DECISÃO SURPRESA
CONTRADITÓRIO
NULIDADE PROCESSUAL
ACTO INÚTIL
INJUNÇÃO
EXECUÇÃO
CLÁUSULA PENAL
Sumário

Sumário (da responsabilidade do relator):
I. A decisão-surpresa de rejeição da execução ao abrigo do art.º 734.º do CPC sem contraditório prévio das partes constitui uma nulidade processual, conforme disposto no art.º 195.º do CPC, traduzida na prática de ato em momento processualmente indevido;
II. Concluindo-se com absoluta segurança que foi apresentada em sede de recursória toda a argumentação da parte vencida relativa aos fundamentos da decisão de rejeição da execução, a repetição da prática do ato omitido traduziria ato inútil, ficando sanado qualquer vício processual;
III. A execução fundada em injunção não permite a cobrança de valores relativos a incumprimento contratual, devendo ater-se à cobrança de obrigações pecuniárias diretamente emergentes do fornecimento de bens ou de prestação dos serviços contratados;
IV. Quando da literalidade do requerimento injuntivo, havendo referência a cláusula penal, não seja possível estabelecer que não foram computados valores relativos à mesma, ou não seja possível segmentar as obrigações diretamente emergentes do contrato, deve a execução ser rejeitada na totalidade, não havendo lugar à sua redução.

Texto Integral

Acordam os juízes que constituem a 2.ª secção,

I. Síntese do recurso:
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I.I. Elementos objetivos:
Tribunal recorrido – Juízo de Execução de Sintra, Juiz 1, Comarca de Lisboa-Oeste;
Processo em recurso: Autos de execução comum;
Decisão recorrida – decisão de rejeição da execução. –
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I.II. Elementos subjetivos:
Recorrente/exequente: ­- A …, S.A.;
Recorrido/executado: - B … –
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I.III. Síntese da decisão recorrida:
Dispositivo:
- Verificação da exceção dilatória da falta de título executivo e rejeição da execução (art.º 734.º n.º 1 e 726.º n.º 2 al. a) do Código de Processo Civil - CPC);
Fundamentos:
a) A exequente deu à execução injunção a que foi aposta fórmula executória;
b) A causa de pedir invocada pela exequente é o incumprimento de contrato de prestação de bens e serviços de telecomunicações celebrado entre as partes;
c) No cômputo dos valores em dívida a exequente incluiu montantes relativos a aplicação de cláusula penal;
d) O procedimento de injunção é apenas aplicável a obrigações pecuniárias diretamente emergentes de contratos, não tendo a virtualidade de servir para exigir obrigações pecuniárias resultantes da responsabilidade civil contratual;
e) As injunções, incluindo as decorrentes de transação comercial, e a ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, não são a via processual adequada para acionar valores relativos a cláusula penal;
f) Relativamente ao pedido de pagamento do montante correspondente à cláusula penal/indemnizatória, foi lançada mão de uma forma processual que legalmente não é a prevista para a respetiva tutela jurisdicional;
g) O objetivo do legislador ao estatuir o procedimento de injunção não foi o da economia processual, mas o de facilitar a cobrança de obrigações pecuniárias que, pela sua própria natureza, implicam uma tendencial certeza da existência do direito de crédito;
h) O uso indevido do procedimento de injunção inquina a totalidade da injunção, consubstanciando uma exceção dilatória inominada (art. 577º, do Código de Processo Civil), de conhecimento oficioso, que conduz à absolvição da instância;
i) O recurso ao procedimento de injunção quando este não se ajusta à pretensão formulada, porque acarreta exceção inominada, nulidade de conhecimento oficioso, pode esta ser conhecida em sede execução cujo título executivo é o requerimento injuntivo em que tenha sido atribuída força executória por secretário judicial. –
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I.IV. Elementos relevantes dos autos executivos:
a) A exequente, ora requerente, não foi notificada previamente à prolação do despacho recorrido;
b) A execução assenta em injunção, do valor total de €471,19;
c) Na injunção exequenda a recorrente sustenta o seu crédito, no espaço a tanto destinado no formulário respetivo, dizendo:
A Requerente celebrou com o Requerido um contrato de prestação de bens e serviços telecomunicações a que foi atribuído o n.º …. No âmbito do contrato (…) obrigou-se a prestar os bens e serviços solicitados pelo requerido e este obrigou-se a efetuar o pagamento tempestivo das faturas, (…) e a manter o contrato pelo período acordado, sob pena de, não o fazendo, ser responsável pelo pagamento de cláusula penal convencionada para a rescisão antecipada do contrato.
Enviadas ao requerido (…) não foram as mesmas pagas (…) constituindo-se o requerido em mora e devedor de juros (…).
O requerido é devedor à requerente de €100, a título de indemnização pelos encargos associados à cobrança da dívida.
Termos em que requer a condenação do requerido a pagar a quantia peticionada e juros vincendos;
d) A decisão recorrida foi proferida e notificada a 7/5/2024;
e) O requerimento de interposição de recurso foi interposto a 24/5/2024. –
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I.V. Posição das partes:
Conclusões apresentadas pela recorrente nas suas alegações:
1. Não foi a Recorrente notificada para se pronunciar em relação à exceção dilatória inominada de indevida utilização do procedimento de injunção, em clara violação do princípio do contraditório;
2. Contrariamente ao vertido na sentença da qual se recorre, a Recorrente não peticiona nos presentes autos qualquer valor a título de cláusula penal pelo incumprimento do contrato;
3. Sendo que, todas as faturas peticionadas dizem respeito a serviços prestados e não pagos pelo mesmo;
4. Pelo que, não peticionando qualquer valor a título de cláusula penal, não se verifica qualquer exceção dilatória inominada de indevida utilização do procedimento de injunção.
5. Considerou o Tribunal a quo existir exceção dilatória de uso indevido do procedimento de injunção, absolvendo o Apelado da instância;
6. Por a Recorrente ter lançado mão de injunção destinada a exigir o cumprimento de obrigação emergente de contrato e de despesas associadas à cobrança da dívida;
7. Salvo, porém, o devido respeito, tal decisão carece de oportunidade e fundamento, sendo contrária à Lei;
8. Desde logo porque a lei não habilita o Tribunal a quo a conhecer oficiosamente de exceções dilatórias relacionadas com o conteúdo do título executivo;
9. Das causas admissíveis de indeferimento liminar do requerimento executivo constantes do artigo 726.º do CPC não resulta o uso indevido do procedimento de injunção;
10. Permitir-se ao juiz da execução pronunciar-se ex officio relativamente à exceção dilatória de uso indevido do procedimento de injunção esvaziaria de função o art.º 14.º-A n.º 2 do DL 269/98, de 01 de setembro, e atentaria contra o princípio da concentração da defesa ínsito no artigo 573.º do CPC;
11. Não obstante, a injunção constitui um meio adequado para o pagamento das despesas associadas à cobrança das faturas relativas à prestação dos serviços contratados pelo Apelado;
12. Dado que, à semelhança do que sucede com os juros de mora, também as despesas de cobrança resultam diretamente da falta de pagamento da obrigação pecuniária principal e, por conseguinte, constituem uma obrigação pecuniária em sentido estrito, isto é, diretamente emergente do contrato;
13. Sem prescindir, o entendimento de que as despesas de cobrança não podem integrar o procedimento injuntivo não determina que a extinção total da instância executiva, mas somente a recusa do título executivo relativamente à parte que integra tais custos administrativos.
14. A sentença proferida pelo Tribunal a quo trata-se de um indeferimento liminar da petição inicial, o que legitima a apresentação do presente recurso;
15. De tudo quanto ficou exposto, resulta que, a decisão recorrida, ao rejeitar, liminarmente, a execução, violou, o artigo 726.º n.º 2 do CPC, o artigo 1.º do diploma preambular associado ao DL 269/98, de 1 de setembro; -o artigo 10.º n.º 2 al. e) do regime anexo ao DL 269/98; o artigo 14.º-A n.º 2 do regime anexo ao DL 269/98 e o artigo 193.º do CPC. –
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O recorrido não contra-alegou.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. –
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II. Objeto do recurso (definido pelas conclusões da recorrente):
a) Aferição de nulidade decorrente da invocada prolação de decisão-surpresa;
b) Da invocada existência de lapso na decisão (por cômputo de valores referentes a cláusula penal);
c) Verificação da viabilidade de conhecimento de uso indevido da injunção em sede de decisão de rejeição da execução proferida ao abrigo do art.º 726.º do CPC;
d) Verificação da suficiência do título executivo, por referência às obrigações pecuniárias em cobrança. –
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III. Apreciação:
- Da decisão-surpresa (enquadramento):
Qualificando-a como preterição de exercício do contraditório (como faz a recorrente) ou como vício aproximado do excesso de pronúncia (na medida em que o tribunal conheceu de questão que não podia conhecer num dado momento processual, mas apenas após a prática de um ato que a lei impõe – a comunicação às partes da possibilidade de proferir decisão do tipo da proferida) é claro nos autos que a decisão de rejeição da execução foi proferida nos autos sem que a requerente tenha tido possibilidade de se pronunciar ou a esperasse, constituindo um vício, por preterição  do estatuído no art.º 3.º n.º 3 do CPC.
O enquadramento jurídico das decisões-surpresa tem merecido diferentes respostas (sobre as divergências dogmáticas e jurisprudenciais sobre o enquadramento legal das decisões-surpresa: - As outras nulidades da sentença cível, Paulo Ramos de Faria e Nuno Lemos Jorge, setembro de 2024, julgar.pt),
Por ora, deixa-se apenas assinalado que o vício invocado se verificou, à frente se procedendo à sua qualificação e à avaliação das respetivas consequências, também alvo de amplo debate, que, por ora, apenas se assinala também (veja -se, a propósito, o acórdão desta Relação de 9/5/2024 – Arlindo Crua, dgsi.pt)
Concretizando a falta, sem entrar nos fundamentos concretos da decisão proferida, o recurso ao mecanismo de rejeição da execução, ao abrigo do disposto no art.º 726.º do CPC, é algo de estruturalmente diverso da rejeição liminar da execução por falta de título executivo, nos casos em que a forma processual imponha a sua avaliação inicial pelo tribunal.
A questão é que, neste caso, a tramitação processual-regra prevê a avaliação da exequibilidade do título apresentado pelo juiz e, consequentemente, o indeferimento liminar da execução será algo que se inscreve na tramitação típica e esperada pela parte, não devendo qualificar-se de decisão-surpresa.
Nos casos, como o presente, em que a avaliação do título não é feita em sede liminar, ainda que a lei conceda ao juiz a faculdade de avaliar o título em qualquer fase do processo e, nessa medida, a surpresa pela rejeição nunca será absoluta, a verdade é que, correndo a execução os seus trâmites sem apreciação da executoriedade do documento apresentado, uma avaliação da sua suficiência implica um desvio face à tramitação esperada que, só por si, imporia pronúncia das partes.
Por outro lado, se é verdade que no indeferimento liminar de qualquer execução o exequente não tem possibilidade de discutir previamente o sentido da decisão e os seus fundamentos, faculdade que lhe será dada em caso de rejeição da execução, também é certo que a própria tipologia dos títulos executivos e das formas de processo que lhes correspondem conduz a que o debate sobre os fundamentos da rejeição sobreleve ante requerimentos de injunção com forma executória, enquanto títulos de formação judicial, com o acréscimo de segurança jurídica que tal deverá (ou deveria) comportar.
Nessa medida, uma rejeição de execução sumária, assente em injunção, na medida em que implica uma declaração de desvalor de um título de formação judicial, impõe também um reforço da necessidade de dar à parte a possibilidade de pronúncia sobre as questões suscitadas.
Verifica-se, assim, reitera-se, um vício.
Esse vício pode ser qualificado como nulidade da sentença (cf. art.º 615.º do CPC) ou como nulidade processual (art.º 195.º n.º 1 do CPC), sendo que as consequências a extrair serão diversas, pelo menos na visão tradicional da questão, podendo ser apresentadas, de modo simples, a partir do brocardo das nulidades reclama-se e das decisões recorre-se.
As consequências a extrair do mesmo poderão depender da avaliação da restante matéria do recurso, cujo fundamento não se pode, portanto, considerar a priori prejudicado.
Assim, caso sejam subsistentes alguns dos outros fundamentos recursórios, a surpresa da decisão poderá ser absorvida por tal fundamento, dispensando liminarmente a necessidade de substituição do despacho por outro que convidasse à pronúncia prévia das partes (que traduziria, manifestamente, um ato inútil).
Na situação contrária, ou seja, caso se mostrem consistentes os fundamentos da decisão recorrida, importará fazer uma análise adicional para determinar os atos adequados a suprir o vício (que constitui a própria prolação de decisão-surpresa).
Relega-se, assim, para momento posterior ao conhecimento dos fundamentos de recurso relativos ao título executivo, a questão da qualificação e consequências do vício verificado.
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- O invocado manifesto lapso na declaração de cômputo de valores relativos a cláusula penal:
Sustenta-se o despacho recorrido na cobrança de valores relativos a cláusula penal e, porque não diretamente emergentes do contrato e computados unilateralmente pelo credor (com base em incumprimento do devedor), prejudicariam a exequibilidade da totalidade dos valores reclamados (e, portanto, também aqueles que, efetivamente, emergem do contrato).
Diz a recorrente que a decisão assenta em lapso manifesto, não tendo sido computados na injunção quaisquer valores emergentes da aplicação de cláusula penal.
Antes de analisar a consistência deste argumento, cumpre contextualizar a função e os limites do título executivo em causa.
Ainda que se trate de título de formação judicial, não é um título jurisdicional e, portanto, não foi declarado por nenhum juiz se as obrigações em causa são ou não materialmente devidas.
Assentando a cobrança executiva sempre num título que lhe define e declara os estritos limites, a avaliação judicial do mesmo faz-se, prima facie, pela sua literalidade. Quer isto dizer que o tribunal de execução, ao analisar qualquer título executivo de formação não jurisdicional, tem o poder-dever de verificar se as obrigações cujo cumprimento coercivo é solicitado estão devidamente documentadas e comportadas no mesmo.
O mesmo se aplica à execução assente em injunção, enquanto mecanismo administrativo para conferir exequátur a obrigações pecuniárias não expressamente reconhecidas por um devedor, assente em regras e limites taxativamente definidos (Decreto-Lei n.º 269/98 e Regime Anexo ao mesmo).
O teor do título é, assim, a única base de valoração da admissibilidade do recebimento da execução (nos casos em que há lugar a despacho liminar) ou do seu seguimento (nos casos, como o presente, em que a avaliação é feita no decurso da tramitação executiva).
Chegando a este ponto, pode dizer-se que a Juiz a quo incorreu em lapso ao aludir a cobrança de valores relativos a cláusula penal?
Deve entender-se que não, por duas razões.
Em primeiro lugar, é a própria requerente que, no seu requerimento de injunção, sustenta a sua pretensão dizendo que o requerido se obrigou a efetuar o pagamento tempestivo das faturas, e a manter o contrato pelo período acordado, sob pena de, não o fazendo, ser responsável pelo pagamento de cláusula penal convencionada para a rescisão antecipada do contrato.
Acresce que, na indicação que faz das faturas em cobrança, alude apenas ao respetivo número e valor, sendo este grandemente díspar entre as várias indicadas, entre um mínimo equivalente a €3 euros (três), e um máximo equivalente a várias dezenas de euros, sem descrição do conteúdo das mesmas (o que, face a tal disparidade de valor, também permite inferir que se trata de obrigações de diverso tipo).
Estes elementos, extraídos do teor literal do título executivo, ainda que não afastem a possibilidade de, efetivamente, não terem sido computados valores relativos a cláusula penal, a verdade é que isso não decorre (pelo contrário) do documento que funda a execução, que apenas alude a faturas e, expressamente, a uma cláusula penal.
Em segundo lugar, como a própria recorrente reconhece nas suas alegações, a cobrança inclui um valor de €100 (cem) sobre a soma do que resulta das faturas, cuja liquidação assenta na alegação de despesas administrativas.
Também aqui desconhece o tribunal, pela análise do título, em que assenta tal cobrança.
Se for um valor contratualmente previsto, a sua qualificação será, precisamente, o de uma cláusula penal.
Se não for contratualmente previsto, tratando-se de um aproveitamento do procedimento de injunção para obtenção de uma compensação por (eventuais) danos relativos aos atos de cobrança (despesas administrativas), dir-se-á que tal constituiria um uso da injunção desviado da finalidade legalmente prevista, para cobrança de valores que extravasam o contrato, constituindo um outro fundamento de rejeição da execução.
Em qualquer dos casos, a conclusão a retirar é a mesma – da análise da injunção não decorre qualquer vício de avaliação no despacho em causa ao aludir à aplicação de uma cláusula penal. –
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- Da eventual redução da rejeição parcial da execução:
Subsidiariamente, solicita a recorrente que, a haver rejeição da execução, esta teria que ser meramente parcial, seguindo para cobrança dos valores não correspondentes a cláusula penal.
Também aqui lhe não assiste razão, por causa que lhe é imputável – a insuficiência de indicação de causa de pedir apresentada no requerimento de injunção (ou, seguindo os termos do formulário, insuficiência de exposição dos factos que fundamentam a pretensão).
Esta pretensão encontra lugar paralelo no disposto no art. 726.º n.º 3 a propósito do despacho de indeferimento liminar - é admitido o indeferimento parcial, designadamente quanto à parte do pedido que exceda os limites constantes do título executivo
Ao aludir a indistintamente a faturas, com valores díspares, não se mostra possível ao tribunal avaliar se a referência a cláusula penal foi ou não computada no valor de alguma delas, ou em todas, ou até (como a recorrente sustenta) em nenhuma.
Nessa medida, bem andou a juíza a quo ao concluir que não é possível identificar nos valores em cobrança aquilo que corresponde a cláusula penal e aquilo que lhe não corresponde (e, portanto, se referiria a valores líquidos diretamente emergentes do contrato).
Tal raciocínio poderia ser usado para as referidas despesas administrativas, estas devidamente quantificadas (e, manifestamente, não comportadas no título).
Tal redução seria, todavia, inócua no caso, permanecendo em dúvida o cômputo de valores emergentes de cláusula penal nos valores constantes das faturas e, portanto, excluir ou não excluir este valor não permitiria aproveitar o mais liquidado.
É certo que, na injunção, a requerente indica discriminadamente, nos espaços respetivos do formulário, os valores relativos a capital e a juros, mas essas referências tornam-se irrelevantes, na medida em que o valor de capital é o correspondente ao da soma das faturas e é a própria recorrente que faz referência a uma cláusula penal (nos termos equívocos acima referidos).
Assim, porque a confusão (hoc sensu) é relativa ao valor de todas as faturas, não é possível encontrar algum valor certo e líquido diretamente comportado pelo título em causa, não se mostrando possível reduzir a rejeição da execução a obrigações pecuniárias emergentes do contrato.
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- A suficiência do título (por referência à invocada falta permissão de rejeição de execução assente em injunção com os fundamentos da decisão recorrida):
Agregando a análise num único ponto (relativo à subsistência material do despacho proferido), são duas as linhas de argumentação apresentadas pela recorrente:
- De um lado, uma utilização não permitida da faculdade de rejeição da execução;
- Do outro, uma violação do disposto no Decreto-Lei n.º 269/98, que pode ser referida como desvio de finalidade ou esvaziamento da regulamentação em causa.
Por partes.
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Nos termos do art.º 734.º n.º 1 do CPC, o juiz pode conhecer oficiosamente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726.º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo.
São tais fundamentos de indeferimento a manifesta falta ou insuficiência do título ou quando ocorram exceções dilatórias, não supríveis, de conhecimento oficioso (art.º 726.º n.º 2 do CPC).
Na decisão a quo foi configurado o recurso ao procedimento de injunção para cobrança de cláusula penal (em parte indeterminável) como exceção dilatória insuprível, traduzida no recurso a um meio procedimental administrativo específico fora das finalidades taxativamente previstas na lei.
Esta perspetiva sobreleva o iter de constituição do título e a violação da tipicidade do mesmo, que se pode considerar insuprível (na medida em que a injunção não pode ser substituída, completada ou reformada), ainda que pudesse ser tratada como verdadeira insuficiência de título, nos termos a seguir indicados.
A suficiência do título convoca a análise judicial da compatibilidade entre a extensão da obrigação exequenda e o teor do título que a pretende suportar.
Nesta análise deve atentar-se que todos os elementos do título não jurisdicional são passíveis de análise pelo juiz e a sua compatibilidade e congruência são essenciais para verificar da consistência da pretensão de cobrança coerciva.
Ante uma sentença, o juiz de execução está impossibilitado de fazer qualquer juízo sobre o seu conteúdo. A partir do momento em que uma decisão transite em julgado ou, simplesmente, tenha força executiva, o juiz da execução só tem que avaliar da compatibilidade do valor do seu dispositivo com a liquidação do crédito feita pelo exequente.
No caso de títulos não jurisdicionais, o juiz de execução tem o poder-dever de analisar o título em todas as suas dimensões e não apenas na sua congruência externa com a liquidação executiva.
 Se verificar alguma incongruência interna, seja esta por falta de correspondência de valores, por incerteza no conteúdo da obrigação, ou outra, o título tornar-se-á insuficiente (se houver uma parte delimitável do mesmo que possa ser aproveitada) ou faltará na totalidade (se a incongruência for completa ou for impossível, como foi declarado no caso, segmentar as obrigações de pagamento que o integram).
São, em todo o caso, fundamentos de rejeição que não se excluem, verificando-se ambos no caso presente.
Quer isto dizer que não se acolhe a argumentação da recorrente no sentido de que o recurso ao disposto no art.º 734.º não é possível no caso.
A um segundo nível, coloca a recorrente a análise na perspetiva do esvaziamento da figura da injunção decorrente do entendimento manifestado na decisão recorrida.
Este fundamento pode dividir-se em duas linhas de argumentação.
A primeira assenta no que se pode qualificar como segunda oportunidade de defesa dada ao requerido em procedimento de injunção.
O argumento é apresentado nas conclusões dizendo a recorrente que permitir-se ao juiz da execução pronunciar-se ex officio relativamente à exceção dilatória de uso indevido do procedimento de injunção esvaziaria de função o art.º 14.º-A n.º 2 do DL 269/98, de 01 de setembro, e atentaria contra o princípio da concentração da defesa ínsito no artigo 573.º do CPC.
Não tem razão.
É facto que foram objeto de longa querela jurisprudencial (até ao nível da jurisdição constitucional) os fundamentos de oposição à execução fundada em injunção e se estes se deveriam aproximar aos de oposição à execução fundada em sentença ou noutro título, questão que se deve considerar pacificada, por força das alterações introduzidas pela Lei n.º 117/2019 ao art.º 857.º do CPC e ao Regime Anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98 (no sentido de a comunicação ao requerido dever conter expressa advertência da preclusão dos meios de defesa decorrente da falta de oposição).
Por isso, pressupondo-se que a aposição de fórmula executória em injunção conteve uma adequada comunicação ao requerido, com as advertências impostas e, portanto, até certo ponto, envolve um reconhecimento tácito das obrigações reclamadas, esse ponto-limite situa-se precisamente na preclusão da oportunidade de dedução de defesa substantiva por meio de embargos.
Isto quer dizer que não se pode perder a noção central de se tratar de um título não jurisdicional e não declarativo de direitos e, portanto, em que o juiz mantém a jurisdição que a lei lhe conceder.
A lei retirou ao requerido de injunção (e executado com base na mesma) a faculdade de, por via de embargos, pôr em causa o fundo das obrigações reclamadas em injunção (que receba a legal advertência de preclusão do direito de defesa ampla) e, consequentemente, retirou ao juiz da execução jurisdição sobre tais fundamentos de oposição à execução.
Porém, ao manter o legislador a previsão, que é um poder-dever do juiz da execução, de avaliar da exequibilidade de todos os títulos (no referido art.º 734.º do CPC) está a manter controlo jurisdicional sobre os mesmos, independentemente das faculdades que concede às partes.
É, por isso, errado dizer, neste caso como em qualquer situação em que sejam concedidos ao juiz poderes de conhecimento oficioso de qualquer falta ou vício processual, que isso viola o princípio de concentração da defesa.
Esta é apenas mais uma manifestação das faculdades de controlo da legalidade de atos concedidas ao decisor judicial ex officio, que não se deve considerar retirada pela aludida alteração ao disposto no art.º 857.º do CPC.
Diga-se, a concluir esta linha, que este é um poder vinculado do juiz e não, portanto, um poder discricionário, decorrente de qualquer juízo de conveniência ou de oportunidade.
Quer isto dizer que o juiz da execução, mais que poder, tem o dever de rejeitar a execução quando constate que está a correr com falta de título, com título insuficiente ou quando se verifique exceção dilatória insuprível.
A segunda linha argumentativa apresentada a este propósito pela recorrente é muito próxima da outra que foi já abordada a propósito da cláusula penal – o argumento de que, à semelhança do que sucede com os juros de mora, também as despesas de cobrança resultam diretamente da falta de pagamento da obrigação pecuniária principal e, por conseguinte, constituem uma obrigação pecuniária em sentido estrito, isto é, diretamente emergente do contrato.
Ainda que neste ponto se refira apenas a despesas de cobrança, o que está aqui e causa é a sustentação de duas ideias muito próximas:
a) É permitido lançar mão de injunção para cobrança de obrigações pecuniárias de constituição eventual ao abrigo do contrato, ou obrigações decorrentes de um incumprimento e, portanto, ao contrário do que é expressamente afirmado na decisão recorrida, a injunção não serve apenas para a cobrança de obrigações pecuniárias diretamente emergentes do contrato (é a expressão da decisão) ou, talvez mais precisamente, obrigações pecuniárias decorrentes da mera execução do contrato ou obrigações contratuais típicas, podendo abarcar quaisquer obrigações emergentes de incumprimento (ou mora).
b) Ao não deduzir oposição, o recorrido, aceita ser devedor de todas as obrigações emergentes do contrato, sejam estas relativas ao cumprimento das obrigações típicas (pagamento pelos fornecimentos de bens ou serviços), sejam os acréscimos contratuais, independentemente da sua natureza.
É um entendimento que não se acolhe.
Antes de avançar, pode dizer-se que existe alguma imprecisão legal no quadro nacional de cobrança das chamadas small claims, designadamente no que diz respeito ao tipo de obrigações contratuais abrangidas e na omissão de referência a dívidas emergentes da lei (como as relativas a condomínio).
Importa, todavia, pôr em perspetiva, como se sustenta na decisão recorrida e decorre do argumento histórico de interpretação (vide preâmbulo do Decreto-Lei n.º 269/98), que as injunções foram constituídas como mecanismo de desbloqueio das cobranças de dívidas de consumidores, associado a um assumido propósito de retirada dos tribunais de um conjunto alargado de ações de cobrança deste tipo.
Este argumento histórico, ligado racionalmente à função de cobrança em causa, ao facto de estar também prevista uma ação declarativa, a que corresponderá uma decisão jurisdicional (art.º 1.º e seguintes do Regime Anexo), ligando-se à literalidade do art.º 7.º do Regime Anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, permitem sustentar a interpretação da decisão recorrida sobre o tipo de obrigações contratuais passíveis de serem exigidas em injunção, i.e., as que decorram da normal execução do contrato, ou direta e necessariamente emergentes do mesmo (ficando excluída a cobrança de obrigações derivadas do incumprimento e unilateralmente liquidadas pelo requerente).
Quer isto dizer, em síntese, que se entende sustentado o conteúdo do despacho recorrido quanto ao teor do título, sem prejuízo do declarado vício decorrente da circunstância de dever qualificar-se a rejeição da execução como decisão-surpresa. –
- Da nulidade decorrente da decisão-surpresa e suas consequências:
Como acima se referiu, não está estabilizado na doutrina ou na jurisprudência o enquadramento legal a atribuir ao vício processual decorrente da emissão de decisão-surpresa.
Crê-se que muitas das divergências jurisprudenciais sobre esta questão traduzem um postulado de princípio que não deve ser assumido acriticamente – o de que, no essencial, todas as decisões-surpresa devem ser enquadradas juridicamente da mesma forma.
É certo que o vício é reconduzido a um mesmo preceito legal-base (o art.º 3.º n.º 3 do CPC).
Esse chapéu conceptual agrega, todavia, situações que podem ser muito díspares, mas que, por se referirem a decisões, têm tendido a ser agregadas, consoante as orientações, à luz das regras das nulidades processuais (de que, em regra, se reclama) ou das nulidades da sentença (de que se recorre) - como referido por Ramos de Faria e Lemos Jorge (Outras nulidades da sentença cível, Julgar Digital, setembro 2024, p. 10) - a partir de 1961 (ou, mais corretamente, de 24 de abril de 1962), a lei processual comum passou a estabelecer que se recorre de atos decisórios nulos, estando a nulidade tipificada, e reclama-se contra as nulidades dos restantes atos.
Essa visão tende a ser redutora, agregando situações em que é possível identificar uma omissão de exercício de contraditório pleno quanto à materialidade do litígio (como tenderão a ser todas as decisões proferidas em processo comum declarativo antes de audiência final), com situações em que todos os argumentos da parte foram, de forma clara, apresentados nos autos, ainda que em momento posterior à prolação de decisão-surpresa.
O caso dos autos, de rejeição da execução por verificação de vício insuprível na formação do título, ou sua insuficiência, será uma dessas situações.
A decisão é objetivamente restrita e dirigida a um documento, que constitui a base de um processo (executivo).
A parte apresentou, em sede recursória, todos os argumentos suscetíveis de porem em causa a decisão recorrida, a ponto de se poder, com segurança, afirmar que não existe qualquer questão que não tenha sido debatida nos autos.
Quer isto dizer que, se no caso de decisões em que possa sobrelevar-se uma insuficiência no exercício do contraditório, a decisão-surpresa tenderá a prejudicar a validade da própria sentença, no caso de uma decisão de rejeição da execução, porque relativa a um restrito juízo sobre a exequibilidade do título executivo, o que sobreleva é uma simples omissão da prática de um ato processual – a audição da parte prévia à decisão (no sentido de se tratar de um vício da própria decisão, Teixeira de Sousa, cit. As outras nulidades, p. 28).
Neste caso, parece-nos, assim, que o melhor enquadramento para a questão será qualificá-la de simples nulidade processual, traduzida na prolação de decisão sem prévio exercício de contraditório (decisão não inserida no iter processual necessário desta forma processual), sobrelevando a natureza estritamente formal do vício, o que, caso se tratasse de ato diverso de um decisório, levaria a considerar que o prazo legal de arguição (de dez dias) se mostraria integralmente transcorrido no momento da apresentação do requerimento. Assim não sucede, todavia, no caso de atos decisórios.
Seja qualificando a situação à luz do art.º 195.º, seja reconduzindo-a a um vício previsto no art.º 615.º, a solução a dar à questão sempre implica o conhecimento da questão em sede recursória – (vejam-se, a propósito, as amplas referências jurisprudenciais em As outras nulidades...cit., p. 78 e 79)
A decisão de rejeição da execução, enquanto ato decisório integrado numa sequência ordenada de atos (que é o processo executivo), não deixa de poder enfermar dos vícios de qualquer ato processual, sem prejuízo dos vícios que especificamente podem afetar a sentença, enquanto ato nuclear do processo.
Propende-se, assim, a seguir a linha de enquadrar a preterição da audição prévia à decisão de rejeição da execução como um vício formal de um ato processual, em tudo equivalente à prática de um outro qualquer ato processual praticado num momento desfasado do legalmente previsto, subsumindo-a numa nulidade tipificada pelo art.º 195.º do CPC.
Ainda que assim não seja e se caminhe por um enquadramento à luz do cf. art.º 615.º n.º 1 al. d), 666.º e 685.º do CPC), deve entender-se, no caso, que a solução seria equivalente em termos de consequências processuais.
O vício em causa, ainda que ligado ao princípio do contraditório, traduz a prática de um ato processual num momento indevido, sendo esse o único vício da decisão (o momento processual em que foi proferida).
Tal vício, nos casos (como o presente) em que toda a argumentação seja esgotada em sede recursória, torna inócua a sua qualificação como vício processual ou da sentença.
Como foi dito no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/1/2021 (Graça Amaral, dgsi.pt) tendo a parte tenha tido conhecimento/oportunidade de se pronunciar, não assume cabimento enveredar-se por um procedimento formal para dar lugar a novo contraditório que, nessa medida, se revela dispensável.
Remetendo novamente para as referências do acórdão desta Relação supra identificado (acórdão de 9/5/2024 – Arlindo Crua, dgsi.pt), caso as partes tenham tido oportunidade de se pronunciarem em sede de recurso, de forma ampla e completa, sobre a matéria da decisão-surpresa, a anulação da decisão para efeito de convite a nova pronúncia constituiria um ato inútil, e como tal postergado pelo art.º 130.º do CPC.
É claro, no caso, que a recorrente se pronunciou ampla e completamente sobre a decisão recorrida, comportando todos os seus fundamentos e, portanto, não se ateve à arguição de nulidade ou não se limitou as umas considerações genéricas subsidiárias sobre o fundo da decisão.
Quer isto dizer que a anulação do despacho, e sua eventual substituição por outro que ordenasse audição das partes prévia à decisão de rejeição, constituiria uma simples repetição do contraditório, já exercido em sede de recurso.
Traduziria, assim, uma inutilidade processual, sem qualquer acréscimo relevante para o contraditório.
Conclui-se, assim, por causa de tal debate amplo sobre o sentido e conteúdo da decisão, sempre se mostraria sanado qualquer vício com a pronúncia recursória.
É o que se decide, improcedendo a apelação. –
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IV. Decisão:
Face ao exposto, nega-se procedência à apelação, confirmando-se a decisão recorrida. –
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Custas pela apelante,
Registe-se e notifique-se. –
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Lisboa, 10-10-2024,
João Paulo Vasconcelos Raposo
Susana Gonçalves
Arlindo Crua