RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ABSOLVIÇÃO EM 1.ª INSTÂNCIA E CONDENAÇÃO NA RELAÇÃO
SEGREDO DE JUSTIÇA
VIOLAÇÃO DE SEGREDO
LIBERDADE DE IMPRENSA
Sumário


I- Não constitui fundamento nem razão de impedimento ou de recusa a composição de um colectivo em que um dos juízes que tenha participado numa primeira decisão seja substituído por outro, não tendo sido a alegada contaminação dos não substituídos pelo substituído minimamente consistente ou demonstrada, já que os magistrados judiciais pensam por si próprios, com independência e imparcialidade, não sendo suficiente a mera alegação de participação na decisão de alguns dos que fizeram parte do colectivo onde esteve o juiz substituído razão legal e suficiente para os afastar também só por esse facto.
A jurisprudência tem sempre considerado, justamente e sem dissídio, que a recusa tem de ter na base um motivo (sério e grave) gerador de desconfiança ou suspeição sobre a imparcialidade do juiz, motivo que só conduzirá à recusa quando objectivamente diagnosticado no caso concreto. O motivo sério e grave apropriado a gerar a desconfiança, há-de resultar de concretização material, assente em razões objectivamente valoradas, à luz da experiência comum e conforme juízo de um cidadão médio. Impõe-se sempre a formulação de um diagnóstico positivo no sentido de que um cidadão médio possa fundadamente suspeitar de que o juiz deixe de ser imparcial por força da influência do facto concreto invocado no incidente de recusa.
Assim,a convocação de uma “contaminação” do novo colectivo apresentada pelo recorrente sem comprovação mínima de haver existido afectação séria e grave da imparcialidade dos juízes não substituídos não se integra nas circunstâncias previstas no art.º 40.ºdo CPP e também não é susceptível de configurar a previsão dos n.ºs 1 e 2 do art.º 43.º do CPP, inexistindo irregularidade alguma.
II - o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito, nos termos do artº 434º do CPP, mas sem prejuízo do conhecimento da verificação do fundamentos previstos no artigo 410.º, n.ºs 2 e 3 do CPP (se invocáveis nos casos do artº 432º nº1 a) e c) ou, oficiosamente, quando sejam notórios e evidentes, mesmo se não invocados ou invocáveis.
Ou seja, o STJ está desde logo impedido de apreciar ou sindicar a valoração da prova efectuada pelas instâncias, fora do referido enquadramento legal .Todas as questões suscitadas nos recursos para o STJ do Acórdão do Tribunal da Relação ( que reverteu em condenação a absolvição na 1ª instância) interpostos e relativas à decisão da matéria de facto excedem os poderes de cognição do STJ. O STJ conhece apenas em matéria exclusivamente de direito, sendo o recurso de rejeitar na parte restante.

III- O tribunal da Relação tinha poderes de modificação da matéria de facto nos termos dos artºs 428º e 430º do CPP, usando poderes e competências atribuídas ex lege, em face do peticionado pelo MPº, o qual entendia no recurso por si interposto da decisão de absolvição na 1ª instância que os arguidos violaram intencionalmente o segredo de justiça divulgando actos processuais abrangidos no regime de protecção do segredo de justiça, e actuou sobretudo na redefinição do segmento do elemento subjectivo concluindo de forma cabível, segundo essas regras da experiência que eles admitiram como consequência possível da sua conduta essa violação.”

IV- Na tipologia, estrutura e finalidades dos recursos interpostos, em matéria de apuramento da justificação/ingerência para a incriminação por violação do segredo de justiça por parte dos arguidos srs jornalistas os aspectos fundamentais ativeram-se essencialmente ao problema de saber se:
-Os elementos divulgados eram abrangidos pelo regime de protecção do segredo de justiça e se, sendo-o, a sua divulgação e as circunstâncias em que o foram, face ao interesse público dos casos, merecia ainda assim a sua divulgação em detrimento do segredo de justiça, numa relação de preponderância entre bens jurídicos:-o da liberdade de informar e o da protecção do segredo das investigações em curso.

V- Não configura adequada alegação de vício de erro notório de apreciação de prova pretender apenas com a respectiva invocação colocar em crise a convicção que o Tribunal recorrido criou perante as provas produzidas em audiência e substituir essa convicção pela sua ( a dos recorrentes) própria convicção. Assim, a divergência de convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal formou, não se confunde com o referido vício.

VI- O direito à informação e a liberdade de imprensa são direitos fundamentais que estão em pé de igualdade com outros direitos pessoais, como o direito à honra, ao bom nome, à reserva da intimidade da vida privada e familiar de cada um e à presunção de inocência, que o segredo de justiça tutela, a par da eficácia da investigação e da preservação da prova, todos consagrados na CRP.
A comunicação social tem uma importante função num Estado de Direito Democrático, particularmente como garantia relativamente à realização da justiça, podendo, no entanto, a sua acção colidir, por vezes, com os direitos do arguido, designadamente a presunção de inocência, e com os direitos individuais deste e de todos os envolvidos no processo.
Pelo que, estando perante um conflito entre o segredo de justiça e o direito de informação, o julgador deve socorrer-se dos critérios da ponderação de bens ou da concordância prática com vista à sua solução, uma vez que o critério da hierarquização é inaplicável, por estarem em confronto direitos com o mesmo valor. Para conciliar o segredo de justiça com os outros princípios e direitos fundamentais consagrados na CRP “têm que intervir os saudáveis princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e, como subjacência determinante, o da dignidade da pessoa humana”.

VII- Da leitura dos factos provados, de enorme relevo público, dadas as funções das pessoas envolvidas e a gravidade dos actos objecto de investigação, tendo estado profusamente no primetime da principal informação divulgada em todo o país, é incontornável que alguns segmentos e aspectos mais concretos ali enunciados, embora na sua maioria apenas por mera narração dos acontecimentos atinentes ao decurso das investigações nos identificados inquéritos criminais, foram intencionalmente divulgados e publicitados nos termos transcritos, alguns até bem na hora de realização de diligências– on line vg. no caso das buscas (factos 10 e 33) a decorrer em vários locais, entre outros, revelando também (às vezes apenas por síntese) algum do conteúdo de documentos e de actos/ diligências processuais ou dos seus resultados, nos processos que se encontravam em segredo de justiça.

VIII- A parte do segmento de notícias consistente na narrativa e divulgação da ocorrência de acto processual e não do acto em si, é comportamento que a lei processual, no artigo 86.º, n.º 8, do CPP determina como proibido, mas não está tutelado no tipo pebal de violação de segedo de justiça configurado no artº 371º do CP.

IX - O crime de violação do segredo de justiça previsto e punido no artº 371 º do CP, agravado nos termos do artigo 30º, n.º 2, da Lei 2/99 é um crime contra a realização da justiça, com ele visando o legislador, impondo na sua observância, garantir objectivos múltiplos, avultando de entre eles o sucesso da investigação criminal bem como, ainda, a salvaguarda dos direitos e interesses dos sujeitos processuais, tais como o da presunção de inocência e que poderiam ser lesados com a divulgação de elementos dos processos em que intervêm.

X- Em sintonia com a alteração do nº 8 do art 86º do CPP (Lei 48/2007) e na sequência da reforma de 2007 (Lei n.º 59/2007, de 04/09 ) o artº 371º do CP sofreu o aditamento da expressão “ independentemente de ter tomado contacto com o processo”, visando com isso passar a preencher-se o tipo objectivo sem a exigência de que o conhecimento do acto processual tenha sido obtido através do contacto com o processo, alargando assim o universo de potenciais infractores incluindo também aqueles que não tenham tido acesso ou contacto directo com o processo.

XI- O crime de violação do segredo de justiça traz ainda à colação a discussão sobre a sua verdadeira natureza e classificação tendo usualmente vindo a ser interpretado como exigindo apenas a criação de um perigo abstracto de prejuízo. Ao apelar-se usualmente à denominação de crimes de aptidão, de perigo hipotético ou de crime de perigo abstrato-concreto, pode concluir-se que sendo a exigência para a consumação do crime de aptidão, além do perigo abstracto para o bem jurídico, a de ter de existir aptidão ou idoneidade da conduta para produzir um efeito lesivo sobre o objecto de acção, mas exigência essa a ter de estar descrita no próprio tipo de ilícito objectivo , o crime de violação do segredo de justiça não cumprirá este último requisito na actual configuração normativa e, assim, será com dificuldade que se possa afirmar ser este tipo de crime um crime de aptidão.

XII- Independentemente da solução dogmática acerca da natureza do tipo de crime em discussão e concordando que a mera afirmação da existência para a consumação seja frequentemente a de um perigo abstracto, o certo é que tem vindo cada vez mais a defender-se a sua aproximação à natureza de um perigo de resultado concreto e a jurisprudência do TEDH parece cada vez mais apontar para essa via, dada a intensa protecção que nela tem sido conferida à liberdade de imprensa.

XIII. Segundo a hermenêutica do TEDH, no caso da violação do segredo de justiça, o dano exigido ou exigível terá de ser mais direto e concreto, pois a divulgação indevida pode afetar diretamente o andamento do processo e os direitos das partes. Tendo em conta esta linha de pensamento do TEDH , assume-se ainda como sendo no entanto muito duvidoso que a factualidade descrita e provada possa ela mesmo corresponder a uma verdadeira integração no tipo penal do art.º 371.º do CP já que na sua larga substância descreve ocorrências processuais e o que se atém a matéria de teor de alguns actos processuais como indicado surgiu sobretudo de circunstâncias em que os mesmos já eram conhecidos por vias que elas próprias já teriam implicado outras prévias violações de segredo de justiça por terceiros que não os srs jornalistas arguidos.

XIV- Na verdade, ainda que venha sendo considerado por alguma doutrina mais conservadora como um crime de perigo abstracto, sem requisito de produção de dano efectivo ou pelo menos de perigo concreto, tal natureza tem sido, porém, objecto de discordância do TEDH, pois que este tem vindo a exigir na ponderação dos interesses em jogo e do grau de necessidade de ingerência do Estado na restrição à liberdade de imprensa um perigo mais evidente ou mais concreto para a investigação ou para a presunção de inocência (esta, porém, não estar em causa no presente caso

XV- Diversos casos como ali decididos, ainda que nas circunstâncias das respectivas narrativas factuais particulares, mas não só, ilustram o equilíbrio delicado que o TEDH busca manter entre a proteção do segredo de justiça e a garantia da liberdade de expressão. Assim, no domínio da liberdade de imprensa versus segredo de justiça, se não se devem ultrapassar certos limites (v.g. protecção da reputação e dos direitos de outrém; v.g. necessidade de impedir a divulgação de informações confidenciais, etc), incumbe aos jornalistas, contudo, comunicar - com respeito pelos seus deveres e responsabilidades – as informações e ideias sobre todos os assuntos de interesse geral.

XVI- Os limites previstos no nº 2 do artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem à liberdade de imprensa devem ser vistos como excepções robustas, e interpretados de forma restritiva, sendo que a necessidade de qualquer ingerência deverá corresponder - de acordo com jurisprudência já sedimentada - a uma «necessidade social imperiosa» e ser «proporcional ao objectivo legítimo pretendido» Os princípios gerais para avaliar a necessidade de uma interferência no exercício da liberdade de expressão, têm sido frequentemente reafirmados pelo Tribunal desde o acórdão Handyside v. Reino Unido (7 de Dezembro de 1976, Série A n.º 24), foram resumidos (Suíça ([GC], n.º 69698/01, § 101, CEDH 2007-V) e reformulados mais adiante no processo Morice v. França ([GC], n.º 29369/10, § 124, CEDH 2015) e Pentikäinen c. Finlândia ([GC], n.º 11882/10, § 87, CEDH 2015).

XVII- O TEDH tem entendido que o direito à liberdade de expressão só não prevalece sobre outros direitos, entre os quais o segredo de justiça, o direito ao bom nome ou às garantias de defesa, se houver prejuízo concreto para a investigação ou para a presunção de inocência. Esta posição resulta da interpretação que o TEDH faz e tem vindo a fazer dos artigos 6.º e 10.º da CEDH. De acordo com o artigo 6.º da CEDH, a restrição à liberdade de expressão e de informação só se justifica na medida em que, no interesse da justiça, se sobreponham, em concreto, outros direitos, como o direito à defesa.

XVIII-Ainda que se pudesse conceder poder afirmar-se a subsunção de alguns dos factos relativos à descrição de teor de actos processuais no tipo penal do artº 371º do CP, é nas circunstâncias concretas do caso que a ponderação de interesses deve existir e não por via de uma mera constatação de um perigo abstracto de lesão apenas e de per se em face da consideração de que a natureza do crime é a de crime de perigo abstracto.
Há uma margem de apreciação por parte das autoridades nacionais. Existe ainda a necessidade de um evidente interesse público das notícias mas o direito de informar deve ser restringido apenas em situações limite, com carácter de excepcionalidade.

XIX- No caso dos autos não se provou que houve prejuízo para as investigações nem que esse perigo existiu, sequer em concreto, muito menos se conseguiu consensualidade da validação típica e dogmática da qualificação como crime de perigo em abstracto (a afirmação deste foi meramente conclusiva). Deste modo, embora reconhecendo que a acção de divulgação noticiosa por parte dos arguidos Srs. jornalistas podia ter sido mais contida, revelando algum excesso informativo, e mesmo que se conceda que, não obstante as dúvidas e reservas de subsunção jurídica antes sublinhada, alguma da factualidade provada pudesse ser abrangida no tipo de ilícito do art.º 371º do CP, o certo é que, atendendo aos limites de compressão verdadeiramente excepcional que o TEDH tem assumido na protecção do direito de liberdade de informação, no confronto com a violação do segredo de justiça quando estejam em causa factos de muito relevante interesse público, como foi e ainda é o dos casos em investigação constantes na matéria de facto assente, devemos aproximarmo-nos da interpretação do que seja tal violação em articulação com o direito à liberdade de expressão e com a jurisprudência do TEDH.

XX- Assim, impõe-se uma interpretação do tipo penal que entenda que a conduta típica e ilícita é apenas aquela que ostensivamente coloca em perigo o bem jurídico normalmente considerado como sendo o protegido por esta incriminação.
Dos factos dados como provados que foram considerados pelo Tribunal da Relação como subsumíveis ao crime em questão não se vislumbra, mesmo assim, que atendendo à necessidade de exercício de um direito à informação, possam constituir, no contexto em que foram divulgados os factos e as informações, uma violação punível do dito segredo de justiça, dado que não se demonstrou que aquela divulgação se mostrou ostensivamente adequada a perturbar a investigação que estava a decorrer e que acabou, no essencial, por consistir num relato disso mesmo.

XXI- Pelo que, nessa linha de pensamento, inexistindo no presente caso sinais suficientemente decisivos da justificação para uma ingerência da autoridade judiciária através da censura jurídico-penal assumida pelo Tribunal da Relação, a mesma deve ser eliminada, revogando-se a decisão de condenação e absolvendo os arguidos].

Texto Integral


Acordam em Conferência na 5ª Secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. Por decisão proferida em ........2023, pelo Juízo Central Criminal de ..., ..., foram os arguidos , jornalistas, AA e BB, ora recorrentes, absolvidos dos crimes de violação de segredo de justiça que lhes haviam sido imputados em sede de despacho de pronúncia.

Para tanto - e agora em breve síntese (expurgada aqui das extensas considerações doutrinárias e jurisprudenciais referenciadas) - considerou-se naquela decisão a seguinte argumentação conducente à aludida absolvição:

“ (…) Vertendo agora tudo quanto acima se disse sobre o crime de violação do segredo de justiça ao caso em apreço, e tendo por base a decisão do Tribunal Colectivo quanto à matéria de facto, torna-se evidente que os arguidos AA e BB, na sua qualidade de jornalistas, publicaram as notícias dos autos, sabendo que os processos judiciais a que as mesmas se referiam estavam em segredo de justiça.

Porém, também ficou demonstrado que os arguidos, na maioria dos conteúdos das notícias, se estavam a referir à existência ou à ocorrências de actos processuais, sem reproduzir o teor dos mesmos. Muitos dos factos noticiados eram factos já conhecidos, do domínio público, essencialmente decorrentes das divulgações feitas pelo blogue "mercado de benfíca", ou da existência de notícias ou divulgações anteriores feitas por outros órgãos de comunicação social. Nota-se também que muitos dos factos que compunham as notícias dos autos decorriam de informações obtidas pelas investigações jornalísticas levadas a cabo pelos próprios arguidos.

Acresce que todos os factos noticiados respeitavam a casos de enorme relevância social, não só pelas figuras públicas envolvidas (do mundo da Justiça e do desporto - futebol), como pela gravidade dos factos e natureza dos ilícitos em apreço (corrupção).

Tratavam-se de processos judiciais de enorme importância, que impunham o dever de informar o leitor, que por seu turno, tem direito a ser esclarecido do que se está a passar e da própria razão das coisas.

Por último, no caso dos autos, de toda a prova produzida em audiência de julgamento, resultou evidente que a publicação das notícias dos autos não causou qualquer prejuízo para as investigações, nem para os próprios visados.

As investigações correram os seus termos dentro da normalidade, sendo que toda a prova procurada foi recolhida e não houve qualquer influência no decurso dos processos, nos quais foram proferidas acusações, que seguiram para julgamento.

Por seu turno, os visados não viram prejudicada a sua defesa, nem o seu direito a um processo equitativo, sendo que nenhum deles exerceu qualquer queixa ou acção contra os arguidos por eventuais danos que as noticias tivessem causado.

Face ao acima exposto, torna-se inequívoco que os arguidos, no exercício da sua profissão de jornalistas, publicaram as notícias dos autos de forma legítima, tudo com o único e exclusivo fim de esclarecer o leitor, cumprindo o seu dever de informar, ao abrigo da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa.

Para além de terem agido de forma legítima, por tudo quanto acima se disse, tornou-se também evidente que os arguidos não agiram de forma dolosa, pois a sua única intenção foi cumprir o dever de informar, ao abrigo da liberdade de imprensa, e no cumprimento da sua função de jornalistas.

Na verdade, pegando na Jurisprudência do Tribunal dos Direitos do Homem e em toda a interpretação e aplicação que este faz do artigo 10° da Declaração Europeia dos Direitos do Homem, não se vislumbra que os arguidos tenham agido de forma ilegítima, pois nos três casos dos autos, tendo em conta a relevância e interesse dos factos noticiados e a total ausência de prejuízo para a investigação e para os próprios visados, o segredo de justiça deve ceder face à liberdade de imprensa.

Deste modo, e sumariando tudo quanto acima se disse, tendo os arguidos agido de forma legítima, ao abrigo da liberdade de imprensa, e apenas com o fim de cumprir o dever de informar o leitor, afígura-se que não agiram ilegitimamente, nem com dolo.

Assim, não estando preenchido todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de violação do segredo de justiça, a que alude o artigo 371° do Código Penal, devem os arguidos ser absolvidos dos crimes de que estão pronunciados, o que este Tribunal Colectivo decide. (…)”]

2. Desta decisão foi interposto recurso, pelo Ministério Público, para o Tribunal da Relação de Lisboa, pugnando-se pela alteração:

“(…) da matéria de facto dada como provada e não provada como acima exposto, sendo o arguido AA condenado pela prática de três crimes de violação de segredo de justiça, e o arguido BB condenado pela prática de um crime de violação de segredo de justiça, todos p. e p. pelo artigo 371º, n.º 1, do Código Penal, com a agravação prevista no artigo 30º, n.º 2, da Lei 2/99 de 13 de janeiro.

Este recurso foi julgado procedente, tendo o Tribunal da Relação decidido por acórdão de ........2023, o seguinte:

1. Altera-se o acórdão recorrido, no que concerne à matéria de facto provada e não provada, nos seguintes termos:

a. Elimina-se da matéria de facto provada o ponto 39.

b. Elimina-se da matéria de facto não provada os pontos 4 e 7.

c. Os pontos 5 e 6 da matéria de facto não provada, passam a ter a seguinte redacção:

“5) o que fez mesmo antes de todas as diligências ordenadas e noticiadas se terem iniciado, indiferente aos efeitos que essa publicação causaria aos interesses da investigação, designadamente à dissipação de prova por parte dos visados ou à perturbação da recolha da prova que se pretendia com tais diligências, e para a imagem dos visados pelas mesmas.

“6) alguns ainda não iniciados, indiferente aos efeitos que essa publicação causaria aos interesses da investigação, designadamente, dissipação de prova por parte dos visados ou perturbação da recolha da prova que se pretendia com tais diligências.

d. Adita-se à matéria de facto provada, os seguintes pontos:

37-A.) Os arguidos AA e BB agiram, em todos os momentos, de modo livre, deliberado e voluntário.

37-B) Nas situações descritas, o arguido AA quis divulgar, como divulgou, notícias que descreveram o conteúdo dos actos e peças processuais, sabendo que, como consequência possível da sua conduta, poderia violar o segredo de justiça, que vigorava nos autos, conformando-se com tal resultado.

37-C) O arguido BB, no âmbito do processo nº 6421/17.2..., quis divulgar, como divulgou, notícia que descrevia o conteúdo dos actos processuais ordenados no referido processo, sabendo que, como consequência possível da sua conduta, poderia violar o segredo de justiça, que vigorava nos autos, conformando-se com tal resultado.

37-D) Os arguidos AA e BB tinham conhecimento que a violação do segredo de justiça era punida por lei.

2. Revoga-se a sentença recorrida em tudo o que concerne à absolvição dos arguidos e, em consequência:

Condena-se o arguido BB, pela prática de um crime de violação de segredo de justiça, p. e p. pelo artigo 371º, n.º 1, do Código Penal, com a agravação prevista no artigo 30º, n.º 2, da Lei 2/99 de ..., na pena de 105 (cento e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez) euros, o que perfaz o montante de €1.050,00 (mil e cinquenta euros). Mais se consigna que a pena de prisão subsidiária é de 70 (setenta) dias.

Condena-se o arguido AA, pela prática de três crimes de violação de segredo de justiça, p. e p. pelo artigo 371º, n.º 1, do Código Penal, com a agravação prevista no artigo 30º, n.º 2, da Lei 2/99 de ..., na pena, por cada um deles, de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez) euros.

Em cúmulo jurídico, condena-se o arguido na pena única de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez) euros, o que perfaz o montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros). Mais se consigna que a pena de prisão subsidiária é de 100 (cem) dias.”

Tal acórdão foi reconfirmado por acórdão de ........2024 prolatado na sequência de reclamação para a conferência incidente sobre despacho da Exma Juíza Desembargadora relatora que decidiu questão atinente à impugnação da formação do colectivo e quanto à arguição de irregularidade processual daquele acórdão de ........23, tendo o TRL decidido indeferir (mais adiante explicar-se-á com maior detalhe o que estava em causa).

Assim, na sequência do decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, a factualidade provada e não provada ficou estabilizada e organizada da seguinte forma:

[(…)

2.2. Factos provados

Realizada a audiência de julgamento, dela resultaram provados, com interesse para a boa decisão da causa, os seguintes factos do despacho de pronúncia:

1) O arguido AA era, na data dos factos, subdirector da Revista ..., sendo antes disso jornalista do ....

2) O arguido BB era, na data dos factos, jornalista do jornal ....

3) A revista ... é uma publicação semanal generalista e o jornal ... é um jornal nacional diário, sendo ambos propriedade da ..., com sede de redacção na ....

4) No inquérito n° 19/16.0..., conhecido pela "...", por despacho do Ministério Público, de ... de ... de 2016, validado judicialmente por despacho de ... de ... de 2016, foi decretado o segredo de justiça, o qual foi prorrogado por 3 meses, em ... de ... de 2017, e por mais doze meses, em ... de ... de 2017, vigorando até ao termo desse prazo.

5) Nos primeiros dias de ..., na sequência de notícias que difundiram o comprometimento de CC, na altura Juiz Desembargador, com os factos e suspeitos investigados no processo "Rota do Atlântico", a Procuradoria-Geral da República confirmou à comunicação social a existência de um inquérito que teve origem numa certidão desse processo, dizendo ainda que se encontrava em investigação e em segredo de justiça.

6) Pelo menos desde o dia ... de ... de 2018, o arguido AA e um fotógrafo começaram a seguir CC, vigiando-o e fotografando-o.

7) A ... de ... de 2018, terça-feira, realizou-se uma operação de buscas e detenções no âmbito deste processo.

8) Foram realizadas, entre outras, buscas domiciliárias às casas de CC, na altura Juiz Desembargador, de DD, na altura Juíza Desembargadora, de EE, na altura Presidente do ..., e ao estádio do ....

9) Na busca efectuada em casa de DD, com início às 9.30 horas e fim às 17.30 horas, foi apreendida a quantia em numerário num total de € 10.760, que se encontrava acondicionada em diversos envelopes.

10) O arguido AA encontrava-se às 8.34 horas do dia ... de ... de 2018, junto à residência de CC, sita na ..., tendo filmado a chegada a esse local da equipa de magistrados, peritos e policias que ia executar a busca domiciliária.

11) O arguido AA publicou esse vídeo no sitio online da Revista ......

12) No mesmo sitio online, o arguido AA fez publicar, às 9.24 horas, peça que assinou, juntamente com o jornalista FF, com o título: "Judiciária faz buscas em casa de CC" e com o seguinte texto: "Neste momento estão a ocorrer buscas da Policia Judiciária na casa do juiz desembargador CC, que estão a ser acompanhadas por um juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça e pelo antigo procurador-geral da justiça GG, actualmente procurador no Supremo Tribunal de Justiça. A Policia Judiciária está neste momento a fazer buscas na residência do juiz desembargador CC. A operação está a ser acompanhada por um juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça e pelo antigo Procurador-Geral da República, HH, que é actualmente procurador-geral adjunto no Supremo Tribunal de Justiça. As buscas estarão relacionadas com a denominada operação Rota do Atlântico, que tem II como principal suspeito, e que investiga a alegada prática de crimes económicos. Na sequência dessa investigação, e das suspeitas que terão surgido de que CC terá recebido dinheiro indevidamente do empresário, o Ministério Público extraiu uma certidão que foi enviada para o Supremo Tribunal de Justiça, entidade que por lei é responsável pela investigação a um juiz desembargador. No âmbito da operação Rota do Atlântico, desencadeada a ... de ... de 2016, foram constituídos vários arguidos (...)"

13) Na edição escrita da Revista ... do dia ... de ... de 2018, o arguido AA assinou, juntamente com os jornalistas JJ, KK e FF, a peça jornalística com o titulo "Toda a rede de influências", com o seguinte texto (excerto): "Sob sigilo absoluto, uma equipa especial da Polícia Judiciária (PJ) e o procurador-geral adjunto LL, o coordenador dos magistrados do Ministério público (MP) no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), vigiaram durante vários meses a vida do juiz desembargador CC. O magistrado foi escutado em dezenas de conversas telefónicas, seguido por equipas encobertas de inspectores e as suas contas bancárias foram analisadas ao pormenor. O mesmo se passou com os dados financeiros das ex-mulheres do juiz, a também juíza-desembargadora DD e a advogada MM. (...) Assim, os dois juízes foram constituídos arguidos e informados que serão interrogados no STJ a 8 a .... Na megaoperação de buscas e detenções realizada na terça-feira passada, dia ..., e autorizada pelo juiz conselheiro NN, do Supremo Tribunal de Justiça (sendo desembargadores, OO e Galante também só podem por lei ser investigados por magistrados judiciais do STJ), foram detidas cinco pessoas: precisamente a ex-companheira de OO, MM... (..) A ... apurou que as autoridades terão até escutas telefónicas de conversas entre EE e OO sobre este processo e a forma de o resolver a troco de alegadas contrapartidas (a nomeação para cargos relacionados com entidades dependentes do clube da ...) para o juiz desembargador (...) Quando se separou da mulher (DD), o imóvel ficou na posse desta e foi também ali que a PJ foi esta semana bater à porta. Quando chegaram ao local, os inspectores ainda demoraram algum tempo a aceder ao apartamento: a campainha estava avariada e a juíza estaria a dormir profundamente. Só depois de uma chamada para o telefone fixo, é que a magistrada abriu a porta da residência. Lá dentro, os investigadores encontraram vários envelopes com dinheiro que foi apreendido, tal como sucedeu também na residência do ex-marido no ..., onde foram apreendidos mais de 10 mil euros em notas. (...) Apesar deste currículo, segundo a ... apurou, a PJ está a investigar a possibilidade de DD ter eventualmente "redigido alguns acórdãos assinados pelo juiz CC", conforme frisou uma das fontesligadas à investigação. (...) Na passada terça-feira, a ... acompanhou, em exclusivo, o início da operação de busca domiciliária a CC. (...) De resto, nos últimos dias, a Judiciária vigiou de forma intensiva CC, através da localização à distância do respectivo telemóvel e com carros descaracterizados. A ... acompanhou também os últimos cinco dias do juiz antes das buscas (ver caixa) e comprovou que OO levou uma vida aparentemente normal (...)".

14) Na "Caixa" encontram-se fotografias de CC e da sua viatura com as
seguintes legendas:

"Quinta-feira, 25 - Ao fim da tarde, CC esteve presente no lançamento da marca ... no ...

Sexta-feira, 26-0 juiz desembargador fotografado a sair do apartamento no ...

..., 27 - CC manteve a actividade desportiva: uma partida de futebol

Domingo, 28 - O magistrado fotografado a conduzir o seu SUV da marca Range Rover

Segunda-feira, 29 - A viatura de CC esteve várias horas estacionada na garagem da ..., em ...

15. O arguido AA sabia que estas notícias respeitavam a conteúdos de processo secreto.

16. No inquérito n° 5340/17.7..., conhecido pelo "...", por

despacho do Ministério Público, de ... de ... de 2017, validado judicialmente na mesma data, foi decretado o segredo de justiça, o qual foi prorrogado por 3 meses, em ... de ... de 2018.

17. No dia ... de ... de 2018, na qualidade de coordenador da Polícia Judiciária, PP assinou informação policial, sugerindo a realização de busca à ....

18. Em ... de ... de 2018, realizou-se tal busca no estádio do ..., ordenada no processo por despacho de ... de ... de 2018, do qual constava: "Em ........2017, foram realizadas diligências de busca às instalações ... que visaram, entre o mais, a localização de documentação contabilística (...) A apreensão de documentação contabilística foi concretizada, tendo sido trazidos os documentos melhor descritos no auto de busca e apreensão respectivo. Tal documentação destinava-se a ser analisada, sendo, logo no momento em que foi apreendida, evidente que seria necessário obter mais elementos de natureza contabilística para melhor esclarecimento dos factos investigados ou os mesmos documentos em outro suporte, designadamente digital. Neste passo, a contabilidade sob análise é a do ..., bem como das sociedades suas participadas, sendo necessário obter extractos de conta de clientes, fornecedores e outros, os respectivos documentos de suporte e demais elementos de natureza contabilística que se afigurem relevantes para a compreensão dos factos sob investigação. Conformo atestam os autos, foi solicitada a entrega de documentação contabilística em duas ocasiões, a qual não foi prontamente entregue. Nesta medida, e atenta a relevância probatória da mesma, haverá que lançar mão dos mecanismos legais adequados para a fazer ingressar nos autos, o que passa pela realização de busca ao local onde a mesma se encontra guardada. (...)".

19. No decurso da busca, foi invocado pelo Mandatário da buscada, a violação de formalidades decorrentes do segredo profissional de advogado, sobre a qual recaiu despacho do Ministério Público, o que ficou consignado no auto de busca e apreensão.

20. Na edição escrita da Revista ... do dia ... de ... de 2018, o arguido AA assinou, juntamente com JJ e FF, a peça com o título "Os casos que abalam o poder de EE", com o subtítulo "A busca secreta" e com o seguinte texto: "O factor temporal não foi o único em que a ... se cruzou com a investigação ao chamado caso dos emails. Outra situação ocorreu discretamente no passado dia ..., quando a atenção mediática estava voltada para as dezenas de buscas realizadas no âmbito da ...: ao mesmo tempo que uma equipa de inspectores da Polícia Judiciária fazia buscas no ... para procurar elementos que, de alguma forma, pudessem estar relacionados com o caso que tem CC como figura central -e que atinge, além de EE, o vice presidente QQ e o ... RR -, um segundo grupo de investigadores do crime económico entrou discretamente nas instalações do ... para cumprir um novo mandado debusca e apreensão, mas neste caso relativo ao chamado caso dos emails. Esta foi a segunda vez que os inspectores da Judiciária estiveram na ... para cumprir mandado judicial no âmbito deste inquérito. Na primeira, dia ... do ano passado, o Ministério Público deixou no clube o mandado que justificava a acção judicial autorizada pela juíza de instrução criminal SS: "Os factos sob investigação respeitam à suspeita da actuação de responsáveis da ... que, em conluio com personalidades do mundo do futebol e da arbitragem, procurarão exercer influência junto dos responsáveis da arbitragem e outras estruturas de decisão do futebol nacional, tendo em vista influir na nomeação e classificação de árbitros", lia-se no documento. Ao que a ... apurou, nos meses seguintes, a investigação liderada pela procuradora adjunta da 9a Secção do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, TT, solicitou por escrito à ... várias informações financeiras e contabilísticas relacionadas com as empresas que a sociedade anónima dirige e também com serviços contratados a escritórios de advogados, como a ..., sociedade que está a colaborar com o ... nas acções intentadas contra o ... e o assessor do ..., UU. Esta é, aliás, uma pista que tem sido muito explorada pelas autoridades: perceber até que ponto o dinheiro que saiu das contas do ... para advogados corresponde, efectivamente, a serviços jurídicos prestados ao clube ou aos seus dirigentes e não a terceiros, como árbitros e pessoas ligadas ao futebol. Uma das suspeitas em causa é a de que um parecer jurídico que teve como destinatário final o antigo vice-presidente do Conselho de Arbitragem, VV, quando este quis candidatar-se a presidente da Associação de Futebol de ..., possa ter sido pago pelo ... (...) O certo é que, insatisfeitos com pelo menos duas das respostas que obtiveram da ... benfiquista e dos seus representantes, os investigadores consideraram que apenas uma nova busca poderia permitir a obtenção dos documentos contabilísticos considerados necessários à investigação do processo-crime - como os relacionados com a contratação e pagamento a advogados. Decidiram então fazê-lo de forma muito discreta: a coberto das buscas que decorreram no âmbito da .... (...) No entanto, ao que a ... conseguiu apurar, o MP entendeu que, como não realizou qualquer apreensão de correspondência trocada entre o ... e os diferentes juristas contratados, não necessitava de autorização do Juiz de Instrução Criminal, nem da presença de representante da ... (...)".

21. No inquérito n° 6421/17.2..., conhecido pelo "Caso ...", por despacho do Ministério Público, de ... de ... de 2017, validado judicialmente na mesma data, foi decretado o segredo de justiça, o qual se mantinha em vigor, pelo menos, à data da realização da operação de buscas.

22. O inquérito iniciou-se com a informação de serviço lavrada por PP, em ... de ... de 2017.

23. No dia ... de ... de 2018, no blogue mercadodebenficapolvo.wordpress.com, foi divulgado o ficheiro, contendo uma informação de serviço elaborado por PP.

24. Em tal informação de serviço, dirigida à Directora da ... e que deu origem ao processo que viria a ficar conhecido como "...", dizia PP ter, no dia 27, recebido um contacto telefónico anónimo que dava conta de "um rol de factos graves e fortemente indiciadores da prática, por funcionário, entre o mais, de actos susceptíveis de consubstanciar, em abstrato, os crimes de violação de segredo de justiça, violação de segredo por funcionário e de corrupção passiva para ato ilícito". Mais se diz nesse documento que: "Estando em curso a formalização dos factos denunciados e no dia imediatamente seguinte à transmissão da presente denúncia - a saber: ........2017, quinta-feira - o signatário teve conhecimento de que, na Revista ..., fora publicado um artigo intitulado: O conturbado processo dos emails. Juiz impediu PJ de fazer buscas a EE. Os factos ora relatados são graves e são em si mesmos susceptíveis de consubstanciar a prática de crimes graves, designadamente e a confirmar-se, cometidos no exercício de funções públicas - acrescidamente, no interior de órgão de soberania - os quais, em si mesmos, potenciaram fortemente a destruição da viabilidade investigatória do inquérito em referência. Dir-se-á que, a confirmar-se a denúncia, tais práticas surgem igualmente associadas a Agentes Desportivos e/ou Advogados, sendo que a específica natureza dos factos relatados, conexa com corrupção, impõe com carácter de urgência o desenvolvimento da investigação, sujeita a regime de sigilo. Sugere-se pois a V. Exa que a presente informação de serviço seja registada como inquérito (N4), a distribuir à 2a ..., para prossecução da investigação, sem prejuízo da célere comunicação ao D1AP de Lisboa/9a Secção, entre o mais, para cumprimento do disposto no artigo 248° e sugestão de aplicação aos autos do regime de segredo de justiça".

25. O arguido AA fez constar da peça que foi publicada na Revista ... e assinada por este, juntamente com outros, no dia ... de ... de 2018, o seguinte texto, com o subtítulo "Sigilo violado", e com o seguinte texto: "No mesmo dia em que a ... publicou a noticia das buscas fracassadas, o coordenador da investigação ao caso dos emails, PP, assinou uma informação de serviço destinada à directora da ..., WW, a sugerir a abertura de uma investigação à quebra de sigilo da operação e à eventual prática de crimes de violação de segredo de justiça e segredo por funcionário e de corrupção passiva para acto ilícito - o que acabou por acontecer, estando este novo processo a ser investigado pelo procurador adjunto XX, também da 9a Secção do .... (...) O problema é que no passado fím-de-semana as cinco páginas que compõem este relatório foram publicadas num blogue ...) que está a divulgar documentação relacionada com o ... e isso levou a uma reunião de emergência na PJ. Ou seja, os investigadores não sabem se, além das fugas de informação relacionadas com o sistema informático do MP ou do Tribunal de Instrução Criminal de ..., não terão também de lidar com uma ou várias toupeiras que poderão estar a aceder a documentos internos e a colocar as investigações em risco. Sobretudo aquelas que visam suspeitas de crimes de corrupção e que, segundo a lei portuguesa, permitem um vasto conjunto de diligências que vão de escutas telefónicas à quebra de sigilo bancário. O investigador cita a noticia da ... e diz já ter tido contactos informais sobre o assunto com a responsável pelo ..., a procuradora YY e a titular do caso dos emails, TT, ou seja, dá a entender que o caso é muito grave porque envolve crimes "cometidos no exercício de funções públicas" e sobretudo no "interior de órgão de soberania". E que o caso merece uma investigação-relâmpago para não perder o efeito-surpresa - algo que poderá estar comprometido com a divulgação do relatório interno da PJ.".

26. Com data de ... de ... de 2018, a PJ juntou ao processo relatório intercalar, com despacho de PP, no qual propunha a realização de buscas domiciliárias e não domiciliárias e a detenção de cinco indivíduos - ZZ, AAA, BBB, CCC e DDD.

27. Na mesma data foi proferido despacho a ordenar a emissão de mandados de busca não domiciliária, entre as quais Tribunais de ... e ..., estádio do ... e promoção de buscas domiciliárias e a local de trabalho de ... ao juiz de instrução, as quais foram deferidas.

28. Foi ainda ordenada, pelo Ministério Público, a detenção de EEE, assessor jurídico do ..., e de FFF, funcionário do ....

29. No dia ... de ... de 2018, realizou-se a operação de buscas e detenções que ficou conhecida como Operação ....

30. As seguintes buscas tiveram inicio:

1. residência de GGG - às 7.00 horas;

2. residência de HHH - às 7.00 horas;

3. residência de CCC - às 7.10 horas;

4. Tribunal de ... - às 9.00 horas;

5. Tribunal de ... - às 9.15 horas;

6. ... - às 9.45 horas.

31) Os mandados de detenção foram cumpridos:

7. GGG - às 7.00 horas;

8. CCC - 8.40 horas.

32) No dia ... de ... de 2018, o arguido AA fez disponibilizar, no
sítio online da revista ..., a seguinte noticia: "...: EEE detido
por suspeitas de corrupção na Justiça. Assessor jurídico dos encarnados é suspeito
de distribuir prendas a funcionários judiciais para obter informações de processos.
Tribunais de ... e ... estão a ser alvos de busca, assim como a ...
SLB. EEE, assessor jurídico da ..., foi esta terça-feira
detido por suspeitas de corrupção activa. Segundo informações recolhidas pela ..., também um técnico de informática do Instituto de Gestão Financeira e Equipamento da Justiça foi detido pela unidade nacional contra a corrupção da Polícia Judiciária por suspeitas de corrupção passiva. Em causa estará uma rede montada pelo ... junto do sistema judicial para recolher informações de processos que corriam, sobretudo, no Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa. O técnico do IGFEJ e outros funcionários judiciais suspeitos na investigação recolheriam informação directamente do sistema dados dos processos judiciais, o Citius, a qual chegaria posteriormente a EEE. Um empresário de futebol é outro dos suspeitos na operação lançada esta terça-feira pela Judiciária que, além das detenções, está a realizar buscas em casas particulares, no ... e nos tribunais de ... e ..., onde trabalha outro dos suspeitos: HHH, funcionário judicial, já identificado no chamado "caso dos emails", depois de ter sido público que enviou para o assessor jurídico do ... uma notificação do Tribunal de ... para uma audição do treinador III. Esta investigação estará relacionada com dados recolhidos em ... pela ..., os quais apontavam já para a existência de fugas de informação de investigações judiciais para o .... A Judiciária colocou no terreno cerca de 50 inspectores na operação às primeiras horas da manhã.

33) No dia ... de ... de 2018, o arguido BB, jornalista do ..., fez publicar no sitio online desse jornal a seguinte notícia que assinou: "Braço direito de EE preso por corrupção ao serviço do .... Caso dos emails trama EEE. Há novas buscas a decorrer no .... EEE, diretor do departamento jurídico do ... e braço direito de EE, foi esta manhã detido pela Policia Judiciária sob suspeita de, em nome da ... clube, ter subornado três funcionários judiciais para lhe fornecerem peças processuais do chamado caso dos mails - em que o ... e os seus dirigentes são investigados, no ... de ..., por corrupção desportiva, num alegado esquema com árbitros e observadores dos mesmos. Foi esta a forma encontrada pelos encarnados, desde ... do ano passado, para tentarem acompanhar a par e passo tudo o que estava a ser feito pela Justiça - e ao mesmo tempo anteciparem eventuais operações da PJ. Por isso a sociedade de advogados JJJ chegou a dar informações a funcionários do ... sobre a forma de se comportarem em caso de buscas à ... - e, quando as mesmas aconteceram, em ..., a PJ chegou a encontrar documentos processuais, que estão em segredo de justiça, nas instalações do clube. Além disso, os oficiais de justiça também terão passado a EEE documentos de processos em que são visados dirigentes do ... e do .... Os funcionários dos tribunais de ... e de ..., um dos quais está também detido pela unidade de combate à corrupção da PJ, entraram no sistema Citius - base de dados da justiça - com passwords e códigos de acesso deles e abusivamente em nome magistrados do Ministério Público, tendo acedido centenas de vezes a processos judiciais como os casos dos mails e dos vouchers, entre outros. Na operação de hoje, que está a passar por novas buscas à ..., na porta 18 do ..., e a outros locais, como os tribunais de ... e de ..., onde foram cometidos os crimes, estão envolvidos mais de 40 inspectores da PJ - para além de procuradores do MP, juízes e um representante da ...".

34. A Policia Judiciária elaborou comunicado, com base em elementos transmitidos por PP, sobre a operação que foi divulgado no seu sitio online às 11.23 horas, do qual constava: "A Policia judiciária, através da Unidade Nacional de combate à Corrupção (...) e no âmbito de um inquérito que corre termos no ... de ... deteve dois homens pela presumível prática de crimes de corrupção ativa e passiva, acesso ilegítimo, violação de segredo de justiça, falsidade informática e favorecimento pessoal. No decurso da operação, que envolveu cerca de 50 elementos da Polícia Judiciária, foram realizadas trinta buscas nas áreas de ... e ... que levaram à apreensão de relevantes elementos probatórios.".

35. Na edição escrita da revista ... de ... de ... de 2018, o arguido AA assinou, juntamente com a jornalista KKK, a peça jornalística com o título "..." e com o seguinte texto "Quando, a ..., numa cerimónia de entrega de emblemas e anéis de dedicação, EE conquistou aplauso, declarando que o ... não precisava de "andar a espreitar para a fechadura dos outros", dificilmente imaginaria que umas semanas mais tarde o seu braço-direito, EEE, fosse detido, precisamente, por suspeitas de, através de terceiros, andar a espreitar pela fechadura do Ministério Público. Estaria, de acordo com o mandado de busca a que a ... teve acesso, à procura de informação nas investigações "que se encontram em segredo de justiça, em que é visada a ... ou os seus dirigentes, ou clubes ou dirigentes adversários do .... O mesmo documento do procurador do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa (...), que ordenou as 30 buscas efectuadas na passada terça-feira pelos inspectores da Unidade Nacional de Combate à Corrupção (...) da Polícia Judiciária indica expressamente 10 processos judiciais, cuja investigação decorria em segredo de justiça, mas que através do sistema informático da justiça, o Citius, foram consultados em "centenas de ocasiões" por LLL, funcionário judicial requisitado pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (1GFEJ). Já em ..., a ... tinha divulgado que o ... teria tido acesso a dados do processo dos emails e que estes teriam sido partilhados com escritórios de advogados, os quais deram instrução aos encarnados sobre como proceder em caso de buscas judiciais. Com privilégios de acesso ao sistema, LLL obteve o username e password da procuradora MMM, actual assessora de NNN na Procuradoria Distrital de Lisboa, o que lhe deu acesso "aos processos distribuídos na 9a Secção do DIAP de Lisboa". "Após se registar no computador com credenciais próprias ou de terceiros, o arguido FFF, sem o conhecimento ou consentimento do titular das credenciais, inseriu no Citius as credenciais da magistrada para aceder a processos, acrescentou o procurador responsável pelo processo .... Entre os tais 10 inquéritos pesquisados por FFF estava o chamado caso dos emails, a investigação aos vouchers oferecidos pelo ... (...) Esta informação chegou a EEE, 48 anos (...) No que diz respeito à investigação do caso dos emails, tal como é publicamente denominado, mas que diz respeito a suspeitas de corrupção desportiva e tráfico de influências, a investigação da UNCC detectou que, uma semana após o processo ter sido formalmente aberto (o que aconteceu a ... de ... de 2017), LLL fez a primeira pesquisa: "No dia ... de ... de 2017, pelas 10h37, OOO acedeu e extraiu do Citius o histórico do processo 5340/17.7...". Entre aquele último dia e o dia ... "LLL entregou a EEE a impressão do histórico, mesmo sabendo que este e o clube para o qual trabalha eram visados nas investigações". Ainda de acordo com o procurador, "na posse das informações que lhe foram sendo transmitidas, EEE conseguiu antecipar diligências probatórias em curso naquele inquérito". Traduzindo: para o Ministério Público, o assessor jurídico do ... estar a par dos passos dados pela investigação do processo relacionado com suspeitas de corrupção desportiva. Além de LLL, outro funcionário judicial, PPP, foi constituído arguido, assim como o empresário de futebol QQQ, da emprese .... Este último seria o "intermediário" de EEE com os funcionários judiciais, a quem eram oferecidos "convites e bilhetes para assistirem gratuitamente", aos jogos do ... no ..., "designadamente no piso 1", o chamado anel VIP, assim como produtos de merchandising", como camisolas oficiais. Depois de a ... ter avançado na edição on line que uma das contrapartidas em causa passou pela oferta de um emprego a RRR, sobrinho de LLL, no ..., o ... negou a informação em comunicado sob a forma de "desmentido formal". (...) Porém, no mandado de busca, o Ministério Público refere que LLL, além de equipamentos oficiais e bilhetes, recebeu para o sobrinho RRR, "um cargo no ..., pertencente ao ...". Mais à frente, no mesmo documento, refere-se que EEE "diligenciou junto dos recursos humanos do ... pela contratação do sobrinho de FFF para o museu do clube" (...) As funções que nos últimos anos [EEE] tem desempenhado colocaram-no na actual situação de suspeito de corrupção activa. Segundo informações recolhidas pela ..., um dos motivos alegados pelo Ministério Público para a detenção fora de flagrante delito foi o "perigo de continuação da actividade criminosa". Argumento idêntico terá sido utilizado para LLL. Dai que, na passada terça-feira, fonte judicial tenha admitido como provável um pedido de suspensão de funções para o técnico do IGFEJ".

36. Em todas as ocasiões descritas, o arguido AA sabia que os processos sobre os quais efectuou peças jornalísticas corriam a coberto de segredo de justiça.

37. O arguido BB sabia que o processo n° 6421/17.2... sobre o qual efectuou peça jornalística corria a coberto de segredo de justiça.

37-A.) Os arguidos AA e BB agiram, em todos os momentos, de modo livre, deliberado e voluntário. (aditado pelo TRL)

37-B) Nas situações descritas, o arguido AA quis divulgar, como divulgou, notícias que descreveram o conteúdo dos actos e peças processuais, sabendo que, como consequência possível da sua conduta, poderia violar o segredo de justiça, que vigorava nos autos, conformando-se com tal resultado (aditado pelo TRL).

37-C) O arguido BB, no âmbito do processo nº 6421/17.2..., quis divulgar, como divulgou, notícia que descrevia o conteúdo dos actos processuais ordenados no referido processo, sabendo que, como consequência possível da sua conduta, poderia violar o segredo de justiça, que vigorava nos autos, conformando-se com tal resultado. (aditado pelo TRL)

37-D) Os arguidos AA e BB tinham conhecimento que a violação do segredo de justiça era punida por lei. (aditado pelo TRL)

38) As notícias dos autos respeitam a factos com grande interesse público.

39) As notícias dos autos em nada prejudicaram as investigações dos três processos judiciais a que respeitavam. (eliminado pelo TRL)

(…)

Quanto às condições sócio-económicas do arguido AA provou-se que:

(…)”

Quanto às condições sócio-económicas do arguido BB provou-se que:

(…)”

Quanto aos antecedentes criminais do arguido AA provou-se que:

66) O arguido AA não tem antecedentes criminais.

Quanto aos antecedentes criminais do arguido BB provou-se que:

67) 0 arguido BB já foi julgado e condenado no processo 3737/09.5..., por decisão transitada em julgado a ...-...-2017, pela prática em ...-...-2009, de um crime de difamação agravada, na pena de 270 dias de multa, à taxa diária de € 8, num total de € 2.160, pena essa que se encontra cumprida.

2.3. Factos Não Provados

Realizada a audiência de julgamento, com interesse para a boa decisão da causa, não ficaram provados os seguintes factos do despacho de pronúncia:

1. Quando abriu a porta de sua casa à equipa que aí se apresentou para executar a busca, a visada DD já sabia pelas notícias que CC estava a ser alvo de busca.

2. O arguido AA publicou todo o teor da notícia descrita no ponto 32) da factualidade provada às 8.54 horas.

3. O arguido BB publicou todo o teor da notícia descrita no ponto 33) da factualidade provada às 8.51 horas.

4. Os arguidos AA e BB agiram, em todos os momentos, de modo livre, deliberado e voluntário. (eliminado pelo AC TRL)

5. Nova redacção ( Ac TRL)

“o que fez mesmo antes de todas as diligências ordenadas e noticiadas se terem iniciado, indiferente aos efeitos que essa publicação causaria aos interesses da investigação, designadamente à dissipação de prova por parte dos visados ou à perturbação da recolha da prova que se pretendia com tais diligências, e para a imagem dos visados pelas mesmas. 1

6) Nova redacção ( AC TRL):

“alguns ainda não iniciados, indiferente aos efeitos que essa publicação causaria aos interesses da investigação, designadamente, dissipação de prova por parte dos visados ou perturbação da recolha da prova que se pretendia com tais diligências.2

7. Os arguidos AA e BB sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. (eliminado pelo AC TRL)

(…)]”

3. Inconformados com o acórdão do TRL, vieram ambos os arguidos interpor recurso (individualmente) e que, em síntese, fundaram na existência dos seguintes vícios (para além da irregularidade):

i) Irregularidade, prevista no art.ºº. 123.º, n.º 1, do CPP, conducente à declaração de invalidade do acórdão (arguida pelo recorrente AA);

i) Erro notório na apreciação da prova, nos termos do art.º 410.º, n.º 2 CPP.

ii) Violação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação para modificar a matéria de facto e violação do princípio da livre apreciação da prova;

iii) Falta de preenchimento dos elementos objetivo e subjetivo do tipo de ilícito por que foram condenados e dos quais depende a punibilidade da violação do segredo de justiça;

iv) Não consideração da exclusão da ilicitude por exercício dos direitos de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa.

v) Nulidade do acórdão recorrido, nos termos do art.º 374.º e do art.º 379.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), ambos do CPP.

3.1- Assim, nas alegações de recurso os arguidos formularam as conclusões seguintes:

3.1.1. O Arguido AA

“I. Da Irregularidade

1. Por acórdão de ........2023 foi o arguido absolvido pela prática de três crimes de violação de segredo de justiça. Inconformado, o MP recorreu da douta decisão.

2. No dia ........2013, o arguido tomou conhecimento, por via de notificação, que os autos foram distribuídos à 3.ª secção do Tribunal de ..., de onde resultou o acórdão proferido a ........2013, que julgou procedente o recurso interposto pelo MP e procedeu à revogação do acórdão absolutório, condenando o arguido pelos crimes de que vinha acusado.

3. Esse acórdão vem assinado pelos Exmos. Desembargadores SSS, TTT e UUU.

4. Sucede que, o Exmo. Sr. Juiz foi tambem o Magistrado que julgou o recurso da decisão instrutória de não pronuncia e que determinou a sua revogação e submissão do arguido a julgamento.

5. Foram, pois, duas decisões do Exmo. Sr. Juiz UUU no âmbito dos presentes autos.

6. Em consequência, o arguido apresentou requerimento a invocar a nulidade do acórdão, tendo o mesmo sido julgado procedente e o acórdão declarado nulo.

7. Não obstante os autos terem sido remetidos a segunda distribuição para substituição do Exmo. Juiz Desembargador, o arguido considera que tal não é suficiente por nao cumprir as garantias de imparcialidade – Termos em que reclamou para a Conferencia, requerendo nova distribuição dos autos a outro coletivo de Juízes.

8. No dia ........2023, os arguidos tomaram conhecimento da prolação de novo acórdão que os condenou novamente. Sucede que, o referido acórdão é assinado no dia ........2023, data em que ainda não havia sequer transitado em julgado o despacho de ........2023 e que foi objeto de reclamação.

9. Pelo que, o Acórdão de que agora se recorre está à cabeça ferido de manifesta irregularidade ao abrigo do disposto no artigo 123.º, n.º 1 do CPP, devendo o mesmo ter sido declarado inválido.

II. DO OBJETO DO RECURSO

10. O presente recurso tem por objeto o Acórdão proferido pelo Tribunal recorrido que, julgando procedente o recurso interposto pelo MP revogou o acórdão absolutório proferido pela primeira instância e condenou o recorrente pela prática de três crimes de violação de segredo de justiça, p. e p. no artigo 371.º do Código Penal (CP) por referência ao artigo 86.º, n.º 8 alínea b) do CPP e artigos 30.º e 31.º da Lei da Imprensa (Lei n.º 2/99 de 13.01).

11. Tendo o Tribunal de 1.ª Instância absolvido o arguido, não existe dupla conforme, razão pela qual, propõe-se o Recorrente demonstrar:

i) Existiu erro notório na apreciação da prova, nos termos do art.º 410.º, n.º 2 CPP.

ii) O acórdão recorrido padece de nulidade, nos termos do art.º 374.º e do art.º 379.º, n.º 1, alínea b), ambos do CPP.

iii) O arguido não pode ser responsabilizado por violação do segredo de justiça, por não encontrarem preenchidos os elementos objetivo e subjetivo de que depende a sua punibilidade;

iv) Exclusão da ilicitude por exercício dos direitos de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa.

Vejamos,

i) DO VÍCIO DO ART.º 410.º, N.º 2, ALÍNEA C) DO CPP

12. Do texto da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa perfila-se a existência do vício aludido na alínea c) do n.º 2 do art.º 410.º - erro notório na apreciação da prova. Vejamos.

13. Resulta do teor do acórdão de que ora se recorre que “os arguidos quiseram escrever e publicar os textos acima mencionados, sabendo que os autos se encontravam em segredo de justiça e sabendo igualmente que a violação do segredo de justiça é proibida por lei.”, cfr. ponto 17.

14. Acrescenta, no mesmo ponto, que “Se atentarmos na conjugação do que ora se deixa dito, com a matéria de facto constante no ponto 38 dos factos provados (38) As notícias dos autos respeitam a factos com grande interesse público) e, mais uma vez, apelando a ilações decorrentes das regras de experiência comum, uma vez que ambos os arguidos são jornalistas e foi nesse âmbito que mantiverem as atuações supra narradas, teremos de concluir que, ao quererem e divulgarem aquelas notícias, em que inseriram a descrição do conteúdo de actos e peças processuais, descrição de conteúdo este não estritamente necessário, para informar o público da investigação que se estava a processar, sabiam que, como consequência possível da sua conduta, poderiam violar o segredo de justiça, que vigorava nos autos, conformando-se com tal resultado.”.

15. Na verdade, nos termos do texto do acórdão recorrido, mais concretamente, no ponto 15., na averiguação do dolo e consciência da ilicitude, o Tribunal arreigou-se de uma “avaliação crítica do comportamento humano em presença, de acordo com as regras da experiencia”, bem como de “presunções ligadas ao principio da normalidade”, “ilações, retiradas face ao facto e às circunstancias concretas do seu cometimento” e “definições ou juízos hipotéticos, de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum e, por isso, independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade”.

16. Foi nesta sequência, que veio o Tribunal da Relação de Lisboa proceder à alteração da matéria de facto dada como provada e não provada, cfr. ponto 23 do acórdão recorrido.

17. Salvo o devido respeito, como é evidente e resulta do texto da decisão recorrida, o Tribunal a quo valorou de forma pouco objetiva a prova nos presentes autos, tendo em conta a estreita ligação da decisão sobre a matéria de facto a que ele respeita, resultante do próprio acórdão recorrido, para assim concordar com a condenação do recorrente ela pratica do crime de que vinha acusado.

18. De facto, e conforme se escreveu no douto acórdão de ........2023: “Os arguidos explicaram, de modo muito verdadeiro e sentido, que publicaram as referidas notícias única e exclusivamente com a intenção de cumprir o dever de informar o leitor, ao abrigo da liberdade de imprensa e com respeito por todas as regras que regem a arte do jornalismo. Mais disseram que em nenhum momento quiseram violar o segredo de justiça, sendo que agiram de forma conscienciosa e com sentido de responsabilidade, com o cuidado de não prejudicar a investigação, apenas relatando os factos históricos depois de os mesmos terem acontecido. Ambos os arguidos disseram também que a informação publicada tinha um enorme relevo e interesse social, por estarem envolvidas figuras públicas, quer do mundo da Justiça, quer do mundo do futebol, sendo que os leitores têm o direito de ser informados e esclarecidos sobre o que está a acontecer nos respetivos processos-crime, que têm enorme repercussão social.” (destaque e sublinhado nosso).

19. Ora, de facto, resultou de toda a prova carreada para os autos, amplamente exposta pelo Acórdão de ........2023, que, da conduta do arguido AA, não resultou qualquer prejuízo para a investigação (facto amplamente atestado por todas as testemunhas ouvidas em sede de julgamento) e que o mesmo agiu única e exclusivamente com o intuito de cumprir o dever de informar o leitor, afastando por completo a alegada intenção de violar o segredo de justiça.

20. Efetivamente, a valoração probatória feita no sentido da imputação dos factos ao recorrente, por referência à sua qualificação como jornalista e a “ilações decorrentes das regras de experiência comum”, é manifestamente insuficiente para a formulação de um juízo de certeza sobre a intenção do recorrente ao divulgar as notícias em crise.

21. As regras da experiência comum, de um ponto de vista de um homem de formação média, não nos levam a concluir, de modo claro e irrefutável, que o arguido, jornalista de profissão, ao publicar as referidas notícias, conformou-se com a possibilidade de estar a violar o segredo de justiça. Aliás, facilmente se depreende que, e reitere-se, ao abrigo da profissão que desempenha, a verdadeira e única intenção por detrás dos seus atos era apenas a de cumprir com o dever de informar o leitor acerca de processos com enorme relevância social e interesse público, ao abrigo da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa, que marcam uma sociedade moderna, democrática, livre e plural. Denota-se aqui um claro erro de raciocínio por parte do tribunal a quo na apreciação da prova, evidenciada pela simples leitura do texto da decisão recorrida.

22. O Tribunal a quo dá como provados factos com base numa conclusão ilógica e arbitrária, notoriamente violadora das regras da experiência comum.

23. A única conclusão lógica a retirar-se deste facto, seria, antes, a de que se encontra plenamente justificado o dever a cargo do recorrente, enquanto jornalista.

24. Pelo exposto, resulta do texto da decisão recorrida um erro notório na apreciação da prova, pelo que deverá o acórdão de que aqui se recorre, ser revogado em conformidade.

ii)DA NULIDADE DO ACÓRDÃO RECORRIDO POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO

25. Resulta do artigo 374.º do CPP que a sentença, para alem dos requisitos formais ali expressamente previstos, deve incluir também a fundamentação que consiste claramente na enumeração dos factos provados e não provados, “bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam adecisão, com indicaçãoe examecritico dasprovasqueservirampara formar a convicção do tribunal”.

26. Concretizando e revertendo ao caso concreto, ao proceder à alteração da matéria de facto e em consequência à condenação do arguido, pode ler-se na fundamentação do Acórdão recorrido (pág. 67 do mesmo) que a convicção do Tribunal a quo teve na sua base:

• “Validação critica do comportamento humano em presença, de acordo com as regras da experiência”;

• “presunções ligadas ao princípio da normalidade”;

• “ilações, retiradas face ao facto e às circunstâncias concretas do seu cometimento” e em “definições ou juízos hipotéticos, de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum e, por isso, independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para alem dos quais têm validade”.

27. Como resulta à evidência, é manifesto que o dever de fundamentação não foi cumprido pelo Acórdão recorrido, uma vez que, como se vê, este procedeu à alteração da decisão sobre a matéria de facto, apenas invocando conceitos indeterminados, vagose abstratos manifestamente insuficientes para sustentar a conversão de uma absolvição numa condenação.

28. O Acórdão recorrido incorre ainda no vício de falta de fundamentação, pois não consta do percurso logico e concreto que terá sido seguido para se proceder a esta alteração da decisão sobre a matéria de facto referida supra.

29. O recurso a “presunções”, “ilações” e “regras de experiência comum” deverá (no mínimo) ser acompanhado por um percurso intelectual logico devidamente estruturado com referência ao caso concreto, caso contrário entramos no campo da “mera possibilidade” ou no domínio das “impressões”.

30. O acórdão recorrido, ao ter procedido à alteração da decisão sobre a matéria de facto, não cumpriu o dever de fundamentação exigido pelo n.º 2 do art.º 374.º do CPP, que impõe a indicção e o exame critico das provas que foram utilizadas para formar a convicção do tribunal.

31. O acórdão recorrido, ao ter procedido à alteração da decisão sobre a matéria de facto, não cumpriu o dever de fundamentação exigido pelo n.º 2 do art.º 374.º do CPP, que impõe a indicção e o exame crítico das provas que foram utilizadas para formar a convicção do tribunal.

32. Consequentemente, da violação do regime previsto no artigo 374.º do CPP, resulta, nos termos do art.º 379.º, n.º 1, al. b) do CPP, a nulidade do acórdão recorrido, que expressamente se invoca.

iii) DO RECURSO EM MATÉRIA DE DIREITO: inexistência do ilícito de Violação de Segredo de Justiça

a) Da inexistência do ilícito de Violação de Segredo de Justiça (elemento objetivo)

33. Na perspetiva do Recorrente, os factos provados não são subsumíveis ao tipo legal que lhe é imputado, pelas razões que se passarão a expor.

34. Antes de mais, cabe notar que o Tribunal da Relação de Lisboa procedeu a alterações da matéria de facto dada como assente. No entanto, em grande medida acompanhou a exposição jurídica realizada pelo tribunal a quo quanto aos elementos integradores do tipo de crime e quanto aos interesses em conflito.

35. A verdade é que, contrariamente ao entendimento do Tribunal a quo para que se verifique o preenchimento do elemento objetivo da alegada prática do crime de violação de segredo de justiça, é necessário que a publicação / transmissão seja relativa ao conteúdo dos atos processuais ou parte destes

36. O segredo de justiça não se refere ao facto histórico, o qual pode ser e é bom que seja alvo de investigação pelos próprios jornalistas.

37. Nos presentes autos se verifica que, em bom rigor, não se procedeu à reprodução integral do teor de qualquer ato processual.

38. Não pode confundir-se dar conhecimento de ocorrência ato processual com dar conhecimento do teor de ato processual.

39. Por estarem em causa factos que chegaram ao conhecimento das jornalistas no decurso da investigação que desenvolveram em paralelo à investigação judicial, resulta evidente que, não houve qualquer violação do segredo de justiça por parte do arguido.

40. A mera referência, à existência de mandados de detenção ou das buscas domiciliárias, não revela propriamente o respetivo teor.

41. Por outro lado, ao abrigo da redação anterior do artigo 371.º do CP, só se considera que cometeu o crime de violação do segredo de justiça “quem ilegitimamente der conhecimento, no todo ou em parte, do teor do ato de processo penal que se encontre coberto por segredo de justiça”.

42. Sempre foi esse o entendimento da Doutrina e da Jurisprudência que, mesmo em sede do anterior artigo, só se o jornalista tivesse acesso ao conteúdo do processo em segredo e justiça por meios ilícitos é que deve responder penalmente pelo crime de violação do segredo de justiça.

43. Pelo que, para que o crime de violação de segredo de justiça se verifique, é necessário haver ilegitimidade ou ilicitude dos meios.

44. Ora, nas notícias objeto dos presentes autos, o que se relata são apenas factos recolhidos com base num trabalho de investigação jornalística e não, como se pretende fazer parecer, a reprodução de atos ou conteúdo de atos processuais cobertos pelo segredo de justiça.

45. Impõe-se constatar, sem mais, pelo não preenchimento por parte dos arguidos dos crimes de violação de segredo de justiça.

46. Os conteúdos que noticiaram nas peças descritas na acusação não correspondem, necessariamente, ao teor de atos processuais praticados no respetivo processo, mas sim a factos históricos provenientes de uma investigação jornalística cuidada levada a cabo pelos jornalistas da Revista ..., razão pela qual, não poderá admitir-se que foi praticado qualquer ilícito penal.

b) Da inexistência do ilícito de Violação de Segredo de Justiça (elemento objectivo)

47. O crime de violação de segredo de justiça exige, para preenchimento do tipo subjetivo, a verificação do dolo, sob qualquer das suas formas (cfr. artigos 13º e 14º do CP).

48. No entanto, face à prova recolhida durante o inquérito e carreada para os autos não entende o arguido em que factos o Tribunal da Relação de ... alicerça a conclusão de que o arguido atuou com dolo eventual, dado que não existe nos autos qualquer elemento que permita chegar a tal entendimento.

49. Pergunta-se: Não estará à partida excluído tal dolo, mesmo o eventual, se o arguido tiver conhecimento dos factos através de meios lícitos e legítimos?

50. Ora, por tudo o supra exposto, é mais do que evidente que o arguido não teve qualquer intenção de violar o segredo de justiça, nem podia sequer prever que, com as notícias em causa, o estaria a fazer.

51. Na verdade, o arguido não agiu com o dolo exigível ao preenchimento do tipo de crime

52. Pelo que, também não se encontra preenchido o elemento subjetivo do tipo de crime, ao contrário do que abstratamente e desprovido de conteúdo fáctico consta da condenação de aqui se recorre.

Caso assim não se entenda, a verdade é que agiu o arguido ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude.

iv) Da exclusão da ilicitude por exercício dos direitos de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa

53. A liberdade de expressão, de informação e de imprensa, a que se referem 11º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), 19.º da DUDH, 19.º, n.º 2 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e 10.º, n.º 1 da CEDH, constitui um dos pilares fundamentais que estruturam qualquer sociedade democrática.

54. Resulta assim desta jurisprudência do TEDH que só são admissíveis restrições à liberdade de expressão se as mesmas (i) estiverem expressamente previstas na Lei; (ii) se tiverem por objetivo a obtenção dos fins legítimos enumerados no n.º 2 do artigo 10.º da CEDH e; (iii) se forem necessárias, numa sociedade democrática, para se alcançarem estes fins.

55. Sem prejuízo do que se possa entender quanto à verificação dos dois primeiros requisitos, a verdade é que é manifesto que o último requisito não se encontra preenchido, por não estar em causa uma restrição ao direito de liberdade de expressão que se mostre necessária, numa sociedade democrática, para se alcançarem aqueles fins legítimos.

56. Estamos perante um caso de relevante interesse público em que a prevalência da divulgação da informação não podia ser restringida.

57. O não reconhecimento do direito dos jornalistas a relatarem factos com interesse público, sempre constituirá uma patente violação, não das leis nacionais, como dos instrumentos internacionais a que Portugal aderiu e aos quais se encontra vinculado.

58. Em termos de legislação nacional, veja-se os artigos 18.º, 27.º, 37.º e 38.º, que versam sobre o direito à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa.

59. Também a Lei de Imprensa e o Estatuto do Jornalista asseguram a liberdade de imprensa, que abrange o direito de informar, de se informar e de ser informado.

60. A liberdade de expressão está intimamente ligada à liberdade de imprensa, integrando, naturalmente, a liberdade de expressão.

61. Abrange, pois, todos os meios de comunicação social, escrita ou não, implicando o direito de informação, sem impedimentos, discriminações ou limitações por qualquer tipo de censura, salvo os expressamente e constitucionalmente consagrados, mas apenas

na medida em que a compressão de tais direitos já não possa ser admissível.

62. Odireito (do público) a ser informado tem de circunscrever-se aos atos e acontecimentos que sejam relevantes para o seu viver social – é a chamada utilidade social da notícia.

63. Por sua vez, a relevância social da notícia tem de ser integrada pela verdade do facto noticiado.

64. E onde o interesse público se sobrepõe ao direito à proteção da realização da justiça.

65. OTribunalda Relação de Lisboa, ao pretenderque o Recorrente se abstenha de divulgar na imprensa determinadas informações, está a dificultar, a impedir e a impossibilitar o acesso do público a essa informação e, de forma desproporcional, a interferir com o acesso à informação, impedindo o exercício da liberdade de informação, direito constitucionalmente consagrado.

66. É verdade, e já o referimos supra, que o exercício da liberdade de expressão e de informação está submetido a deveres e responsabilidades e podem ser estabelecidas restrições e limites destinados a proteger outros direitos/ bens jurídicos em causa.

67. Embora estejamos perante um problema de conflito entre dois direitos, é de referir que, nos termos do artigo 335.º, do CC, para a resolução destas situações, caso sejam iguais os direitos em conflito ou da mesma espécie, deve cada um deles manter o seu núcleo principal, cedendo o estritamente necessário, para que ambos produzam o seu efeito; se os direitos em questão forem desiguais ou de espécie diferente, deverá prevalecer aquele que for superior.

68. Sob este aspeto pode ler-se no Acórdão recorrido:

“surge agora a questão de saber se, face à potencial colisão de direitos, entre o direito a informação e o direito à proteção da realização da justiça, se deve entender como parece ter sido o raciocínio expresso pelo tribunal “a quo” - que, neste caso, por as noticias dos autos respeitarem a factos com grande interesse publico, o segundo deve vergar sobre o primeiro”, concluindo o mesmo tribunal que “não estamos de acordo com esta argumentação. (...) A notícia podia ser dada e foi-o, aliás, por muitos e diversos meios de informação publica. O que sucede é que ambos os arguidos optaram, ao dar a notícia, por na mesma incluir os conteúdos das diligencias, bem como de uma serie de atos processuais, conteúdos estes abrangidos pelo segredo de justiça”, concluindo o Tribunal que “as notícias redigidas e divulgadas pelos arguidos, cuja relevância se não discute, cumpriram, expurgadas dos elementos acima mencionados, o direito do público a ser informado e o direito à livre expressão e à liberdade de informação. Sucede que os arguidos resolveram ir mais além, nas notícias de que são autores, incluindo conteúdos que se mostravam abrangidos pelo segredo de justiça.”

69. No caso, o Tribunal da Relação de Lisboa está a interferir desproporcionalmente, por um lado, no acesso à informação, impedindo o exercício da liberdade de informação, direito constitucionalmente consagrado e, por outro, o exercício da liberdade de expressão.

70. No entendimento do Recorrente não existem quaisquer fundamentos sérios para que, nocaso concreto, o direitoà proteçãoda realização da justiça deva prevalecer sobre o direito de qualquer pessoa divulgar informação de interesse público.

71. Não há qualquer dúvida de que a responsabilização criminal do arguido nos presentes autos, pela publicação das notícias acima referidas, traduz-se numa manifesta restrição gratuita e desproporcional ao seu direito de liberdade de expressão e liberdade de imprensa.

72. Resulta evidente que todos os factos emitidos na notícia constituem matéria de interesse público, pelo que, a informação relatada teria interesse jornalístico.

73. Os processos ... (Inquérito n.º 19/16.0...), ... (Inquérito n.º 6421/17.2...) e o Caso dos E-mails (Inquérito n.º 5340/17.7...) envolvem várias personalidades públicas e de grande notoriedade, com grande interesse por parte do público em geral.

74. Não podem existir dúvidas que a existência de investigações sobre titulares de cargos públicos, trata-se de informação que merece ser de conhecimento público e objeto de divulgação jornalística.

75. Vejamos, a este respeito, com referência a Portugal, v.g., os Acórdãos "Campos Dâmaso contra Portugal", Acórdão de 24/04/2008; "Laranjeira Marques da Silva contra Portugal", Acórdão de 19/01/2010" e '"Pinto Coelho contra Portugal", Acórdão 28/06/2011. Em especial, atente-se ao citado Acórdão Campos Dâmaso c. Portugal que a divulgação de atos processuais é aceite desde que não colida com a respetiva investigação– o que não ocorreu no caso em apreço.

76. Assim, dúvidas não restam que os factos tecidos na notícia publicada são dotados de interesse público, uma vez que constituem o âmago do quotidiano da atividade política nacional, dos cargos de liderança na sua generalidade, permitindo compreender e esclarecer o ambiente em que se desenvolva o exercício das funções em causa, sendo as informações divulgadas (aquelas que são consideradas pelo Acórdão recorrido como “além”), necessárias para alcançar o total conhecimento do público e o propósito do direito à informação e a ser informado o qual como já supra demonstrado, tem proteção constitucional e internacional.

77. Não perdendo de vista a proporcionalidade exigível, se o jornalista não teve contacto direto com o processo, não prejudicou as investigações em curso e se o conhecimento foi obtido por meios lícitos, considerar que o arguido cometeu crime de violação de segredo de justiça, é ultrapassar a fronteira da proporcionalidade e entrar no campo da restrição ilegítima de um direito constitucionalmente consagrado.

78. Sobre as restrições necessárias cumpre atentar ao Acórdão do STJ DE 10/21/2014 proferido no processo 914/09.0TVLSB quando refere “No que toca ao confronto do segredo de justiça com a liberdade de expressão e de informação, o TEDH tem-se pronunciado contra as restrições à liberdade de expressão que não considera necessárias, designadamente quando as informações em causa já sejam públicas.

79. Razão pela qual, neste campo, no caso em concreto, muitas das notícias sobre o processo, já eram do conhecimento generalizado da comunidade jornalística, pelo que, duvidas não restam que não se vislumbra qualquer "necessidade social imperiosa" na punição criminal dos factos em apreço.” -e se assim fosse, existira sempre uma violação do art.º 10.º da CEDH.

80. Ao ter decidido diversamente da 1ª instância, o Acórdão recorrido violou as disposições legais consagradas no art.º 371º do CP, e na alínea b), do n.º 8, do art.º 86º, 10º da CEDH e 18º, 37ºe 38º da CRP, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que absolva o Recorrente da prática do crime pelo qual vinha absolvido.

Nestes termos e nos mais de Direito, sempre com o douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado o acórdão recorrido.”

3.1.2 - Conclusões do recurso do arguido BB

[“1) O Acórdão do Tribunal da Relação sob recurso pôde conhecer da matéria de facto ao abrigo do disposto no art.º 428º, do CPP e porque o recurso apresentado pelo Ministério Publico impugnou a matéria de facto constante do Acórdão de primeira instância;

2) Não obstante, o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a segunda instância aprecia toda a prova produzidaedocumentadaem primeirainstância, tratando-seantesdeum remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros;

3) O recurso da matéria de facto destina-se apenas à reapreciação da decisão proferida em primeira instância em pontos concretos e determinados e tem como finalidade a reapreciação de “questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida”, como dispõe o art.º 410.º, n.º 1, do CPP;

4) Por isso o legislador estabeleceu um específico dever de motivação e formulação de conclusões do recurso nesta matéria, fixado no art.º 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal;

5) Explicando o conteúdo do disposto no art.º 412º, n.º 3 e 4, do CPP, o Acórdão do STJde8de março de2012,publicadonoDiário da República nº 77, de 18.04.2012, fixou jurisprudência no sentido de que «visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do Recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na ata do início e termo das declarações»;

6) No controle pelo Tribunal de recurso do erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais, quando o recorrente impugna a matéria de facto nos termos do art.º 412.º, n.º 3, do CPP, o Tribunal só procede ao reexame de facto, nos pontos especificados pelo recorrente que considera incorretamente julgados, quando as provas impõem decisão diversa da recorrida e estão especificadas pelo recorrente, cfr. art.º 412º, nº 3, als. a) e b), do CPP;

7) A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, confere ao julgador em primeira instância meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe;

8) A ausência de imediação determina que o tribunal de segunda instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida, nos termos da al. b), do n.º 3, do há citado artigo 412.º do CPP;

9) A decisão sob recurso, ignorando as alegações do Ministério Publico sobre os concretos factos objecto de impugnação e também toda a prova produzida em audiência e constante do processo, optou por uma análise vaga e genérica sobre os já de si conclusivos juízos de culpa e atuação dos arguidos que necessariamente contraria a convicção e livre apreciação da prova do tribunal, sem que para tal estivessem reunidos os requisitos legais ou tivesse sido convocada uma fundamentação suficiente;

10) Como ficou patente no Acórdão absolutório, o tribunal de primeira instância recorreu às regras de experiência comum e apreciou a prova de forma objectiva e motivada, sendo que os raciocínios aí expendidos respeitam plenamente a lógica e a racionalidade;

11) O art.º 127° do Código de Processo Penal indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio;

12) O Acórdão proferido pelo Tribunal de primeira instância assenta em operações intelectuais válidas e justificadas e com respeito pelas normas processuais atinentes à prova;

13) E se a fundamentação da primeira instância não viola o princípio da legalidade das provas e da livre apreciação da prova, estribando-se em provas legalmente válidas e valorando-as de forma racional, lógica, objetiva, de harmonia com a experiência comum, o tribunal de recurso não pode afastar a valoração efetuada por esse tribunal de primeira instância, alterando, por isso, a decisão de facto;

14) Por conseguinte, a decisão do Acórdão sob recurso sobre a matéria de facto é ilícita e inválida, violando o disposto nos art.ºs 127.º, 410.º, n.º 1 e 2, 412.º, n.º 3, e art.º 431.º, todos do CPP;

15) E ao apreciar questões que não lhe haviam sido suscitadas no recurso apresentado pelo Ministério Público, nem utilizando ou fundamentando a sua decisão nos seus poderes de cognição oficiosa, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa pronunciou-se sobre uma questão de que não podia tomar conhecimento, o que constitui causa de nulidade prevista no art.º 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, aplicável ex vi art.º 425.º, n.º 4, do mesmo diploma;

16) O requisito contido no art.º 374.º, n.º 2, do CPP, traduz-se na indicação dos elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência e exige não só a indicação das provas ou meio de prova que serviram para formar a convicção do tribunal mas, fundamentalmente, a exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão;

17) O Acórdão recorrido na sua fundamentação da matéria de facto não procedeu, como é sua obrigação legal, a uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal;

18) Recorrendo apenas a conceitos indeterminados e a raciocínios vagos abstratos para, contrariando a legitima convicção do tribunal de primeira instância, alterar a matéria de facto e revogar a decisão de absolvição do arguido aqui recorrente;

19) Sendo totalmente genérico, escasso e manifestamente insuficiente, face à imprescindível necessidade de cabal concretização, a motivação da decisão de facto do Acórdão sob recurso;

20) Estamos, assim, pelaimportância daapontadainsuficiência, peranteuma omissão que acarreta a nulidade do Acórdão, nos termos do art.º 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, aplicável ex vi art.º 425.º, n.º 4, do mesmo diploma;

21) Por outro lado, analisado e verificado criticamente o Acórdão recorrido e compulsada aprova dos autos, não se consegue descortinar a razãopela qual a conduta e factos praticados pelo arguido é geradora da responsabilidade criminal imputada;

22) E isto independentemente de se ter em consideração a matéria de facto fixada pela primeira instância ou se tomar em consideração a alteração operada pelo Acórdão da Relação de Lisboa agora sob recurso;

23) Em ambos os casos a melhor solução de direito impunha a absolvição do arguido recorrente;

24) O arguido, nas suas especificas funções jornalista autor da reportagem, no caso concreto, agiu claramente no âmbito do exercício da liberdade de expressão, na manifestação concreta do dever de informar, prevista no art.º 37.ºdaCRP, e nada indica, ao contrário do que defende o Acórdão recorrido, que tenham sido excedidos os limites que têm vindo a ser definidos para o exercício de tal liberdade, que também é uma responsabilidade;

25) Destaca-se, sobretudo, a liberdade de publicação, difusão ou de divulgação, a qual, nos termos das referidas disposições, se traduz na inexistência de impedimentos, de discriminações, de censura, de autorização, de caução ou de habilitação prévia, apreensão ou embaraço ilegal de composição, impressão, distribuição e livre circulação de quaisquer publicações;

26) A eficácia, imparcialidade e serenidade na administração da justiça que está em causa na regulamentação do art.º 371.º, do CP, tal como a liberdade de expressão, são corolários da ideia de estado de direito assente na dignidade da pessoa humana que a CRP proclama logo no primeiro dos seus preceitos;

27) E se o respeito pelo tempo e eficácia da justiça exige uma resposta adequada e proteção legal, não menos carecida de proteção encontra-se a necessidade de assegurar a liberdade de expressão e de informação, e o princípio da liberdade de imprensa, essencial à formação de uma esclarecida opinião pública, como é exigência do nosso estado de direito democrático;

28) Entre os direitos em confronto - consagrados no art.º 20.º e 37.º da CRP, é até possível estabelecer uma relação de hierarquia, pois, não se revestem de idêntica dignidade constitucional, a avaliar pela respetiva inserção sistemática, no capítulo da lei fundamental dedicado aos Direitos, liberdades e garantias pessoais da liberdade de expressão, submetida ao regime especial de proteção conferido pelo art.º 18.º da CRP;

29) Todas as leis que restrinjam tais direitos, liberdades e garantias terão de respeitar os princípios da proporcionalidade e necessidade, para além de apenas poderem ser aplicadas se a lei fundamental expressamente as previr;

30) Do que se acabou de referir não obsta a que o julgador, em face da necessidade de otimização dos direitos fundamentais e a partir da ponderação dos interesses que o caso concreto envolve, tente harmonizá-los ou mesmo estabelecer qual o valor que deverá prevalecer na situação concreta, pois só colocados perante a mesma, em concreto, é possível resolver o conflito;

31) Compete ao julgador ponderar os valores e interesses envolvidos, avaliando a eventual medida da restrição, em face da necessidade prática de aplicar os dois direitos em conflito, definindo qual o que deverá ceder no caso concreto de acordo com o princípio da proporcionalidade consagrado no art.º18.º, n.º2 da CRP;

32) É o que para este efeito dispõe o art.º 335.º do Código Civil, considerado como materialmente constitucional, que concede ao intérprete um critério para a resolução prática do conflito de direitos, regulando que “(…) devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.”;

33) Tendo em conta o interesse publico da noticia veiculada, sempre se dirá que em sede de apreciação da concordância prática entre os direitos alegados pelo Ministério Público na acusação e os dos arguidos, não há duvidas que se deve determinar a prevalência do direito de liberdade de expressão de que beneficiam os arguidos enquanto jornalistas, pois atuaram unicamente no cumprimento de um dever, bem como no exercício do seu direito legítimo de transmitir um conteúdo jornalístico, tendo-o feito de forma adequada e proporcional, apenas pretendendo a informação e o esclarecimento da opinião pública num caso de evidente e manifesto interesse público e jornalístico;

34) Apenas atuaram no âmbito do direito de informar e da liberdade de expressão, revelando tão só a intenção de relatar as informações que foram recolhidas e investigadas junto de várias fontes, demonstrando a sua exatidão com a verdade dos factos e pretendendo salvaguardar a credibilidade da informação veiculada, não tendo ultrapassado fidelidade do que apuraram, agindo, unicamente com animus narrandi; 35) E, sobretudo, não tendo prejudicado o inquérito em curso ou qualquer das suas diligências, nem de qualquer forma tendo condicionado o seu curso ou desfecho;

36) O art.º 371.º, do CP, pelo qual o arguido vem condenado, por se revestir de um caracter de aplicação automática, sem ponderar as necessidades especificas e o concreto exercício da liberdade de expressão e informação por contraposição com a necessidade de preservação do tempo da justiça, está ferido de inconstitucionalidade material e é absolutamente incompatível com o art.º 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem(CEDH);

37) A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem(TEDH) exige um perigo concreto parao bemjurídicoprotegido, ou seja, restringe o âmbito da tutela penal nos casos em que são divulgadas notícias relativas a um processo que se encontre sob segredo de justiça, desde que as mesmas não causem prejuízo à investigação (conforme Acórdão Pinto Coelho v. Portugal, de 28-06-2011; e Campos Dâmaso v. Portugal, de 24-07-2008);

38) A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, designadamente no processo Campos Dâmaso v. Portugal, de 24.07.2008, tem considerado que o direito à informação deve prevalecer sobre o segredo de justiça se não se demonstrar uma necessidade social imperiosa na imputação aos arguidos;

39) Também no caso VVV v. Portugal – processo também sobre um jornalista que publicou vários elementos de um processo criminal que estava ao abrigo do segredo de justiça, foi o Estado condenado por violação do artigo 10.º da CEDH, tendo o TEDH decidido que a condenação «não correspondia a nenhuma «necessidade social imperiosa»;

40) A conclusão que se retira da alusão às decisões do TEDH é o entendimento de que o direito à liberdade de expressão, incluindo o direito à liberdade de imprensa, nas suas funções de informar, deve prevalecer sobre o segredo de justiça nos casos em que a notícia revelar um manifesto interesse público que justifique a necessidade iminente de informar os cidadãos e, paralelamente, que não se verifique, em concreto, prejuízo efetivo para a investigação criminal em curso;

41) In casu, em sede de audiência de julgamento não foi possível apurar um único prejuízo concreto para a investigação e no que toca ao interesse público da notícia objeto dos autos, o mesmo afigura-se manifesto;

42) Face a tudo o supra referido, entende-se que o direito à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa, previstos nos art.ºs 37.º e 38.º da CRP, deve prevalecer neste caso concreto, porquanto a sua restrição seria desproporcional, desadequada e até desnecessária, tendo em conta o interesse público que a notícia acarreta, bem como o elemento de não ter sido possível apurar qualquer prejuízo efetivo para a investigação do inquérito pela divulgação da mesma;

43) A atuação do arguido foi legítima, face à ponderação resultante da colisão dos direitos fundamentais em causa;

44) Só esta interpretação confere máxima efetividade à liberdade de imprensa e de informação, enquanto direitos fundamentais elevados pela Constituição à categoria superior dos Direitos, liberdades e garantias;

45) A restrição que assim é feita ao segredo de justiça é, pois, necessária, proporcional e adequada, uma vez que a relevância pública da notícia e a ausência de prejuízo efetivo para a investigação criminal em curso conduzem a que não seja afetado o conteúdo essencial do direito à realização da Justiça – artigo 18.º, n.º 2 da Constituição;

46)Face ao exposto, não se encontram preenchidos os elementos objetivos do tipo de ilícito - o arguido não deu ilegitimamente conhecimento, no todo ou em parte, do teor do ato de processo penal que se encontrava coberto por segredo de Justiça-, face à ponderação feita dos direitos fundamentais conflituantes, sendo forçoso concluir que o arguido não incorreu na prática do crime de violação do segredo de justiça, previsto e punido pelo artigo 371.º, n.º 1, do Código Penal, pelo qual vem condenado pelo Tribunal da Relação de Lisboa;

47) Os limites constantes no art.º 371.º, do CP, não podem ser absolutos e devem respeitar critérios de proporcionalidade, adequação e de necessidade da sua aplicação;

48) Critérios esses que não estão assegurados e respeitados no Acórdão sob recurso, não se efetuando o mínimo esforço para sustentar e fundamentar a necessidade social imperiosa que a imputação desta norma aos arguidos visa salvaguardar, nem muito menos se demonstra se a revelação noticiosa em causa provocou qualquer dano processual específico;

49) A atuação dos arguidos não foi uma motivação criminosa. Foi o exercício legitimo de um direito, efetuado com ponderação, motivado pela necessidade de garantir a exatidão e credibilidade da informação e tendo agido unicamente com animus narrandi;

50) Não cometeu, portanto, o arguido o crime pelo qual foi injustamente condenado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, ou seja, não pode ser criminalmente responsabilizado pelo crime previsto e punido pelo art.º 371.º, n.º 1, do Código Penal, com a agravação prevista no art.º 30.º, n.º 2, da Lei n.º 2/99, de 13 de janeiro, na pena de 105 dias de multa à taxa diária de €. 10,00(dez euros), ou pena subsidiária de 70 dias de prisão, devendo, em consequência, ser absolvido nos presentes autos;

51) O Acórdão sob recurso faz, assim, uma errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 371.º, n.º 1, do Código Penal, assim como do art.º 335.º, do Código Civil, e dos os art.ºs 37.º e 38.º da Constituição da Republica Portuguesa e do art.º 10.º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, devendo em consequência ser revogado e substituído por outro que absolva os arguidos do crime porque foram injustamente condenados.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser revogado o douto Acórdão recorrido e substituído por outro que absolva o arguido da condenação penal.”]

4. Em resposta no TRL o MPº concluiu pela improcedência de ambos os recursos, dizendo, em síntese:

[1 -Ao ser proferido o acórdão sob recurso quando ainda não tinha transitado em julgado o despacho que incidiu sobre reclamação apresentada suscitando a irregularidade da composição do tribunal de recurso, não foi cometida qualquer irregularidade;

2 -Ao modificar a matéria de facto, o tribunal de recurso não violou os seus poderes de cognição nem os princípios da legalidade das provas e da livre apreciação da prova, tendo-se estribado em provas legalmente válidas e valorado a mesma de forma racional, lógica e objectiva, de harmonia com a experiência comum, sem que se mostre ferido de erro notório na apreciação da prova;

3- A fundamentação da decisão da matéria de facto obedece ao formalismo legal exigido pelo artº. 374º nº. 2 do CPP.

4- Estão preenchidos no caso concreto os elementos objetivos e subjetivos do crime de violação de segredo de justiça pp no artº. 371º do C.Penal;

5- Os critérios de proporcionalidade, adequação e necessidade de aplicação a ponderar em função da colisão entre o direito de liberdade de expressão abrangendo o dever de informar, e o direito à proteção da realização da justiça, impõem que se conclua pela prevalência do direito à proteção da realização da justiça, sem que tal corresponda a uma restrição ao exercício do direito de liberdade de expressão e dever de informar, pois o que está em causa não é a informação de factos com grande relevância pública, mas a inserção de conteúdos que se mostravam abrangidos pelo segredo de justiça .

6- Não se verifica no caso concreto qualquer causa de exclusão da ilicitude da conduta dos recorrentes.

7- Em consonância com todo o exposto, de concluir é que, ao proferir o Acórdão recorrido, não foi violada pelo Tribunal de recurso, qualquer disposição legal.

8- Em consequência, deverão os recursos ser considerados improcedentes e ser confirmado o douto acórdão recorrido. ]

5. Neste Supremo Tribunal de Justiça o Ministério Público sufragou integralmente a argumentação da Senhora Procuradora-Geral Adjunta na 2.ª instância, emitindo parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.

Os arguidos e o assistente não apresentaram resposta ao parecer.

6. Admitidos os recursos para este STJ, feito exame preliminar e remetidos os autos aos vistos legais, o processo foi presente à conferência para deliberação, a qual cumprirá explicitar de seguida.

II. Fundamentação

2.1- Visando permitir e habilitar este Supremo Tribunal a conhecer as razões de discordância da decisão recorrida e tal como tem sido, aliás, posição pacífica da jurisprudência, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões, devidamente congruentes, que o(s) recorrente(s) extrai(em) da respectiva motivação, sem prejuízo da ponderação das questões que sejam de conhecimento oficioso. (3)

2.2. Delimitação das questões a conhecer no âmbito do presente recurso

Atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir no presente recurso ( e que poderão ser parcialmente unificadas), sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são as seguintes:

I. Questão prévia: Irregularidade, prevista no art.ºº. 123.º, n.º 1, do CPP, conducente à declaração de invalidade do acórdão (arguida pelo recorrente AA);

II. Nulidade do acórdão recorrido, nos termos do art.º 374.º e do art.º 379.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), ambos do CPP

III. Erro notório na apreciação da prova, nos termos do art.º 410.º, n.º 2 CPP.

IV. Violação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação para modificar a matéria de facto e violação do princípio da livre apreciação da prova;

V. Falta de preenchimento dos elementos objetivo e subjetivo do tipo de ilícito por que foram condenados e dos quais depende a punibilidade da violação do segredo de justiça;

VI. Não consideração da exclusão da ilicitude por exercício dos direitos de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa.

3. - Apreciação das questões suscitadas

2.3.1 Questão prévia: Irregularidade

2.3.1.1. A Tramitação processual relevante para a decisão desta questão foi a seguinte:

• Por acórdão proferido pela 1.ª instância em ........2023 foram os arguidos AA e BB absolvidos dos crimes de violação de segredo de justiça que lhes haviam sido imputados em sede de despacho de pronúncia.

• Desta decisão foi interposto recurso pelo MP para o TRL.

• Foi proferido um primeiro Acórdão, em ...-...-2023, pelo TRL, em que se revogou a sentença recorrida e, em consequência, condenando-se o arguido BB, pela prática de um crime de violação de segredo de justiça, p. e p. pelo artigo 371º, n.º 1, do Código Penal, com a agravação prevista no artigo 30º, n.º 2, da Lei 2/99 de ..., na pena de 105 (cento e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez) euros, o que perfaz o montante de €1.050,00 (mil e cinquenta euros), e o arguido AA, pela prática de três crimes de violação de segredo de justiça, p. e p. pelo artigo 371º, n.º 1, do Código Penal, com a agravação prevista no artigo 30º, n.º 2, da Lei 2/99 de ..., na pena, por cada um deles, de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez) euros. Em cúmulo jurídico, condenou-se o arguido na pena única de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez) euros, o que perfaz o montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).

• O acórdão proferido pelo TRL, referido em 3), teve como Relatora a Exm.ª Sr.ª Desembargadora SSS e como Adjuntos os Exm.ºs Srs. Desembargadores Dr.ª TTT e UUU.

• A ...-...-2023, o arguido AA apresentou requerimento, nos termos previstos na alínea d) do número 1 do artigo 40.º e números 2 e 3 do artigo 41.º, ambos do CPP, em virtude da participação do Exmo. Juiz Desembargador UUU, referindo que, potenciando e originando perigo grave e sério para a posição processual do arguido e para a justiça da decisão do processo , pedindo que fosse reconhecida e declarada a nulidade do Acórdão de ........2023, determinando-se em consequência, a sua revogação, e que, consequentemente, fosse ordenada a remessa dos autos a nova distribuição.

• Por requerimento datado de ...-...-2023, o arguido BB apresentou requerimento, onde alegou a Nulidade que, nos termos do disposto no n.º 1, do art.º 118.º e alínea a), do art.º 119.º, do Código de Processo Penal, seria insanável e determinaria a sua revogação e consequente remessa dos presentes autos a nova distribuição para decisão do recurso apresentado pelo Ministério Publico do Acórdão absolutório do arguido, devendo o Acórdão de 8 de novembro de 2023 ser declarado nulo e ordenada a remessa dos autos para nova distribuição.

Por despacho proferido em ...-...-2023, foi declarado nulo o acórdão proferido em 8 de novembro de 2023, e determinada a remessa dos autos à secção central, a fim de se proceder a segunda distribuição, para substituição do Mm.º Juiz-Desembargador, Dr. UUU, como juiz-adjunto nestes autos, por outro Mmº Colega, que se não mostrasse impedido.

• Por despacho proferido em ...-...-2023, foi determinado que os autos fossem a vistos e à conferência, no dia ........2023.

• Em ...-...-2023 foram os autos redistribuídos e nomeado em substituição do Exmo. Sr. Desembargador UUU, a Exma. Sr.ª Desembargadora WWW como 1.º Adjunto.

• Em ...-...-2023 foram os presentes autos inscritos em tabela para o dia ...-...-2023, pelas 11 horas.

• Foi proferido Acórdão, em ...-...-2023, tendo como Relatora a Exma. Sr.ª Desembargadora SSS e como Adjuntos Dr.ª WWW e TTT.

• Em ...-...-2023, os arguidos AA e BB através de requerimento vieram apresentar reclamação do despacho proferido em ...-...-2023, ao abrigo do art.º 417.º, n.º 8, do CPP, para a Conferência, requerendo a procedência da reclamação, revogando-se o despacho reclamado e substituindo-se o mesmo por outro que determinasse a nomeação de um novo Coletivo em conformidade.

• Por despacho proferido em ...-...-2024 foi determinada a inscrição em tabela para conferência no dia ...-...-2024.

• Através de requerimento, datado de ...-...-2024, os arguidos AA e BB, vieram arguir irregularidade, ao abrigo do disposto no artigo 123.º n.º 1 do CPP, declarando-se em conformidade inválido o Acórdão de ........2023 com todas as consequências legais.

• Foi proferido Acórdão, em ...-...-2024, não admitindo as reclamações apresentadas pelos arguidos AA e BB, por inadmissibilidade legal e, supletivamente, rejeitaram-se as mesmas, por manifesta improcedência. Indeferiu-se, de igual modo, a irregularidade processual suscitada pelos requerentes AA e BB.

2.3.1.2. Esse acórdão de ........24 teve o seguinte teor, do qual aqui damos nota na parte mais relevante:

[“I – relatório

1. Nos presentes autos foi publicado acórdão, em ... de ... de 2023, elaborado pela relatora e votado por unanimidade pelos então dois Mmºs Srs. Juízes Desembargadores-Adjuntos, Drª TTT e Dr. UUU.

2. No seguimento de requerimento apresentado pelos arguidos AA e BB, foi proferido o seguinte despacho, pela relatora:

Requerimentos que antecedem (arguição de nulidade por parte dos arguidos BB e AA):

No passado dia ... de ... de 2023, foi proferido acórdão que se debruçou sobre o recurso interposto pelo MºPº, relativamente à decisão absolutória proferida pelo tribunal “a quo”, concernente aos arguidos BB e AA.

O acórdão foi prolatado por unanimidade, sendo que integrou esse tribunal colectivo o Mmº Juiz-Desembargador, Dr. UUU.

Sucede que, como bem salientam os requerentes, o Exº Sr. Juiz-Desembargador Adjunto, Dr. UUU, teve já anterior intervenção nos presentes autos, uma vez que relatou, em ... de ... de 2022, acórdão que se pronunciou, em sede de recurso, sobre decisão instrutória.

Como decorre do vertido no artº 40, nº1, al. d), do C.P.Penal, nenhum juiz pode intervir em recurso relativo a processo em que tiver proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, de decisão instrutória.

Assim sendo, deveria o Mmº Sr. Juiz-Desembargador Adjunto, quando os autos lhe foram com vista, juntamente com o projecto do acórdão, elaborado pela relatora, ter-se-declarado impedido, como determina o artº 41 do C.P.Penal, o que, por lapso - a que não será alheio o período temporal decorrido desde a prolação do inicial acórdão e o presente (um ano e sete meses), bem como a intervenção, nesse interim, quer como relator, quer como adjunto, em mais do que uma centena de processos – não fez.

Não obstante, o facto de esse impedimento não ter sido oportunamente suscitado, não retira a necessidade de forçosamente se ter de concluir que ocorre a nulidade insanável, consignada no artº 119 al. a) do C.P.Penal (violação das regras legais relativas ao modo de determinar a composição do tribunal colectivo), pelo que, ao abrigo do disposto no artº 122 do mesmo diploma legal, se declara a invalidade do acórdão prolatado em ... de ... de 2023, que terá de vir a ser repetido.

Uma vez que, no que concerne quer à relatora, quer à Mmª Srª Juíza-Desembargadora Adjunta, nenhum impedimento legal se verifica, deverá seguir-se a solução legal e habitualmente adoptada, nos casos em que ocorre necessidade de substituição de um dos membros do tribunal colectivo – sendo que, no caso, não é viável o recurso ao disposto no artº 116 nº4 do C.P.Civil, uma vez que a Mmª Juíza-Desembargadora substituta, Drª XXX, se mostra igualmente impedida - e que consiste na realização de 2ª distribuição de um novo Sr. Juiz-Desembargador Adjunto, nos termos previstos no artº 217 do CPCivil (normas aplicáveis ex vi artº 4º do C.P.Penal).

Assim, remetam-se os autos à secção central, a fim de se proceder a segunda distribuição, para substituição do Mmº Juiz-Desembargador, Dr. UUU, como juiz-adjunto nestes autos, por outro Mmº Colega, que se não mostre impedido.

Mais se consigna que, nessa distribuição, não poderá igualmente ser englobada a Mmª Juíza-Desembargadora, Drª XXX, por se mostrar igualmente impedida nos presentes autos, já que interveio, na qualidade de juíza-adjunta, no recurso relativo à decisão instrutória.

3. Idos os autos à distribuição e sorteada nova Mmª Juíza-Desembargadora Adjunta, foi proferido novo acórdão, em ... de ... de 2023, aprovado por unanimidade.

4. Os arguidos AA e BB vieram apresentar reclamação para a conferência, com o seguinte teor:

1. Os arguidos foram notificados no dia ... do despacho de ... de ... de 2023 com a referência 20833955 que declarou nulo o Acórdão proferido em ... de ... de 2023 e determinou, em consequência, “a remessa dos autos à secção central, a fim de se proceder à segunda distribuição, para substituição do Mmº Juiz-Desembargador, Dr. UUU, como juiz-adjunto nos presentes autos, por outro que não se mostrasse impedido”.

2. A verdade é que, o sobredito despacho é proferido na sequência dos requerimentos apresentados pelos arguidos AA e BB a ... de ... de 2023 com as referências citius 47166987 e 47198109, assim respectivamente, onde além da arguição da nulidade do sobredito Acórdão, os arguidos requereram ainda uma nova distribuição dos autos a outro coletivo de Juízes.

3. Pelo despacho ora reclamado, foi decidido indeferir a pretensão dos arguidos ao manter-se nos presentes autos como relatora a Exma. Senhora Desembargadora SSS e como Juiz- Adjunta a Exma. Juiz-Desembargadora Dra. TTT.

4. Ora, como já havia sido referido, em face ao contacto prévio do Exmo. Sr. Juiz Desembargador Dr. UUU com os factos, é natural e evidente que as suas Colegas a quem também foram distribuídos os presentes autos e julgaram o recurso interposto pelo MP, tivessem também formulado um juízo já condicionado na sua imparcialidade, suscetível de gerar nos interessados na decisão apreensão ou receio, objetivamente fundados, sobre o risco de algum pré-juízo relativamente à matéria da causa e ao sentido da decisão.

5. Requereram assim os arguidos AA e BB que as Exmas. Senhoras Juízas Desembargadoras Dra. SSS e Dra. TTT não voltassem a ter contacto com os presentes autos.

6. Revelou-se clara a existência de um pré-entendimento e uma visão direcionada sobre os factos e o direito por parte do Exmo. Senhor Juiz Desembargador Dr. UUU que necessariamente contaminaram os restantes membros do coletivo e que assim condicionaram e determinaram a decisão adotada no Acórdão de ... de ... de 2023, que revogou a decisão de absolvição dos arguidos e os condenou injustamente.

7. Ainda assim, no despacho proferido e ora sob reclamação pode ler-se o seguinte:

“Uma vez que, no que concerne quer à relatora, quer à Mmª Srª Juíza- Desembargadora Adjunta, nenhum impedimento legal se verifica, deverá seguir-se a solução legal e habitualmente adoptada, nos casos em que ocorre necessidade de substituição de um dos membros do tribunal colectivo”,

8. Não podem os arguidos conformar-se nesta parte com o despacho de que ora se reclama.

9. Inconformados com este segmento do despacho e limitando expressamente o objeto da sua reclamação ao mesmo, consideram os arguidos que, com a sua prolação foi posto em causa a garantia de imparcialidade decorrente dos artigos 20 nº 4 e 203º da CRP e artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem1.

10. Desta forma, o despacho proferido no segmento aqui em crise viola manifestamente os artigos 20 nº 4 e 203º da CRP e artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

11. A verdade é que, tratando-se de um tribunal coletivo ou de júri, basta a parcialidade de um dos seus membros para inquinar toda a atividade do tribunal2

1 Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, 21-07-2007, Relator: Clemente Lima.

2 Acórdão do TEDH Sander v. Reino Unido, de 9.5.2000

12. Encontrando-se o Mmº Juiz-Desembargador, Dr. UUU, numa situação de impedimento originário, tal impedimento contagiou necessariamente os demais colegas Desembargadores não tendo a Exma. Senhora Relatora tido em consideração a pretensão dos arguidos ora reclamantes.

13. O despacho reclamado está, pois, ferido e não poderá, pois, subsistir nesta parte pelas razões já invocadas.

14. Ao decidir como decidiu a Exma. Senhora Juiz Relatora não deu cabal cumprimento e aplicação às garantias de imparcialidade previstas na lei, sendo o despacho proferido e ora reclamado (na parte em que mantém como relatora a Exma. Senhora Desembargadora SSS e como Juiz- Adjunta a Exma. Juiz-Desembargadora Dra. TTT nos presentes autos) manifestamente violador dos artigos 20 nº 4 e 203º da CRP e artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pelo que, deverá, nessa parte, ser revogado e substituída por outro que determine a remessa para nova distribuição para decisão do recurso apresentado pelo Ministério Público e nomeação de um novo Coletivo em conformidade com o requerido pelos arguidos.

Nestes termos e nos mais de direito deve a presente reclamação ser julgada procedente, revogando-se o despacho reclamado e substituindo-se o mesmo por outro que determine nomeação de um novo Coletivo em conformidade.

5. Vieram os arguidos AA e BB posteriormente, em requerimento autónomo, suscitar irregularidade do acórdão proferido em ... de ... de 2023, nos seguintes termos:

1. Foram os arguidos notificados no dia .../.../2023 do despacho de .../.../2023 com a referência 20833955 que declarou nulo o Acórdão proferido em .../.../2023 e determinou, em consequência, “a remessa dos autos à secção central, a fim de se proceder à segunda distribuição” apenas “para substituição do Mmº Juiz-Desembargador, Dr. UUU, como juiz-adjunto nos presentes autos, por outro que não se mostrasse impedido”.

2. No que concerne quer à relatora, quer à Mmª Srª Juíza- Desembargadora Adjunta, refere o sobredito despacho que “nenhum impedimento legal se verifica, deverá seguir-se a solução legal e habitualmente adotada, nos casos em que ocorre necessidade de substituição de um dos membros do tribunal colectivo”,

3. Não se conformando neste segmento com o despacho em crise, os arguidos ora requerentes apresentaram no dia .../.../2023 por requerimento com a referência citius 47485746 reclamação para a conferência com vista a uma nova distribuição dos autos a outro coletivo de Juízes.

4. No dia .../.../2023, os arguidos tomaram conhecimento da prolação de novo Acórdão que, à semelhança do Acórdão de .../.../2023 os condenou novamente (e nos mesmos termos) pela prática dos crimes de que vinham acusados.

5. Sucede que, o sobredito novo Acórdão é proferido e assinado pelas Exmas. Juízas Desembargadoras SSS, TTT e WWW no dia .../.../2023 – data em que ainda não havia sequer transitado em julgado o despacho de .../.../2023 e que foi objeto de reclamação.

6. Ao cabo e ao fim, antes de decorrido o prazo para o arguido apresentar reclamação para a conferência, já o coletivo de Juízes tinha deliberado e assinado um novo Acórdão condenatório.

ORA,

7. Como refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, “proferida uma decisão, ainda que legalmente irrecorrível para o tribunal superior, a mesma não pode considerar-se transitada em julgado na data da sua notificação, pois a mesma, independentemente de não ser suscetível de recurso ordinário, pode ser objeto de reclamação. Há, assim, que distinguir duas situações: a) se a decisão admitir recurso transita em julgado decorrido o prazo de recurso; b) se a decisão não admitir recurso, transita em julgado, depois de decorrido o prazo normal e legal da respetiva possibilidade de reclamação”1 (sublinhado nosso).

8. Feito este enquadramento, e sintetizando, a decisão transita em julgado quando se torna firme, imutável e definitiva2.

9. Em matéria de trânsito em julgado em sede de processo penal, esclarece o Tribunal da Relação de Guimarães que “(...) o Código de Processo Penal não define o conceito de trânsito em julgado, havendo que recorrer, subsidiariamente ao disposto no Código de Processo Civil (por força do disposto no art 4.º do Código de Processo Penal), que, no artigo 628.º estipula que a decisão se considera passada ou transitada em julgado, logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação”.

10. In casu, quando os arguidos ainda se encontravam dentro do prazo legal para apresentar reclamação, já o novo coletivo de Juízes tinha deliberado e proferido novo Acórdão e, consequente e previsivelmente, decidido no mesmo sentido que o Acórdão anterior.

11. Assim, o despacho proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa a .../.../2023 ainda não havia transitado em julgado aquando da prolação do novo Acórdão.

RAZÃO PELA QUAL,

12. Não pode o Tribunal - competente nesta fase do processo para tanto - deixar de conhecer da existência de vício de irregularidade na prolação de novo Acórdão quando ainda não tinha transitado em julgado despacho anterior, nos termos gerais do n.º 1 e 2 do artigo 123.º do Código de Processo Penal (“CPP”).

SENÃO, VEJAMOS,

1 Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13-06-2016, Proc. n.º 459/13.6GAAMR.G1, Relator: Alcina Ribeiro; disponível para consulta em www.dgsi.pt.

2 Cfr. Acórdão supra Cit..

13. Tendo os arguidos sido notificados a .../.../2023 do despacho datado de .../.../2023 dispunham de um prazo de 10 dias para efeitos de apresentação de reclamação para a Conferência, conforme regime supletivo previsto no artigo 105.º, n.º 1, do CPP o qual terminaria no dia .../.../2023.

14. Ora, como supra se viu, a decisão só transita em julgado quando já não for admissível recurso ordinário ou reclamação, conforme artigo 628.º do CPC.

15. Pelo que, era legalmente admissível reclamação para a conferência do Tribunal da Relação de Lisboa até ao dia .../.../2023.

16. No entanto, e curiosamente, no dia .../.../2023, i.e., antes sequer do trânsito em julgado do referido despacho, já o coletivo de Juízes tinha deliberado e decidido pela condenação.

17. Nesse sentido, face à atuação do tribunal, estamos perante uma irregularidade processual, não se desvalorizando, contudo, a gravidade da mesma.

18. Assim entende a Doutrina, em face de ausência de cominação expressa deste vício com nulidade: “para que algum acto processual relativamente ao qual tenha havido violação ou inobservância das disposições legais do processo penal padeça do vício de nulidade é necessário que a lei o diga expressamente; de outro modo o acto viciado sofrerá do vício menor da irregularidade, submetido ao regime do art.º 123.º, mas não será nulo3.”.

19. Reforçando ainda que: “Apesar das irregularidades serem consideradas em geral vícios de menor gravidade do que as nulidades, a grande variedade de casos que na vida real se podem deparar impõe que se não exclua a priori a possibilidade de ao julgador se apresentarem irregularidades de muita gravidade, mesmo susceptíveis de afectar direitos fundamentais dos sujeitos processuais.4”.

20. Sendo que, in casu, foi precisamente o que sucedeu, na medida em que está em causa vício de irregularidade uma gravidade materialmente idêntica à de uma “nulidade insanável5”, que contende diretamente com garantidas fundamentais de defesa do Arguido.

21. Nomeadamente, com os n.ºs 1, 2 e 5 do artigo 32.º CRP, colocando em causa as garantias mais basilares do processo criminal, como a própria estrutura acusatória do processo, o princípio do contraditório e o princípio da presunção de inocência, ao não ter o Tribunal da Relação de Lisboa aguardado pelo trânsito em julgado do despacho e respeitado os respetivos trâmites legais.

22. De tal forma é grave a irregularidade em causa, que enferma todos os atos processuais que lhe são subsequentes.

3 GONÇALVES, Maia, in Código de Processo Penal Anotado, Almedina, 1998, pág. 303

4 Ibidem

5 Tribunal da Relação de Lisboa (“TRL”), 27-06-2019, processo n.º 1625/17.0T9PDL-A.L1-9, Relator: Antero Luís.

23. Na realidade, os efeitos da declaração de irregularidade serão, in casu, a invalidade de todos os efeitos substantivos, processuais e materiais do ato irregular e a invalidade dos atos subsequentes que tenham um nexo de dependência lógica e histórica com o ato irregular bem como, a repetição do mesmo.

NESTES TERMOS,

24. Dúvidas não restam quanto à tempestividade da arguição da presente irregularidade, nos termos do n.º 1 do artigo 123.º do CPP, uma vez que nenhuma autoridade judiciária sobre esta se pronunciou até ao momento e os Arguidos, que ora a invocam, apenas tiveram conhecimento da mesma aquando da notificação do Acórdão via Citius.

25. Além de que, e como supra se viu, do despacho datado de 6/12/2023 cabe reclamação para a conferência, como estabelece o n.º 8 do artigo 417.º do CPP, devendo o mesmo ter sido julgado nessa sede, na expetativa e esperança de que a conferência divergisse do anterior despacho e regularizasse os vícios que já toldavam o caso desde a prolação do anterior Acórdão.

26. Pelo que, ao ter sido proferido novo Acórdão sem a devida análise da reclamação em conferência, foi coartado ao arguido a possibilidade que lhe é conferida por lei, de ver reapreciada as questões por ele suscitadas.

27. Com efeito, o prosseguimento dos autos não se afigura admissível, pelo que deverão os atos subsequentes ao despacho ser invalidados.

Por todo o exposto, deverá ser julgada procedente a irregularidade verificada ao abrigo do disposto no artigo 123º nº 1 do CPP, declarando-se em conformidade inválido o Acórdão de ........2023 com todas as consequências legais.

ii – cumpre decidir.

Da reclamação apresentada para a conferência:

1. Como se constata pela leitura do requerimento supra, no seu intróito, o mesmo é dirigido à conferência, sob a égide do disposto no artº 417º nº 8 do C.P.Penal.

Como resulta claramente da lei, a reclamação para a conferência aí prevista, só é admissível nos seguintes casos:

6 - Após exame preliminar, o relator profere decisão sumária sempre que:

a) Alguma circunstância obstar ao conhecimento do recurso;

b) O recurso dever ser rejeitado;

c) Existir causa extintiva do procedimento ou da responsabilidade criminal que ponha termo ao processo ou seja o único motivo do recurso; ou

d) A questão a decidir já tiver sido judicialmente apreciada de modo uniforme e reiterado.

7 - Quando o recurso não puder ser julgado por decisão sumária, o relator decide no exame preliminar:

a) Se deve manter-se o efeito que foi atribuído ao recurso;

b) Se há provas a renovar e pessoas que devam ser convocadas.

8 - Cabe reclamação para a conferência dos despachos proferidos pelo relator nos termos dos n.os 6 e 7.

2. Como é bom de ver, o despacho a que os reclamantes fazem referência, não se insere em nenhuma das situações que admitem tal tipo de reclamação, pois o mesmo não foi proferido em sede de exame preliminar, não se refere a decisão sumária proferida pelo relator e não determinou qualquer alteração do efeito do recurso ou de renovação de prova.

Assim sendo, cremos que não restam dúvidas de que a presente reclamação se mostra legalmente inadmissível e, como tal, não pode ser admitida nem conhecida.

3. Não obstante, aditar-se-á ainda o seguinte:

a. Os casos de impedimento mostram-se estabelecidos na lei, constando do disposto nos artºs 39 e 40 do C.P.Penal. Manifestamente, quer a presente relatora, quer a Mmª Juíza-Desembargadora Adjunta, que tiveram intervenção no 1º acórdão, alvo de oportuna anulação, não se encontram em nenhuma das circunstâncias aí taxativamente definidas, nem, em bom rigor, o que os reclamantes alegam aí se insere. É pois claro que nenhuma das duas Juízas-Desembargadoras se mostra impedida de decidir nos presentes autos.

b. Caso entendessem os reclamantes que ocorriam razões para afastar quer a relatora, quer uma das Mmªs Juízas-Adjuntas, da prolação da decisão, deveriam ter feito uso do mecanismo previsto no artº 43 do C.P.Penal, o que não fizeram, nem caberia a este colectivo decidir sobre tal matéria, mostrando-se presentemente ultrapassado e esgotado o prazo para tal fim.

c. Os reclamantes mostram-se em manifesto erro quanto ao modo de processamento dos acórdãos prolatados nos tribunais superiores.

De facto, e ao inverso do que sucede na 1ª instância, em que o acórdão é elaborado apenas após o debate havido entre todos os elementos do tribunal colectivo e reflecte a discussão prévia à elaboração do mesmo (artºs 365 a 372, todos do C.P.Penal), tal não sucede no Tribunal da Relação.

Nesta instância, cabe ao relator apresentar um projecto de acórdão, em que se debruça sobre todas as questões postas no recurso e as decide, assim como apresenta o dispositivo final (isto é, elabora integralmente um acórdão, que apenas é denominado projecto, porque ainda não discutido), cabendo depois aos Mmºs Juízes-Adjuntos, em sede de discussão, à posteriori, aderir ou não, na totalidade ou em parte, ao projecto que lhes foi previamente enviado (vide artºs 418 e 419, ambos do C.P.Penal); ou seja, a discussão não é prévia à elaboração do projecto, mas antes posterior, pelo que se o projecto é aprovado sem votos de vencido – como foi o caso – tal significa que os Mmºs Juízes-Adjuntos concordaram com o que a relatora havia previamente enunciado e proposto em termos decisórios, o que forçosamente implica a inexistência de qualquer prévia “contaminação” conviccional, de um adjunto para com a relatora.

Assim, salvo o devido respeito, tendo sido a relatora a elaborar o projecto, que é da sua exclusiva autoria e iniciativa, projecto este posteriormente apresentado para discussão junto dos restantes membros do colectivo, que com o seu teor, integral e unanimemente, concordaram (em ambos os casos, isto é, quer no caso do acórdão prolatado em Novembro, quer no de Dezembro, com composições diversas), não se vislumbra a violação de qualquer um dos normativos a que os reclamantes aludem.

d. Mais: as decisões anteriores proferidas no âmbito dos autos, que versaram questões postas em recurso, mostram-se sempre integradas nos processos, não sendo o seu teor secreto, quer para os intervenientes processuais, quer para os magistrados judiciais. Assim, a decisão relativa à questão da pronúncia, a que os reclamantes dão tanta relevância, é um documento de natureza pública, acessível a todos, o que inclui, obviamente, os magistrados judiciais que intervém nos autos. E, pelos vistos, a sua leitura não influenciou, nem determinou a decisão proferida pelos Mmºs Juízes do Tribunal “a quo”, assim como não teve qualquer relevância para a presente decisão pois, em boa verdade, os argumentos jurídicos são, até, efectivamente diversos, nas três decisões referidas. Basta lê-las.

e. Do que se deixa dito resultaria que, ainda que pudesse haver lugar ao conhecimento da presente reclamação, a mesma sempre seria de rejeitar, por manifesta improcedência.

Da irregularidade suscitada:

1. Fundam os requerentes a putativa irregularidade que cada um deles invoca, no facto de, em seu entendimento, o acórdão proferido em ... de ... de 2023 ter sido prolatado antes de terminado o prazo para reclamação para a conferência, do despacho proferido pela relatora, relativo à questão dos impedimentos legais.

2. Como supra se deixou referido, não lhes assiste qualquer razão, pelo singelo facto de tal despacho não ser susceptível, legalmente, de reclamação para a conferência.

3. Não obstante e ainda que assim se não entendesse, ou seja, ainda que tal reclamação fosse legalmente admissível (e não é), a verdade é que a mesma seria manifestamente improcedente, pelas razões também já cima enunciadas, o que acarretaria, consequentemente que, ainda que a irregularidade tivesse sido cometida (relativa à putativa inobservância do prazo de 10 dias), a mesma mostrar-se-ia sanada, por não afectar o valor do acto praticado.

De facto, como decorre expressamente do vertido no artº 123 do C.P.Penal, uma irregularidade só tem relevância e determina a necessidade de suprimento, se acarretar a afectação do acto validado. No caso, nenhuma afectação se verificaria, uma vez que o despacho se mostra legal e vinculativo e o acórdão sempre deveria ter sido proferido pelo Tribunal Colectivo que o prolatou em ..., com a composição resultante de tal despacho.

iii – decisão.

Face ao exposto, não se admitem as reclamações apresentadas pelos arguidos AA e BB, por inadmissibilidade legal e, supletivamente, rejeitam-se as mesmas, por manifesta improcedência.

Indefere-se, de igual modo, a irregularidade processual suscitada pelos requerentes AA e BB.

(…)”]

2.3.1.3 - O arguido AA no presente recurso para este STJ, novamente esgrime com a irregularidade já invocada e que foi apreciada pelo TRL no Acórdão proferido em ...-...-2024.

Convoca tal irregularidade, atinente, no essencial, à circunstância de o acórdão proferido em ...-...-2023 ter sido proferido antes do terminus do prazo para reclamação para a conferência do despacho proferido pela relatora em ...-...-2023, concernente à questão dos impedimentos legais.

E fê-lo agora nos seguintes termos:

[“No dia ........2023, o arguido tomou conhecimento, por via de notificação, que os autos foram distribuídos à 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa, de onde resultou o acórdão proferido a ........2023, que julgou procedente o recurso interposto pelo MPe,em consequência, procedeu à revogação do acórdão absolutório, condenando o arguido pelos crimes de que vinha acusado. Sucede que, esse acórdão vem assinado pelos Exmos. Juízes Desembargadores SSS, TTT e UUU. O Exmo. Sr. Juiz foi também o Magistrado que julgou o recurso da decisão instrutória de não pronúncia, de onde resultou a sua revogação e consequente submissão do arguido a julgamento por acórdão proferido a ........2022.

Foram, pois, duas decisões (pronúncia e condenação) do Exmo. Sr. Juiz UUU no âmbito dos presentes autos em duas fases diferentes dos mesmos.

O arguido apresentou, então, requerimento a invocar a nulidade do acórdão, tendo o mesmo sido julgado procedente e, por despacho, o acórdão declarado nulo. Consequentemente, os autos foram remetidos a segunda distribuição, para substituição do Exmo. Sr, Juiz UUU. Não obstante, considera o arguido que substituir, apenas, o Exmo. Sr. Desembargador não seria suficiente para cumprir as garantias de imparcialidade, considerando que este contagiou as demais colegas, as quais, consequentemente, também deveriam ficar impedidas.

Termos em que o Arguido reclamou para a Conferência do Tribunal da Relação de Lisboa, expondo os factos e requerendo a nova distribuição dos autos a outro coletivo de Juízes.

No dia ........2023, os arguidos tomaram conhecimento da prolação de novo acórdão que, à semelhança do acórdão de ........2023 os condenou novamente e nos mesmos termos.

Sucede que, o sobredito novo acórdão é proferido e assinado pelas Exas. Sras. Juízas Desembargadoras SSS, TTT e WWW no dia ........2023, data em que ainda não havia sequer transitado em julgado o despacho de ........2023 e que foi objeto de reclamação.

No fundo, ainda antes de decorrido o prazo para o arguido apresentar reclamação para a conferência, o coletivo de Juízes tinha deliberado e assinado um novo acórdão condenatório.

Acórdão esse de que agora se recorre e que está, como se viu, à cabeça, ferido de manifesta irregularidade ao abrigo do disposto no artigo 123º nº 1 do CPP, devendo o mesmo ter sido declarado inválido em conformidade – o que não ocorreu.”]

2.3.1.4 Vejamos então se razão assiste.

De certo modo, a questão colocada está ultrapassada, pois o colectivo de juízes do TRL decidiu a apontada “irregularidade” julgando-a improcedente, validando assim a intervenção anterior do colectivo que tomou a deliberação por acórdão de ........2023. O recorrente coloca apenas a sua discordância quanto ao momento em que esse acórdão foi proferido, dizendo que o não devia ter sido enquanto o despacho reclamado não transitasse em julgado.

Colocada a questão meramente no âmbito da alegada intemporalidade da decisão de ........2023, e apesar de estar a nosso ver prejudicada pela decisão convalidante de ........24, sempre diremos o seguinte.

Na verdade, independentemente do acerto ou não da tramitação processual inerente à forma como o foi o incidente e que , na verdade seria de impedimento e recusa dos Srs. juízes que compunham o colectivo, travestido de nulidade/irregularidade, o despacho que determinou a nova distribuição para recomposição da nova formação parcial do colectivo em substituição do Sr. Desembargador Dr UUU teria merecido não uma reclamação, visto ser inaplicável o art.º 417º n.º 8 do CPP mas, ao invés, um recurso, pois o que estava em causa, na verdade, era apenas uma arguição de impedimento e, também, de recusa de juízes.

Se da parte da Exma. relatora esta tomou logo posição também quanto a si (ex vi do art 43º do CPP) , já o mesmo não teria de o fazer quanto aos restantes juízes, a quem o impedimento deveria ter sido formalmente dirigido (no caso do artº 40.º nº1 b) do CPP) ou o pedido, como recusa, formulado e dirigido ao tribunal superior se nos termos do artº 43ºdo CPP. Então, consoante a posição a assumir, se tramitaria o processado subsequente, com eventual recurso em caso de não aceitação de impedimento ou por via de tramitação de incidente a correr no tribunal superior, no caso de recusa.

Nos termos do art.º 42.º n.º 2 do CPP o efeito seria suspensivo no caso de impedimento não reconhecido pelo visado e a tramitação de incidente de recusa, no caso aplicável, teria de ser deduzida e subir primeiramente ao tribunal superior (in casu, o STJ, ex vi do art.º 45º e ss do CPP).

Em consequência, por aí se poderia dizer que o acórdão de ........23 teria sido prolatado por antecipação pois a impugnação do despacho seria sempre de efeito suspensivo.

Mas nada disso foi feito. O problema foi decidido em conferência no TRL e validada a constituição do colectivo. Na verdade, a reclamação não era meio adequado de impugnar aquele despacho e poderia até dizer-se que, não sendo um recurso, não teria necessariamente a inerência do efeito suspensivo de um recurso. Ainda assim, mutatis mutandis, admitindo porém, por alguma semelhança com aquele, pudesse ter um efeito idêntico, foi decidida, mas indeferida, a reclamação. Tendo-o sido, a validação da decisão anterior quanto à intervenção antecipada do colectivo ficou sanada.

De todo o modo, sempre diremos que não constitui fundamento nem razão de impedimento ou de recusa a composição de um colectivo em que um dos juízes que tenha participado numa primeira decisão seja substituído por outro, não sendo a alegada contaminação dos não substituídos pelo substituído minimamente consistente ou demonstrada, pois que os magistrados judiciais pensam por si próprios, com independência e imparcialidade, não sendo suficiente a mera alegação de participação na decisão de alguns dos que fizeram parte do colectivo onde esteve o juiz substituído razão legal e suficiente para os afastar também só por esse facto.

A jurisprudência tem sempre considerado, justamente e sem dissídio, que a recusa tem de ter na base um motivo (sério e grave) gerador de desconfiança ou suspeição sobre a imparcialidade do juiz, motivo que só conduzirá à recusa quando objectivamente diagnosticado no caso concreto. O motivo sério e grave apropriado a gerar a desconfiança, há-de resultar de concretização material, assente em razões objectivamente valoradas, à luz da experiência comum e conforme juízo de um cidadão médio. Impõe-se sempre a formulação de um diagnóstico positivo no sentido de que um cidadão médio possa fundadamente suspeitar de que o juiz deixe de ser imparcial por força da influência do facto concreto invocado no incidente de recusa.

Nenhum motivo que suscite a ponderação à luz da norma-critério (e apenas do critério legal pois que outro não cumpre considerar) – é sequer alegado pelos requerentes.

Com efeito, a convocação de uma “contaminação” do novo colectivo apresentada pelo recorrente AA não se integra nas circunstâncias previstas no art.ºº 40.ºdo CPP e também não é susceptível de configurar a previsão dos n.ºs 1 e 2 do art.º 43.º, pois a argumentação apresentada não fundamenta nem comprova minimamente ter existido afectação séria e grave da imparcialidade dos juízes não substituídos.

Por isso, dado o exposto, inexiste irregularidade relevante que obste ao prosseguimento do conhecimento.

2.3.2-Da nulidade por excesso de pronúncia, por a decisão recorrida alegadamente incidir sobre factos que o TRL não podia conhecer, por falta de fundamentação face a alegado uso de conceitos indeterminados e presunções e ainda a invocação do vício de erro notório - art.º 410.º, n.º 2 CPP).

O arguido BB faz essencialmente um apelo argumentativo impugnatório sobre matéria atinente a alegado excesso dos poderes da Relação em sede de modificação da matéria de facto, sem razão como veremos adiante.

Por sua vez, o vício de erro notório foi invocado pelo recorrente AA.

Também é invocada a nulidade por falta de fundamentação porquanto o tribunal teria usado de conceitos indeterminados que serviram de base de convicção, nomeadamente por recurso a “presunções”, “ilações” e “regras da experiência comum” e que deveria (no mínimo) ser acompanhado por um percurso intelectual lógico devidamente estruturado com referência ao caso concreto, caso contrário entrar-se-ia no campo da “mera possibilidade” ou no domínio das “impressões”.

E isso, porque na fundamentação (pág. 67 do acórdão do TRL) a convicção do Tribunal a quo teve na sua base:

-“A validação crítica do comportamento humano em presença, de acordo com as regras da experiência”;

- “presunções ligadas ao princípio da normalidade”;

- “ilações, retiradas face ao facto e às circunstâncias concretas do seu cometimento” e em “definições ou juízos hipotéticos, de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum e, por isso, independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade”.

Esta argumentação confunde-se na sua base estruturante com a alegação do vício de erro notório.

O aludido recorrente (AA), ao longo da motivação e também nas conclusões 12) a 24) vem colocar em crise a valoração da prova efectuada no acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, defendendo que os factos não deviam ter sido dados como provados ao invés do que tinha decidido a 1ª instância, chamando à colação o vício do erro notório na apreciação da prova.

No essencial, alega:

[“Resulta do teor do acórdão de que ora se recorre que “os arguidos quiseram escrever e publicar os textos acima mencionados, sabendo que os autos se encontravam em segredo de justiça e sabendo igualmente que a violação do segredo de justiça é proibida por lei.”, cfr. ponto 17.

Acrescenta, no mesmo ponto, que:

“Se atentarmos na conjugação do que ora se deixa dito, com a matéria de facto constante no ponto 38 dos factos provados (38) As notícias dos autos respeitam a factos com grande interesse público) e, mais uma vez, apelando a ilações decorrentes das regras de experiência comum, uma vez que ambos os arguidos são jornalistas e foi nesse âmbito que mantiverem as actuações supra narradas, teremos de concluir que, ao quererem e divulgarem aquelas notícias, em que inseriram a descrição do conteúdo de actos e peças processuais, descrição de conteúdo este não estritamente necessário, para informar o público da investigação que se estava a processar, sabiam que, como consequência possível da sua conduta, poderiam violar o segredo de justiça, que vigorava nos autos, conformando-se com tal resultado.”.

Perscrutando o teor dos autos, não se compreende como chegou o Tribunal da Relação de Lisboa a tal conclusão.

Da prova produzida nos autos não resulta, com clareza e sem margem para dúvidas que, de facto, o arguido agiu em todos os momentos, de modo livre, deliberado e voluntário, conformando-se com o facto de, em consequência da suaconduta, poder estar a violar o segredo de justiça que vigorava nos autos.

Na verdade, nos termos do texto do acórdão recorrido, mais concretamente, no ponto 15., na

averiguação do dolo e consciência da ilicitude, o Tribunal arreigou-se de uma “avaliação crítica do comportamento humano em presença, de acordo com as regras da experiência”, bem como de “presunções ligadas ao principio da normalidade”, “ilações, retiradas face ao facto e às circunstancias concretas do seu cometimento” e “definições ou juízos hipotéticos, de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum e, por isso, independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade”.

Foi nesta sequência, que veio o Tribunal da Relação de Lisboa proceder à alteração da matéria

de facto dada como provada e não provada, cfr. ponto 23.

Em concreto, veio eliminar da matéria de facto não provada os pontos 4 e 7.

Em concreto, veio eliminar da matéria de facto não provada os pontos 4 e 7.

Recorde-se:

4) Os arguidos AA e BB agiram, em todos os momentos, de modo livre, deliberado e voluntário.

(...)

7) Os arguidos AA e BB sabiam que as suas condutas eram proibidas

e punidas por lei.

Mais, o ponto 5 da matéria de facto não provada, passa a ter a seguinte redação:

“o que fez mesmo antes de todas as diligências ordenadas e noticiadas se terem iniciado, indiferente aos efeitos que essa publicação causaria aos interesses da investigação, designadamente à dissipação de prova por parte dos visados ou à perturbação da recolha da prova que se pretendia com tais diligencias, e para a imagem dos visados pelas mesmas”

E veio, ainda, aditar à matéria de facto provada os seguintes pontos, com relevância para o

presente recurso:

“37-A.) Os arguidos AA e BB agiram, em todos os momentos, de modo livre, deliberado e voluntário.

37-B) Nas situações descritas, o arguido AA quis divulgar, como divulgou, notícias que descreveram o conteúdo dos actos e peças processuais, sabendo que, como consequência possível da sua conduta, poderia violar o segredo de justiça, que vigorava nos autos, conformando-se com tal resultado.

(...)

37-D) Os arguidos AA e BB tinham conhecimento que a violação do segredo de justiça era punida por lei.”

Ora,

Salvo o devido respeito, como é evidente e resulta do texto da decisão recorrida, o Tribunal a quo valorou de forma pouco objetiva a prova nos presentes autos, tendo em conta a estreita ligação da decisão sobre a matéria de facto a que ele respeita, resultante do próprio acórdão recorrido, para assim concordar com a condenação do recorrente pela prática do crime de que vinha acusado.

De facto, e conforme se escreveu no douto acórdão de ........2023:

Os arguidos explicaram, de modo muito verdadeiro e sentido, que publicaram as referidas notícias única e exclusivamente com a intenção de cumprir o dever de informar o leitor, ao abrigo da liberdade de imprensa e com respeito por todas as regras que regem a arte do jornalismo. Mais disseram que em nenhum momento quiseram violar o segredo de justiça, sendo que agiram de forma conscienciosa e com sentido de responsabilidade, com o cuidado de não prejudicar a investigação, apenas relatando os factos históricos depois de os mesmos terem acontecido. Ambos os arguidos disseram também que a informação publicada tinha um enorme relevo e interesse social, por estarem envolvidas figuras públicas, quer do mundo da Justiça, quer do mundo do futebol, sendo que os leitores têm o direito de ser informados e esclarecidos sobre o que está a acontecer nos respetivos processos-crime, que têm enorme repercussão social.” (destaque e sublinhado nosso).

Tendo por base a imediação e oralidade, o Tribunal coletivo que proferiu a decisão absolutória baseou-se não nas declarações do arguido, bem como em toda a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento e na prova documental relevante junta ao

processo.

Referindo ainda o douto tribunal que “Não quiseram, nem violaram no seu entender o segredo

de justiça, porque aquilo que divulgaram, para além de serem na sua grande maioria factos históricos e não teor de actos processuais, em nada prejudicou a investigação, não colocou em causa a realização da justiça, não prejudicou o direito dos arguidos a um processo equitativo, nem pôs em causa a sua honra e consideração ou excedeu a reserva da vida privada.”

Ora, de facto, resultou de toda a prova carreada para os autos, amplamente exposta pelo

Acórdão de ........2023, que, da conduta do arguido AA, não resultou qualquer

prejuízo para a investigação (facto amplamente atestado por todas as testemunhas

ouvidas em sede de julgamento) e que o mesmoagiu única e exclusivamente com ointuito de cumprir o dever de informar o leitor, afastando por completo a alegada intenção de violar o segredo de justiça.

, a valoração probatória feita no sentido da imputação dos factos ao recorrente, por referência à sua qualificação como jornalista e a “ilações decorrentes das regras de experiência comum”, é manifestamente insuficiente para a formulação de um juízo de certeza sobre a intenção do recorrente ao divulgar as notícias em crise.

As regras da experiência comum, de um ponto de vista de um homem de formação média, não nos levam a concluir, de modo claro e irrefutável, que o arguido, jornalista de profissão, ao publicar as referidas notícias, conformou-se com a possibilidade de estar a violar o segredo de justiça.

Aliás, facilmente se depreende que, e reitere-se, aoabrigoda profissãoque desempenha, a verdadeira e única intenção por detrás dos seus atos era apenas a de cumprir com o dever de informar o leitor acerca de processoscomenorme relevância social e interessepúblico, ao abrigo da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa, que marcam uma sociedade moderna, democrática, livre e plural.

Denota-se aqui um claro erro de raciocínio por parte do tribunal a quo na apreciação da prova, evidenciada pela simples leitura do texto da decisão recorrida.”]

Face ao exposto e que se acabou de transcrever, a convocação do vício de erro notório baseia-se na convicção do recorrente no sentido em que, do texto da decisão de facto recorrida, entende que o tribunal considerou que houve admissão como possível que da divulgação e publicação das notícias se violou o segredo de justiça por serem os arguidos jornalistas, em face das regras da experiência comum, de um ponto de vista de um homem de formação média,(…)”.

Contudo, o recorrente contrapõe que tais regras da experiência não nos levam a concluir, de modo claro e irrefutável, por essa conformidade com a possibilidade de se estar a violar o segredo de justiça e porquanto “(…) ao abrigoda profissãoque desempenha, a verdadeira e única intenção por detrás dos seus atos era apenas a de cumprir com o dever de informar o leitor acerca de processoscomenorme relevância social e interessepúblico, ao abrigo da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa, que marcam uma sociedade moderna, democrática, livre e plural.”

Ora, é verdade que o Tribunal da Relação considerou provado que “os arguidos quiseram escrever e publicar os textos acima mencionados, sabendo que os autos se encontravam em segredo de justiça e sabendo igualmente que a violação do segredo de justiça é proibida por lei.”

Contudo, convém recordar que estamos perante recurso para o STJ, de um Acórdão condenatório proferido por Tribunal da Relação que, por sua vez, em recurso, conheceu de decisão de 1ª instância absolutória.

O recurso é admissível para o STJ por força do artº 432º nº1 alínea b) do CPP- (decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas Relações)-e, por sua vez, dado que o artº 400º nº1 alínea e), parte final, prevê a recorribilidade em caso de condenação na 2ª instância após absolvição na 1ª instância.

Ademais, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito, nos termos do artº 434º do CPP, mas sem prejuízo do conhecimento da verificação do fundamentos previstos no artigo 410.º, n.ºs 2 e 3 do CPP (se invocáveis nos casos do artº 432º nº1 a) e c) ou, oficiosamente, quando sejam notórios e evidentes, mesmo se não invocados ou invocáveis.

Ou seja, o STJ está desde logo impedido de apreciar ou sindicar a valoração da prova efectuada pelas instâncias, fora do referido enquadramento legal4.

Todas as questões suscitadas nos recursos interpostos pelo arguido relativas à decisão da matéria de facto excedem os poderes de cognição do STJ.

O STJ conhece apenas em matéria exclusivamente de direito, sendo o recurso de rejeitar na parte restante.

A impossibilidade de conhecimento abrange assim:

a. a nulidade do acórdão por falta de fundamentação, nos termos do art.º 374.º e do art.º 379.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), ambos do CPP.

b. os vícios do art.º 410.º, nº 2, do CPP (erro notório na apreciação da prova) vícios arguidos também na parte referente à decisão sobre a matéria de facto (violação do princípio da livre apreciação da prova);

c. Violação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação para modificar a matéria de facto.

Todos os tópicos enunciados nos recursos que versem e respeitem exclusivamente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto não podem ser convocados sob a forma travestida de impugnação em matéria de direito e como suscitação de questões em matéria de direito. O que se visou sempre sindicar, em todos eles, é um juízo probatório, o juízo concretamente formulado pela Relação no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto, na decisão do recurso da sentença, essencialmente ao nível do elemento subjectivo.

Neste sentido, vide Acórdão do STJ, de 15-02-2023, Proc. n.º 7528/13.0TDLSB.L3.S1, Relatora Conselheira Ana Barata Brito, in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e27a60720b5e5ab180258958004dbbb3?OpenDocument&Highlight=0,viola%C3%A7%C3%A3o,segredo,de,justi%C3%A7a,liberdade,de,imprensa , aqui em síntese:

“. A Lei n.º 94/2021 procedeu a alterações ao CPP em matéria de recursos, passando o art.º 434.º do CPP a estatuir que “o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432”, segmento final aditado.

II. Esta norma continuou a estipular a regra geral de que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, passando, no entanto, a exceptuar duas (únicas) situações, que são as que resultam das als. a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP.

III. O art.º 432.º, n.º 1, al. a) do CPP, estabelece agora a possibilidade de interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça “de decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º”, segmento final aditado, e a al. c), “de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, segmento final aditado também.

IV. Nestes dois casos, de excepção, trata-se de recurso de primeiro grau para o Supremo, o que justifica a diferente solução legislativa.

V. Já nos casos em que não esteja em causa recurso de decisão da Relação proferida em 1.ª instância, nem recurso directo de decisão proferida por tribunal do júri ou coletivo de 1.ª instância, mas sim recurso interposto de um acórdão da Relação que decidiu já recurso anterior, nada foi alterado (pela Lei n.º 94/2021) no que respeita à (im)possibilidade de o recurso (não) poder ter os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º.

VI. Se a admissibilidade do recurso do acórdão da relação que reverte a decisão absolutória de 1.ª instância em condenação é agora evidente, no que respeita ao âmbito do recurso e aos poderes de cognição do Supremo, o recurso segue a regra geral, pois encontra-se fora da previsão das (únicas) alíneas que prevêem a excepção ao regime-regra. Ou seja, o recurso de acórdão da Relação que decide em recurso, continua a poder visar apenas o reexame em matéria (exclusivamente) de direito. E os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça encontram-se circunscritos a esse conhecimento.

VII. A alteração legislativa surge, aliás, na linha da jurisprudência do Tribunal Constitucional, tendo ido no entanto além dela: circunscreveu o direito ao recurso a matéria exclusivamente de direito, e este pode ter como fundamento qualquer questão exclusivamente de direito, que não apenas a da determinação da sanção, como seja a tipicidade, a ilicitude, a culpa, a escolha e a medida da pena, a indemnização.

VIII. No seguimento daquela que é jurisprudência consolidada, o Supremo conhece oficiosamente dos vícios do art.º 410.º, n.º 2, do CPP, bem como das nulidades de sentença por deficiente fundamentação da matéria de facto, independentemente da possibilidade de arguição em recurso, e o Supremo está obrigado a declarar tais vícios quando, em concreto, os detecte no (texto do) acórdão recorrido.

IX. Trata-se, no entanto, de uma decisão de fundamentação positiva, pois é a detecção (afirmativa) do vício que tem de ser fundamentada e declarada, não a ausência dela. Nesta derradeira hipótese, no âmbito da fiscalização oficiosa dos vícios da decisão bastará a constatação e a consignação dessa ausência.

X. Assim, não pode dizer-se que, no recurso interposto ao abrigo da al. b) do n.º 1, do art.º 432.º do CPP, a decisão sobre a matéria de facto escape absolutamente ao controlo do (duplo grau de) recurso (e terceiro grau de jurisdição), pois o controlo oficioso nunca deixa de ser feito.”

Não obstante, convém lembrar que, tendo em conta a jurisprudência fixada no acórdão do pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.1995 (DR, Iª série-A, de 28.12.1995), “é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.”

Porém, o controle oficioso não tem de ser efectuado só porque foi alegada matéria de vícios ou nulidades. Se assim fosse, bastaria que, mesmo quando inadmissível um recurso com esses fundamentos, os interessados viessem invocar nulidades e vícios. O conhecimento é oficioso quando seja patente a existência dessas questões e deve resultar do texto da decisão e do confronto com as regras da experiência.

No entanto, não é patente que tal resulte no caso concreto.

De todo o modo, concedendo, face à importância mediática do tema, ligado às notícias sobre a investigação ocorrida nos casos referidos na factualidade já transcrita, entendemos ser útil tecer algumas breves considerações, obiter dictum, acerca dos argumentos invocados.

Quanto ao erro notório na apreciação da prova, imputado ao acórdão recorrido:

Consiste num vício de apuramento da matéria de facto que, como todos os outros vícios do n.º2 do art.º410.º do C.P.P., prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos juntos aos autos.

Verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.

No dizer de Leal-Henriques e Simas Santos existe “... quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”. 5

Por esta razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (art.º374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal).

Este vício tem de ser ostensivo, que não escapa ao homem com uma cultura média. Nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correta face à prova produzida em audiência de julgamento.

Quanto às regras/normas da experiência comum elas são, na lição de Cavaleiro de Ferreira «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.».6

Desde logo, o recurso à convicção pelas regras da experiência é permitido nos termos do artº 410º do CPP e, estando, como estão, em causa comportamentos de jornalistas de carreira, bem conhecidos do país, experientes e sabedores das regras de comportamento jornalístico, não nos parece um argumento indevido ou inábil.

O tribunal da Relação tinha poderes de modificação da matéria de facto nos termos dos artºs 428º e 430º do CPP, usando poderes e competências atribuídas ex lege, em face do peticionado pelo MPº, que entendia no recurso por si interposto que os arguidos violaram intencionalmente o segredo de justiça divulgando actos processuais abrangidos no regime de protecção do segredo de justiça e actuou sobretudo na redefinição do segmento do elemento subjectivo concluindo de forma cabível, segundo essas regras da experiência que eles admitiram como consequência possível da sua conduta essa violação.

Salientamos, ainda, que nos recursos interpostos os arguidos fazem confusão entre nulidades, vícios e causas de exclusão de ilicitude.

Não negam que divulgaram intencionalmente as notícias em causa mas que configuram o seu comportamento no cumprimento de um dever público de informar o que se passava, dado o enorme relevo dos casos investigandos, mesmo estando abrangidos em segredo de justiça.

Aqui, dois aspectos se configuram como fundamentais e que se atêm essencialmente ao problema de saber se:

-Os elementos divulgados eram abrangidos pelo regime de protecção do segredo de justiça e se, sendo-o,

- a sua divulgação e as circunstâncias em que o foram, face ao interesse público dos casos, merecia ainda assim a sua divulgação em detrimento do segredo de justiça, numa relação de preponderância entre bens jurídicos: o da liberdade de informar e o da protecção do segredo das investigações em curso.

Esta é a abordagem que nos parece a mais correcta e que nos transporta para a recolocação do problema no âmbito da subsunção jurídica e da existência ou não de causas de exclusão da ilicitude.

Será essa a perspectiva de análise que seguiremos doravante, identificando a impugnação dos recorrentes desta forma, embora num plano, a nosso ver, mais coerente, da discussão que ele verdadeiramente exige e merece.

Por último, neste segmento do recurso, diremos ainda:

Atenta a leitura da decisão recorrida, especificamente a fundamentação da alteração da matéria de facto, s.m.o, concluiu-se inexistir o vício invocado pelo recorrente.

Ele pretende apenas com a invocação do referido vício, colocar em crise a convicção que o Tribunal da Relação de Lisboa criou perante as provas produzidas em audiência e substituir essa convicção pela sua própria convicção.

No entanto, a divergência de convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal formou, não se confunde com o vício de erro notório de apreciação de prova.

Inexiste, assim, na decisão recorrida o vício invocado pelo recorrente ou qualquer outro que este Supremo Tribunal de Justiça tenha de apreciar.

O recorrente alega ainda a violação do princípio da livre apreciação da prova.

O referido princípio está expressamente consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, o qual impõe, salvo quando a lei dispuser diferentemente, que a prova “(…) é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”

O princípio da livre apreciação da prova, fora do contexto do erro de julgamento ou dos vícios legalmente previstos, afasta todas as situações de valoração diferente de prova, como fundamento para se concluir pela errada apreciação da mesma.

O princípio da livre apreciação da prova apenas será violado nas situações de prova legal não considerada, em situações de arbitrariedade, de juízos subjectivos, imotivados e nas situações em que, segundo as regras de experiência de uma pessoa mediana, da prova produzida não seja possível extrair a prova do facto dado por assente.

Atenta a decisão em causa, em nenhum momento ou passagem, s.m.o., se pode concluir estarmos perante alguma das situações catalogadas.

O recorrente não concorda é, antes, com a valoração da prova efectuada pelo Tribunal recorrido e deseja substituir essa valoração pela sua própria.

Em suma, na análise que antecede constata-se que o acórdão recorrido não enferma de nenhum vício previsto no art.º 410.º, n.º 2, do CPP, de qualquer nulidade, mormente por deficiências de fundamentação da decisão de facto.

III- A ponderação dos interesses conflituantes: liberdade de informação v/s protecção do segredo de justiça; Da exclusão da ilicitude por exercício dos direitos de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa

3.1- O direito à informação e a liberdade de imprensa são direitos fundamentais que estão em pé de igualdade com outros direitos pessoais, como o direito à honra, ao bom nome, à reserva da intimidade da vida privada e familiar de cada um e à presunção de inocência, que o segredo de justiça tutela, a par da eficácia da investigação e da preservação da prova, todos consagrados na CRP.

A comunicação social tem uma importante função num Estado de Direito Democrático, particularmente como garantia relativamente à realização da justiça, podendo, no entanto, vi a colidir com os direitos do arguido, designadamente a presunção de inocência, e com os direitos individuais deste e de todos os envolvidos no processo.

Pelo que, estando perante um conflito entre o segredo de justiça e o direito de informação, o julgador deve socorrer-se dos critérios da ponderação de bens ou da concordância prática com vista à sua solução, uma vez que o critério da hierarquização é inaplicável, por estarem em confronto direitos com o mesmo valor.

Para conciliar o segredo de justiça com os outros princípios e direitos fundamentais consagrados na CRP “têm que intervir os saudáveis princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e, como subjacência determinante, o da dignidade da pessoa humana7.

O STJ já se pronunciou a esse respeito dizendo:

O conflito entre o direito de liberdade de imprensa e de informação e o direito de personalidade - de igual hierarquia constitucional - é resolvido, em regra, por via da prevalência do último em relação ao primeiro” (8). “Devem ser conciliados, na medida do possível, os direitos de informação e livre expressão, por um lado, e à integridade moral e ao bom nome e reputação, por outro. Quando tal se revele inviável, a colisão desses direitos deve, em princípio, resolver-se pela prevalência daquele direito de personalidade. Só assim não será quando, em concreto, concorram circunstâncias susceptíveis de, à luz de bem entendido interesse público, justificar a adequação da solução oposta, sendo sempre ilícito o excesso e exigindo-se o respeito por um princípio, não apenas de verdade, necessidade e adequação, mas também de proporcionalidade ou razoabilidade.”9 (sublinhado)

Com a norma do artigo 371.º do CP e as normas dos artigos 86.º e 87.º do CPP, resultou um regime (pelo menos aparentemente) harmonioso, coerente e funcional, no seio do que nenhum direito aqui em causa fosse irremediavelmente sacrificado em benefício exclusivo de outro ou outros. Tudo com respeito para com o princípio geral consagrado no artigo 18.º da CRP. Estas normas não vão além do necessário para protecção dos valores subjacentes, não pondo em causa o direito de informar.

Referiu o Tribunal da Relação que:

“O Tribunal de 1.ª Instância fez uso da causa de exclusão da ilicitude por exercício dos direitos de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa, com a seguinte argumentação:

“(…)

Vertendo agora tudo quanto acima se disse sobre o crime de violação do segredo de justiça ao caso em apreço, e tendo por base a decisão do Tribunal Colectivo quanto à matéria de facto, torna-se evidente que os arguidos AA e BB, na sua qualidade de jornalistas, publicaram as notícias dos autos, sabendo que os processos judiciais a que as mesmas se referiam estavam em segredo de justiça.

Porém, também ficou demonstrado que os arguidos, na maioria dos conteúdos das notícias, se estava a referir à existência ou à ocorrências de actos processuais, sem reproduzir o teor dos mesmos. Muitos dos factos noticiados eram factos já conhecidos, do domínio público, essencialmente decorrentes das divulgações feitas pelo blogue “...”, ou da existência de notícias ou divulgações anteriores feitas por outros órgãos de comunicação social. Nota-se também que muitos dos factos que compunham as notícias dos autos decorriam de informações obtidas pelas investigações jornalísticas levadas a cabo pelos próprios arguidos.

Acresce que todos os factos noticiados respeitavam a casos de enorme relevância social, não só pelas figuras públicas envolvidas (do mundo da Justiça e do desporto – futebol), como pela gravidade dos factos e natureza dos ilícitos em apreço (corrupção). Tratavam-se de processos judiciais de enorme importância, que impunham o dever de informar o leitor, que por seu turno, tem direito a ser esclarecido do que se está a passar e da própria razão das coisas.

Por último, no caso dos autos, de toda a prova produzida em audiência de julgamento, resultou evidente que a publicação das notícias dos autos não causou qualquer prejuízo para as investigações, nem para os próprios visados.

As investigações correram os seus termos dentro da normalidade, sendo que toda a prova procurada foi recolhida e não houve qualquer influência no decurso dos processos, nos quais foram proferidas acusações, que seguiram para julgamento.

Por seu turno, os visados não viram prejudicada a sua defesa, nem o seu direito a um processo equitativo, sendo que nenhum deles exerceu qualquer queixa ou acção contra os arguidos por eventuais danos que as notícias tivessem causado.

Face ao acima exposto, torna-se inequívoco que os arguidos, no exercício da sua profissão de jornalistas, publicaram as notícias dos autos de forma legítima, tudo com o único e exclusivo fim de esclarecer o leitor, cumprindo o seu dever de informar, ao abrigo da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa.

Para além de terem agido de forma legítima, por tudo quanto acima se disse, tornou-se também evidente que os arguidos não agiram de forma dolosa, pois a sua única intenção foi cumprir o dever de informar, ao abrigo da liberdade de imprensa, e no cumprimento da sua função de jornalistas.

Na verdade, pegando na Jurisprudência do Tribunal dos Direitos do Homem e em toda a interpretação e aplicação que este faz do artigo 10º da Declaração Europeia dos Direitos do Homem, não se vislumbra que os arguidos tenham agido de forma ilegítima, pois nos três casos dos autos, tendo em conta a relevância e interesse dos factos noticiados e a total ausência de prejuízo para a investigação e para os próprios visados, o segredo de justiça deve ceder face à liberdade de imprensa.

Deste modo, e sumariando tudo quanto acima se disse, tendo os arguidos agido de forma legítima, ao abrigo da liberdade de imprensa, e apenas com o fim de cumprir o dever de informar o leitor, afigura-se que não agiram ilegitimamente, nem com dolo.

Assim, não estando preenchido todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de violação do segredo de justiça, a que alude o artigo 371º do Código Penal, devem os arguidos ser absolvidos dos crimes de que estão pronunciados, o que este Tribunal Colectivo decide.”

O Tribunal da Relação de Lisboa, porém, revogou a decisão da 1.ª instância, afastando a causa de exclusão da ilicitude por exercício dos direitos de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa pelas razões como mais adiante indicaremos.

3.2- Pois bem.

Dispõe o artigo 371.º CP: (10)

“1 - Quem, independentemente de ter tomado contacto com o processo, ilegitimamente der conhecimento, no todo ou em parte, do teor de acto de processo penal que se encontre coberto por segredo de justiça, ou a cujo decurso não for permitida a assistência do público em geral, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, salvo se outra pena for cominada para o caso pela lei de processo.

(…)”

Por sua vez, há que atentar na agravação prevista no artigo 30º, n.º 2, da Lei 2/99 (Crimes cometidos através da imprensa)

“1 - A publicação de textos ou imagens através da imprensa que ofenda bens jurídicos penalmente protegidos é punida nos termos gerais, sem prejuízo do disposto na presente lei, sendo a sua apreciação da competência dos tribunais judiciais.

2 - Sempre que a lei não cominar agravação diversa, em razão do meio de comissão, os crimes cometidos através da imprensa são punidos com as penas previstas na respectiva norma incriminatória, elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.”

Os arguidos são jornalistas profissionais. Sabiam que os processos em causa abrangiam investigações penais em segredo de justiça. Noticiaram segundo a classificação feita pela Relação de Lisboa aquilo que esta considerou como sendo a divulgação de teor de alguns “actos processuais de investigação” em matéria de relevante interesse público dadas as figuras públicas e temáticas envolvidas.

Mas pode dizer-se sem rebuço que actuaram de forma criminalmente censurável?

Vejamos então, perante os factos assentes, já alterados pelo Tribunal da Relação, os fundamentos motivacionais mais relevantes que conduziram à decisão de condenação pelo Tribunal da Relação:

Exprimiu-se ali a convicção atingida, dizendo, em suma:

“ (…)

A primeira cogitação que aqui se põe é a de saber se os autos estavam ou não em segredo de justiça. A resposta é afirmativa – ninguém o questiona e verifica-se pela mera consulta do processo.

Segunda cogitação – tinham os arguidos conhecimento de tal, isto é, de que o processo estava sujeito a segredo de justiça?

Também aí a resposta é afirmativa. Os próprios arguidos o admitem, assim como o tribunal “a quo” o não escamoteia e até dá tal matéria como assente.

Terceira cogitação – nas notícias dadas pelos arguidos, constavam informações que se mostravam abrangidas pelo segredo de justiça? Como o próprio tribunal “a quo” admite (Mesmo por exemplo quando o arguido AA citou o teor do mandado na notícia de ... de ... de 2018, reproduzindo assim teor de acto processual, a informação divulgada era inócua e não prejudicou a investigação, pois a busca em causa já tinha sido feita, o mesmo se dizendo quando falou do incidente deduzido pelo advogado na busca.), a resposta é novamente pela afirmativa. E, basta ler as ditas notícias, para se apurar que, sem qualquer sombra de dúvida, para além de informações não abrangidas por tal reserva, muitas outras (designadamente as relativas a actos processuais e à fundamentação dos mesmos) se encontravam inseridas naquele.

Quarta cogitação – Sabiam os arguidos em que consistia a violação do segredo de justiça? Mais uma vez, a resposta é afirmativa.

Em bom rigor, aliás, é o que se mostra até dado como provado, nos pontos 36 e 37 (36) Em todas as ocasiões descritas, o arguido AA sabia que os processos sobre os quais efectuou peças jornalísticas corriam a coberto de segredo de justiça. 37) O arguido BB sabia que o processo nº 6421/17.2... sobre o qual efectuou peça jornalística corria a coberto de segredo de justiça.).

Quinta cogitação – Sabiam os arguidos que a violação do segredo de justiça constitui crime?

A resposta, mais uma vez, terá forçosamente de ser afirmativa, pois tendo os arguidos conhecimento da existência deste instituto, bem como das suas características, não podem desconhecer as consequências da violação do mesmo, para mais sendo ambos os arguidos jornalistas, com largos anos de experiência na cobertura de questões processuais criminais. Acresce que os próprios o admitem.

Sexta cogitação – As notícias que os arguidos pretendiam divulgar – existência de processos criminais, relativos a determinados suspeitos - poderiam ter sido emitidas sem determinados conteúdos (designadamente, sem menção a vigilâncias, escutas telefónicas, análise de contas bancárias, nomes de pessoas, informação prestada a arguidos, teores de escutas telefónicas, pormenores das buscas, o que foi encontrado nas buscas, inclusivamente valores monetários, e pormenores do objecto da investigação; sem menção a pessoas envolvidas no processo, sem reprodução de um mandado judicial referindo o objecto da investigação, sem identificação de sujeitos visados pelas diligências, mesmo não visados pela investigação, sem pormenores concretos do objecto da suspeita e dos factos que se pretende esclarecer e quais os documentos que se pretendia obter para esclarecer o objecto da investigação; sem a informação de que no processo se suspeitava que outros indivíduos estavam a aceder a informação ilicitamente, sem indicação do motivo pelo qual um suspeito foi detido, com descrição concreta dos comportamentos criminosos e locais suspeitos, sem reprodução do teor de um mandado de busca com especificação dos comportamentos concretos em investigação, pessoas visadas ou envolvidas, identificação temporal e local concreta dos factos, funções dos suspeitos na actividade criminosa; sem menção aos concretos comportamentos que fundaram a detenção de um suspeito, sem menção das sociedades de advogados envolvidas, sem menção de prova recolhida no processo, sem menção de comportamentos concretos de outros suspeitos e locais da prática dos factos) e, ainda assim, o público ficaria na mesma informado da gravidade dos factos e da natureza dos ilícitos em apreço (corrupção), bem como das figuras públicas envolvidas (do mundo da Justiça e do desporto – futebol)? A resposta é, mais uma vez, afirmativa. Basta proceder à leitura das ditas notícias, expurgando-as do conteúdo acima mencionado.

5. Vejamos então o que a resposta a estas cogitações determina, em sede de averiguação do dolo e da consciência da ilicitude do acto.

O dolo, embora sendo matéria factual, parametriza-se como um facto psicológico, de cariz interna. Isto significa que a sua apreensão não acontece, por regra (e a excepção é, precisamente, o caso de confissão integral, em que o sujeito verbaliza essa sua interna vontade e intencionalidade), de forma directa, sensorial, não é algo que seja directamente apreensível mediante observação. Ao invés, a sua averiguação decorre da avaliação crítica do comportamento humano em presença, de acordo com as regras da experiência, podendo ainda ser alcançado por recurso a presunções ligadas ao princípio da normalidade.

Na verdade, em muitas situações, a prova dos factos, tem de resultar de outros factos que não se comprovam em si próprios, mas de ilações, retiradas face ao facto e às circunstâncias concretas do seu cometimento – cfr., a este respeito, M. Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Vol. I, Lisboa/S. Paulo, Ed. Verbo, 1992, págs. 297 e 298. Tais normas da experiência são, por conseguinte, definições ou juízos hipotéticos, de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum e, por isso, independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade (Cavaleiro Ferreira, Curso Proc. Penal, II, 30).

(…)

16. Por seu turno, e no que concerne à consciência da ilicitude, não só o artº 6º do C. Civil expressamente refere que a ignorância da lei não aproveita a ninguém como, em sede criminal, tal questão se mostra há muito pacífica. Como refere o já idoso acórdão do STJ de 14 de Outubro de 1992, no processo nº 42.918, “a consciência da ilicitude fica implícita no próprio facto, desde que seja do conhecimento geral que ele é proibido e punível.” Por seu turno, em sede doutrinária, Teresa Beleza escreve in “Direito Penal”, 2.° Vol.: Na problemática do erro sobre a ilicitude, “o que está em causa é saber-se se, numa situação concreta, a pessoa tinha a obrigação de suspeitar que aquele acto realmente fosse ilícito ou lícito e, em consequência disso, intentar verificar se assim era ou não” (...), concretamente, informar-se (...). E isto porque (...) “haverá que evitar o «amolecimento ósseo» do Direito Criminal”. Por isso, “o agente não tem de conhecer a norma violada, bastando-lhe uma consciência da ilicitude material que, normalmente, se presume. E quando o facto, para além de ser uma infracção do Direito, constitui também uma violação da ordem moral e ética, o erro é normalmente evitável, já que a valoração normativa pode surgir do próprio sentimento jurídico com um maior ou menor esforço da consciência” (mesma Autora, in “Problemática do erro sobre a ilicitude”, pág. 71, retirado do Acórdão do T.R. de Guimarães, processo nº1121/04-1, de 22-11-2004). E de igual modo se poderia citar, entre outros, Figueiredo Dias – vide Maia Gonçalves, C. Penal Português, 18ª edição, pág. 120.

17. Atentando nos ensinamentos acima concisamente expostos e relativos quer ao modo de apuramento do dolo, quer da consciência da ilicitude temos que, nos presentes autos - uma vez que não há notícia de sofrerem os recorridos de qualquer enfermidade que lhes afecte o entendimento - os arguidos quiseram escrever e publicar os textos acima mencionados, sabendo que os autos se encontravam em segredo de justiça e sabendo igualmente que a violação do segredo de justiça é proibida por lei.

Se atentarmos na conjugação do que ora se deixa dito, com a matéria de facto constante no ponto 38 dos factos provados (38) As notícias dos autos respeitam a factos com grande interesse público) e, mais uma vez, apelando a ilações decorrentes das regras de experiência comum, uma vez que ambos os arguidos são jornalistas e foi nesse âmbito que mantiverem as actuações supra narradas, teremos de concluir que, ao quererem e divulgarem aquelas notícias, em que inseriram a descrição do conteúdo de actos e peças processuais, descrição de conteúdo este não estritamente necessário, para informar o público da investigação que se estava a processar, sabiam que, como consequência possível da sua conduta, poderiam violar o segredo de justiça, que vigorava nos autos, conformando-se com tal resultado.(…)”]

(…)

19. C. No que respeita ao prejuízo para a investigação.

a. O ponto 39 dos factos dados como provados, não deve ser dado como provado por não ter sido produzida prova que sustente tal conclusão.

20. Este ponto tem a seguinte redacção:

39) As notícias dos autos em nada prejudicaram as investigações dos três processos judiciais a que respeitavam.

Lida a frase antecedente, é manifesto que não estamos perante a consignação de um facto, mas antes de um juízo valorativo conclusivo. Se assim é, como é, parece mais ou menos óbvio que tal declaração não pode ser inserida dentro do rol da matéria de facto, quer provada quer não provada, precisamente porque não estabelece um facto, mas antes um juízo.

21. Diga-se, aliás, que ainda que se entendesse que tal juízo valorativo e opinativo poderia ter cabimento em sede de matéria de facto (que não pode), a verdade é que não alcançamos em que medida seria humanamente possível alcançá-lo.

Na verdade, uma investigação compreende a realização de uma série de actos, destinados a alcançar a prova da verdade material, relativamente a um determinado incidente de vida.

Ora, a divulgação pública de partes dessa investigação, cria fenómenos de percepção e de actuação cuja dimensão, em bom rigor e em grande medida, sempre se desconhecerão. Não é humanamente possível poder afirmar-se, com qualquer mínima segurança jurídica, que um determinado acto ou informação não criou qualquer prejuízo para uma determinada investigação.

É possível fazer-se esse juízo pela positiva, isto é, determinar-se que, por virtude da informação pública de algo, alguém actuou sonegando, alterando, destruindo ou fugindo, pois o nexo causal poderá ser determinado, entre uma informação e uma acção. Já no que toca à omissão – nada foi prejudicado pela informação pública – tal afirmação mostra-se inalcançável, dada a enorme variedade de possibilidades que o conhecimento de uma determinada informação pode vir a suscitar, sem que a investigação das mesmas venha sequer a daquelas ter conhecimento.

Constata-se assim que o conteúdo do ponto 39 não pode manter-se.

(…)

23. Assim, procede-se à alteração da matéria de facto dada como provada e não provada, nos seguintes termos:

- Elimina-se da matéria de facto provada o ponto 39.”

3.3- Apreciemos então estes fundamentos.

Assim, da leitura dos factos provados é incontornável que alguns segmentos e aspectos mais concretos ali enunciados, embora na sua maioria apenas por mera narração dos acontecimentos atinentes ao decurso das investigações nos identificados inquéritos criminais, foram intencionalmente divulgados e publicitados nos termos transcritos, alguns até bem na hora de realização de diligências– on line, [ vg. no caso das buscas (factos 10 e 33) a decorrer em vários locais, entre outros, revelando também (às vezes apenas por síntese) algum do conteúdo de documentos e de actos/ diligências processuais ou dos seus resultados, nos processos que se encontravam em segredo de justiça (como foi o caso, mais acentuadamente, nos factos 13, sobre apreensão de dinheiro, nos factos 18 (este, porém, não foi da responsabilidade dos arguidos) e 20 (onde se refere que “o Ministério Público deixou no clube o mandado que justificava a acção judicial autorizada pela juíza de instrução criminal SS”) mas onde se transcreve parte do teor de mandado de busca deixado no clube, nos factos 24 e 25 atinentes ao teor da informação de serviço do inspector PP, apesar de antes ter sido já divulgado num blogue, do facto 33- sobre as buscas a decorrer e do facto 35 acerca do teor de mandado de busca e a menção das incursões informáticas no Citius do funcionário judicial LLL].

Salientamos porém, desde já, que a parte das notícias consistente na narrativa e divulgação da ocorrência de acto processual e não do acto em si, é comportamento que a lei processual, no artigo 86.º, n.º 8, do CPP determina como proibido, mas não está tutelado ao abrigo do artº 371º do CP. » (11)

Também é incontornável podermos afirmar que tais factos foram e ainda são de enorme relevo público, dadas as funções das pessoas envolvidas e a gravidade dos actos objecto de investigação, tendo estado profusamente no primetime da principal informação divulgada em todo o país.

De todo o modo e fazendo desde já uma incursão na factualidade assente e mais relevante, detecta-se que existe, sobretudo - embora concedendo que não de todo exclusivamente-, uma narrativa das ocorrências e da evolução das investigações consoante as mesmas iam sendo divulgadas ou do conhecimento já público, por vezes com informação de parte do teor de mandados entregues aos arguidos nesses processos ou mesmo até na decorrência de investigações paralelas por parte dos srs jornalistas.

No caso do processo ... este esteve em segredo de justiça até ... (facto 4) e os srs jornalistas começam a seguir o principal arguido em ... (facto 6).

No facto 10 e 11 faz-se a descrição (também com filmagem) do que é observado.

No facto 12 descreve-se o que viram relativamente às ocorrências em causa; não é revelado o conteúdo de qualquer ato processual. Os que estavam in loco viram o que puderam observar em aberto e a revelação de terem existido escutas, análise de contas bancárias, etc não é propriamente a divulgação de teor de actos pocessuais mas apenas a da sua existência e ocorrência.

No facto 13 menciona-se matéria sobre o processo ou sobre factos e ocorrências processuais, já com maior labor descritivo, nomeadamente com a indicação de ter havido apreensão monetária quantificada, durante uma busca.

No facto 14 apenas estaria em causa uma possível violação da privacidade, que não está em discussão nos autos nem se conhece ter sido questionado pelos interessados.

Os factos 16, 17, 18, e 19 não se referem a comportamentos dos arguidos jornalistas.

O facto 20 reporta-se essencialmente a notícia sobre o que aconteceu e transcreve essencialmente o mandado —deixado aos arguidos nos processos e de conteúdo cujo conhecimento ex post dada a notoriedade pública da investigação pode admitir-se que poderia ter sido divulgado em aberto a partir de alguns ou dos próprios interessados objecto das investigações.

Os factos descritos no facto 20 podem estar numa zona de fronteira, apesar de que por vezes se descreve ou estabelece uma narrativa de todo um conjunto de diligências o que foi ocorrendo no processo sendo algo muito próximo ou até bem equivalente à descrição de elevado interesse público dos desenvolvimentos processuais ainda que com alguma conotação com divulgação de teor de ato processual.

Os factos 23 e 24 não são da responsabilidade dos jornalistas tanto mais que se desconhece a autoria ou propriedade do blogue aludido.

No facto 25 —revela-se o teor de um ato processual em que o inspector da PJ sugere a abertura de um inquérito ele próprio atinente à possivel quebra de sigilo e não a actos concretos de investigação nesse processo.

Fatos 26, 27, 28, 29, 30 e 31 — não se referem a factos cometidos pelos arguidos deste processo.

Facto 32 — as notícias atêm-se sobretudo a detenções e à divulgação de ocorrências processuais. A considerar que seriam mais do que isso, tal como a descrição de teor de actos processuais, tal implicaria uma forte restrição à liberdade de informação e do direito do público a ser informado, a nunca se poder dar notícia dos processos que pendem e do objecto temático que neles está em causa impedindo que a comunicação social desempenhe um papel mais vigilante sobre a realização da justiça penal e, como foi no caso das graves violações de sigilo dentro do próprio sistema de justiça. Ademais, grande parte do conteúdo fáctico reporta conjecturas e suposições dos próprios arguidos jornalistas acerca do que se estaria a passar ou a ter ocorrido como disso são exemplo alguns excertos do texto:

“ (…) Em causa estará uma rede (…);suspeitos na investigação recolheriam informação(…)a qual chegaria posteriormente a (…)Esta investigação estará relacionada(…)” (sublinhado nossso)

No facto 33 — a notícia de que alguém foi preso, de que estavam a decorrer buscas ou foram realizadas buscas não é a divulgação de teor de actos processuias mas da sua ocorrência.

Facto 34 - não foram os arguidos os autores da elaboração do comunicado público emitido pela PJ.

Facto 35 - trata-se de uma notícia com base no teor do mandado de busca que é entregue ao buscado. Há efectivamente uma descrição parcial do conteúdo de actos que foram públicos e à vista de todos ou de muitos e de peças processuais (como os mandados) que são entregues aos visados, que estes podem livremente mostrar sendo muito duvidoso que possam ser matéria ou objecto de incriminação.

*

Aqui chegados, o ponto fulcral será pois o de saber, nomeadamente perante aquela afirmação do tribunal recorrido atinente à “(…) descrição de conteúdo este não estritamente necessário para informar o público da investigação que se estava a processar(…)” qual o equilíbrio a ponderar entre os valores em protecção no regime do segredo de justiça e os da liberdade de imprensa (sublinhado nosso), tendo em conta a factualidade assente, mesmo que se conceda que alguns dos seus segmentos pudessem ser interpretados com o sentido de uma divulgação de teor de actos processuais, essa sim verdadeiramente objecto passível da incriminação prevista no artº 371º do CP e numa perspectiva de esta norma ser menos restritiva quanto ao seu núcleo de abrangência no tocante a a factos que em si seriam de elevado interesse público.

3.4. De todo o modo, voltemos de novo (por transcrição que se segue) à fundamentação e raciocínio que o Tribunal da Relação seguiu e explicitou, para concluir como concluiu.

[“(…)

Preenchimento dos elementos constitutivos do crime de segredo de justiça.

25. Apreciando.

Em primeiro lugar cabe notar que este tribunal procedeu a alterações da matéria de facto dada como assente, razão pela qual se terá de proceder ao enquadramento jurídico da factualidade que, presentemente, se mostra provada.

Em grande medida, acompanha-se a exposição jurídica realizada pelo tribunal “a quo”, que aqui novamente se reproduz, no que concerne aos elementos integradores do tipo de crime, bem como quanto aos interesses em conflito.

Para que não haja dúvidas, reproduz-se aqui, fazendo parte integrante da decisão, os segmentos a que damos o nosso pleno acordo e que são os seguintes:

O arguido AA encontra-se pronunciado pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de três crimes de violação de segredo de justiça, previstos e punidos pelo artigo 371º nº 1 do Código Penal, por referência ao artigo 86º nº 8 alínea b) do Código de Processo Penal e aos artigos 30º e 31º da Lei nº 2/99, de ....

O arguido BB encontra-se pronunciado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violação de segredo de justiça, previsto e punido pelo artigo 371º nº 1 do Código Penal, por referência ao artigo 86º nº 8 alínea b) do Código de Processo Penal e aos artigos 30º e 31º da Lei nº 2/99, de ....

Dispõe o artigo 371º nº 1 do Código Penal que “quem, independentemente de ter tomado contacto com o processo, ilegitimamente der conhecimento, no todo ou em parte, do teor de acto de processo penal que se encontre coberto por segredo de justiça, ou a cujo decurso não for permitida a assistência do público em geral, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, salvo se outra pena for cominada para o caso pela lei penal.”.

Por seu turno, o artigo 86º nº 8 alínea b) do Código de Processo Penal estabelece que “O segredo de justiça vincula todos os sujeitos e participante processuais, bem como as pessoas que, por qualquer título, tiverem tomado contacto como processo ou conhecimento de elementos a ele pertencentes, e implica as proibições de: (...) divulgação da ocorrência de acto processual ou dos seus termos, independentemente do motivo que presidir a tal divulgação.”.

Por último, o artigo 30º da Lei nº 2/99, de ..., estatui que:

“1 - A publicação de textos ou imagens através da imprensa que ofenda bens jurídicos penalmente protegidos é punida nos termos gerais, sem prejuízo do disposto na presente lei, sendo a sua apreciação da competência dos tribunais judiciais.

2 - Sempre que a lei não cominar agravação diversa, em razão do meio de comissão, os crimes cometidos através da imprensa são punidos com as penas previstas na respectiva norma incriminatória, elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.”.

O artigo 31º da aludida Lei dispõe que “1 - Sem prejuízo do disposto na lei penal, a autoria dos crimes cometidos através da imprensa cabe a quem tiver criado o texto ou a imagem cuja publicação constitua ofensa dos bens jurídicos protegidos pelas disposições incriminadoras. 2 - Nos casos de publicação não consentida, é autor do crime quem a tiver promovido. 3 - O director, o director-adjunto, o subdirector ou quem concretamente os substitua, assim como o editor, no caso de publicações não periódicas, que não se oponha, através da acção adequada, à comissão de crime através da imprensa, podendo fazê-lo, é punido com as penas cominadas nos correspondentes tipos legais, reduzidas de um terço nos seus limites. 4 - Tratando-se de declarações correctamente reproduzidas, prestadas por pessoas devidamente identificadas, só estas podem ser responsabilizadas, a menos que o seu teor constitua instigação à prática de um crime. 5 - O regime previsto no número anterior aplica-se igualmente em relação aos artigos de opinião, desde que o seu autor esteja devidamente identificado. 6 - São isentos de responsabilidade criminal todos aqueles que, no exercício da sua profissão, tiveram intervenção meramente técnica, subordinada ou rotineira no processo de elaboração ou difusão da publicação contendo o escrito ou imagem controvertidos.”.

O crime de violação de segredo de justiça encontra-se inserido no Código Penal, em termos sistemáticos, no Livro II - Parte Especial, no Título V - Dos crimes contra o Estado, e no Capítulo III - Dos crimes contra a realização da Justiça.

A publicidade do processo e o segredo de justiça encontram-se regulados no artigo 86º do Código de Processo Penal, a assistência do público a actos processuais mostra-se prevista no artigo 87º do Código de Processo Penal e a relação dos meios de comunicação social com o processo está regulada no artigo 88º do Código de Processo Penal, sendo que a consulta de auto e obtenção de certidão por terceiras pessoas que não sejam sujeitos processuais está regulada no artigo 90º do Código de Processo Penal.

Tais normas processuais estão intimamente relacionadas com o crime de violação de segredo de justiça, na medida em que é essencial saber se determinado processo está ou não sujeito a segredo de justiça para se poder falar deste ilícito penal.

A redacção do artigo 371º do Código Penal acima transcrita foi introduzida pela Lei 59/..., de ..., aquando da grande alteração ao regime do segredo de justiça operado nessa altura.

Na verdade, o anterior regime processual do segredo de justiça era muito mais abrangente, sendo que a regra era a sujeição do processo a segredo de justiça pelo menos até à prolação da acusação. Com a aludida alteração, pretendeu-se implementar a regra da publicidade do processo, sendo que a mesma só deve ser restringida, sujeitando o processo a segredo de justiça, quando se considerar que tal é essencial para não prejudicar os direitos dos sujeitos ou participantes processuais ou para garantir os interesses da realização eficaz da investigação.

Antes da Lei 59/..., de ..., o artigo 371º do Código Penal tinha a seguinte redacção: “quem ilegitimamente der conhecimento, no todo ou em parte, do teor de acto de processo penal que se encontre coberto por segredo de justiça, ou a cujo decurso não for permitida a assistência do público em geral, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, salvo se outra pena for cominada para o caso pela lei penal.”.

Nesta medida, a alteração do preceito pela Lei 59/..., de ..., prendeu-se com a introdução do elemento “independentemente de ter tomado contacto com o processo,”, ou seja, definiu que não é necessário que o agente tenha tomado contacto com o processo para incorrer na prática do crime de violação de segredo de justiça, resolvendo assim anteriores querelas jurídicas.

Importa, deste modo, concluir que ao nível do regime processual, o âmbito do segredo de justiça foi restringido, como se vê pela actual redacção dos artigos 86º a 90º do Código de Processo Penal, mas ao nível do direito penal substantivo, o legislador em ..., optou por alargar o âmbito daqueles que podiam praticar o crime de violação de segredo de justiça, passando a estabelecer que era indiferente que o agente tivesse tido ou não contacto com o processo.

A nível constitucional, nota-se que o segredo de justiça se encontra consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, que regula e protege o “Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva”.

Resulta da aludida norma constitucional o seguinte:

1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.

2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.

3. A lei define e assegura a adequada proteção do segredo de justiça.

4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.

5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.

A consagração constitucional do segredo de justiça enquadra-se, assim, ao nível do acesso e da realização da Justiça, constituindo um elemento essencial à prossecução daquela, que é um pilar do Estado de Direito Democrático.

Tendo ainda em mente a Constituição da República Portuguesa, importa considerar que nos termos do artigo 2º desta “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.”.

No âmbito dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a Constituição da República Portuguesa consagrou a liberdade de expressão e informação no seu artigo 37º e a liberdade de imprensa e meios de comunicação social no seu artigo 38º.

Estabelece o artigo 37º da Constituição da República Portuguesa o seguinte:

“1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.

2. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.

3. As infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respectivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei.

4. A todas as pessoas, singulares ou colectivas, é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de rectificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos.”.

Por seu turno, o artigo 38º nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa dispõe que:

“1. É garantida a liberdade de imprensa.

2. A liberdade de imprensa implica:

a) A liberdade de expressão e criação dos jornalistas e colaboradores, bem como a intervenção dos primeiros na orientação editorial dos respectivos órgãos de comunicação social, salvo quando tiverem natureza doutrinária ou confessional;

b) O direito dos jornalistas, nos termos da lei, ao acesso às fontes de informação e à protecção da independência e do sigilo profissionais, bem como o direito de elegerem conselhos de redacção;

c) O direito de fundação de jornais e de quaisquer outras publicações, independentemente de autorização administrativa, caução ou habilitação prévias.”.

Temos então que quer o segredo de justiça, quer a liberdade de expressão têm consagração constitucional, sendo que em dadas circunstâncias podem entrar em conflito, pois a vida em sociedade não é estanque, nem compartimentada.

Na realidade, a sociedade democrática moderna quer-se plural e livre, e a crescente mediatização da vida em sociedade traz novas questões relevantes e complexas.

Sucede que quando o segredo de justiça e a liberdade de expressão estão em confronto, não é correcto sequer invocar que o segredo de justiça se traduz numa forma de censura, que aliás o artigo 37º nº 2 da Constituição da República Portuguesa proíbe.

O segredo de justiça trata-se antes de uma restrição prevista na lei processual penal e consagrada na Constituição da República Portuguesa, com o fito de garantir a boa administração da Justiça e o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, cuja violação constitui crime nos termos do artigo 371º do Código Penal.

E nessa medida, importa não esquecer que o próprio artigo 37º nº 3 da Constituição da República Portuguesa estabelece que as infracções cometidas no exercício da liberdade de expressão ficam sujeitas aos princípios gerais do direito criminal.

Na verdade, tudo se conjuga, num delicado equilíbrio entre direitos, liberdade e garantias, que devem ceder um face ao outro apenas na medida do estritamente necessário à sua concretização, tendo em conta princípios basilares de proporcionalidade, adequação e necessidade.

Na verdade, não há direitos absolutos, sendo que existindo confronto, há que apreciar no caso concreto e tendo em conta as normas constitucionais e legais vigentes, como se deve resolver tal conflito, de forma a que os direitos não se anulem, antes se efectivem da forma mais plena possível.

Curiosamente, esta dialéctica entre a realização da administração da Justiça e a liberdade de expressão estão vertidas na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, do seguinte modo.

No seu artigo 6º com a epígrafe “Direito a um processo equitativo”, pode ler-se:

“1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.

2. Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada.”.

Por seu turno, o artigo 10º da aludida Convenção, com a epígrafe “Liberdade de expressão”, estabelece o seguinte:

“1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.

2. O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.”.

Ora, estes preceitos da Declaração Europeia dos Direitos do Homem, que foi ratificada pelo Estado Português, são de extrema importância e têm aplicação directa no nosso ordenamento jurídico, nos termos do artigo 8º da Constituição da República Portuguesa.

Está assim feita a enunciação de todos os preceitos legais que têm relevo para a decisão do caso em apreço.

Feito este cotejo, importa então densificar o crime de violação do segredo de justiça.

Conforme bem explica A. Medina de Seiça, no seu comentário ao artigo 371º no “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, página 646, quanto ao bem jurídico protegido por este crime, “Em nosso entender, a existência do segredo de justiça decorre primariamente de exigências de funcionalidade da administração da justiça, particularmente perante o risco de perturbação das diligências probatórias e de investigação. É essencialmente o perigo de inquinamento do material probatório, susceptível de sofrer prejuízos caso os participantes processuais, sobretudo o arguido, conhecessem na sua plenitude a actividade de investigação”.

Nesse sentido, veja-se também Paulo Pinto de Albuquerque, no “Comentário ao Código Pena à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica Editora, 2ª Edição, página 966, que afirma que o bem jurídico protegido pelo crime de violação do segredo de justiça é a “funcionalidade da justiça”. Por tal razão, este autor defende que “O crime de violação de segredo de justiça é um crime de perigo abstracto (quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido) e de mera actividade (quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção)”, isto sem prejuízo da Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que adiante se explicará.

Recordando o teor do artigo 371º nº 1 do Código Penal parece ser inequívoco que os elementos que compõem o tipo objectivo deste crime são os seguintes:

Quem independentemente de ter tomado contacto com o processo;

Der conhecimento no todo ou em parte de teor de acto de processo penal que se encontre coberto por segredo de justiça;

Que tal divulgação seja ilegítima.

Por outro lado, e no que ao tipo subjectivo concerne, o artigo 371º nº 1 do Código Penal exige o dolo genérico, em qualquer uma das suas formas previstas no artigo 14º do Código Penal.

Dito isto, evidente se torna que qualquer pessoa pode ser agente do crime de violação de segredo de justiça, que é por isso um crime comum. Assim, o jornalista não está excluído deste âmbito, podendo ao publicar determinada notícia cometer o crime de violação do segredo de justiça, desde que com essa conduta preencha os pressupostos legais do tipo de crime em apreço.

Tal resultou clarificado, como acima se disse, com a alteração operada em 2007, com a introdução do elemento “independentemente de ter tomado contacto com o processo.”.

Por outro lado, tem de haver divulgação de teor de acto processual, não bastando a mera referência genérica à ocorrência do acto processual ou à narração de factos históricos.

Como bem explica Paulo Pinto de Albuquerque, na obra acima referida, “O objecto da tutela penal é o teor do acto de processo penal coberto pelo segredo de justiça (...) Isto é, está protegido pela norma apenas o conteúdo da diligência realizada no processo que se encontre em segredo de justiça (ou seja, as concretas perguntas colocadas, as concretas respostas dadas e as concretas actividades desenroladas durante o acto processual). (...) estão fora do âmbito típico da norma penal (...) a divulgação da realização do acto de processo penal coberto pelo segredo, sem qualquer menção do respectivo conteúdo”.

Por último, a divulgação tem de ter sido feita de modo ilegítimo, fazendo-se aqui apelo ao funcionamento de causas de justificação.

Relativamente à expressão “ilegitimamente”, o Prof. Figueiredo Dias explicou durante a discussão do projecto de revisão do Código Penal que “A sua inserção seria uma chamada de atenção ao funcionamento de causas de justificação.” Nesse sentido, veja-se a Acta nº 37, em “Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão”, por Manuel Simas Santos e Pedro Freita, MJ 1993, Rei dos Livros, página 471.

26. Aqui chegados, cumprirá agora proceder à apreciação da questão do preenchimento dos elementos do tipo.

Como se refere no acórdão proferido pela 1ª instância, são estes os seguintes:

- Que seja dado conhecimento,

- de modo ilegítimo,

- no todo ou em parte,

- de teor de acto de processo penal que se encontre coberto por segredo de justiça;

- qualquer que seja a qualidade do agente ou o facto de ter tido ou não contacto com o processo.

- A actuação terá de revestir a forma de dolo.

27. Da enunciação supra resulta, desde logo, algo simples – estamos perante um crime de mera actividade, uma vez que a tipificação legal não exige a produção de um resultado típico danoso.

Na verdade, em parte alguma do normativo se mostra imposta a referência à necessidade de que da conduta desenvolvida pelo agente, resulte a verificação de um prejuízo, de um dano para a investigação ou para qualquer interveniente processual.

Assim, a conduta, desde que integre os demais elementos acima expostos, é desde logo punida, independentemente da verificação ou não de um resultado danoso, pelo que é indiferente, para a apreciação do preenchimento dos elementos do tipo, que se dê como assente ou não a produção de um resultado específico, ou a sua ausência. Quando muito, a verificar-se eventual e efectivo dano – provando-se o mesmo, factualmente, por virtude de nexo causal directo e necessário, decorrente da conduta do agente – essa circunstância poderia ter apenas relevo em sede de circunstância agravante de carácter comum, mas nada mais.

28. Ultrapassada esta primeira questão, resta-nos então afirmar que, sem dúvida, a conduta de cada um dos arguidos integrou os elementos constitutivos do tipo de crime que lhes vinha imputado, já que procederam à divulgação pública de actos que estavam cobertos pelo segredo de justiça, actuando com dolo eventual.

Surge agora a questão de saber se, face à potencial colisão de direitos, entre o direito à informação e o direito à protecção da realização da justiça, se deve entender – como parece ter sido o raciocínio expresso pelo tribunal “a quo” – que, neste caso, por as notícias dos autos respeitarem a factos com grande interesse público, o segundo se deve vergar sobre o primeiro. (sublinhado nosso)]

3.5. Aqui chegado, o Tribunal da Relação passou então a expor de forma mais directa as razões da sua discordância acerca desta questão da prevalência a considerar em sede de colisão de direitos.

Discorrendo assim:

[ (…)

29. Não estamos de acordo com esta argumentação, por uma razão simples – em bom rigor, não estavam os arguidos impedidos de dar notícia dos factos que, como o tribunal “a quo” descreve respeitavam a casos de enorme relevância social, não só pelas figuras públicas envolvidas (do mundo da Justiça e do desporto – futebol), como pela gravidade dos factos e natureza dos ilícitos em apreço (corrupção). Tratavam-se de processos judiciais de enorme importância, que impunham o dever de informar o leitor, que por seu turno, tem direito a ser esclarecido do que se está a passar e da própria razão das coisas.

A notícia podia ser dada e foi-o, aliás, por muitos e diversos meios de informação pública. O que sucede é que ambos os arguidos optaram, ao dar a notícia, por na mesma incluir os conteúdos das diligências, bem como de uma série de actos processuais, conteúdos estes abrangidos pelo segredo de justiça; ou seja, tivessem os arguidos optado por dar apenas a informação legalmente permitida, e não se estaria a discutir qualquer violação do dito segredo de justiça. (sublinhado e realce nossos)

30. Efectivamente, em nosso entender, o que aqui está em questão não é a incriminação, por terem sido dadas notícias que respeitavam a casos de enorme relevância social, pois não se duvida que essa actividade é legal e legítima. E não é essa actuação que aqui se discute.

O que aqui se discute, concretizando, é que no âmbito da notícia de enorme relevo social, os arguidos tenham inserido, desnecessariamente, a seguinte informação: (realce e sublinhado nossos)

a. No que se refere ao Inquérito n.º 19/16.0..., da autoria do arguido AA, a menção a vigilâncias, escutas telefónicas, análise de contas bancárias, nomes de pessoas, informação prestada a arguidos, teores de escutas telefónicas, pormenores das buscas, o que foi encontrado nas buscas, inclusivamente valores monetários, e pormenores do objecto da investigação (como resulta dos factos n.º 4 e 5),

b. No que se refere ao Inquérito n.º 5340/17.7..., da autoria do arguido AA, a menção a pessoas envolvidas no processo, reprodução – por citação – de um mandado judicial referindo o objecto da investigação, identificação de sujeitos visados pelas diligências, mesmo não visados pela investigação, pormenores concretos do objecto da suspeita e dos factos que se pretendiam esclarecer e quais os documentos que se pretendiam obter para esclarecer o objecto da investigação (como resulta do facto n.º 20).

c. No que se refere ao Inquérito n.º 6421/17.2..., da autoria do arguido AA, a menção de que no processo se suspeitava de outros indivíduos a aceder a informação ilicitamente, do motivo pelo qual um suspeito foi detido, com descrição concreta dos comportamentos criminosos e locais suspeitos, reprodução do teor de um mandado de busca, com especificação dos comportamentos concretos em investigação, pessoas visadas ou envolvidas, identificação temporal e local concreta dos factos, funções dos suspeitos na actividade criminosa (como resulta dos factos provados n.º 25, 32 e 35);

d. No que se refere ao Inquérito n.º 6421/17.2..., da autoria do arguido BB, a menção aos concretos comportamentos que fundaram a detenção de um suspeito, sociedades de advogados envolvidas, prova recolhida no processo, comportamentos concretos de outros suspeitos e locais da prática dos factos (como resulta do facto provado n.º 33).

31. Assim, temos que as notícias redigidas e divulgadas pelos arguidos, cuja relevância se não discute, cumpririam, expurgadas dos elementos acima mencionados, o direito do público a ser informado e o direito à livre expressão e à liberdade de informação.

Sucede que os arguidos resolveram ir mais além, nas notícias de que são autores, incluindo conteúdos que se mostravam abrangidos pelo segredo de justiça.

Ora, a inclusão de tais conteúdos, não se mostra necessária para que o público pudesse ter a percepção da gravidade dos factos em apreciação. (realce nosso)

Na verdade, não constassem tais conteúdos das ditas notícias, os fins de liberdade de expressão e de direito à informação mostrar-se-iam cumpridos, já que, por um lado, os arguidos poderiam expor a seriedade e gravidade dos casos em investigação e o público ficaria ciente dos contornos dos mesmos e, por outro, salvaguardava-se o bom funcionamento da justiça, numa fase processual ainda embrionária e frágil.

Como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 517/09.1..., 7ª SECÇÃO, de 05-06-...:

I - O correcto exercício da liberdade de expressão (art.º 10.º da CEDH e n.º 1 do art.º 37.º da CRP) pressupõe o cumprimento de deveres e responsabilidades, sendo passível de ser restringido, conquanto a restrição imposta seja necessária numa sociedade democrática, corresponda a uma necessidade social imperiosa, se revele proporcional e os fundamentos invocados pelas autoridades sejam suficientes e relevantes (n.º 2 do art.º 10.º do TEDH).

O direito do público a ser informado tem como referência a utilidade social da notícia – interesse público –, devendo restringir-se aos factos e acontecimentos que sejam relevantes para a vivência social, apresentados com respeito pela verdade. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) tem acentuado que a liberdade de impressa constitui um dos vértices da liberdade de informação, não podendo as autoridades nacionais, por princípio, impedir o jornalista de investigar e recolher as informações, com interesse público, e de as transmitir, o que é inerente ao funcionamento da sociedade democrática. No que toca ao confronto do segredo de justiça com a liberdade de expressão e de informação, o TEDH tem-se pronunciado contra as restrições à liberdade de expressão que não considera serem necessárias, designadamente quando as informações em causa já sejam públicas.

32. Ora, no caso, o segredo de justiça não era impeditivo do direito do público a ser informado, pois a utilidade social da notícia mantinha-se, tivessem-se os arguidos abstido de aditar conteúdos protegidos pelo dito segredo de justiça.

Assim, neste caso, cremos que se mostram harmonizados os preceitos constitucionais em eventual rota de colisão, designadamente os relativos à liberdade de imprensa, liberdade de expressão, direito à informação e o segredo de justiça, como modo protector (também ele com assento constitucional), do bem jurídico de bom funcionamento da máquina judiciária nas fases embrionárias do processo penal.

33. Temos pois que o argumentário expresso pelo tribunal “a quo”, no que concerne à primazia do direito à informação, afastando e sobrepondo-se ao segredo de justiça, não tem base que o suporte, precisamente porque tal direito estava acautelado, já que a informação relevante poderia ter sido dada, o público ficaria informado e não se poria em perigo o bom funcionamento da máquina da justiça. (realce nosso)

De igual modo, e como acima já se mencionou, uma vez que é irrelevante, para o preenchimento do tipo, que tenha ou não havido prejuízo efectivo para a investigação, o que o tribunal “a quo” refere a tal respeito não tem qualquer relevo para a decisão em termos de enquadramento jurídico.

Finalmente, refere ainda o tribunal “a quo” que muitos dos factos noticiados eram factos já conhecidos, do domínio público, essencialmente decorrentes das divulgações feitas pelo blogue “...”, ou da existência de notícias ou divulgações anteriores feitas por outros órgão de comunicação social. Nota-se também que muitos dos factos que compunham as notícias dos autos decorriam de informações obtidas pelas investigações jornalísticas levadas a cabo pelos próprios arguidos.

Sucede, todavia, que tais afirmações não encontram arrimo, suporte, na matéria de facto dada como assente, nem sequer se mostram descriminadas quais as concretas divulgações a que se faz referência; isto é, que conteúdos concretos já teriam sido dados a conhecer ao público, quando e como.

Ora, o tribunal pode apenas decidir com base na matéria de facto que se mostra dada como assente ou, eventualmente, com fundamento em factos notórios mas, caso entendesse o tribunal “a quo” que essas eram as circunstâncias, cabia-lhe tê-lo afirmado e, mais relevantemente, ter deixado expresso quais dos conteúdos ilegítimos a que acima fizemos referência, incluídos pelos arguidos nas suas notícias, que haviam sido já integrados em anteriores divulgações, bem como os que resultariam da investigação jornalística própria.

34. Uma vez que o tribunal “a quo” não procedeu a tais clarificações, quer em sede de matéria de facto dada como provada, quer em sede de argumentário jurídico, termos de concluir, como no conhecido axioma jurídico, que quod non est in actis non est in mundo.

35. Em sede final cumpre-nos então apenas concluir que cada um dos arguidos preencheu, com as suas condutas:

O arguido BB - um crime de violação de segredo de justiça, p. e p. pelo artigo 371º, n.º 1, do Código Penal, com a agravação prevista no artigo 30º, n.º 2, da Lei 2/99 de ....

O arguido AA - três crimes de violação de segredo de justiça, p. e p. pelo artigo 371º, n.º 1, do Código Penal, com a agravação prevista no artigo 30º, n.º 2, da Lei 2/99 de .... (…)”]

3.6. Perante esta argumentação do Tribunal da Relação, temos por certo que a mesma pretendeu reflectir sobre aquilo que, na sua perspectiva, teria resultado da factualidade provada, no sublinhar do excesso (por desnecessidade) de abertura pública da informação dos segmentos que considerou constituírem o teor de actos processuais em investigação.

Por outro lado, aceita-se que da leitura da decisão decorre uma evidente cautela em deixar claro que a liberdade de informação pelos meios de comunicação social deve ser amplamente reconhecida, embora com o limite de que “não vale tudo”. Segmentos de actos e ocorrências processuais teriam origem em fontes de “legitimidade” não de todo comprovada e muitas delas provavelmente até provenientes de elementos que estariam sujeitos ao segredo de justiça interno. Mesmo a sua divulgação para fora do processo não isentaria, segundo pensamos bem interpretar decorrer daquela perspectiva, os srs jornalistas do cuidado de accionarem motu proprio pedidos de autorização nos termos do art 86º nº 9 do CPP ou de esclarecimentos públicos ex vi do nº 13 da mesma norma processual, tendo em atenção as restrições aos meios de comunicação social decorrentes do artº 88º nºs 1 e 2 também do CPP.

A divulgação parcial de teor de actos processuais como foi efectuada, no detectado “excesso de necessidade informativa” mencionado, não seria autorizada face ao texto configurado no tipo penal do artº 371º do CP, tendo em conta aquela hermenêutica assumida pelo Tribunal da Relação e tendo atenção aos bens jurídicos em causa pretendidos defender pelo legislador, sobretudo os da garantia do êxito das investigações, ainda que no sistema de processo acusatório português a regra seja a da publicidade, mas naqueles casos mencionados tenha sido autorizadamente restringida judicialmente.

Além disso, e neste ponto a questão revela-se nuclear e central, parece resultar porém, da posição do Tribunal da Relação, sem outra preocupação complementar, a configuração da penalização da conduta assente essencialmente numa natureza do crime como sendo, sem mais, de mero perigo abstracto, tanto bastando para a incriminação e condenação que o aludido Tribunal proferiu.

Ora bem.

3.7. O crime de violação do segredo de justiça previsto e punido no artº 371 º do CP, agravado nos termos do artigo 30º, n.º 2, da Lei 2/99 é um crime contra a realização da justiça com ele visando o legislador, impondo na sua observância, garantir objectivos múltiplos, avultando de entre eles o sucesso da investigação criminal bem como, ainda, a salvaguarda dos direitos e interesses dos sujeitos processuais, tais como o da presunção de inocência e que poderiam ser lesados com a divulgação de elementos dos processos em que intervêm.12

Em sintonia com a alteração do nº 8 do art 86º do CPP (Lei 48/2007) e na sequência da reforma de 2007 (Lei n.º 59/2007, de 04/09 ) o artº 371º do CP sofreu o aditamento da expressão “ independentemente de ter tomado contacto com o processo”, visando com isso passar a preencher-se o tipo objectivo sem a exigência de que o conhecimento do acto processual tenha sido obtido através do contacto com o processo, alargando assim o universo de potenciais infractores incluindo também aqueles que não tenham tido acesso ou contacto directo com o processo.

O conteúdo e âmbito desta norma penal (“em branco”, na acepção de Castanheira Neves no artº citado) e os elementos do tipo são pois concretizados com referência à lei adjectiva (arts 86º a 89º do CPP) sem que com isso haja conflitos instrumentais de aplicação nomeadamente de aplicação de leis penais no tempo (ibidem, pag 117).

3.8. O crime de violação do segredo de justiça traz ainda à colação a discussão sobre a sua verdadeira natureza e classificação.

Apela-se usualmente à denominação de crimes de aptidão, de perigo hipotético ou de crime de perigo abstrato-concreto. Na perspectiva dogmática tem-se procurado trazer uma nova classificação além dos tipos de delitos de crime de perigo abstrato, de crime de perigo concreto, de crime de perigo individual e de crime de perigo comum.

Crimes de aptidão seriam aqueles em que a conduta constitui uma fonte de perigo para o bem jurídico tutelado pela norma, todavia o agente apenas é punido quando a sua conduta seja apta a criar esse perigo (sem que a norma exiga a efetiva ocorrência do perigo).

Por isso, seriam diferentes dos crimes de perigo abstrato. Além disso, não exigiriam a demonstração de um perigo concreto, razão pela qual se diferenciariam, aí, destes últimos. Justificariam tal denominação por exigirem a aptidão para a produção do resultado, ou seja, a “potencialidade” de causar o dano ao bem jurídico, ou seja, a idoneidade para a produção do resultado, sem exigir sua comprovação caso a caso, mas a demonstração de que, na normalidade das coisas, a conduta seja idónea para colocar o bem jurídico em risco.

Consoante a forma como o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora seja posto em causa pela acção do agente, os crimes podem ser classificados como crimes de dano ou crimes de perigo consoante a sua consumação exija a lesão efectiva do bem jurídico ou apenas a mera colocação em perigo de tal bem. (Neste sentido, Dias, Jorge de Figueiredo, "Direito Penal..." págs. 308 a 309.)

Tendo em conta a protecção dispensada ao bem jurídico-criminal (cfr Moniz, Helena «Aspectos do resultado no direito penal.» In Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias. 1- Edição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, págs 554 a 555.), os crimes de perigo podem classificar-se em crimes de perigo concreto, crimes de perigo abstracto e crimes de perigo abstracto-concreto.

Nos crimes de perigo concreto (que também têm sido considerados como crimes de resultado de perigo, cfr. Helena Moniz, op. cit. pag. 557.) , o perigo constitui elemento do tipo, razão pela qual o mesmo apenas se preenche quando, por força da conduta praticada pelo agente, tiver sido criado um perigo real de lesão do bem jurídico criminalmente protegido.

Nos crimes de perigo abstracto, o perigo não é elemento do tipo mas antes o fundamento, o motivo da proibição penal da conduta reputada como perigosa pelo legislador penal. Na linha do pensamento do Prof Figueiredo Dias, o legislador presume iuris et de iuri a perigosidade de uma conduta, independentemente da necessidade da respectiva verificação no caso concreto ("Direito Penal..." pág. 309.)

Contudo, já nos crimes de perigo abstracto-concreto se admite a possibilidade de a presunção de perigosidade ser ilidida mediante comprovação de que ou não existiu absolutamente qualquer perigo para o bem jurídico, ou o agente adoptou as providências necessárias à não produção do perigo. Aqui a perigosidade abstracta pode ser objecto de um juízo negativo, isto é, de um juízo que impede a punição por uma responsabilidade penal objectiva, sem culpa, o que, a não ser possível, implicaria um juízo de inconstitucionalidade por violação do princípio da culpa- (neste sentido vide Carvalho, Américo Taipa de - «Anotação ao artigo 295e do Código Penal.» In Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo II. 1ª Edição. Coimbra: Coimbra Editora, 1999, pág. 1114.)

Apesar de consolidada como categoria dogmática, - Miguel Almeida Costa refere que o primeiro autor a teorizar sobre este género foi Schröder, que o caracterizava como uma terceira categoria, mas ainda dentro dos crimes de perigo, distinta da dos crimes de perigo concreto, dado que o tipo não exige a comprovação ex post de uma situação de perigo para o bem jurídico, e distinta também da dos crimes de perigo abstracto, porque não se limita a proibir uma conduta que a experiência ou a estatística permitam qualificar de tipicamente perigosa, (cfr. op. cit. nota 30, pag. 199.)- a caracterização dos crimes de aptidão não se mostra pacífica. Para Figueiredo Dias ( in "Direito Penal..." pág. 310.), os crimes de aptidão não podem ser considerados crimes de perigo abstracto por neles o perigo se converter em elemento do tipo, tal como sucede nos crimes de perigo concreto. Todavia afastam-se destes por a realização típica não exigir a efectiva produção do resultado de perigo concreto.

Assim, integra os crimes de aptidão na categoria de crimes de perigo abstracto- concreto (parece resultar do pensamento do Autor que não são os crimes de aptidão que integram a categoria de crimes de perigo abstracto-concreto mas são estes que verdadeiramente são crimes de aptidão, "Direito Penal. " pág.310.).

Helena Moniz por sua vez caracteriza o crime de aptidão como aquele em que a consumação exige, por um lado, a criação de um perigo abstracto para o bem jurídico e, por outro, a aptidão ou idoneidade da conduta para produzir um efeito lesivo sobre o objecto de acção, sendo esta exigência descrita no próprio tipo de ilícito objectivo .( in «Moniz, Helena Aspectos...», pág. 558. 50 Cfr. Dias, Jorge de Figueiredo "Direito Penal..." pág. 310, nota 58.

Assente nestes pressupostos que os crimes de aptidão poderão ou não ser crimes de perigo abstracto-concreto consoante tenham ou não objecto de acção, o tipo exige a respectiva idoneidade. Ambos os autores ensinam que Roxin, por seu turno, configurou os crimes de aptidão como sendo crimes de perigo abstracto.

Partindo pois daquela perspectiva de Helena Moniz, sendo a exigência para a consumação do crime de aptidão, além do perigo abstracto para o bem jurídico, a de ter de existir aptidão ou idoneidade da conduta para produzir um efeito lesivo sobre o objecto de acção, mas exigência essa a ter de estar descrita no próprio tipo de ilícito objectivo , o crime de violação do segredo de justiça não cumprirá este último requisito na actual configuração normativa e, assim, será com dificuldade que se possa afirmar ser este tipo de crime um crime de aptidão.

3.9. Cremos que, independentemente da solução dogmática acerca da natureza do tipo de crime em discussão e concordando que a mera afirmação da existência para a consumação seja frequentemente a de um perigo abstracto, o certo é que tem vindo cada vez mais a defender-se a sua aproximação à natureza de um perigo de resultado concreto e a jurisprudência do TEDH parece cada vez mais apontar para essa via, dado a intensa protecção que nela tem sido conferida à liberdade de imprensa. Adiante desenvolveremos este aspecto.

Reflectindo também acerca da tema do segredo de justiça , J. A. Barreiros (in Revª JULGAR - N.º 32 – 2017 in “Segredo de Justiça e Conflito de Direitos: Espaço de Criminalização.”), aponta alguns caminhos para a sua verdadeira compreensão:

“ (…) A questão pode reconduzir-se à problemática do grau de concretização do perigo para os bens jurídicos defendidos pela criminalização, seja se basta a existência de um perigo abstracto ou se há que demonstrar que a revelação jornalística colocou em causa os bens jurídicos em causa. É patente que a colocação da questão precisamente no caso em que esteja em causa a acção de jornalistas, a não ser uma petição de princípio — exige-se o perigo concreto (realce nosso) como forma de exculpação para os casos em que ele não resulte demonstrado —, só pode decorrer do facto de estarem em conflito dois tipos de bens jurídicos: por um lado, o da informação como instrumento necessário à gestão democrática da comunidade; e, por outro, aqueles que legitimam a punição da violação do segredo de justiça.

Do ponto de vista formal, a única restrição, que decorre da norma penal incriminatória, é que esse direito dos jornalistas às fontes processuais se exerça de modo legítimo, sendo certo, porém, que aquele preceito do Código Penal, o citado artigo 371.º, pune quem «ilegitimamente der conhecimento» e não quem aceder ilegitimamente a processo em segredo de justiça. Vista por este ângulo, a situação parece inculcar a ideia de que o acesso a processo e a divulgação oficial de notícias, informações e documentos sobre processos, nos termos do artigo 86.º, n.os 9, 11, 12 e 13, do CPP. (…) nestas circunstâncias, pode haver critérios divergentes e interesses opostos que caiba dirimir e aí, sim, ocorrer conflito entre os que pretendam o sigilo e os que pretendam a publicidade

(…) questão é saber se a punibilidade decorre da mera colocação em perigo de modo abstracto dos valores defendidos pela incriminação ou se haverá que demonstrar-se que o perigo se verificou em concreto. (…)”]

3.10. Em suma, tanto quanto podemos extrair da literatura jurídica e da evolução do debate sobre a natureza do crime de violação do segredo de justiça, não é tipicamente classificado ou classificável como um crime de aptidão uma vez que se entenda que não se refere necessariamente a situações onde a conduta é considerada perigosa por si só, independentemente de um resultado danoso concreto.

Porém, no caso da violação do segredo de justiça, o dano exigido ou exigível terá de ser mais direto e concreto, pois a divulgação indevida pode afetar diretamente o andamento do processo e os direitos das partes.

E será essa a via de análise que seguiremos para a solução do presente caso, nos termos que passaremos a desenvolver e explicitar, sobretudo tendo em conta a linha de pensamento que o TEDH tem vindo a seguir, se bem a interpretamos.

Ter-se-á ainda em conta, de igual modo, ser no entanto muito duvidoso que a factualidade descrita e provada possa ela mesmo corresponder a uma verdadeira integração no tipo penal do art.º 371.º do CP já que na sua larga substância descreve ocorrências processuais e o que se atém a matéria de teor de alguns actos processuais como atrás indicámos surgiu sobretudo de circunstâncias em que os mesmos já eram conhecidos por vias que elas próprias já teriam implicado outras prévias violações de segredo de justiça por terceiros que não os srs jornalistas arguidos.

Na verdade, ainda que, como sublinhámos, venha sendo considerado por alguma doutrina mais conservadora como um crime de perigo abstracto (entre outros, Medina Seiça in Comentário Conimbricence, § 6 ao artº 371º do CP, Pte Especial, Tº III, 2001), sem requisito de produção de dano efectivo ou pelo menos de perigo concreto, tal natureza tem sido, porém, objecto de discordância do TEDH, pois que este tem vindo a exigir na ponderação dos interesses em jogo e do grau de necessidade de ingerência do Estado na restrição à liberdade de imprensa um perigo mais evidente ou mais concreto para a investigação ou para a presunção de inocência (esta, porém, não está em causa no presente caso, antes se atém essencialmente o problema do tipo e grau de protecção exigível daqueles interesses de investigação).

3.11. A ponderação da natureza do crime em confronto (mesmo assumindo ou concedendo, por cautela de raciocínio, que pudesse ou possa alguma daquela indicada factualidade descritiva de teor de actos processuais constituir matéria subsumível ao tipo penal do art.º 371.º, como o fez o Tribunal da Relação) , haverá, porém, de ser efectuada perante as circunstâncias do caso concreto e as exigências de preponderância entre bens jurídicos conflituantes, sendo tal decisivo para a resolução da questão em análise.

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem assumido várias decisões importantes relacionadas com o segredo de justiça.

Um caso impressivo foi o de Pinto Coelho vs. Portugal (2011), onde o TEDH considerou que a aplicação automática do artigo 88-2 do Código de Processo Penal português, que proíbe a revelação de peças processuais em segredo de justiça, violava o artigo 10 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que protege a liberdade de expressão1.

Outro exemplo é o caso de Y. vs. Suíça (2023), onde o TEDH decidiu a favor da Suíça em um caso envolvendo a violação do segredo de justiça e as limitações à liberdade de expressão e informação pela imprensa2.

Esses casos, ainda que nas circunstâncias das respectivas narrativas factuais particulares, mas não só, ilustram o equilíbrio delicado que o TEDH busca manter entre a proteção do segredo de justiça e a garantia da liberdade de expressão.

Dispõe a CEDH no Artigo 10º sobre Liberdade de expressão:

“(…)

2 - O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas na lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.

Ora, no domínio da liberdade de imprensa versus segredo de justiça, se não se devem ultrapassar certos limites (v.g. protecção da reputação e dos direitos de outrém; v.g. necessidade de impedir a divulgação de informações confidenciais, etc), incumbe aos jornalistas, contudo, comunicar - com respeito pelos seus deveres e responsabilidades – as informações e ideias sobre todos os assuntos de interesse geral.

Os limites previstos no nº 2 do artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem à liberdade de imprensa devem ser vistos como excepções robustas, e interpretados de forma restritiva, sendo que a necessidade de qualquer ingerência deverá corresponder - de acordo com jurisprudência já sedimentada - a uma «necessidade social imperiosa» e ser «proporcional ao objectivo legítimo pretendido»

Os princípios gerais para avaliar a necessidade de uma interferência no exercício da liberdade de expressão, têm sido frequentemente reafirmados pelo Tribunal desde o acórdão Handyside v. Reino Unido (7 de Dezembro de 1976, Série A n.º 24), foram resumidos (Suíça ([GC], n.º 69698/01, § 101, CEDH 2007-V) e reformulados mais adiante no processo Morice v. França ([GC], n.º 29369/10, § 124, CEDH 2015) e Pentikäinen c. Finlândia ([GC], n.º 11882/10, § 87, CEDH 2015):

Nomeadamente, concluindo que:

“(i) A liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e uma das condições básicas para o seu progresso e para a auto-realização de cada indivíduo. Sem prejuízo do n.º 2 do artigo 10.º, é aplicável não só às «informações» ou «ideias» que sejam recebidas favoravelmente ou consideradas inofensivas ou indiferentes, mas também àquelas que ofendem, chocam ou perturbam. Tais são as exigências do pluralismo, da tolerância e da abertura de espírito, sem as quais não existe “sociedade democrática”. Tal como estabelecido no artigo 10.º, esta liberdade está sujeita a excepções, as quais... devem, no entanto, ser interpretadas de forma estrita, e a necessidade de quaisquer restrições deve ser estabelecida de forma convincente...

(ii) O adjectivo «necessário», na acepção do artigo 10.º, n.º 2, implica a existência de uma «necessidade social premente». Os Estados Contratantes têm uma certa margem de apreciação para avaliar se tal necessidade existe, mas esta anda de mãos dadas com a supervisão europeia, abrangendo tanto a legislação como as decisões que a aplicam, mesmo as proferidas por um tribunal independente. O Tribunal tem, por conseguinte, competência para tomar a decisão final sobre se uma «restrição» é conciliável com a liberdade de expressão, tal como é protegida pelo artigo 10.º.

(iii) A tarefa do Tribunal, no exercício da sua jurisdição de supervisão, não consiste em substituir as autoridades nacionais competentes, mas sim em rever, nos termos do artigo 10.º, as decisões que estas proferiram em conformidade com o seu poder de apreciação. Isto não significa que a supervisão se limite a verificar se o Estado requerido exerceu o seu poder discricionário de forma razoável, cuidadosa e de boa fé; o que o Tribunal de Justiça tem de fazer é analisar a interferência denunciada à luz do caso no seu todo e determinar se foi «proporcional ao objectivo legítimo prosseguido» e se as razões invocadas pelas autoridades nacionais para a justificar são «relevantes e suficientes». .. Ao fazê-lo, o Tribunal tem de se certificar de que as autoridades nacionais aplicaram normas que estavam em conformidade com os princípios consagrados no artigo 10.º e, além disso, que se basearam numa avaliação aceitável dos factos relevantes. ”

3.12. O TEDH considera que o direito à liberdade de expressão só não prevalece sobre outros direitos, entre os quais o segredo de justiça, o direito ao bom nome ou às garantias de defesa, se houver prejuízo concreto para a investigação ou para a presunção de inocência.

Esta posição resulta da interpretação que o TEDH faz e tem vindo a fazer dos artigos 6.º e 10.º da CEDH.

De acordo com o artigo 6.º da CEDH, a restrição à liberdade de expressão e de informação só se justifica na medida em que, no interesse da justiça, se sobreponham, em concreto, outros direitos, como o direito à defesa13.

Entende o TEDH ser necessário averiguar:

i. se a medida corresponde a uma “necessidade social imperiosa”;

ii. se é proporcional– isto é, se a necessidade poderia ser provida por meios menos restritivos e se a medida é adequada à finalidade prosseguida;

iii. se os fundamentos invocados pelas autoridades nacionais para justificar a medida são “relevantes e suficientes14.

A liberdade de expressão constitui, assim, a regra.

As limitações consentidas pelo n.º 2 do artigo 10.º da CEDH são restritivamente interpretadas e casuisticamente analisadas de acordo com o conteúdo da peça jornalística em causa.

Francisco Pereira Coutinho sufraga que :

o TEDH distingue para o efeito entre declarações de facto (notícia) e julgamentos de valor (opinião), considerando que se as notícias podem ser provadas, as opiniões não se prestam a demonstração de veracidade, pelo que tornam impossível para um jornalista a expressão de uma opinião se a verdade é a única defesa disponível. Por outras palavras, saber se uma afirmação é uma declaração de facto (notícia) ou um juízo de valor (opinião) constitui factor decisivo no nível de protecção que recebe à luz da CEDH – se se tratar de um julgamento de valor receberá protecção ampla, quase absoluta, caso a opinião prestada não seja desprovida de base factual e seja feita de boa fé15.

Nesse sentido se pronunciou o acórdão do TEDH de 17 de dezembro de 200416, no qual se referiu que os jornalistas “devem agir de boa fé e com base factual e fornecer informação “credível e precisa” de acordo com a ética do jornalismo”.

Por sua vez, no caso Laranjeira Marques da Silva v. Portugal (2010), em que:

“(…)o requerente havia colocado a questão de a ingerência consubstanciada na sua condenação pela prática do crime de violação de segredo de justiça não se encontrar expressamente prevista na lei, atentas as divergências então existentes na doutrina e na jurisprudência portuguesas acerca da inclusão ou não dos jornalistas no círculo de autores desse tipo de crime, o TEDH, no seu ac. de 19/01/2010, entendeu que, no caso concreto, dadas as qualificações de um jornalista, o requerente não podia deixar de prever com um grau de razoabilidade as consequências que a publicação dos artigos em causa era suscetível de gerar para ele no plano judiciário, pelo que considerou que a ingerência em causa estava «prevista na lei”.

Mas, por outro lado, o TEDH entendeu igualmente que a ingerência em causa prosseguia fins legítimos, concretamente a boa administração da justiça, evitar influências externas sobre o tribunal e proteger a reputação e os direitos d´outrém.

Todavia, «considerou que nem o objetivo de proteção do inquérito nem o de proteção da reputação d´outrém se sobrepõem ao interesse do público a receber informações sobre certos processos penais referentes a homens políticos». Constatou que, no caso concreto, não estava demonstrado que tivesse existido qualquer prejuízo para o inquérito criminal nem para os direitos, nomeadamente o direito à presunção de inocência, da pessoa visada nos artigos jornalísticos em causa, a qual era igualmente um ator político. (sublinhado nosso)

Desse modo, concluiu que «a condenação do requerente por violação do segredo de justiça traduziu-se numa ingerência desproporcional no exercício do seu direito à liberdade de expressão que não correspondia a nenhuma «necessidade social imperiosa»».

Também no caso Campos Dâmaso v. Portugal (2008), sublinhou que «os limites» dos «deveres e responsabilidades» dos jornalistas «dependem da situação concreta», importando apurar se, nas circunstâncias específicas do caso, o valor de informar o público se sobrepõe ou não àqueles «deveres e responsabilidades».

Nessa linha de raciocínio, concluiu o referido Tribunal que:

”(…) pese embora o artigo jornalístico em causa tivesse sido «publicado num momento crucial do processo criminal – o da dedução da acusação», cumpria levar em conta que já anteriormente haviam saído outros artigos sobre o mesmo assunto, o jornalista não tomara posição sobre a eventual culpabilidade do visado, «limitando-se a descrever o conteúdo da acusação do Ministério Público», e «nenhum magistrado não profissional podia ser chamado a apreciar o caso», o que igualmente reduz os riscos de que artigos daquele tipo possam afetar o resultado dos processos judiciais a que se referem.”

Já ali, em relação ao interesse da proteção do inquérito, constatou o TEDH que «o Tribunal de Esposende reconheceu que a publicação do artigo litigioso não causou prejuízo à investigação (...). Quanto ao Tribunal da Relação de Guimarães, este limitou-se a notar, em termos gerais, que a fase de investigação pode estender-se para lá da dedução da acusação (...). Além disso, o Governo não explicou como as investigações em causa poderiam ser afetadas pela publicação do artigo litigioso». ( sublinhado nosso)

Assim, concluiu o TEDH «que o fim legítimo de proteção do inquérito não poderia, nas circunstâncias do caso, primar sobre o direito do requerente a prestar informação sobre o processo criminal» e que o interesse da publicação litigiosa prevalecia, no caso, sobre o fim, também legítimo, de preservar o segredo de justiça», pelo que considerou que «a condenação do requerente não correspondia a uma «necessidade social imperiosa», constituindo uma ingerência desproporcionada no seu direito à liberdade de expressão», desse modo tendo sido violado o art.º 10º da CEDH.

Mais tarde, em BÉDAT v. SWITZERLAND, (Application no. 56925/08) de 29 March 2016 , in (https://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-161898) não obstante a peculiariedade das circunstâncias do caso, não deixou de acentuar a necessidade de verificação de uma exigência de perigo de dano para as investigações (transcrição em tradução livre do texto original em inglês e sublinhado nosso):

[“(…) (iii) Contribuição do artigo impugnado para um debate de interesse público

62. No seu acórdão de 1 de Julho de 2014, a Câmara observou que o incidente que tinha sido objecto do processo penal em questão atraiu imediatamente o interesse público e levou muitos meios de comunicação social a cobrir o caso e o seu tratamento pelo sistema de justiça criminal.

63. O Tribunal reitera que já declarou que o público tem um interesse legítimo na prestação e disponibilidade de informações sobre processos penais, e que as observações relativas ao funcionamento do poder judicial dizem respeito a uma questão de interesse público (ver Morice v. França ([GC], n.º 29369/10, § 152-CEDH 2015).

(….)

(iv) Influência do artigo impugnado no processo penal

68. Embora sublinhando que os direitos garantidos pelo artigo 10.º e pelo artigo 6.º, n.º 1, merecem igual respeito em princípio (ver parágrafo 53 acima), o Tribunal reitera que é legítimo que seja concedida protecção especial ao segredo de uma investigação judicial, em vista do que está em jogo no processo penal, tanto para a administração da justiça como para o direito das pessoas sob investigação a serem presumidas inocentes (ver Dupuis e outros, citado acima, § 44).

Salienta que o sigilo das investigações visa proteger, por um lado, os interesses do processo penal, prevendo os riscos de colusão e o perigo de adulteração ou destruição das provas e, por outro, os interesses dos arguidos, nomeadamente do ponto de vista da presunção de inocência e, de um modo mais geral, das suas relações e interesses pessoais. Tal sigilo também é justificado pela necessidade de proteger os processos de formação de opinião e de tomada de decisão no âmbito do judiciário.

69.(…) É inegável que a publicação de um artigo dessa forma num momento em que a investigação ainda estava em curso acarretava um risco inerente de influenciar de uma forma ou de outra o curso do processo, seja em relação ao trabalho do juiz de instrução, do juiz de instrução, de decisões dos representantes dos arguidos, as posições das partes que reclamam indemnizações, ou a objectividade do tribunal de primeira instância, independentemente da sua composição.

70. A Grande Secção considera que não se pode esperar que um governo forneça provas ex post facto de que este tipo de publicação realmente influenciou a condução de um determinado conjunto de processos. O risco de influenciar o processo justifica por si só a adopção pelas autoridades nacionais de medidas dissuasivas como a proibição da divulgação de informações secretas. A legalidade dessas medidas à luz do direito interno e a sua compatibilidade com os requisitos da Convenção devem poder ser avaliadas no momento da adopção das medidas, e não, como alega o requerente, à luz de desenvolvimentos subsequentes que revelem a verdadeira impacto das publicações (…)]

3.13. Do excurso que antecede e face à jurisprudência citada, na sua diversidade e narrativas, há pois que concluir que, ainda que se pudesse conceder poder afirmar-se a subsunção de alguns dos factos relativos à descrição de teor de actos processuais no tipo penal do artº 371º do CP, é nas circunstâncias concretas do caso que a ponderação de interesses deve existir e não por via de uma mera constatação de um perigo abstracto de lesão apenas e de per se em face da consideração de que a natureza do crime é a de crime de perigo abstracto.

Há uma margem de apreciação por parte das autoridades nacionais. Existe ainda a necessidade de um evidente interesse público das notícias mas o direito de informar deve ser restringido apenas em situações limite, com carácter de excepcionalidade.

Ora, no caso dos autos não se provou que houve prejuízo para as investigações nem que esse perigo existiu, sequer em concreto, muito menos se conseguiu consensualidade da validação típica e dogmática da qualificação como crime de perigo em abstracto (a afirmação deste foi meramente conclusiva).

E, de igual passo, já vimos a problemática da discutibilidade de existência ou não da inclusão desses elementos no tipo ou na fundamentação do tipo.

3.14. Em Conclusão:

Deste modo, embora reconhecendo que a acção de divulgação noticiosa por parte dos arguidos Srs. jornalistas podia ter sido mais contida, revelando algum excesso informativo, e mesmo que se conceda que, não obstante as dúvidas e reservas de subsunção jurídica que antes sublinhámos, alguma daquela factualidade provada pudesse ser abrangida no tipo de ilícito do art.º 371º do CP, o certo é que, atendendo aos limites de compressão verdadeiramente excepcional que o TEDH tem assumido na protecção do direito de liberdade de informação, no confronto com a violação do segredo de justiça quando estejam em causa factos de muito relevante interesse público, como foi e ainda é o dos casos em investigação constantes na matéria de facto assente, devemos aproximarmo-nos da interpretação do que seja tal violação em articulação com o direito à liberdade de expressão e com a jurisprudência do TEDH.

E isso, sem esquecer que “a realização da justiça penal, sobretudo naqueles casos de maior repercussão mediática, depende em grande parte da comunicação social” (Mário Ferreira Monte, Segredo e Publicidade na justiça penal, p. 345) importa encontrar um equilíbrio de modo que o acto de informação respeite os limites legais da efetiva realização da justiça (idem, p. 363), ou seja, a articulação imposta pela jurisprudência do TEDH.

Assim, impõe-se uma interpretação do tipo penal que entenda que a conduta típica e ilícita é apenas aquela que ostensivamente coloca em perigo o bem jurídico normalmente considerado como sendo o protegido por esta incriminação. Na verdade, “a existência do segredo de justiça decorre primariamente de exigências de funcionalidade da administração da justiça, particularmente perante o risco de perturbação das diligências probatórias e de investigação. É essencialmente o perigo de inquinamento do material probatório, susceptível de sofrer prejuízos caso os participantes processuais, sobretudo o arguido, conhecessem na sua plenitude a actividade de investigação” (Medina Seiça, art.º 371.º/ § 6). Ou seja, a presunção de perigo da conduta para o bem jurídico protegido terá que ser contextualizada de modo a que se verifique se as condutas dos arguidos na divulgação de parte de factos e de algum teor de atos processuais —consubstanciados em actividade de investigação realizada perante a comunidade e com base em actos processuais que se encontram fora do processo dada a sua necessária divulgação aos interessados (como aquando da realização de buscas com mandados entregues a sujeitos processuais) — integradas neste contexto, consubstanciam (ou não) uma conduta perigosa que ponha em risco de perturbação as diligências probatórias e que ponham em causa a funcionalidade da justiça.

Ora, dos factos dados como provados que foram considerados pelo Tribunal da Relação como subsumíveis ao crime em questão não se vislumbra, mesmo assim, que atendendo à necessidade de exercício de um direito à informação, possam constituir, no contexto em que foram divulgados os factos e as informações, uma violação punível do dito segredo de justiça, dado que não se demonstrou que aquela divulgação se mostrou ostensivamente adequada a perturbar a investigação que estava a decorrer e que acabou, no essencial, por consistir num relato disso mesmo. Pelo que, nessa linha de pensamento, inexistem no presente caso sinais suficientemente decisivos da justificação para uma ingerência da autoridade judiciária através da censura jurídico-penal assumida pelo Tribunal da Relação, a qual deve ser eliminada, revogando-se a decisão de condenação e absolvendo os arguidos.

IV- DECISÃO

Pelo exposto, embora julgando os recursos improcedentes quanto à matéria das questões interlocutórias (irregularidade) e das invocadas nulidades e vícios, vão porém julgados procedentes quanto à questão da condenação, revertendo-se a decisão do Tribunal da Relação nesta parte e absolvendo os arguidos dos crimes imputados.

Sem tributação.

STJ 17 de outubro de 2024

(texto elaborado em suporte informático , revisto e rubricado pelo relator – (artº 94º do CPP)

Agostinho Torres (relator)

Vasques Osório (1º adjunto)

Luís Teixeira (2º adjunto)

.




1. A redacção original (antes do recurso) consignada na 1ª instância foi a seguinte:

  ”5) Os arguidos AA e BB agiram, em todos os momentos, de modo livre, deliberado e voluntário. Nas situações descritas, o arguido AA quis divulgar, como divulgou, notícias que descreveram o conteúdo dos actos e peças processuais, querendo com isso violar o segredo de justiça que vigorava nos respectivos processos, o que fez mesmo antes de todas as diligências ordenadas e noticiadas se terem iniciado, indiferente aos efeitos que essa publicação causaria aos interesses da investigação, designadamente à dissipação de prova por parte dos visados ou à perturbação da recolha da prova que se pretendia com tais diligências, e para a imagem dos visados pelas mesmas.↩︎

2. Redacção original (antes do recurso):

  “6) O arguido BB quis violar o segredo de justiça a que estava sujeito o processo n° 6421/17.2..., divulgando, como divulgou, notícia que descrevia o conteúdo dos actos processuais ordenados no referido processo, alguns ainda não iniciados, indiferente aos efeitos que essa publicação causaria aos interesses da investigação, designadamente, dissipação de prova por parte dos visados ou perturbação da recolha da prova que se pretendia com tais diligências.↩︎

3. Neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.↩︎

4. Neste sentido Acórdão do STJ, de 06/01/2011, Proc. nº 355/09.1JAAVR.C1.S1,Relator Conselheiro Rodrigues da Costa, in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/43022db12f59da20802578140030c414?OpenDocument↩︎

5. - Cf. obra citada, 2.º Vol., pág. 740 e, no mesmo sentido, entre outros , os acórdãos do STJ de 4-10-2001 (CJ, ASTJ, ano IX, 3º , pág.182 ) e Ac. da Rel. Porto de 27-9-95 ( C.J. , ano XX , 4º, pág. 231).↩︎

6. - Cf. “Curso de Processo Penal”, Vol. II, pág.300.↩︎

7. Mário Raposo (Provedor de Justiça), In AR - Subcomissão de Comunicação Social - Liberdade de Informação - Segredo de Justiça, COLÓQUIO PARLAMENTAR. Lisboa: AR, 1992, p. 25.↩︎

8. Acórdão do STJ, de 08-03-2007, Proc. n.º 07B566, Relator Salvador da Costa, in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2977b1d06e94b2e58025729800577374?OpenDocument↩︎

9. Acórdão do STJ, de 14-02-2002, Proc. n.º 01B4384, Relator Conselheiro Oliveira Barros, in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c9c2cd487d26cfde80256d5f0031c4f9?OpenDocument↩︎

10. Quanto à origem, evolução e influências na configuração da norma do artº 371º do CP e sobretudo em termos de direito comparado, Cfr «Monte, Mário Ferreira, “O crime de violação de segredo de justiça (art. 371.º do cp): Âmbito de tutela e relação com outras incriminações. Da aparente simplificação típica às descontinuidades Implicativamente práticas” pubº in Segredo e Publicidade na Justiça Penal, Ed Almedina, Fevº 2018»-:

  -“O Código Penal português (CP), à semelhança do austríaco, contém, no artigo 371.º, o crime de violação de segredo de justiça. Embora os tipos legais apresentem diferenças consideráveis, pode dizer-se que o § 301 do Código Penal austríaco (StGB) 2 é o que mais se aproxima do artigo 371.º do CP, e nessa medida concordamos com Pinto de Albuquerque3, quando invoca esta norma como fonte inspiradora do tipo português.

  Convém, todavia, não ignorar que o actual artigo 371.º do CP resulta do anterior artigo 419.º do CP, na versão que lhe foi dada em 19824, e este, por sua vez, como é referido nas Atas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal5, do artigo 74.º do Código de Processo Penal (de 1929) então vigente. Mas foi a revisão operada pelo Decreto-lei n.º 48/95, de 15 de Março, que acabou por trazer ao tipo legal de crime elementos que se podem considerar originais e que o diferenciam quer do de 1982, quer do §301 StGB austríaco, nomeadamente através da redução de toda a factualidade típica ao n.º 1 e da extensão da incriminação, no n.º 2, aos casos praticados no âmbito de processo de contra-ordenação ou disciplinar. A revisão operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, também trouxe algumas alterações, mas relevantes apenas quanto ao âmbito de aplicação pessoal.

  (…) Seja como for, podemos dizer que existe uma forte relação entre o tipo do artigo 371.º do CP e o do § 301 StGB austríaco, em particular do n.º 1 desta norma – sobretudo porque em causa está a divulgação proibida do conteúdo de atos processuais10, ou seja, na terminologia portuguesa, a divulgação do teor de atos processuais sob segredo de justiça –, sendo, por isso, correto dizer que esta terá sido a norma inspiradora do tipo português, embora, como se viu, não esteja excluída alguma semelhança, em certos aspetos, com a norma alemã, não fosse esta tão abrangente como é quanto às condutas subsumíveis no tipo. E seguramente que a tudo isto não terá sido alheia a própria evolução do tipo no direito português. Como já dissemos, decerto que o artigo 74.º do Código de Processo Penal (de 1929), vigente quando foi aprovado o artigo 419.º do CP, bem como este último, na versão que lhe foi dada pela versão de 1982, assim como por sobre tudo as alterações posteriores que ocorreram no âmbito de um quadro constitucional referencial posterior a 1997, quando foi aprovado o n.º 3 do artigo 20.º da CRP, terão contribuído para que o tipo legal da norma do artigo 371.º do CP tivesse a redação que tem hoje, apesar da indiscutível inspiração que o StGB austríaco poderá ter sido para o legislador português.(…)”↩︎

11. Na linha de pensamento de Monte, Mário Ferreira, in op cit, concordamos igualmente com esta afirmação:

  «(…) resulta do artigo 371.º uma tutela penal do segredo de justiça “mais restritiva” do que o alcance processual que ao mesmo é assestado (Como refere PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal, p. 966.).

  De facto, de fora ficam condutas que estão sujeitas ao segredo de justiça, nos termos da lei processual, como sejam: a assistência ilegítima de ato processual ou a tomada de conhecimento ilegítima de conteúdo de ato processual em segredo e ainda a divulgação da ocorrência de ato processual, que são comportamentos que a lei processual, no artigo 86.º, n.º 8, determina como proibidos, mas que não estão tutelados pela lei penal. » ( sublinhados e realce nossos)↩︎

12. (por todos, vide Castanheira Neves, Alfredo, in ponto 4.1 de “A publicidade e o segredo de justiça no PP português , pag 116 e ss, As Alterações de 2010 ao CPP, Edª CEJ, Abril de 2011).↩︎

13. Neste sentido, vide Acórdãos do TEDH de 08-12-1983 (Caso Pretto c. Itália) e de 22-02- 1984 (Caso Axen c. Alemanha).↩︎

14. Sunday Times (nº 1) contra Reino Unido, 26 de abril de 1979, série A nº 30, p.38, § 62↩︎

15. In “O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e a Liberdade de Imprensa: os casos portugueses,” http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/FPC_MA_24220.↩︎

16. Pedersen e Baadsgaard contra Dinamarca, in http://hudoc.echr.coe.int, n.º 78.↩︎