmando, nomeadamente, que a Autora, em 1997, entregou o imóvel a NN (falecida mãe das 1.ª e 2.ª Rés e avó dos 3.º e 4.ª Réus e então proprietária da casa que era contígua à casa que à data existia no imóvel em causa nos presentes autos), como forma de a ressarcir pelos prejuízos causados à sua habitação pela total degradação e ruína das casas 6A/7 (no mais, e por questões de economia processual, dá-se por reproduzido tudo quanto foi alegado na contestação/reconvenção).
6) Por outro lado, e sem prescindir, os RR. invocaram, quer na contestação quer no pedido reconvencional, pelos factos aí expostos e que aqui se dão por reproduzidos, que a Autora abandonou, pelo menos desde julho de 1997, as referidas casas 6A/7 (cf., a título exemplificativo, os artigos 182, 213, 214, 218, 228 da contestação e artigos 249 e 250 da reconvenção).
7) Por essas razões, os RR. peticionaram, a final:
1. “Que se considere provado e existente o direito de propriedade adquirido por usucapião relativamente às casas 6-A e 7, por parte das justificantes, em virtude da transmissão da posse operada em julho de 1997 ou por abandono por parte da Autora e nova posse por parte de NN, a partir de julho de 1997, mantendo-se os registos nos exatos termos em que se encontram em virtude da escritura de justificação notarial outorgada em 12 de março de 2021;
4. Deverá declarar-se que a Autora, pelo menos desde julho de 1997, nunca praticou, relativamente às casas 6-A e 7, quaisquer atos de posse e/ou de propriedade;
(...)”
8) Ou seja, os RR., em sede reconvencional, peticionaram ao Tribunal que declarasse que a Autora abandonou, pelo menos desde julho de 1997, as referidas casas 6A/7 e nunca, desde então, praticou atos materiais de posse e/ou de propriedade.
9) E, como decorrência do supra descrito (dação em cumprimento e abandono, por parte da Autora), e ainda do facto de os RR., desde 1997, terem vindo regularmente a praticar sobre o imóvel todos os atos materiais de posse necessários, convenientes e possíveis, invocaram o abuso de direito da Autora na presente lide, uma vez que, para além de esta bem saber ter dado o imóvel em cumprimento, desde aqueles tempos nunca manifestou o que quer que fosse relativamente à posse dos RR., a qual sempre foi, e é, pública e pacífica.
10) Ora, em face do exposto, é manifesto que o resultado da procedência dos pedidos dos RR., em sede reconvencional, não é idêntico – pelo menos na parte do abandono e abuso de direito da Autora – ao efeito que teria a decisão de improcedência da ação de simples apreciação negativa que tem por fim a declaração das escrituras notariais de usucapião e doação.
11) Num caso hipotético, mas processualmente possível, poderia dar-se o caso de o Tribunal não reconhecer aos RR. a aquisição do direito de propriedade por usucapião, mas declarar, simultaneamente, que a Autora havia perdido a posse do imóvel, por abandono, em 1997.
Além disso,
12) A Autora baseia a sua pretensa legitimidade processual numa alegada escritura de compra e venda celebrada em 1951, através da qual o seu pai, JCF, terá adquirido as casas 6A/7, em causa nos presentes autos, a TT (cf. doc. 1 junto com a PI).
13) Todavia, como a própria Autora reconhece, o imóvel em causa encontrava-se inscrito, desde 1944, a favor de MM (cf. doc. 4 junto com a PI), pelo que se desconhece, e por isso impugnou, se tal escritura é verdadeira, e sendo-o, a validade de tal escritura, uma vez que não é possível saber com a necessária certeza jurídica, se a referida TT vendeu coisa alheia ou se, por sua vez, o pai da Autora, após a alegada aquisição, não transmitiu a outrem o imóvel em causa.
14) Tudo isto porque inexiste qualquer trato sucessivo que demonstre que o imóvel integra o património hereditário dos pais da Autora.
 15) Ora, se os RR. e NN, sua ascendente, reconheceram, à data de julho de 1997, por força dos costumes e das informações e relações de vizinhança, legitimidade à Autora para a dação em cumprimento que realizou, tal não se torna tão certo, à luz do que se sabe hoje, face aos factos alegados pela própria Autora na sua PI.
16) Efetivamente, considerando que não existe trato sucessivo que favoreça Autora, e que a mesma, e a sua mãe, assumiram uma posição de total alheamento do imóvel, e se daí se concluir que Autora não dispunha, à data, de propriedade ou posse que pudesse transmitir, então resta aos RR., subsidiariamente como se referiu na contestação (cf. artigo 213 da contestação e no pedido), a verificação do instituto previsto na al. a) do artigo 1263.º do Código Civil.
17) No entendimento dos RR., e ao contrário do afirmado no Despacho Saneador de que ora se recorre, a admissão da reconvenção apresentada em nada prejudica a inadmissibilidade de uma situação de non liquet.
18) A Autora não alega ser proprietária, não alega ser possuidora, e não dispõe de qualquer presunção a seu favor em qualquer dos casos, nem peticiona tal reconhecimento judicial, pelo que não pode dar-se uma situação de non liquet.
19) Até porque, para todos os efeitos, os RR. alegam, demonstram e peticionam que seja reconhecido o abandono do imóvel, por parte da Autora.
20) Assumir que o eventual direito de propriedade da Autora decorre da sua “legitimidade processual” é, no entendimento dos RR., um raciocínio infundado, até porque a lei não atribui legitimidade para a impugnação da escritura de usucapião apenas ao proprietário ou titular inscrito, mas sim a qualquer “interessado” (cf. n.º 1 do artigo 101.º do Código do Notariado).
21) Acresce que, de tudo quanto foi junto aos autos, nada há que permita concluir que a Autora venha a ser reconhecida como proprietária do imóvel, no caso hipotético, e que não se concede, de os RR. não lograrem provar a usucapião invocada.
22) Com efeito, poderia dar-se, no limite e em tese académica, o que não se concede, que a posse e propriedade do imóvel em causa voltassem ao estado em que se encontravam no momento precisamente anterior à realização da escritura de usucapião por parte das 1.ª e 2.ª Recorrentes, o que não representa, cremos, uma situação de non liquet, nem substantivo, nem processual.
23) Nos presentes autos está em causa uma ação de simples apreciação negativa, através da qual a Autora peticiona, tão só que se declare que os RR. não adquiriram o imóvel em causa por usucapião, conforme declarado na escritura impugnada.
24) Todos estes factos, com relevo para a posição e pedidos dos RR., emergem, também e desde logo, dos factos alegados pela Autora na PI, pelo que, no nosso entendimento, está verificado o pressuposto processual contido na al. a) do n.º 2 do artigo 266.º do CPC.
25) Um claro exemplo de factos alegados pela Autora dos quais emerge, também, a defesa dos RR., é o vertido no artigo 6.º da PI, onde a Autora afirma que, quando iniciou as diligências com vista ao registo do imóvel em nome da herança dos seus pais, foi confrontada com o registo da usucapião, o que é absolutamente falso;
26) Uma vez que a certidão permanente predial junta sob o doc. 4 com a PI, relativa ao imóvel objeto dos presentes autos, está datada de 19/10/2018, isto é, cerca de 2 anos e meio antes da escritura de usucapião dos RR., a qual foi celebrada em 12/03/2021, e cinco anos antes da instauração da presente ação, período que os RR consideram largamente suficiente para a Autora ter assegurado a certeza sobre o estado jurídico-tabular do direito que alega ter, mas, sabe-se agora, sempre foi incerto.
27) Poderia equacionar-se que a Autora apenas iniciou, depois de março de 2021 (data da escritura de usucapião), as “diligências preparatórias visando o registo em nome da herança deixada por óbito de seus pais”;
28) Porém, sabe-se, agora, e por causa das alegações da Autora e documentos que juntou, que tal não corresponde à verdade.
29) Efetivamente, verifica-se que, em 19/03/2020, a sociedade comercial Irresistiblemargin, Lda., NIPC (...), apresentou no Balcão de Injunções uma injunção contra a Autora (injunção n.º (...).5YIPRT), no valor de € 3.450,18, a qual teve como fundamento a prestação de serviços prévios à celebração de contrato de mediação imobiliária, a requisição de certidões prediais e cadernetas prediais, e ainda o adiantamento do custo da escritura de habilitação de herdeiros da Autora/Recorrida (cf. doc. 1 junto com a reclamação apresentada em 13/05/2024).
30) Da referida injunção verifica-se que a data do contrato celebrado pela Autora/Recorrida terá sido 20/04/2018, e o período a que se refere a injunção terá sido compreendido entre 20/04/2018 e 22/02/2019 (cf. doc. 1 junto com a Reclamação apresentada pelos RR. em 13/05/2024 e que aqui se dá por reproduzido).
31) Do exposto resulta, sem dúvida, que a Autora, pelo menos desde 20/04/2018, procurou iniciar as “diligências preparatórias visando o registo em nome da herança deixada por óbito de seus pais”.
32) Ou seja, a Autora, já em abril de 2018 procurava, por intermédio de uma ainda não constituída agência imobiliária, iniciar as diligências relacionadas com a herança do seu pai – e não depois de março de 2021, como falsamente refere.
33) Face à estupefação da propositura da ação por parte da Autora, nomeadamente quanto à dificuldade em vislumbrar qual a motivação da mesma para, decorridas tantas décadas, se interessar por aquilo que abandonou, os Recorrentes verificaram que a referida injunção foi interposta pela sociedade Irresistiblemargin, Lda., supra identificada, a qual tem como sócio único e gerente a testemunha arrolada pela Autora nos presentes Autos, RMB.
34) A sociedade Irresistiblemargin, Lda., tem como objeto a mediação imobiliária (cf. doc. 2 junto coma Reclamação apresentada pelos RR em 13/05/2024 que aqui se dá por reproduzido).
35) Mais, na referida Injunção – e subsequente execução (Processo n.º (...).5T8LSB – Juízo de Execução de (...) – Juiz 1), foi mandatário da mencionada empresa Irresistiblemargin, Lda., o mandatário subscritor da Petição Inicial apresentada pela Autora nos presentes autos, o qual renunciou ao mandato antes da realização da audiência prévia...
36) E, na referida execução, após diversas pesquisas por parte da Sra. Agente de Execução, através da qual resultou a penhora de saldos em contas bancárias e a obtenção de uma lista considerável de bens imóveis da executada, aqui Autora, esta foi citada pessoalmente, e não contestou, não deduziu embargos nem oposição à penhora (cf. docs. 3, 4 e 5 juntos com a Reclamação apresentada pelos RR. em 13/05/2024 e que aqui se dão por reproduzidos).
37) Refira-se que da lista de bens imóveis obtida pela Sra. Agente de Execução no âmbito do referido processo executivo, não constava o imóvel objeto do presente processo (cf. doc. 5 junto com a Reclamação apresentada pelos RR. em 13/05/2024 que aqui se dá por reproduzido).
38) A referida sociedade de mediação imobiliária, cuja propriedade pertence à testemunha arrolada pela Autora, RB, foi constituída em 18/01/2019 (embora tenha declarado na Injunção ter prestado serviços em 2018), isto é, quatro dias antes da realização da habilitação de herdeiros da Autora, em 22/02/2019 (cf. doc. 2 junto coma Reclamação apresentada pelos RR em 13/05/2024 que aqui se dá por reproduzido).
39) Tais factos, decorrentes dos documentos juntos pela Autora e constantes de processos judiciais findos, são relevantes para demonstrar, senão outra coisa, o abandono por parte da Autora e o abuso do direito (e litigância de má-fé) com que age em juízo.
40) Razão pela qual deverá o segmento decisório do Despacho Saneador que não admitiu a reconvenção dos RR. ser anulado e substituído por outro que determine a sua admissão, nos termos peticionados, julgando-se, se tal não ficar prejudicado por outra causa de improcedência da ação, a questão do abandono da posse por parte da Autora.
Sem prescindir,
41) Os RR., tanto no artigo 241 e seguintes da Contestação/Reconvenção como no próprio pedido, requerem ao Tribunal que declare o abuso do direito da Autora, pelos motivos expostos naquela peça processual e no presente recurso, os quais aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
42) Não só o Tribunal a quo nada diz quanto ao abuso do direito invocado pelos RR., como afirma, no último parágrafo da segunda página do Despacho Saneador, que “Inexistem quaisquer outras questões prévias, exceções ou nulidades de que importe nesta fase conhecer”.
43) Ora, no entendimento dos RR., caso o Tribunal considerasse que tal matéria deveria ser analisada enquanto exceção perentória (e não como pedido autónomo em sede reconvencional), deveria quanto a isso emitir pronúncia, quanto mais não o fosse relegando tal decisão, justificadamente, para a decisão final.
44) Não o tendo feito, os RR. ficam na dúvida relativamente ao facto de o Tribunal a quo ter rejeitado o conhecimento da reconvenção e do abuso do direito ou se, ciente do pedido de declaração do abuso do direito, o Tribunal a quo decidiu apenas pronunciar-se com a decisão final.
45) Tal dúvida não existiria, entendem os RR., se o Tribunal a quo não tivesse omitido por completo a questão do abuso do direito do Despacho Saneador.
46) Assim, e à cautela, nada tendo dito sobre a questão do abuso do direito, devidamente alegada e peticionada pelos RR., o Tribunal a quo incorreu em omissão de pronúncia, o que gera a nulidade da decisão nos termos do disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 615.º, violando o disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 608.º, ambos do CPC.
47) Ao omitir pronúncia relativamente à exceção do abuso do direito da Autora, invocada pelos RR., o Tribunal demitiu-se de retirar daí uma importante consequência jurídica.
48) Com efeito, tratando-se de uma ação de simples apreciação negativa, a lei prevê que o Autor possa replicar – n.º 2 do artigo 584.º do CPC.
49) A contestação/reconvenção apresentada pelos RR. não constitui o último articulado admissível, para efeito do previsto no n.º 3 do artigo 4.º do CPC.
50) E, assim, sendo, a Autora tinha o ónus de concentrar na sua réplica toda a defesa relativamente à contestação/reconvenção apresentada pelos RR., incluindo o ónus de impugnação especificada das exceções invocadas.
51) Não tendo apresentado impugnação especificada, nem se tendo pronunciado sobre a exceção de abuso do direito, a cominação é a confissão, por parte da Autora, dos factos impeditivos da sua pretensão.
52) A Autora também não respondeu a qualquer exceção em sede de audiência prévia.
53) No que respeita a sua Réplica, a Autora não cumpriu, de modo algum, o ónus de impugnação especificada que sobre ela impendia.
54) Sob o artigo 6.º da Réplica, a Autora impugna que ela “ou a sua mãe alguma vez tenham tido conhecimento das intimações invocadas ao longo dos arts. 11 a 44 da contestação”.
55) Em bom rigor, este é, efetivamente, em toda a Réplica, o único facto especificamente impugnado pela Autora mas que, na verdade, não carecia de impugnação porquanto nunca foi alegado pelos RR.
56)       E tem por consequência a confissão do facto alegado pelos RR. de que a Autora e a sua mãe não procederam ao levantamento das notificações provenientes da Câmara Municipal de (...), facto este que carecia de impugnação específica, porque trata-se de um facto pessoal que a Autora está obrigada a conhecer.
57) Os RR. entendem, face ao objeto do processo, ser inadmissível a Autora apresentar uma réplica tão vaga e lacónica relativamente a uma matéria com tanto relevo para os autos e para a própria história dos factos relacionados com o imóvel em causa.
58) A Autora também não nega que os factos constantes dos artigos 11 a 44 da Contestação e factos relatados pelos documentos aí referidos correspondem à verdade.
59) Os RR. afirmam (e juntam registo fotográfico), sob os artigos 19 a 23 da Contestação, que já desde 1993 que era notório que a casa 6A/7, em causa nos presentes autos, apresentava claros sinais de degradação.
60) E a Autora, em lado algum nega tais factos, ou que a casa 6A/7 tenha colapsado sobre a casa 8, propriedade dos RR.
61) A Autora também não nega o alegado sob os artigos 26 e 27 da Contestação, onde os RR. afirmam que os locatários das casas 6A e 7, desde há anos depositavam as rendas na CGD, à ordem do Tribunal Judicial da Comarca de (...), uma vez que a Autora e a sua mãe se recusavam a receber as rendas ou a proceder às obras de conservação que lhes cabiam.
62) A Autora, no seu singelo artigo 8 da Réplica, limita-se a afirmar que impugna, “por não ser do seu conhecimento ou, não corresponder à verdade, toda a matéria que não tenha natureza conclusiva vertida nos arts. 63 a 245 da contestação, assim como por não serem da sua autoria ou deles ter conhecimento, se impugnam os documentos juntos com a contestação” (destacados nossos).
63) Tal postura processual demonstra tanto o abuso do direito da Autora como a sua litigância de má-fé.
 64) É processual e intelectualmente impossível perceber quais dos factos constantes dos 183 artigos compreendidos entre os arts. 63 a 245 da contestação é que a Autora impugna por não serem do seu conhecimento, quais os que impugna por não corresponderem à verdade e qual é a matéria que considera conclusiva!
65) A título de exemplo, refira-se que a Autora não impugna factos pessoais relativamente aos quais não poderia sequer alegar o seu desconhecimento, nomeadamente o alegado nos artigos 94 e 100 da Contestação, onde se refere que o imóvel foi averbado em nome do Estado, por desconhecimento da identidade dos proprietários, devido ao facto de nem a Autora nem a sua mãe terem participado aos Serviços de Finanças que o imóvel em causa integraria o acervo hereditário de JCF, não pagando os impostos inerentes à respetiva (hipotética) propriedade.
66) Em suma, o que a Autora fez foi tudo menos uma impugnação especificada.
67) A Autora optou por proceder a uma impugnação utilizando a formulação mais genérica possível, a qual, claramente, não tem qualquer sentido ou consequência, não satisfazendo o ónus que lhe incumbia.
68) A Autora decidiu também nada dizer, mas deixar o seu silêncio confirmar, sobre a exceção do abuso do direito invocada pelos RR.
69) E não o fez na réplica, como lhe cabia, nem em sede de audiência prévia.
70) Em face de todo o exposto, deveria o Tribunal a quo ter-se pronunciado sobre os efeitos cominatórios da falta de impugnação especificada por parte da Autora.
71) E, em consequência disso, creem os RR., e em face de toda a matéria dada como provada, deveria o Tribunal ter decido sobre o mérito da causa, a favor dos RR.
72)  Mas, não o tendo feito, era obrigação do Tribunal a quo pronunciar-se sobre a exceção do abuso do direito invocada pelos RR. contra a Autora, declarando a procedência de tal exceção.
73) Não o tendo feito, e conforme suprarreferido, o Tribunal omitiu pronúncia sobre matéria que estava obrigado a conhecer, o que gera a nulidade da decisão nos termos da al. b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
74) Termos em que se requer seja declarada a nulidade do Despacho Saneador, sendo tal decisão substituída por outra, que considere confessados pela Autora todos os factos alegados na Contestação sob os artigos 11 a 44 e 63 a 245, porquanto não foram devidamente impugnados.
75) E, em face do exposto, deverá declarar-se que a Autora age em abuso do direito, reconhecendo-se a validade das escrituras impugnadas, bem como o direito de propriedade do imóvel em causa a favor dos RR.
76) E, consequentemente, deverá a Autora ser condenada como litigante de má-fé, conforme peticionado na contestação apresentada.
Por outro lado,
77) Os RR. não compreendem a fundamentação do Tribunal a quo para a não admissão da reconvenção.
78) Os RR. entendem que o pedido de declaração de abandono por parte da Autora (e consequente nova posse de NN) tem o objetivo de “obter do Tribunal um efeito distinto da mera improcedência do pedido formulado pelo autor, i.e., conter uma pretensão nova, própria e autónoma.”
79) Além disso, os RR. não entendem qual o iter cognitivo do Tribunal para concluir que a reconvenção apresentada não satisfaz nenhum (ou qualquer um) dos pressupostos previstos nas als. a), b) e c) do n.º 2 do artigo 266.º do CPC.
80) Na verdade, o Tribunal a quo nem sequer menciona qualquer um destes normativos.
81) Os RR. também ficam na dúvida relativamente à possibilidade de o Tribunal a quo, tendo considerado verificado algum dos pressupostos constantes do n.º 2 do artigo 266.º do CPC, tenha, ainda assim, considerado que o pedido dos RR. corresponda a uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido da Autora, ou outro fundamento legal de inadmissibilidade da reconvenção.
82) Em face do exposto, atenta a manifesta falta de fundamentação legal do Despacho Saneador recorrido, na parte em que decide não admitir a reconvenção, deverá o mesmo ser considerado nulo, por violação do disposto no artigo 266º e na al. b) do nº 1 do artigo 615º, ambos do CPC.
Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, requer-se que:
A) O segmento decisório do Despacho Saneador que não admitiu a reconvenção dos RR. seja anulado e substituído por outro que determine a admissão da reconvenção, por legalmente admissível;
B) Seja declarada a nulidade do Despacho Saneador, por omissão de pronúncia quanto à exceção do abuso do direito invocada, sendo tal decisão substituída por outra, que considere confessados pela Autora todos os factos alegados na Contestação sob os artigos 11 a 44 e 63 a 245;
C) Em virtude dos factos confessados pela Autora/Recorrida, seja julgada totalmente improcedente a ação de simples apreciação negativa, ou que a Autora age em abuso do direito, ou que a Autora abandonou o imóvel em julho de 1997, ocorrendo nesse ano a nova posse de NN, reconhecendo-se, em qualquer dos casos, a validade das escrituras impugnadas, bem como o direito de propriedade do imóvel em causa a favor dos RR.
D) Em virtude do peticionado na alínea anterior, seja a Autora condenada como litigante de má-fé, conforme peticionado na contestação apresentada.
E) Atenta a manifesta falta de fundamentação legal do Despacho Saneador recorrido, na parte em que decide não admitir a reconvenção, deverá o mesmo ser considerado nulo, por violação do disposto no artigo 266º e na al. b) do nº 1 do artigo 615º, ambos do CPC.»
*
Contra-alegou a apelada, propugnando pela improcedência da apelação.
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]
Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
i. Nulidades da decisão impugnada por omissão de pronúncia e falta de fundamentação (conclusões 41 a 46, 72-73, 77 a 82);
ii. Admissibilidade do pedido reconvencional (conclusões 1 a 40);
iii. Falta de impugnação especificada por parte da Autora (conclusões 47 a 71, 74).
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto relevante para a apreciação de mérito é a que consta do relatório, cujo teor se dá por reproduzido.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Nulidades da decisão impugnada por omissão de pronúncia e falta de fundamentação (conclusões 41 a 46, 72-73, 77 a 82).
Argumentam as apelantes que a decisão impugnada padece de nulidade por omissão de pronúncia porquanto o tribunal a quo não se pronunciou sobre a questão do abuso de direito aduzida na contestação.
Apreciando.
Nos artigos 241º a 248º a contestação, reportando-se a factualidade anteriormente alegada, sustentam os réus que a autora litiga de má fé e em abuso de direito.
No despacho proferido em 10.9.2024, na sequência do despacho saneador e da reclamação formulada sobre o mesmo, o tribunal a quo afirmou:
«Finalmente, e ainda no que diz respeito à alegação do abuso de direito, cumpre também recordar que, tendo tal instituto sido alegado em termos de exceção perentória, o seu conhecimento há de ser feito no momento e sede próprios, que consideramos ser a sentença, nos termos da lei. Pelo que inexiste, neste momento, qualquer omissão de pronúncia. Por outro lado, também não havia que procurar extrair consequências processuais de uma suposta falta de impugnação especificada relativamente a esta exceção – desde logo porque está em causa uma qualificação jurídica de factos sobre os quais a Autora tomou, sim, posição concreta.»
Assim, a omissão de pronúncia em causa encontra-se suprida no despacho subsequente de 10.9.2024, improcedente a arguição da nulidade.
Mais sustentam as apelantes que o despacho, na parte em que não admite a reconvenção, é nulo por falta de fundamentação porquanto não foi mencionado qualquer normativo do nº 2 do Artigo 266º do Código de Processo Civil ou qualquer outro fundamento legal da inadmissibilidade da reconvenção.
Apreciando.
Nos termos do Artigo 615º, nº1, alínea b), do Código de Processo Civil, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença.
Ensinava a este propósito ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, V Vol., p. 140, que
«Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.»
Nas palavras precisas de TOMÉ GOMES, Da Sentença Cível, p. 39, «Assim, a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adotada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo. / A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão.»
Só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade, ou erroneidade – integra a previsão da alínea b) do nº1 do Artigo 615º, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.6.2016, Fernanda Isabel Pereira, 781/11. «O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal e persuasivo da decisão – mas não produz nulidade.»
Ora, o tribunal a quo enunciou a fundamentação da decisão de não admissão da reconvenção nestes termos:
«A presente ação é declarativa de simples apreciação, pois que, aqui, a Autora peticiona, apenas, a declaração de que se mantém proprietária do imóvel identificado nos autos, por efeito da pretendida nulidade da escritura de justificação notarial.
É sabido que as ações de simples apreciação visam obter a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto – não exigem, embora também não excluam, a efetiva e atual violação ou lesão do direito.
Já a reconvenção consiste, basicamente, numa ação declarativa – condenatória, constitutiva ou de mera apreciação – proposta através da contestação, pelo réu contra o autor, e que provoca, no caso de ser admissível, uma acumulação, no processo pendente, de ações cruzadas ou sincrónicas – a ação inicial e a ação reconvencional. Sendo o pedido formulado na reconvenção a conclusão lógica dos seus fundamentos, é necessário que tenha autonomia face do pedido do autor constante da petição inicial, em termos tais que, não apenas possa afastar o direito alegado pelo autor, mas, ao invés, possa obter do Tribunal um efeito distinto da mera improcedência do pedido formulado pelo autor, i.e., conter uma pretensão nova, própria e autónoma.
A ação de simples apreciação (positiva ou negativa) destina-se a definir uma situação jurídica tornada incerta. Como tradicionalmente a doutrina e a jurisprudência têm ensinado, não, sendo admissível uma situação de non liquet, opera-se uma autêntica inversão do ónus da prova, pois que, nestas ações, caberá aos demandados provar que o seu direito existe (não é ao demandante que incumbe provar que não existe). Mas, se assim é, dessa tarefa probatória resultará, não só a improcedência da ação de simples apreciação negativa, mas, também, a procedência da pretensão dos réus; sendo que, para isso (aliás, como alega a Autora), não é necessário (e sempre seria inadmissível) a dedução de reconvenção.»
Resulta deste excerto que o Tribunal a quo fundamentou a decisão de não admissão da reconvenção, enunciando o raciocínio jurídico subjacente a tal decisão, embora não tenha citado expressamente qualquer norma legal. A posição assumida pelo tribunal a quo vem sendo maioritária na jurisprudência portuguesa (cf. infra).
A mera circunstância de não ter sido feita alusão expressa a norma legal não obsta ao que acaba de dizer-se. «Fundamentar juridicamente uma decisão não implica citar expressamente os preceitos legais que a suportam», bastando indicar a razão de direito que conduziu ao despacho» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.2.2015, Prazeres Beleza, 3175/07) e essa razão foi enunciada.
Termos em que improcede a arguição da nulidade.
Admissibilidade do pedido reconvencional (conclusões 1 a 40).
O tribunal a quo não admitiu o pedido reconvencional, consoante já enunciado, argumentando os apelantes que a decisão deve ser revertida, revogando-se o despacho e admitindo-se o pedido reconvencional.
A autora intenta ação de simples apreciação negativa contra os quatro réus, formulando como pedido principal o de ser declarada a nulidade da escritura de justificação notarial outorgada pelas duas primeiras Rés em 12.3.2021, o que tem implícita a impugnação do facto justificado na escritura referente à invocada aquisição por usucapião.
Nas ações de simples apreciação negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (nº 1 do Artigo 343º do Código Civil).
Neste tipo de ações, o ónus probatório é, assim, repartido: i) o autor justifica na petição a necessidade de recurso à via judicial com base na arrogância extrajudicial do réu; ii) o réu deverá demonstrar os factos constitutivos do direito que se arroga e iii) feita essa prova, cabe ao autor demonstrar a existência de factos impeditivos ou extintivos do direito do réu (cf. Luís Filipe Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 3ª ed., Almedina, 2023, p. 41).
Com relevância para o caso em apreço, no AUJ nº 1/2008 ficou consignado que «na ação de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos arts. 116º, nº1, do Código de Registo Predial e 101º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem puderem beneficiar da presunção do registo decorrente do art.º 7º do Código de Registo Predial
A maioria da jurisprudência bem entendendo que, na ação de simples apreciação negativa, é dispensável por redundante a formulação de pedido reconvencional por parte do réu. Assim:
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.10.2006, Paulo Sá, 06A1980:
V - Um non liquet probatório nas ações de simples apreciação negativa terá sempre que resolver-se em desfavor do réu. Já, pelo contrário, a improcedência deste tipo de ação implica, sem margem para dúvidas, o reconhecimento da existência do direito que o réu se arroga, que fica definitivamente estabelecida, perante o autor.
VI - Por isso mesmo, fica prejudicada a proposição pelo réu de ulterior ação de simples apreciação positiva (arts. 494.º, al. i), 497.º, n.ºs 1 e 2, e 498.º, do CPC) e se revela redundante a dedução de reconvenção, a que não pode atribuir-se mais valia alguma em relação à simples procedência da defesa deduzida em ação de simples apreciação negativa, não passando, nesse caso, de puro reverso da pretensão do autor, que se limita a pedir a declaração da inexistência de direito que o réu invoca.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.3.2013, Hélder Roque, 2173/07:
Sendo admissível a reconvenção, nas ações de simples apreciação negativa, desde que o pedido do réu emerja do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa, a oposição contestatória da usucapião constitutiva de um direito de servidão basta-se com a defesa por exceção, cuja invocação pode ser implícita ou tácita, desde que sejam alegados os correspondentes factos, por forma, claramente, evidenciadora de que aquele pretende exercer esse direito, não necessitando de assumir a modalidade da contestação-reconvenção.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.2.2014, Ana Paula Boularot, 251/09:
V. É de mera apreciação negativa a ação de impugnação da resolução a favor da massa, pois trata-se de uma providência judicial destinada a pôr termo a uma incerteza objetiva suscetível de colocar em crise o valor de uma determinada relação jurídica concreta e precisa, paralela à das ações de impugnação de escritura de justificação notarial e com a qual não se pretende, não se visa e não se pode concluir, por uma qualquer condenação, pretendendo-se antes a declaração de que a resolução do contrato promessa feita a favor da massa insolvente não produziu qualquer eficácia.
VI. Nesta sede da simples apreciação, o âmbito da ação está confinado à mera declaração da existência ou inexistência do direito, pelo que se entende ser redundante a dedução de pedido reconvencional por parte do Réu, pois a mesma não constitui nenhuma mais-valia perante a eventual procedência da defesa que vier a ser deduzida, constituindo esta o contra ponto da posição do Autor ao pedir a declaração de inexistência do direito que o Réu se arroga.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.4.2014, Pinto de Almeida, 251/09:
Constituindo esta ação de impugnação uma ação de simples apreciação negativa, não terá qualquer utilidade o pedido reconvencional que, contido nos limites da ação, vise o reconhecimento do direito da ré, uma vez que este já será a consequência normal e necessária da improcedência da ação.
No mesmo sentido, vejam-se ainda os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30.1.2003, Oliveira Barros, 02B3949 e de 19.12.2018, Oliveira Abreu, 742/16.
A decisão impugnada, em termos de fundamentação, acompanhou esta linha jurisprudencial.
Contudo, não subscrevemos esta corrente jurisprudencial que simplifica a questão em demasia, não atentando em todas as nuances que este tipo de ações coloca, nomeadamente em conjugação com o princípio do dispositivo e com os limites da condenação.
Assim, em sentido divergente e que merece a nossa adesão, pronunciou-se o STJ no Acórdão de 23.1.2001, Reis Figueira, A3364, www.colectaneadejurisprudencia.com, nestes termos:
«Há duas coisas diferentes a distinguir:
a) alegar, na contestação, factos donde resulta a existência do direito que o réu se arroga é uma coisa ("matéria de contestação por impugnação, portanto contestação-defesa, tendente à absolvição do réu do pedido reconvencional");
b) alegar na contestação esse facto, para assim satisfazer o ónus probatório necessário à defesa, mas também pedir, com base nos mesmos factos, o reconhecimento pelo tribunal do direito deles decorrente é outra coisa ("matéria não só de contestação-defesa, tendente à absolvição do réu do pedido reconvencional, como também de contestação-reconvenção, tendente à condenação do autor no pedido reconvencional").
Neste segundo caso, que é o dos autos, o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à defesa, pelo que a reconvenção devia ter sido admitida: art.º 274º, nº 1, al. a), do CPC.
O que o art.º 343º do CC estabelece é apenas a inversão do ónus da prova, num caso especial em que se reconhece que ao autor (parte em princípio onerada com ele: art.º 342º, nº 1, do CC) é particularmente difícil fazer a prova, pelo que, numa ação de declaração negativa, como é a presente ação negatória de servidão, ao autor basta fazer a prova da propriedade, cabendo ao réu fazer a prova da servidão (Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª ed., pág. 307, na esteira, aliás, de Andrade, ob. cit., pág. 190).
Ora, as regras do ónus da prova apenas repartem este ónus, em termos de se saber como decidir num caso de non liquet probatório: as regras do ónus da prova repartem esse ónus, "mas decerto que dentro do princípio do pedido", porque o tribunal não pode decidir sem pedido nem contra o pedido.
No caso de ação de simples apreciação ou declaração negativa, o réu fica com o ónus da prova dos factos em que assenta o direito que se arroga, "não para que esse direito lhe seja reconhecido e o autor condenado a respeitá-lo, mas para que não seja declarada a sua inexistência, pela procedência da ação". Para que o direito do réu lhe seja reconhecido e a outra parte seja "condenada" a respeitá-lo é necessário que o titular do direito o "peça" diretamente, através de uma ação de declaração positiva, ou através de um pedido reconvencional, em ação de declaração negativa contra ele proposta.
Só assim se compagina a inversão do ónus probatório nas ações de declaração negativa com o princípio do pedido, que rege todas as ações: art.º 3º, nº 1, do CPC.
Ora, como nas ações de declaração negativa o que está pedido é o reconhecimento de que o direito "não existe", nunca nela se poderá concluir que o direito "existe", visto que o tribunal não pode condenar em objeto diverso do pedido: art.º 661º, nº 1, do CPC.
Por isso, para se poder, numa ação destas, reconhecer que o direito (do réu) existe e condenar (o autor) nesse reconhecimento, é preciso que esteja formulado o pedido correspondente, que, pela natureza das coisas, só se pode formular em reconvenção.»
O Prof. Teixeira de Sousa analisou a questão nestes termos:
« (…)
 Os parâmetros processuais habituais orientam-se pela necessidade de utilizar um meio processual (contestação, alegação, apresentação de prova, interposição de recurso, etc.) para obter a produção um efeito em juízo: sem meio admissível e adequado não há a produção do efeito pretendido. Sendo assim, o STJ só pode impedir o réu de uma ação de apreciação negativa de formular um pedido reconvencional se pressupuser que a atribuição do ónus da prova do facto constitutivo ao réu vale, ela mesma, como uma reconvenção “oculta”. É porque a atribuição desse ónus coloca o réu na posição de reconvinte que esta parte não pode deduzir explicitamente um pedido reconvencional: sem esta coincidência, não se perceberia por que razão aquela atribuição impediria este pedido. Dito de outra forma: o STJ entende que, mesmo sem a dedução explícita deste pedido, o réu torna-se necessariamente reconvinte quando lhe é imposta, não a contraprova ou a prova do contrário dos factos alegados pelo autor, mas a prova de factos constitutivos que também lhe incumbe alegar.
Acresce ainda que esta construção leva a concluir que a improcedência da ação de apreciação negativa só pode ser conseguida através da procedência de uma “contra-acção” baseada num facto constitutivo. Quer dizer: ao impor-se ao réu a prova do facto constitutivo como forma de obstar à procedência da ação de apreciação negativa, não se permite que esta parte se limite a impugnar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos alegados pelo autor e procure obter apenas a improcedência da ação com base na não veracidade desses factos.
Esta verificação tem consequências – talvez inesperadas – que devem ser salientadas. Se a única forma de o réu de uma ação de apreciação negativa obter a improcedência da ação é através da prova do facto constitutivo do direito de que se arroga, então a causa de pedir alegada pelo autor não tem nenhuma relevância, porque, mesmo que o réu impugne os factos alegados pelo autor, ainda assim aquela parte só consegue obter a improcedência da causa se alegar e provar o facto constitutivo do direito de que alega ser titular. Numa palavra, a ser assim, o regime decalca na atualidade as ações de jactância medievais, apoiadas nas fontes romanas (provocatio ex lege diffamari; provocatio ex lege si contendat) (cf. o trecho de Chiovenda no n.º 4).
Pelo exposto, não parece que possa ser este o regime legal e, por isso, não parece que o art.º 343.º, n.º 1, CC deva ser o único preceito a regular a distribuição do ónus da prova numa ação de apreciação negativa. A solução reside antes em entender que:
i) O autor tem o ónus de alegar – e, em caso de impugnação pelo réu, provar – os factos impeditivos, modificativos ou extintivos que constituem a causa de pedir do seu pedido de declaração da inexistência de um direito ou facto;
ii) O réu pode limitar-se a impugnar os factos alegados pelo autor e a procurar obter (apenas) a improcedência da causa com base na contraprova ou na prova do contrário daqueles factos;
iii) O réu pode ainda, além de procurar obter a improcedência da causa, pretender obter o reconhecimento do seu direito; nesta hipótese, deve deduzir o respetivo pedido reconvencional, aplicando-se então (mas apenas então) o disposto no art.º 343.º, n.º 1, CC» (“Acções de apreciação negativa e ónus da prova”, 18.3.2014, Blog do IPPC).
Retomando tal temática em 3.12.2020, no mesmo Blog, afirma o mesmo Prof.:
«Uma das regras fundamentais do processo civil é a de que uma decisão de improcedência vale apenas como decisão negativa e, por isso, nunca pode ser transformada numa decisão positiva. Se, por exemplo, o autor pede a declaração de que é credor ou é proprietário e a ação é julgada improcedente, é claro que só fica julgado que o autor não é credor ou proprietário. Nada fica definido de positivo para o réu, desde logo porque não teria qualquer sentido que, pelo facto de o autor não ser credor ou proprietário, o réu fosse credor ou proprietário (!).
Esta regra tem de se manter nas ações de apreciação negativa. Sendo assim, uma decisão de improcedência de uma ação de apreciação negativa só significa que não é declarado que o réu não é credor ou não é proprietário, não podendo ser transformada numa decisão que reconhece o réu como credor ou como proprietário.
Todas estas soluções assentam na seguinte circunstância: a parte onerada tem de provar os factos que alega que se tenham tornado controvertidos; se a parte não fizer prova desses factos, o tribunal profere uma decisão contra essa parte (art.º 414.º CPC); ora, uma decisão contra uma parte não se pode transformar numa decisão a favor da outra parte ou, mais em concreto, uma decisão de improcedência contra uma parte não se pode transformar numa decisão de procedência a favor da outra parte. Por isso, uma decisão que não dá à parte onerada o que ela pede (reconhecimento da propriedade, por exemplo) não pode transformar-se em dar à parte contrária o que ela não pede (ou que só pode obter através da formulação de um pedido reconvencional).
Em suma: uma decisão de improcedência só pode ser uma decisão que obsta ao efeito que o autor pede, nunca uma decisão que cria o efeito contrário do que o autor pede.
(…)
No caso concreto, o tribunal só pode não declarar que os réus não tinham adquirido a propriedade por usucapião, o que, como se terá demonstrado, não pode vir a ser transformado na declaração de que os réus adquiriram os imóveis por usucapião.
Ora, é precisamente para obter este resultado (que nunca pode decorrer da mera improcedência da ação de apreciação negativa) que é necessário e admissível um pedido reconvencional dos réus. Portanto, no caso em análise, nada impedia, tal como, aliás, a RP reconheceu, a dedução do pedido reconvencional pelos réus, dado que estava preenchido o disposto no art.º 266.º, n.º 2, al. a), CPC (pedido reconvencional emergente da defesa dos réus).»
Ainda na doutrina, Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2ª ed., p. 43, afirma:
«A ação de simples apreciação negativa apenas improcede se o réu demonstrar os factos constitutivos do seu direito e o autor não lhe opuser com sucesso factos impeditivos ou extintivos. Nesse caso, o tribunal limita-se a não declarar a inexistência do direito (era essa a pretensão do autor). Por outro lado, é de notar que o tribunal só declarará na sentença o direito que o réu logrou demonstrar na hipótese de este formular pedido expresso nesse sentido, já em via reconvencional (art.º 266º).»
Reiteramos que, no nosso entendimento, esta é a análise mais correta e adequada da questão.
Na verdade, a posição dominante não atenta em que: numa ação de simples apreciação negativa, a contestação pode ter um âmbito mais restrito visando, apenas, a improcedência da ação ou, pelo contrário, um âmbito mais abrangente visando também o reconhecimento definitivo do direito a que o réu se arroga; o tribunal não pode declarar a existência de um direito sem que seja formulado pedido expresso nesse sentido (principio do pedido; artigo 3º, nº1, do Código de Processo Civil ); o tribunal não pode condenar em objeto diverso do pedido (Artigo 609º, nº1, do Código de Processo Civil ); a atribuição do ónus da prova ao réu não vale como uma reconvenção “oculta”; uma decisão de improcedência vale apenas como decisão negativa, não podendo ser convolada numa decisão positiva, ou seja, uma decisão de improcedência contra uma parte não pode transformar-se numa decisão de procedência a favor de outra parte (cf. Artigo 414º do Código de Processo Civil ).
Por toda esta ordem de razões, entendemos que o pedido reconvencional formulado pelos réus (“considerando-se provado e existente o direito de propriedade adquirido por usucapião relativamente às casas 6-A e 7, por parte das justificantes”) e os sequenciais a este (“considerar-se plenamente válida a doação posterior das casas”) são admissíveis nos termos do Artigo 266º,nº2, al. a), emergindo dos factos que servem de fundamento à defesa.
Falta de impugnação especificada por parte da Autora (conclusões 47 a 71, 74).
As apelantes sustentam que cabia à autora impugnar especificadamente as exceções aduzidas na contestação, nomeadamente o abuso de direito, pelo que ocorre confissão dos factos impeditivos da pretensão da autora. Mais invocam que o tribunal a quo deveria ter-se pronunciado sobre os efeitos cominatórios da falta de impugnação especificada por parte da autora, devendo ter decidido de mérito a favor dos Réus (conclusões 70ª e 71ª).
Apreciando.
A argumentação das apelantes improcede por duas ordens de razões.
Em primeiro lugar, como é sabido, atualmente na fase intermédia do processo, no despacho saneador (a proferir, em regra, em audiência prévia) não há que enumerar parcialmente, e desde logo, os factos provados por acordo e/ou por falta de contestação (cf. Artigos 591º, 595º e 596º do Código de Processo Civil), salvo se os assim adquiridos permitirem um conhecimento imediato de mérito, total ou parcial (Artigo 595º, nº 1, al. b), do Código de Processo Civil ).
Todavia, também não é o caso porquanto, na petição, a autora impugnou antecipadamente a factualidade vertida na escritura de justificação notarial, a saber: a dação em cumprimento do prédio (artigo 9º); a obrigação da autora em pagar qualquer valor (artigo 10º); a prática de atos de posse sobre o prédio por HNN Otero (artigo 12º); a prática de atos de posse pelas justificantes após a morte de HNN Otero (artigo 13); a aquisição por usucapião (Artigo 14º) e a conduta subsequente atinente à doação (artigos 1º a 17º).
Consoante foi visto supra e atenta a natureza desta ação, incumbe às Rés o ónus da prova dos factos constitutivos do seu direito e, feita esta, cabe à autora demonstrar a existência de factos impeditivos ou extintivos do direito dos réus.
Ora, atenta a posição assumida pela autora logo na petição, a prova dos factos constitutivos do direito dos réus constitui matéria controvertida, razão da prossecução dos autos, não havendo razões para conhecimento parcial de mérito na fase intermédia do processo.
Nesta senda, o abuso de direito esgrimido pelos réus na contestação não é um facto constitutivo do direito dos réus, sendo que a respetiva factualidade poderá revelar, apenas, conjugadamente com a factualidade atinente à aquisição da propriedade por usucapião.
Note-se que o não uso só é causa de extinção de direitos nos casos expressamente previstos (Artigo 298º, nº 3, do Código Civil) e que a renúncia do direito de propriedade (quando ocorra e seja atendível) tem como consequência a passagem da propriedade para o Estado (Cf. Artigo 1345º do Código Civil; José Alberto Vieira, Direitos Reais, p. 449), sendo que, nos termos da alegação dos artigos 94º e 100º da contestação, as duas casas terão sido inscritas em nome do Estado para efeitos fiscais. Serve isto para dizer que a ênfase que os réus pretendem colocar em alegados factos de abandono das casas por parte da autora e seus pais não tem as virtualidades assumidas pelos réus.
Termos em que improcede este segmento da apelação.
A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art.º 154º, nº 1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes).
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em:
a) julgar parcialmente procedente a apelação, revogando-se a decisão impugnada no segmento em que não admitiu a reconvenção, sendo esta admitida;
b) no mais, julgar a apelação improcedente por não provada, confirmando-se a decisão impugnada.
Custas pelas apelantes e pela apelada, na vertente de custas de parte, na proporção de 60% e 40%, respetivamente (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº2, do Código de Processo Civil).

Lisboa, 8.10.2024
Luís Filipe Pires de Sousa
Rute Sabino Lopes
Paulo Ramos de Faria

_______________________________________________________
[1] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., 2022, p. 186.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., pp. 139-140.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18, de 15.12.2022, Graça Trigo, 125/20, de 11.5.2023, Oliveira Abreu, 26881/15, de 25.5.2023, Sousa Pinto, 1864/21, de 11.7.2023, Jorge Leal, 331/21, de 11.6.2024, Leonel Serôdio, 7778/21. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12).