JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
DECLARAÇÕES DE PARTE
OCORRÊNCIA POSTERIOR
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
Sumário

Sumário (elaborado nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, CPC):

I – O artigo 423º do CPC estabelece três momentos distintos para a apresentação de documentos, que pode ocorrer:
i) com o articulado onde se aleguem os factos correspondentes;
ii) até aos 20 dias anteriores à realização da audiência de julgamento;
iii) para além do prazo referido no ponto anterior e antes do encerramento da discussão em primeira instância, nos casos em que a apresentação não foi possível anteriormente ou em que se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior.
II – Tal regime visa evitar as consequências decorrentes da junção inesperada de documentos, fundamentando-se no princípio da autorresponsabilidade das partes e da cooperação processual, que deve estar subjacente à definição das respetivas estratégias probatórias.
III – Se o documento foi emitido e estava em poder da parte em momento anterior aos vinte dias que precederam a data em que se iniciou a audiência de julgamento, não é nem objetiva, nem subjetivamente superveniente, não podendo afirmar-se não ter sido possível a sua junção em momento anterior.
IV – As declarações produzidas pela parte em audiência de julgamento, pelas quais corroborou a posição que defendeu anteriormente no respetivo articulado, não configuram ocorrência posterior, suscetível de fundamentar a junção do documento, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 423º, CPC.
V – Com a revisão do Código de Processo Civil operada pela Lei 41/2013, de 26 de junho, o princípio do inquisitório foi acentuado e passou a estar consagrado em norma própria – o artigo 411º, CPC – no título V, relativo à Instrução do Processo.
VI – Embora decorra do princípio do inquisitório que o juiz deve realizar as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, é de rejeitar a junção de documento, requerida em audiência de julgamento, relativamente ao qual não é possível efetuar um juízo de pertinência e necessidade para o apuramento da matéria controvertida.

Texto Integral

Acordam os juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa que compõem este coletivo:

I - RELATÓRIO
1.1– O autor, A, identificado nos autos, instaurou em 27-12-2022, no Juízo Central Cível de Lisboa, a presente ação declarativa comum contra as rés “Turifenus-Investimentos Imobiliários e Turísticos, SA” e “Cimo de Aldeia Agro-Turismo, Ldª, igualmente identificadas nos autos, solicitando a sua condenação no pagamento da quantia de € 442.800,00, acrescida de juros desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Fundamentando o pedido, alegou o autor ter prestado serviços às rés, relacionados com o desenvolvimento de um projeto imobiliário, cujo valor, no montante peticionado, lhe recusam pagar.
1.2 - As rés contestaram, em 08-03-2023, em articulado comum, tendo alegado que não celebraram qualquer contrato de prestação de serviços com o autor, que aliás não as interpelou com vista ao pagamento de qualquer quantia, assim como não foram beneficiárias efetivas do seu trabalho.
Concluíram as rés pugnando pela improcedência da ação, com a respetiva absolvição do pedido.
1.3 – Foi realizada audiência prévia, no decurso da qual foi proferido despacho saneador, que afirmou a regularidade da instância, e enunciou o objeto do litígio e os temas de prova.
2 – No decurso da primeira sessão da audiência de julgamento, realizada em 25-06-2024, após produção de declarações de parte pelo autor e pelo representante das rés, o ilustre mandatário das rés requereu a junção de documento, que identificou como “alvará de loteamento”, nos seguintes termos, contantes da ata respetiva:
Para prova dos factos elencados nos temas de prova de 2 a 5, as Rés requerem a junção aos autos do alvará de licenciamento da operação de loteamento nº1/2024, emitido pela Câmara Municipal de Lisboa em 29/02/2024, referente aos lotes 1.1, 1.2 e 1.3, atento à sua data, facilmente se nota de que este é um documento superveniente à fase dos articulados, razão pela qual, somente agora é requerida a sua junção aos autos”.
Tal requerimento mereceu a oposição do autor.
Nessa mesma sessão, foi proferido despacho que indeferiu a junção aos autos do referido documento, transcrevendo-se o respetivo teor:
As Rés requereram a junção aos autos do alvará de licenciamento da operação de loteamento nº 1/2024 que se encontra datado de 29 de fevereiro de 2024.
Nos termos do disposto no nº 2 do artigo 423º do CPC, os documentos que não forem juntos com os respetivos articulados podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realiza a audiência final, sendo esta apresentação extemporânea sancionada com multa, exceto se a parte provar que não pôde oferecer o documento com o respetivo articulado.
No presente caso, o documento cuja junção é requerida, apenas poderia ser admitido nos termos do nº 3 do artigo 423º do CPC, se a apresentação não tivesse sido possível até 20 dias antes da data da realização da audiência final.
Concluindo, o documento apresenta-se extemporâneo nos termos do nº 2 do artigo 423º do CPC e também não foi demonstrada a impossibilidade de cumprimento do prazo aí assinalado, conforme dispõe o nº 3 do artigo 423º do CPC, pelo que se indefere o requerimento para a sua junção aos autos.
O documento fica apenso por linha.’’
No dia 26-06-2024 foi realizada nova sessão de julgamento e designado o dia 10 de outubro de 2024 para a sua continuação
3 – Não se conformando com tal decisão relativa à não admissão do documento apresentado na sessão do julgamento de 25-06-2024, as rés da mesma interpuseram recurso, pugnando pela sua revogação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“A. O presente recurso vem interposto do Despacho proferido pelo Tribunal a quo em sede de Audiência Final que indeferiu o requerimento apresentado pelas Recorrentes de junção aos autos do documento intitulado “Alvará de Licenciamento de Operação de Loteamento n.º 01/2024”, datado de 29 de fevereiro de 2024.
B. A fundamentação do Despacho de indeferimento da junção aos autos do Alvará funda-se na alegada apresentação extemporânea e em incumprimento do ónus de alegar a impossibilidade de cumprimento do prazo previsto no n.º 2 do artigo 423.º do CPC.
C. Em primeiro lugar, o Tribunal a quo não considerou na fundamentação do Despacho a existência de um dos fundamentos de junção posterior de documentos, constante do artigo 423.º, n.º 3, do CPC, que determina que os documentos podem ser apresentados após o prazo de 20 dias antes da audiência final quando a apresentação se tornar necessária em virtude de ocorrência posterior.
D. A ocorrência posterior traduz-se na verificação de um facto que torna necessária uma prova anteriormente não apresentada, consistindo num facto instrumental relevante para a prova dos factos principais.
E. A verificação de ocorrência posterior verificou-se pela prestação de declarações de parte pelo Autor A, decorrente da necessidade de contrariar as afirmações proferidas pelo mesmo nessa sede, tendo o Autor sustentado que “o lote 1.3. tinha um problema que era faltava aprovar, aprovar não, regularizar 7.700 metros quadrados e eles [Eiffage] condicionavam essa aprovação”, indicando assim que apenas este lote 1.3 apresentava problemas quanto à validação, estando os lotes 1.1 e 1.2 prontos para venda como tal, e indicando também que o problema do lote 1.3 passava por uma simples regularização da área passível de construção.
F. O Autor indicou ainda que “[o] meu objetivo principal, os meus objetivos que foram definidos eram dois: validar as áreas de construção para o terreno de facto ter aquele valor. O que implicava ter o alvará de obras de [impercetível] e o alvará de loteamento o que aconteceu em fevereiro de 2021 e proceder-se à venda, primeiro dos lotes e depois da empresa. Portanto estava extinto o objeto da minha atuação.”
G. Por seu lado, o representante legal da Ré Turifenus, também em sede de declarações de parte, referiu que “tinha um terreno onde [impercetível] construir três imóveis mas ainda havia uma situação pendente com a Câmara de Lisboa, que existe até hoje. Quando o Senhor A saiu da empresa não havia nada aprovado, aprovado zero.”
H. Esclarecendo ainda que “O Alvará foi emitido em 2024, mas ainda não há registos da separação dos lotes e registos na propriedade horizontal, não, na Conservatória do Registo Predial” “Falta na conservatória” “E nas finanças também”.
I. Ora, Alvará é essencial para demonstrar que, contrariamente ao alegado e declarado pelo Autor, as áreas de construção não foram validadas em fevereiro de 2021, e que não estavam validadas na data em que foram apresentadas propostas de compra dos lotes, uma vez que, como resulta do Alvará, datado de 29 de fevereiro de 2024, (i) apenas nessa data foram validadas as áreas de construção do lote 1.1 e 1.2, havendo ainda dúvidas quanto à validação dos mais de 7.000 m2 do lote 1.3, dado que o Alvará atualmente apenas contempla uma extensão de 934 m2 de área de implantação máxima, e (ii) em fevereiro de 2021, apenas foi deferido o pedido de licenciamento das obras de urbanização, tendo o Alvará sido emitido apenas em fevereiro de 2024.
J. Para que a venda do terreno, já loteado, gerasse uma mais-valia, era necessário que aquelas condições estivessem preenchidas, o que não aconteceu na altura da saída do Autor A.
K. O documento poderia ainda ser apresentado ao abrigo do disposto no artigo 423.º, n.º 3 do CPC, visto que se tratam de factos instrumentais relevantes para a prova dos factos principais e para a boa decisão da causa.
L. Em segundo lugar, mesmo que a junção fosse extemporânea, o que apenas se admite por tutela de patrocínio, atenta a manifesta a necessidade e pertinência da junção do documento pelos motivos supra, a junção do mesmo poderia e deveria ter sido ordenada pelo Tribunal nos termos do poder-dever estabelecido no artigo 411.º do CPC - princípio do inquisitório -, que determina que cabe ao juiz realizar ou ordenar as diligências dos procedimentos probatórios relativos aos meios de prova propostas pelas partes, na medida em que necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio.
M. Contrariamente ao decidido no Despacho recorrido, as disposições do artigo 423.º do CPC sempre teriam de ser compatibilizadas e amenizadas pelas disposições do artigo 411.º do CPC, não podendo o Tribunal obstar à junção de documento necessário e pertinente para o litígio em causa nos autos com fundamento numa alegada extemporaneidade.
N. Não tendo o requerimento de junção do Alvará, datado de 29 de fevereiro de 2024, sido apresentado de forma extemporânea e negligente, mas sim no momento processualmente relevante na fase de produção de prova, não poderia o Tribunal a quo ignorar a regra constante do artigo 411.º do CPC e deveria ter admitido o documento.
O. Tendo em consideração que a continuação da audiência final se encontra agendada para o dia 10 de outubro de 2024, a admissão do documento não atrasaria, de forma alguma, o processo e também não impactaria o exercício pelo Autor do seu direito de contraditório.
P. Pelo que, deve proceder o recurso interposto pelas ora Recorrentes e, em consequência, revogar-se a decisão recorrida, sendo a mesma substituída por douto Acórdão deste tribunal que admita o documento apresentado pelas mesmas
4. O autor não apresentou contra-alegações.
5. Remetidos os autos a este tribunal, inscrito o recurso em tabela, foram colhidos os vistos legais, cumprindo apreciar e decidir.
II – QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso pelo tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos do disposto nos artigos 608, nº 2, parte final, ex vi artigo 663º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, CPC.
Consequentemente, nos presentes autos, inexistindo questões de conhecimento oficioso a apreciar, as questões a decidir são as seguintes:
- Extemporaneidade da junção do documento apresentado pelas rés no decurso da audiência de julgamento de 25-06-2024, e suas consequências legais;
- Admissibilidade da junção de tal documento ao abrigo do princípio do inquisitório.
III – FUNDAMENTAÇÃO
A – Da extemporaneidade da junção do documento apresentado pelas rés em 25-06-2024
Com interesse para a apreciação da questão suscitada, são de ponderar os seguintes aspetos que se extraem da tramitação processual:
- A ação foi instaurada em 27-12-2022;
- As rés apresentaram contestação em 08-03-2023;
- Em 07-12-2023 foi realizada audiência prévia, na qual, além do mais foram admitidos os requerimentos probatórios de ambas as partes e designados os dias 25 e 26 de junho de 2024 para realização da audiência final;
- Em 25-06-2024, no decurso da audiência final, as rés apresentaram requerimento cujo conteúdo consta do relatório que antecede, relativo à junção aos autos de documento que identificaram como “alvará de licenciamento” emitido pela Câmara Municipal de Lisboa em 29-02-2024;
- Tal requerimento, que mereceu a oposição do autor, foi indeferido mediante despacho, já transcrito que lhe apontou a extemporaneidade.
Ora, tendo o tribunal considerado que a apresentação do documento em questão pelas rés foi extemporânea, interessa salientar que o momento da apresentação da prova documental mostra-se regulamentado no artigo 423º, CPC. Estabelece aquele preceito que:
1 - Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
2 - Se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.
3 - Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior”.
Interpretando tal norma, dir-se-á que ali foram estabelecidos três momentos para a apresentação da prova documental.
Assim, no nº 1 do artigo 423º, CPC foi estabelecida a regra geral quanto à apresentação de documentos, que deve ocorrer com o articulado em que se aleguem os factos pertinentes.
Já no nº 2 daquele preceito mostra-se consagrada a faculdade de apresentar os documentos até 20 dias antes da audiência final, hipótese que em regra, determinará a condenação do apresentante em multa, a não ser que comprove não lhe ter sido possível juntar o documento com o articulado correspondente.
Por fim, decorrido tal limite temporal – 20 dias anteriores à audiência de julgamento – o apresentante que pretenda lograr obter a junção aos autos de qualquer documento deve demonstrar que até àquele momento não lhe foi possível a apresentação ou que esta se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior – cfr. artigo 423º, nº 3, CPC.
A propósito do regime estabelecido no nº 3 do preceito em análise referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[1]: «Após os referidos  20 dias (anteriores à audiência final), a parte pode ainda apresentar o documento na 1ª instância, mas só em caso de superveniência (objetiva ou subjetiva) do documento (que foi impossível apresentar antes) ou em caso de ocorrência posterior que tenha tornado necessária a apresentação do documento (mº 2 do preceito citado). E só pode fazê-lo, em 1ª instância, até ao momento do encerramento da discussão, isto é, até ao momento em que terminam as alegações orais que têm lugar na audiência final (art. 604º-3-e). A este momento preclusivo não faz explícita referência o nº 3, mas resulta da conjugação entre ele, na parte em que refere “após o limite temporal previsto no número anterior”, e o  art. 425, na parte em que menciona “depois do encerramento da discussão”.
Mais adiante referem aqueles autores[2] que “o protelamento para o último momento da junção dum documento relevante que a parte tivesse já em seu poder no início da audiência pode constituir má fé processual, nos termos da alínea c) ou da alínea d) do art. 542-2”.
A impossibilidade de apresentação em momento anterior, prevista no nº 3 do artigo 423º, CPC, assume uma vertente subjetiva quando referida a situações em que o interessado, no momento próprio para a sua apresentação, não possuía o documento na sua disponibilidade, podendo até carecer, para o efeito, da ação de terceiro ou até do tribunal (cfr. artigos 429º, 432º, e 436º, CPC).
Porém, tal impossibilidade será objetiva quando o próprio documento, destinado a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa não existia no momento em que foi apresentado o articulado ou até 20 dias antes da data da audiência de julgamento.
Por outro lado, como defendem os autores citados[3], a ocorrência posterior prevista no nº 3 do artigo 423º, CPC, refere-se a facto instrumental relevante para a prova dos factos principais ou de um facto que interesse à verificação dos factos instrumentais, casos em que o documento que prova esse facto não pode deixar de se ter formado, também ele posteriormente”.
O regime estabelecido, ao regular a apresentação de documentos nos três momentos definidos no artigo 423º CPC, visa evitar as consequências processuais decorrentes da junção inesperada de documentos, designadamente ao nível do protelamento das audiências, partindo do princípio da autorresponsabilidade das partes, que devem agir processualmente com lisura e com espírito de cooperação processual na definição e efetivação das respetivas estratégias probatórias – cfr. artigos 7º e 8º CPC. E, no âmbito deste regime, é manifesto que apenas excecionalmente podem ser juntos documentos em momento que ultrapasse os 20 dias anteriores à audiência de julgamento, reconduzindo-se, nos termos expostos, às hipóteses de superveniência objetiva ou subjetiva do documento, ou à ocorrência posterior que torne necessária a sua junção.
No caso em análise, decorre da análise da tramitação processual que o documento em causa foi apresentado no decurso da primeira sessão de julgamento, realizada no dia 25-06-2024, tendo sido emitido pela Câmara Municipal de Lisboa em 29-02-2024, pelo que era manifestamente inviável a sua junção com os articulados (a contestação das rés foi apresentada em 08-03-2023). Impõe-se, pois, concluir pela inviabilidade da sua junção no momento dos articulados (que constituem a fase própria para o efeito, nos termos do disposto no nº 1, do artigo 423º, CPC).
Contudo, a data de emissão do documento – 29-02-2024 – à partida, não inviabilizava a sua junção até 20 dias antes do início da audiência de julgamento, ou seja, até 04-06-2024, hipótese em que teria sido observado o limite temporal previsto no nº 2 do artigo 423º, CPC.
Assim, a admissibilidade da junção do documento em questão com base no regime do artigo 423º, CPC, dependerá da averiguação sobre se o documento é objetiva ou subjetivamente superveniente, ou se houve ocorrência posterior que tenha tornado necessária a sua junção naquele momento.
Ora, a hipótese de superveniência objetiva ou subjetiva terá de ser liminarmente afastada, dado que o documento em questão, manifestamente, foi elaborado e existia em 29-02-2024, ou seja, em fase prévia aos vinte dias anteriores à data designada para a realização da audiência de discussão e julgamento.
Consequentemente, a admissibilidade da junção do referido alvará (requerida pelas rés em 25-06-2024 na data da primeira sessão de julgamento, após as declarações de parte do autor e das rés), dependerá da constatação de que a sua apresentação se tornou necessária em virtude de “ocorrência posterior”. Ocorrência essa que as apresentantes identificam com a prestação de declarações pelo autor em audiência de julgamento, as quais terão sido produzidas em sentido diverso ao que resulta do conteúdo do documento.
Por outras palavras, defendem as recorrentes encontrar-se controvertida a dívida relativa ao mandato/prestação de serviços invocado pelo autor, serviços esses que terão ocorrido entre 2017 e 2021, relacionados com o desenvolvimento de três lotes imobiliários (designados por lotes 1.1, 1.2 e 1.3).
Efetivamente, referem as recorrentes nas suas alegações:
Ora, conforme se infere da posição do Autor explanada na petição inicial, este considera que anteriormente à venda das participações sociais da Turifenus pela Remate Moderno, já era possível o desenvolvimento imobiliário e construção nos lotes em causa, o que teria supostamente valorizado a empresa Turifenus, justificando assim também o trabalho que o próprio Autor terá alegadamente desenvolvido em prol da empresa (…)
Indicando, assim, que apenas este lote 1.3 apresentava problemas quanto à validação, estando os lotes 1.1 e 1.2 prontos para venda como tal (ou seja, como lotes), e indicando também que o problema do lote 1.3 passava por uma simples regularização da área passível de construção.
O Autor, ainda em sede de declarações de parte, indicou que “[o] meu objetivo principal, os meus objetivos que foram definidos eram dois: validar as áreas de construção para o terreno de facto ter aquele valor. O que implicava ter o alvará de obras de [impercetível] e o alvará de loteamento o que aconteceu em fevereiro de 2021 e proceder-se à venda, primeiro dos lotes e depois da empresa. Portanto estava extinto o objeto da minha atuação.”
Sucede que tais alegações, produzidas de forma oral e contraditória em audiência, podendo ser verdadeiras ou inverídicas, correspondem, precisamente, aos factos que o autor alegou na petição inicial, embora dotadas de um maior grau de concretização do que resulta daquele articulado.
Efetivamente, na petição inicial o autor alega:
- Dedicar-se ao desenvolvimento de projetos imobiliários (artigo 1º);
- Ter tido conhecimento, em 2017, de uma oportunidade de desenvolvimento de um projeto imobiliário em prédio pertencente à ré “Turifenus-Investimentos Imobiliários e Turísticos, SA” (artigo 2º);
- A segunda ré, juntamente com outra empresa, adquiriu o domínio da “Turifenus-Investimentos Imobiliários e Turísticos, SA”, sendo que todos os serviços tendentes a tal aquisição foram assegurados pelo autor (artigo 11º);
- Foi decidido que o autor assumiria a gestão operacional do prédio supra referido, com vista à sua valorização mediante edificação, promoção imobiliária e alienação (artigo 13º);
- Tal projeto imobiliário, por decisão da primeira ré, passou pelo seu loteamento em três lotes autónomos (artigo 15º);
- Os acionistas e administradores da primeira ré acordaram com o autor, além do mais que lhe incumbia “Coordenar tal processo de loteamento camarário, propondo três lotes de edificação autónomos” (artigo 16º);
- Os serviços do autor permitiram valorizar o imóvel: “Valorização essa devida, única e exclusivamente, aos serviços prestados pelo Autor nesse mesmo período, por vias dos quais se conseguiu, sob sua coordenação direta e transversal: (…)(v) Aprovar um loteamento de com 3 lotes, dois de serviços e um de apartamentos turísticos (…)” (artigo 65º da petição inicial).
Julgamos, assim, ficar exaustivamente demonstrado que a intervenção do autor no loteamento a executar constituía, desde a instauração da ação, questão relevante na apreciação do mérito da causa, precisamente porque defende que o loteamento do prédio em causa integrava as funções inerentes ao mandato que lhe foi conferido. Consequentemente, as vicissitudes relativas a tal loteamento, em face da configuração atribuída à relação material em debate, mostravam-se relevantes para aferir da obrigação de retribuição que o autor invoca, não decorrendo a sua relevância das declarações de parte que prestou.
E, na realidade, tais declarações produzidas em audiência (a cuja audição integral se procedeu) corroboraram a sua versão dos factos, considerando, além do mais, que desenvolveu todos os serviços acordados, designadamente no âmbito das atividades de promoção dos loteamentos. Mais referiu que não obstante ao lote 3 faltar uma viabilidade de construção de cerca de 7600 m2, o certo é que a Câmara Municipal de Lisboa assumiu o compromisso de legalizar tal área de construção, o que implicará a opção por uma de duas vias já delineadas, tendo o autor considerado estar esgotado o objeto da sua prestação (cfr. minutos 1.32 a 1.35 das suas declarações).
Ora, o facto de em tais declarações o autor não ter confessado a tese das rés, reafirmando, ao invés, o que já resultava da posição que defendeu na petição inicial, não constitui uma “ocorrência posterior” suscetível de fundamentar a junção tardia do documento em causa. Efetivamente, as declarações do autor, consonantes com a posição que defendeu nos autos de integral realização da prestação para a qual foi mandatado, não trouxeram aos autos qualquer facto novo suscetível de fundamentar a apresentação tardia do documento em causa.
Como referido anteriormente, a “ocorrência posterior” que pode justificar a apresentação tardia dos documentos, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 423º, CPC deve referir-se a “facto instrumental relevante para a prova dos factos principais ou de um facto que interesse à verificação dos factos instrumentais casos em que o documento que prova esse facto não pode deixar de se ter formado, também ele posteriormente”.
Consequentemente, a relevância do documento em causa, a existir, já era do conhecimento das rés antes da produção de declarações de parte pelo autor. E assim é porquanto, ouvida a gravação da audiência, é possível constatar que logo no início do julgamento (antes da produção das declarações de parte e da prova testemunhal) o ilustre mandatário das rés pretendeu juntar o documento em causa, alegando para o efeito que seria útil fazê-lo em momento prévio à da prestação de declarações pelo autor e à produção da prova testemunhal, dado que pretendia confrontar as partes e as testemunhas com o mesmo. Porém, a Srª Juiz que presidia à audiência exortou o ilustre mandatário das rés a requerer tal junção após as declarações de parte, sugestão que foi acatada. Julgamos, assim, ficar bem evidenciado que não foram as declarações de parte (que nos termos expostos não configuram uma “ocorrência posterior”) que justificaram a junção tardia do documento, porque previamente à sua produção (quando ainda era desconhecido o seu teor) foi afirmada a intenção de à mesma se proceder.
Pelo exposto, afigura-se que decorrido o prazo legal para a junção da prova documental, não podem as rés pretender introduzir tal documento no processo sob o argumento de o mesmo servir para contraditar as declarações do autor. Na realidade, por essa via estar-se-ia a admitir a junção aos um documento à margem do regime legal consagrado no artigo 423º, CPC, postergando o princípio da autorresponsabilidade das partes no que se reporta ao cumprimento dos respetivos ónus probatórios.
Consequentemente, julgamos ser de reafirmar o juízo de extemporaneidade afirmado pelo tribunal recorrido, que fundamentou a rejeição do documento em questão.
B - Da admissibilidade da junção do documento requerida pelas rés na sessão da audiência de julgamento de 25-06-2024, ao abrigo do princípio do inquisitório.
No regime processual civil português mostra-se atualmente ultrapassada a absoluta prevalência do princípio do dispositivo que constituiu a sua filosofia dominante desde o início da vigência do Código de Processo Civil de 1939 (praticamente inalterada pela reforma de 1961, pela Constituição da República de 1976 e pela reforma intercalar de 1985). Tal filosofia, nas palavras de Abrantes Geraldes[4](…) colocava o juiz no desagradável papel de ´Pilatos` que, confrontado com situações que conduziam a clamorosas injustiças, nada mais poderia fazer do que ´lavar as mãos`, invocando a lei, e brandir com uma decisão formalmente correta mas substancialmente inadequada”. Tal paradigma foi superado, desde logo por via da revisão do Código de Processo Civil, operada pelo Dl 329-A/95, de 12 de dezembro, afirmando-se no respetivo diploma: “(…) um dos aspetos mais significativos desta revisão, que se traduz numa visão participada do processo, e não numa visão individualista, numa visão cooperante, e não numa visão autoritária. Procede-se a uma ponderação entre os princípios do dispositivo e da oficiosidade, em termos que se consideram razoáveis e adequados”.
A afirmação do princípio do inquisitório determina que incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente e sem restrições, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer. Reafirmando a superação do princípio do dispositivo e a afirmação do princípio do inquisitório, refere-se na exposição de motivos da Lei 41/2013, de 26 de junho, que operou a revisão do Código de Processo Civil: “Mantém-se e reforça-se o poder de direção do processo pelo juiz e o princípio do inquisitório (de particular relevo na eliminação das faculdades dilatórias, no ativo suprimento da generalidade da falta de pressupostos processuais, na instrução da causa e na efetiva e ativa direção da audiência)”.
Assim, embora o princípio do dispositivo se mantenha como princípio orientador e estruturante do processo civil, a par com a afirmação do princípio da cooperação de todos os sujeitos processuais na justa e célere composição do litígio (cfr. artigo 7º, CPC), o princípio do inquisitório, com a revisão de 2013, foi objeto de autonomização legal (afirmado em norma própria, no artigo 411º) e adequada inserção sistemática (Instrução do processo – título V).
Assim, dispõe o artigo 411º CPC:
Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer
Pode afirma-se que o princípio do inquisitório se traduz, desde logo, no poder-dever de determinação dos meios de prova requeridos pelas partes (embora recusando os que se revelem ilícitos, impertinentes ou desnecessários – cfr. artigos 20º, nº 4 e 32º, nº 8, CRP, 417º, nº 3, 6º, nº 1 e 411º a contrario, CPC).
Por outro lado, o princípio do inquisitório manifesta-se no domínio da iniciativa oficiosa do juiz, que pode determinar diligências probatórias que não tenham sido requeridas pelas partes.
De qualquer forma, mantém-se o princípio da autorresponsabilidade das partes relativamente ao cumprimento dos respetivos ónus probatórios e da indicação tempestiva dos seus meios de prova, dado que a investigação oficiosa não deve servir para suprir a negligência ou a inércia da parte (nem para contornar a preclusão processual delas decorrente) – neste sentido, Lopes do Rego[5], Acórdão Relação Coimbra de 12-03-2019[6], e Acórdão da Relação de Guimarães de 19-11-2020[7].
A propósito do regime consagrado por esta norma, consideram Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa[8],  que faz apelo “à realização de diligências probatórias que importem a justa composição do litígio, cumprindo ao juiz exercitar a inquisitoriedade, preservando o necessário equilíbrio de interesses, critérios de objetividade e uma relação de equidistância e de imparcialidade”.
Já Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[9] salientam que: “Os poderes-deveres do juiz, estabelecidos na norma em apreço, não se limitam à prova de iniciativa oficiosa, como mostra o segmento “mesmo oficiosamente”.
Daqui se extrai que o poder inquisitório do juiz na instrução da causa pode resultar de iniciativa oficiosa, ordenando a realização de diligência probatória que se lhe afigure útil à descoberta da verdade material. Porém, tal poder inquisitório também se manifesta relativamente aos meios de prova propostos pelas partes, na medida em que se revelem necessários ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio.
Ora, o documento em questão, na perspetiva das apresentantes, ilustra a falta de cumprimento da prestação do autor no que se reporta às diligências tendentes a obter os loteamentos acordados.
Porém, compulsados os 27 temas de prova enunciados na ata da audiência prévia, verifica-se que nenhum deles tem por objeto a ação do autor ao nível dos loteamentos. Ao invés, tal matéria resulta da factualidade que na ata da audiência prévia foi considerada assente com base em confissão ou prova documental, ali se referindo, designadamente:
(…) d. Sendo o objetivo delegar no autor o desenvolvimento de uma atividade de estudo e prospeção de mercado imobiliário, consultadoria, gestão e marketing imobiliários, com vista a desenvolver um projeto imobiliário no imóvel que passaria pela sua: (i) promoção imobiliária e alienação, no todo ou em parte, no estado em que se encontrava; ou (ii) desenvolver a edificação no imóvel com a sua capacidade construtiva aprovada pela Câmara Municipal de Lisboa (23.000m2) e com a possibilidade real de alcançar a capacidade construtiva de 30.800m2, procedendo ao loteamento camarário em três lotes autónomos.
e. A opção inicial assumida pelos acionistas da 1ª ré foi a de proceder ao loteamento camarário em três lotes autónomos com o objetivo de, pelo menos, alienar dois deles e, com o produto dessa alienação, edificar no lote remanescente (e-mail do autor para … da CBRE de 13.02.2018 junto como doc. n.º 5).
f. Para desenvolvimento desse projeto, o autor acordou com os acionistas e administradores da 1ª ré que iria prestar os seguintes serviços: i) Coordenar tal processo de loteamento camarário, propondo três lotes de edificação autónomos; (…)
j. No plano da gestão operacional do imóvel e do projeto imobiliário a ele atinente, foi o autor quem:
(i) iniciou todos os contactos com a Câmara Municipal de Lisboa (“CML”) relativos ao desenvolvimento do projeto imobiliário, tendo, nesse âmbito e durante o período temporal em causa, interação directa e regular com o Chefe de gabinete do Presidente da CML e com o Vereador do Urbanismo – a título meramente exemplificativo (docs. n.ºs 7 a 52);
(ii) coordenou globalmente e negociou diretamente com a CML a celebração de contrato de urbanização do Imóvel (cf. artigo 55.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação), facto que o Presidente do Conselho de Administração da 1ª Ré, Eng. …, expressamente reconheceu em e-mail remetido a 7 de Janeiro de 2019 aos demais membros do Conselho de Administração e aos beneficiários efetivos das acionistas, invocando que “da assinatura deste contrato dependem todas as ações futuras da empresa” e que “o Sr. Engº A está a coordenar o processo com a sua costumada proficiência e vai continuar a fazê-lo” (doc. n.ºs 5);
(iii) coordenou globalmente e negociou diretamente com os proprietários do outro prédio urbano inserido na unidade de execução com vista à obtenção de acordo para o contrato de urbanização;
(iv) coordenou e negociou diretamente com a CML o tema dos créditos de construção que permitiram aumentar a volumetria edificável;
(v) coordenou e negociou diretamente com a CML o encerramento da unidade de execução e o loteamento do Imóvel (…)”.
Já dos temas de prova enunciados na ata da audiência prévia, mormente os que constam dos números 2 a 5 não consta qualquer alusão à intervenção do autor nos loteamentos, ali se aludindo a propostas de aquisição de que a primeira ré foi alvo, à sua rejeição pela segunda ré e a ação subsequente do autor, em cumprimento dos comandos dos acionistas, solicitando a revisão de uma dessas propostas.
Ora, em face do exposto, não é possível efetuar um juízo seguro acerca da pertinência ou necessidade do documento em questão para o apuramento da verdade material e da justa composição do litígio.
E à aparente impertinência suscetível de ser apontada ao documento em causa, acresce ainda que, no atual estado dos autos, encontrando-se a audiência de julgamento em curso, faltando ainda produzir prova testemunhal, desconhece-se se o alegado incumprimento das obrigações assumidas pelo autor relativamente ao loteamento não poderá ser obtido por outros meios de prova tempestivamente requeridos e admitidos.
 Conclui-se, pois, pela inviabilidade de afirmação do juízo de pertinência e de essencialidade que poderia permitir a admissão do documento em causa ao abrigo do disposto no artigo 411º, CPC.
Consequentemente, impõe-se a manutenção da decisão recorrida, dado que o documento em questão foi apresentado extemporaneamente e a sua admissibilidade, no atual contexto dos autos, não se revela fundamentada à luz do princípio do inquisitório.
As rés deverão ser responsabilizadas pelas custas do recurso, por terem ficado vencidas – cfr. artigo 527º, CPC.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta 2ª Secção Cível em julgar improcedente o recurso interposto pelas rés relativamente à decisão que não admitiu o documento que apresentaram no decurso da sessão da audiência de julgamento de 25-06-2024, que se mantém.
Custas pelas rés – cfr. artigo 527º, nº 1, CPC.
D.N.

Lisboa, 10 de outubro de 2024
Rute Sobral
João Paulo Vasconcelos Raposo
Higina Castelo
_______________________________________________________
[1] Ob. e vol. cit pág. 239
[2] Ob. e vol. cit. pág. 240
[3] Ob. e vol. cit. pág. 241
[4] Temas da Reforma do Processo Civil II, 1997, pág. 23
[5] “Comentários ao Código de Processo Civil”, Almedina, p. 425.
[6] Proferido no processo nº proc. 141/16, disponível em www.dgsi.pt.
[7] Proferido no processo nº proc. 26/12.1TBAFE-C.G1, disponível em www.dgsi.pt.
[8] Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, pág. 484
[9] Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª edição, 2017, pág. 208.