AÇÃO POPULAR
LEGITIMIDADE
ASSOCIAÇÃO DE CONSUMIDORES
Sumário

I - O Direito de ação popular consagrado constitucionalmente (cfr. nº3, do art. 52º, da CRP) e, especificamente, regulado na lei ordinária (v. Lei nº 83/95, de 31/8), é conferido a todos (pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa) – cfr. referido nº3, do art. 52º, da CRP, e nº1, do art. 2º, da referida Lei.
II - E para uma associação (de consumidores ou não) ter legitimidade para propor ação popular na área do consumo, basta a verificação dos, específicos, requisitos previstos no art. 3º, da Lei nº 83/95, de 31 de maio (cfr. remissão efetuada pela al. b), do art. 13º, da Lei de defesa do consumidor – Lei nº 24/96, de 31/7) sendo eles: i) estar dotada de personalidade jurídica; ii) incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objetivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de ação de que se trate e, por isso, sem fim lucrativo; iii) não exercerem qualquer tipo de atividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais.
III - Não se encontrando estatuído na Lei de defesa do consumidor nem na Lei da Ação Popular qualquer outro requisito condicionador da legitimidade, não pode o aplicador da lei impô-lo.

Texto Integral

Processo nº 17706/22.6T8PRT.P1

Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo Central Cível de Aveiro - Juiz 2



Relatora: Des. Eugénia Cunha
1º Adjunto: Des. Teresa Pinto da Silva
2º Adjunto: Des. Jorge Martins Ribeiro



Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto


Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):

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I. RELATÓRIO

CITIZENS’ VOICE CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION, e restantes AUTORES POPULARES, na ação popular proposta contra A... - S.A., notificados da decisão que julgou procedente a exceção dilatória da ilegitimidade ativa, e, em consequência, absolveu a Ré da instância, dela apresentaram recurso de apelação sobre a matéria de direito.

Tem a decisão recorrida o seguinte teor:
Identificação das partes e objeto do processo
1. CITIZENS' VOICE - CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION, número de pessoa coletiva ...94, com sede na Praceta ..., ... ..., freguesia ..., concelho ..., e escritório na Praceta .... Sala ..., ..., ..., propôs contra A... - S.A., pessoa coletiva ...25, com sede no ..., Lote ..., Porto ..., ..., ..., em ..., ação popular para defesa de interesses difusos e individuais homogéneos, alegando, no essencial, o seguinte:
A Ré dedica-se, nomeadamente, mas não exclusivamente, ao transporte, distribuição e comercialização a retalho de biodiesel e seus derivados, incluindo a gestão de áreas destinadas a serviços de comercialização de combustíveis para veículos a motor, comercializando os combustíveis com a insígnia “A...”;
A Ré é o quarto maior operador no fornecimento de combustíveis (gasóleo e gasolina) em Portugal e, com referência a 2019, junto com a B..., a C..., a D..., e a E..., representava cerca de 95% das introduções a consumo de gasolinas e de gasóleos no mercado nacional;
A Ré é o maior operador no fornecimento de combustíveis (gasóleo e gasolina) low cost, detendo, nesse posicionamento de mercado, uma posição de domínio;
A Ré comercializa, em áreas (postos de abastecimento de combustíveis) de marca própria e por si geridas, combustíveis para veículos a motor, nomeadamente “gasóleo simples”, “gasolina simples 95”, “TOP DIESEL” e “TOP 95”, em que as primeiras têm preços mais elevados do que as segundas, apesar de as primeiras terem (alegadamente e de acordo com a ré), pior qualidade do que as segundas;
A Ré comercializa o gasóleo “TOP DIESEL” indicando que o mesmo tem um índice de cetano superior quando comparado com o gasóleo convencional (entenda-se, para o consumidor médio, o “gasóleo simples”), o que não é verdade, pois comparando índice de cetano calculado de acordo de acordo com o método de análise EN ISO 4264 no “gasóleo simples” e no “TOP DIESEL” ambos apresentam um valor igual de 46,0 min;
As designações atribuídas aos combustíveis “TOP DIESEL” e “TOP 95”, quando em comparação com a designação “gasóleo simples” e “gasolina simples 95”, veiculam uma mensagem que não é clara, suscetível de induzir em erro o destinatário(a), consumidor(a) médio(a), que ao lê-la fica ou pode ficar convencido(a) de um facto que, apurado com detalhe, não corresponde à realidade que o(a) levou a adquirir o produto em causa, principalmente quando a mensagem é fortemente realçada e apelativa como é o caso;
A Ré comercializada, nesses mesmos postos de abastecimento de combustíveis por si geridos, “gasóleo simples” e “gasolina simples 95” a um preço superior ao gasóleo aditivado e à gasolina aditivada;
A Ré anuncia no seu sítio da internet que o gasóleo aditivado e a gasolina aditivada, têm, ceteris paribus, uma qualidade superior ao “gasóleo simples” e à “gasolina simples 95” por via da adição de constituintes extras, com o objetivo de limpar o depósito, válvulas e injetores, melhorando a combustão e lubrificando o sistema de injeção;
A Ré sabe que não existem as vantagens que endereça ao combustível “TOP DIESEL” face ao combustível “gasóleo simples”, até porque algumas dessas vantagens, designadamente uma combustão mais completa do combustível, mais eficiência e melhor desempenho do motor, redução da emissão de fumos brancos e dos ruídos do motor, a Ré endereça a um índice de cetano superior no combustível “TOP DIESEL” face ao gasóleo simples, o que não é verdade que tenha, porquanto ambos os combustíveis têm um índice de cetano calculado (de acordo com a EN ISSO 4264) de 46,0 min;
A Ré sabe perfeitamente que não existem as vantagens que endereça ao combustível “TOP 95” face ao combustível “gasolina simples” 95;
A comercialização no mesmo posto de abastecimento de combustíveis de “gasóleo simples” e “gasolina simples” com um preço mais elevado do que o mesmo gasóleo e a mesma gasolina, mas aditivados, veicula, por intermédio do preço ou por intermédio da denominação, uma mensagem que não é clara e é suscetível de induzir em erro o destinatário(a), consumidor(a) médio(a), que ao procurar fazer a sua escolha em função do preço ou da denominação, fica ou pode ficar convencido(a) de um facto que, apurado com detalhe, não corresponde à realidade que o(a) levou a adquirir o produto em causa;
O comportamento descrito da Ré é aquele que esta adota para com todos os consumidores, seus clientes, os aqui autores populares, e que consubstancia em publicidade enganosa e numa prática comercial desleal e restritiva da concorrência, bem como especulação de preços na medida em que a Ré, altera, sob o pretexto da denominação do produto e com intenção de obter lucro ilegítimo, os preços que do regular exercício da atividade resultariam para os bens ou serviços;
Em resultado de tal comportamento, verificam-se dois tipos de erro na formação da vontade do(a) consumidor(a) médio(a), ambos provocados pela publicidade enganosa: um erro ocorre considerando que o consumidor olha meramente para o preço de um produto semelhante (gasóleo ou gasolina), oferecido exatamente no mesmo local e pelo mesmo fornecedor, e (ignorando as várias denominações publicitadas para os produtos) opta pelo preço mais elevado, considerando que esse é o melhor produto, face à suposição comum de que os preços são bons indicadores de qualidade, principalmente quando os produtos são oferecidos no mesmo local e pelo mesmo fornecedor;
Outro erro ocorre quando o consumidor, ignorando os vários preços publicitados, olha apenas para as denominações de cada produto, optando por aquele que, em face da denominação publicitada e atento aos costumes e experiência comum (incluindo em outros fornecedores de combustíveis), considera ser o mais barato. Estes consumidores, que procuram um preço mais baixo, vão por isso optar pelo “gasóleo simples” ou “gasolina simples” por serem os que comumente oferecem, com qualidade assegurada por lei, o preço mais baixo, e porque é esperado que o “TOP Diesel” ou o “TOP 95”, por serem gasóleo aditivado e gasolina aditiva respetivamente sejam mais caros;
A par disso, verifica-se ainda uma dissonância cognitiva provocada pelo facto de não ser esperado que um produto aditivado seja mais caro que o mesmo produto sem aditivo, pois tal contraria a racionalidade económica esperada e inerente à tomada de decisões. Por isso, os consumidores nesta situação, os aqui autores populares, são forced to compliance (Festinger & Carlsmith, 19596) e levados a aceitar que o “gasóleo simples” e “gasolina simples” são mais baratos que o mesmo gasóleo e a mesma gasolina, mas aditivados.
2. Na contestação apresentada e já notificada à Autora, a Ré, depois de arguir a incompetência em razão do território do Juízo Central Cível do Porto – exceção que já se encontra decidida –, alegou também a ilegitimidade da Autora com fundamento na falta de representatividade dos consumidores de todo o território nacional, e designadamente os seus potenciais clientes, dado que aquela não preenche o requisito do art. 17.º, n.º 2, da Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31/7), isto é, a Autora tem menos de 3000 associados (cf. arts. 50.º a 76.º daquele articulado).
A exceção (dilatória) de ilegitimidade ad causam ativa pode ser conhecida pelo juiz no despacho saneador, por os elementos necessários para a decisão constarem do processo e as partes já se terem pronunciado na fase dos articulados (cf. art. 592.º, n.º 1, al. b), CPC).

Fundamento da exceção (dilatória) de ilegitimidade ad causam da Autora Popular
3. A legitimidade em sentido processual das partes, como qualquer pressuposto processual, afere-se, antes de tudo, a partir da análise da forma como a causa se mostra estruturada no articulado inicial da ação, nomeadamente a partir da causa de pedir e do pedido.
A causa de pedir desta ação baseia-se em práticas ilícitas alegadamente cometidas pela Ré, concretamente, por anunciar nos postos de abastecimento que gere em todo o território nacional e em sítios da internet que o gasóleo e a gasolina aditivados que disponibiliza à generalidade dos consumidores tem melhores propriedades para o rendimento e proteção do motor dos veículos e contribui para a redução de emissões de CO2, sendo que aquela vende esses combustíveis por um preço inferior ao do gasóleo simples e da gasolina simples.
Conclui a Autora popular que esta conduta da Ré é enganosa para os consumidores em geral, dado que (i) o consumidor que atende apenas no preço do produto e ignora as propriedades do mesmo opta pelo preço mais elevado, considerando ser esse o melhor produto; por sua vez, (ii) o consumidor que não atende nos vários preços publicitados e toma a decisão de abastecer com base nas características anunciadas de cada produto vai optar pelo combustível não aditivado, por ser aquele que considera ser o mais barato, pelo que, ao abastecer com o “gasóleo simples” ou “gasolina simples”, aquele consumidor suporta um sobrepreço, dado que adquire o combustível com idêntica ou menor qualidade a um preço mais alto. Para além disso, (iii) os consumidores também são enganados porque o que é expectável é que um combustível aditivado seja mais caro que o mesmo produto sem aditivos.
As questões objeto do litígio alegadas pela Autora popular são, em síntese, as seguintes:
Apurar se a Ré, nos postos de abastecimento de combustíveis por si geridos, comercializa “gasóleo simples” e “gasolina simples 95” a um preço superior ao gasóleo aditivado e à gasolina aditivada;
Apurar se, não obstante, o gasóleo “TOP DIESEL” tem um índice de cetano igual ao gasóleo convencional (gasóleo simples), de 46,0 min de acordo com a EN ISSO 4264, e, na afirmativa, se esta circunstância é suscetível de induzir em erro o destinatário e consumidor quanto ao anúncio de menor consumo, de menores emissões poluentes e de maior proteção do motor, consubstanciando tal conduta publicidade enganosa e uma prática restritiva da concorrência;
(…), como sucedeu no posto de abastecimento da Ré, situado na Avenida ..., ..., ..., ..., em 12.10.2022, às 10h18m;
Apurar se a Ré sabe que não existem vantagens no uso do combustível “TOP DIESEL” face ao combustível “gasóleo simples”, no que se refere a maior potência, redução de emissões de CO2, menor desgaste do motor, menores custos de manutenção a médio prazo, combustão mais completa do combustível, mais eficiência e melhor desempenho do motor, redução da emissão de fumos brancos e dos ruídos do motor, e melhor proteção à corrosão do motor;
Apurar se a gasolina “TOP 95” tem um índice de cetano igual à gasolina convencional (gasolina simples), de 46,0 min de acordo com a EN ISSO 4264, e, na afirmativa, se esta circunstância é suscetível de induzir em erro o destinatário e consumidor quanto ao anúncio de menor consumo, de menores emissões poluentes e de maior proteção do motor, consubstanciando tal conduta publicidade enganosa e uma prática restritiva da concorrência;
Apurar se a Ré sabe que não existem vantagens no uso do combustível gasolina “TOP 95” face ao combustível “gasolina simples”, no que se refere a maior potência, redução de emissões de CO2, menor desgaste do motor, menores custos de manutenção a médio prazo, combustão mais completa do combustível, mais eficiência e melhor desempenho do motor, redução da emissão de fumos brancos e dos ruídos do motor, e melhor proteção à corrosão do motor;
Apurar se, em média, a diferença de preço entre a “gasóleo simples” e o “TOP DIESEL” é de 0.09 euros;
Apurar se, em média, a diferença de preço entre a “gasolina simples” e a “TOP 95” é de 0.08 euros;
Apurar se, de acordo com o consumidor médio, é expectável que o “gasóleo simples” e a “gasolina simples” sejam mais baratos que o mesmo gasóleo e a mesma gasolina, mas aditivados;
(…), como sucedeu com a cliente da ré, AA, no abastecimento por esta realizado em 16.09.2022, pelas 09h07;
Apurar se o preço de um produto é um elemento indicativo da qualidade desse mesmo produto em relação a outros oferecidos no mesmo local e pelo mesmo fornecedor;
Apurar se os descritos comportamentos da Ré causaram prejuízos (patrimoniais e não patrimoniais) aos autores populares e qual o seu quantum, dado que o pedido principal consiste na condenação da Ré a indemnizar integralmente aqueles autores (em termos globais e individuais) pelos danos que lhes foram causados por estas práticas ilícitas, no que respeita ao sobrepreço, nos termos do disposto no art. 609.º, n.º 2, do CPC.

4. Perante os factos acabados de descrever, a ação intentada pela Autora tem por objeto a defesa da proteção do consumo de combustíveis “gasóleo simples”, “gasolina simples”, gasóleo “TOP DIESEL” e gasolina “TOP 95”, em todos os postos de abastecimento geridos pela Ré no território nacional, por os combustíveis não aditivados serem vendidos por um preço superior aos combustíveis aditivados, contra aquilo que seria expectável para um consumidor médio, além do mais os combustíveis aditivados não possuem as qualidades anunciadas.
Este objeto enquadra-se, prima facie, no âmbito objetivo da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto (diploma legal que regula o exercício do direito procedimental de participação popular e do direito de ação popular - cf. art. 1.º desta lei). O interesse prosseguido é um interesse genérico, destinado à tutela dos direitos dos condutores em geral que abasteçam aqueles combustíveis em postos geridos pela Ré em todo o território nacional.
A Ré exceciona a ilegitimidade da Autora com fundamento, como se disse, na falta de representatividade dos consumidores de todo o território nacional, dado que não preenche o requisito do art. 17.º, n.º 2, da Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31/7), isto é, a Autora tem menos de 3000 associados.
Tal como consta no art. 2.º dos Estatutos da Autora (cf. doc. 1 da petição inicial, que se encontra incompleto, e, por isso, se considerou o instrumento relativo àqueles Estatutos que a Autora juntou com a petição inicial apresentada na ação com o n.º 2174/23.3T8AVR, que foi igualmente distribuída a este Juízo Central Cível), a Autora é uma associação que tem como fim a defesa dos consumidores na União Europeia, seus associados, e dos consumidores em geral que sejam cidadãos da União Europeia ou que sejam cidadãos de Estados terceiros residentes na União Europeia.
5. A Constituição da República Portuguesa reconhece o direito de ação popular à defesa, cessação ou perseguição judicial das infrações contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural, bem como à defesa de bens públicos, conferindo esse direito aos cidadãos e às associações de defesa dos interesses em causa (cf. art. 52.º, n.º 3, CRP).
A Lei n.º 83/95, de 31/8 (que regula o direito de participação procedimental e de ação popular, doravante designada como LAP) reconhece o direito de ação popular a quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos, à associações e fundações defensoras dos interesses em causa (cf. art. 2.º, n.º 1, desta lei). Mas também as autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respetiva circunscrição territorial, e também o Ministério Público, quer à luz do CPC (cf. art. 31.º deste Código), quer à luz de legislação avulsa.
No seu art. 3.º, a LAP estabelece que constituem requisitos da legitimidade ativa das associações e fundações, (i) estarem estas dotadas de personalidade jurídica, (ii) incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objetivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de ação de que se trate e, por isso, sem fim lucrativo, como também (iii) não exercerem qualquer tipo de atividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais.
Posteriormente, a Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31/7, doravante designada como LDC), veio dispor no n.º 2 do seu art. 17.º que “As associações de consumidores podem ser de âmbito nacional, regional ou local, consoante a área a que circunscrevam a sua ação e tenham, pelo menos, 3000, 500 ou 100 associados, respetivamente”.
6. Embora não conste expressamente da LAP e da LDC, também é de exigir como requisito (ou, rectius, como pré-requisito) do exercício do direito de ação popular que os membros da classe que agem em sua representação tutelem correta e adequadamente os interesses em causa na demanda, tendo em conta a racionalidade subjacente à especial proteção constitucional dos direitos dos consumidores, da qualidade de vida, da preservação do ambiente e do património cultural, bem assim o princípio da efetividade dessa proteção, não se podendo ignorar que tais valores são perigáveis, dado o risco da irreversibilidade de danos (este é, a propósito, um dos pré-requisitos de uma Class Action, de acordo com a divisão (a) da Regra 23 das Federal Rules of Civil Procedure, acessível em https://www.law.cornell.edu/rules/frcp/rule_23).
Quando o representante da classe é um ente coletivo, o melhor indicador para que esse representante assegure a proteção de forma justa e adequada dos interesses da classe são os seus associados e o seu número, dado que a perceção da existência de práticas ilícitas contra aqueles valores deve partir do seio desses mesmos associados, descrevendo como essas práticas se repercutem nos direitos ou interesses daqueles membros. Quer dizer, o representante não pode defender esses direitos ou interesses numa perspetiva (seja ela económica, financeira ou até do âmbito da psicologia social, como é invocado no caso dos autos) que não vá ao encontro das necessidades de proteção reclamadas pelos membros da classe, ou seja, tem de existir uma afinidade ou identificação dos níveis de proteção dos direitos ou interesses entre o representante popular e os representados populares. Não está, portanto, em causa, a forma como tais práticas se repercutem no direito ou interesse do representante popular, cuja legitimidade em sentido processual não é afastada tenha ou não interesse direto na demanda (cf. art. 2.º, n.º 1, da LAP), mas antes o modo como as infrações a tais valores atingem o interesse comum da classe, incluindo os titulares dos direitos ou interesses que não tiverem exercido o direito de se autoexcluírem da representação, nos termos do art. 16.º da LAP. Esta é a razão pela qual no âmbito da ação popular prevalecem as questões de facto comuns às pretensões dos membros da classe sobre as questões de carácter estritamente individual, para que a medida ou providência decretada pelo tribunal seja considerada a favor da classe como um todo, salvo se, estando em causa interesses individuais homogéneos, a tutela pretendida se destinar à obtenção de uma indemnização e os titulares desses interesses estiverem identificados na demanda, caso em que estes têm direito à correspondente indemnização nos termos gerais da responsabilidade civil (cf. arts. 22.º, n.ºs 2 e 3, e 23.º, ambos da LAP).
Nesta perspetiva, a legitimidade popular deve ser aferida em função da capacidade de representação dos titulares do interesse por parte do autor popular, e, à vista disso, há que entender que o n.º 2 do art. 17.º da LDC estabelece um requisito (ou, rectius, um pré-requisito) para que as associações de consumidores possam recorrer à ação popular, sem que com esta medida se pretenda estabelecer uma restrição do direito fundamental de liberdade de associação (art. 46.º, CRP).
Sobre este tema, nada melhor do que as exemplares palavras do Emérito Professor MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA: “Deve especificar-se que estes números de membros apenas são necessários para que a associação possa ser aceite como tendo uma representatividade nacional, regional ou local e para que, dentro deste âmbito geográfico, ela possa exercer o direito de acção popular que lhe é concedido pelo artigo 18.º, n.º 1, al. L., LDefC, não devendo aqueles números ser entendidos como requisitos que devam ser observados para a constituição de qualquer associação de consumidores” (in A Legitimidade Popular na Tutela dos Interesses Difusos, Lisboa, Lex, 2003, p. 190).
7. A Autora considera-se representante da classe de consumidores que abastecem combustíveis nos postos da Ré em todo o território nacional, insurgindo-se contra o sobrepreço pago por aqueles em virtude de os combustíveis não aditivados serem vendidos por um preço superior aos combustíveis aditivados, contra aquilo que seria expectável para um consumidor médio.
De acordo com a conclusão assinalada no ponto anterior, o número necessário de associados que se encontra previsto no art. 17.º, n.º 2, da LDC, consoante a área geográfica de atuação dos interesses em causa, é um requisito de legitimidade processual para que este tipo de associações possa exercer o direito de ação popular.
Este requisito não viola o disposto no art. 14.º da LAP -- que habilita o autor popular a representar, por iniciativa própria e com dispensa de mandato ou autorização expressa, todos os demais titulares dos direitos ou interesses em causa que não tenham exercido o direito de auto-exclusão --, dado que a afinidade ou identificação dos níveis de proteção, dos direitos ou interesses em causa, entre o representante popular e os representados populares não se consubstanciam em instruções expressas dos membros da classe, mas é algo que emerge de forma espontânea e voluntária por parte desses membros.
O requisito de legitimidade processual ativa das associações de defesa dos consumidores previsto no art. 17.º, n.º 2, da LDC não restringe, no âmbito de um caso concreto, o princípio constitucional da proporcionalidade e da proibição do excesso consagrado nos arts. 2.º e 18.º, n.º 2 da Constituição, nem tão-pouco o direito fundamental de acesso à jurisdição consagrado no seu art. 20.º, n.º 1, ambos por referência à restrição ao direito de ação judicial popular (cf. art. 52.º, n.º 3, da CRP), dado que o que se pretende com aquele requisito é garantir a proteção de forma justa e adequada dos direitos ou interesses da classe através da representatividade dos seus membros, consoante o âmbito geográfico dos valores objeto de tutela (nacional, regional ou local).
Nem se pode permitir que o poder económico, sob a aparência de defesa dos interesses dos consumidores, possa prosseguir outros interesses que não sejam os dos membros da classe. No caso de representantes populares singulares, não existe o risco dessa hipótese suceder, porque não têm uma estrutura de custos que seja necessário financiar.
Em suma, o princípio da proporcionalidade (lato sensu) previsto nos arts. 2.º e 18.º, n.º 2 da CRP não se opõe a uma norma legal que fixa um número mínimo de associados como índice de garantia da tutela adequada dos interesses que a associação, enquanto representante popular, deve estatutariamente defender – os dos consumidores em geral.
Aliás, esta solução não é inédita. Também o Código dos Valores Mobiliários estabelece uma norma de alcance semelhante: só podem exercer o direito de ação popular para a proteção de interesses individuais homogéneos ou coletivos dos investidores não profissionais em instrumentos financeiros as associações de defesa dos investidores que, entre outros requisitos, contem entre os seus associados com pelo menos 100 pessoas singulares que não sejam investidores profissionais (cf. arts. 31.º, n.º 1, al. b), e 32.º, al. b), ambos do mesmo Código).
8. No caso em apreço, a Autora popular reconhece que não tem 3000 (três mil) associados, conforme resulta do doc. n.º 6 junto com a contestação, cuja autoria não foi impugnada por aquela parte. Com efeito, nele se refere o seguinte: “Para que fique claro, a autora tem mais de 1.500 associados e menos de 3.000 associados, não tendo de momento o número exato, pois está a organizar e transferir a forma de registo dos mesmos (que anteriormente se encontrava dividida em várias plataformas). Mais se esclarece que na CITIZENS’ VOICE inscreveram-se, diretamente, mais de 100 pessoas como associados, residentes em vários países da União Europeia (Portugal, Itália, Espanha, Bélgica, França, Alemanha e Polónia), ao que se juntaram 1.571 associados da ATM, por via de um convite que lhes foi dirigido.

Decisão
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, julgo procedente a exceção dilatória de ilegitimidade ativa, e, em consequência, absolvo a Ré da instância (cf. arts. 278.º, n.º 1, al. d), 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. e), e 578.º, todos do CPC).
10. Condeno a Autora nas custas de parte (cf. art. 527.º, n.ºs 1 e 2, CPC)”.”.

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Apresentou a Autora recurso de apelação, pugnando pela revogação da decisão e por que seja declarado ter ela, uma associação de defesa dos consumidores, legitimidade ativa para intentar a presente ação popular, na defesa dos consumidores, com base nas seguintes
CONCLUSÕES:

1. Os autores interpõem recurso de apelação nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 644 (1,a) e 647 (1), todos do CPC, por terem legitimidade para tal e estarem em tempo de o fazer (cf. artigo 638, do CPC), por não se conformarem com a decisão proferida e ora recorrida e com a mesma discordarem.

2. O tribunal a quo indeferiu liminarmente a petição inicial, ao considerar que a representante da classe não tem legitimidade ativa para intentar uma ação popular, devido a ter menos de 3.000 associados.

3. A representante da classe é uma associação legalmente constituída e registada, que tem como objeto social a defesa dos direitos dos consumidores na União Europeia.

4. A ação popular interposta pela representante da classe visa a proteção de interesses difusos e individuais homogéneos dos consumidores, estando alinhada com os seus objetivos estatutários e o cumprimento de suas competências.

5. A questão da legitimidade ativa da associação para a interposição da ação popular não deve ser limitada pela interpretação restritiva do número de associados, conforme entendido pelo tribunal a quo com base no artigo 17 (1) da lei 24/96, pelas seguintes razões:

6. A primeira e mais evidente é porque a lei, nem remotamente, o prevê, muito menos o artigo 18 da lei 24/96, uma vez que:

a. O artigo 17 (2) da lei 24/96 define o âmbito (nacional, regional ou local) de uma associação com base no número de seus associados, sem fornecer bases para discutir a legitimidade das associações em ações populares.

b. Não se pode inferir, nem mesmo através de uma interpretação sistemática com outros artigos como o artigo 18, que somente as associações de âmbito específico (nacional, regional ou local) possuem legitimidade para representar os consumidores em ações coletivas de tipo popular, pois tal não se retira, nem por analogia ou integração de lacunas, do retro referido artigo.

c. Apenas os direitos especificados no artigo 18 (1, a, b), da lei 24/96 sofrem restrições (por força do número 2 desse mesmo artigo), nos sentido em que são limitados às associações de consumidores de âmbito nacional e de interesse geral – nenhum desses direitos é o de ação popular – como parece entender a douta sentença recorrida.

d. Se a intenção do Legislador fosse restringir o direito de ação popular às associações com base no seu âmbito, isso teria sido expressamente mencionado nesse mesmo artigo, o que não ocorreu, ou em qualquer outro, nomeadamente no recente decreto lei 114-A/2003, o que também não sucedeu.

e. Os intérpretes e aplicadores da lei, seguindo as regras de interpretação estabelecidas (cf. artigo 9 do CC), não podem, sob o pretexto de interpretação ou outras preocupações que o Legislador entendeu não deverem existir, criar normas ad hoc, o que incluiria restringir a legitimidade processual das associações com base no número de seus associados, como se verificou por intermédio da douta sentença recorrida.

7. Legitimidade Ampla das Associações de Defesa dos Consumidores: as associações de defesa dos consumidores, sejam elas genéricas ou específicas, possuem legitimidade ativa para propor ações populares. Esta legitimidade é reconhecida independentemente de cumprirem as exigências específicas do artigo 17 (2) e (3) da lei 24/96, pois a ação popular é um direito estendido a qualquer cidadão individualmente [cf. artigo 52 (1) da CRP e artigo 2 da lei 83/95], ainda que não afetado pela violação em causa, pelo que não faz qualquer sentido permitir a um cidadão individualmente, apenas um, intentar uma ação popular e tal direito ser restringido a uma associação de defesa dos consumidores, em face do número de associados ser inferior a 3000 – é um contrassenso.

8. Confirmação Legal Específica para Tutela do Direito da Concorrência: a legitimidade das associações de defesa dos consumidores, especialmente no contexto da tutela do direito da concorrência, é reafirmada pelo artigo 19 (2) da Lei do Private Enforcement. Este ponto é crucial para enfatizar a relevância jurídica das associações em áreas específicas de interesse público.

9. Relação Classe-Categoria e Objeto da Ação: a legitimidade das associações deve ser avaliada com base na relação entre uma classe ou categoria de pessoas e o objeto da ação. Isso significa que todas as decisões afetam todos os membros da classe ou categoria representada, e não apenas uma subseção específica.

10. Inexistência de Restrições Legais Específicas na Legitimidade Popular: A legislação portuguesa não impõe restrições quanto ao número mínimo de associados para conferir legitimidade às associações de defesa dos consumidores. A personalidade jurídica da associação e o seu objetivo de defesa dos consumidores são os únicos requisitos necessários para a legitimidade, conforme os artigos 3(a, b) da lei 83/95 e 31 do CPC, e 3(c) da mesma lei.

11. Irrelevância do Número Mínimo de Associados para Legitimidade: a exigência de um número mínimo de associados para determinar a legitimidade das associações em ações populares não é apenas desnecessária, mas também restringiria os direitos fundamentais de acesso à justiça e à ação popular, sem qualquer justificação na necessidade de tutelar um outro interesse constitucionalmente protegido (cf. artigo 18, da CRP).

12. Associados e Capacidade de Representação: nem se pode dizer que exista um interesse em limitar a legitimidade processual das associações a um número mínimo de associados, perante a necessidade de assegurar uma adequada representação dos consumidores, uma vez que o número de associados não tem correspondência necessária com a capacidade prática, técnica ou económica da associação para prosseguir as suas atribuições. Logo, o número de associados não deve ser um critério para determinar a legitimidade da associação.

13. Inadequação de Restrições Baseadas em Representatividade Geográfica ou Dimensional: limitar a legitimidade das associações com base em critérios como âmbito geográfico (nacional, regional ou local) ou dimensão (número de associados) iria contra a lógica da legitimidade representativa. Isso discriminaria injustamente associações menores, que podem ser igualmente ou mais capazes de representar eficazmente os consumidores. A imposição de tais restrições levaria a uma discriminação das associações menores e reduziria o acesso à justiça para muitos consumidores, o que é contrário aos princípios de justiça e eficiência processual.

14. Legitimidade Ativa da Citizens’ Voice: a associação Citizens’ Voice – Consumer Advocacy Association, enquanto representante de classe, possui legitimidade ativa para propor ação popular. Isto é evidente pela sua personalidade jurídica, a sua natureza não lucrativa e o facto de não exercer atividades profissionais que concorram com empresas ou profissionais liberais (cf. artigo 3 da lei 83/95).

15. Inconstitucionalidade da Interpretação Normativa do Tribunal Recorrido: suscita-se a inconstitucionalidade da interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 2 (1), 3, 12 (2) da lei 83/95, em conjugação com os artigos 13 e 17 (2) e (3), da lei 24/96 lei e de qualquer outra norma ordinária do ordenamento jurídico, segundo a qual as associações de defesa dos interesses em causa, que preencham os requisitos previstos no artigo 3 da lei 83/95, não têm o direito de promover a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra os direitos dos consumidores quando sejam uma associação com menos de 3.000 associados. Tal interpretação violaria o direito de ação popular [cf. artigo 52 (3), da CRP], bem como o princípio do Estado de Direito, na sua vertente de princípio da segurança jurídica (cf. artigo 2, da CRP), da força jurídica, por falhar no teste da proporcionalidade (cf. artigo 18, da CRP), e do direito de acesso aos tribunais e uma tutela jurisdicional efetiva mediante um processo equitativo [cf. artigo 20 (1) e (4), da CRP ], especialmente porque as exigências do artigo 17 (2) e (3), da lei 24/96 para a generalidade das atuações das associações de consumidores, as quais não constituem requisitos constitutivos nem se compaginam com a atribuição do direito de ação popular a qualquer cidadão isolado, ainda que não afetado pela violação em causa.


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Apresentou a Ré contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e por que seja mantida a decisão recorrida por bem ter decidido o Tribunal recorrido, sendo a Recorrente parte ilegítima na presente demanda atendendo ao facto de não possuir o número de associados inscritos exigido para uma associação com representatividade nacional iniciar uma demanda popular (sendo requisito expresso de legitimidade ativa das associações de âmbito nacional terem mais de 3.000 associados inscritos) sustentando, ainda, que, mesmo que assim se não considere, sempre deveriam as partes ser ouvidas, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2, do artigo 665.º, do CPC, dado sempre aquela dever ser considerada não dotada de legitimidade atendendo ao tipo de interesses em causa na presente ação, sempre sendo inadmissível o recurso à ação popular e estar a recorrente a pretender que a ação seja financiada por terceiros.
O Ministério Público apresentou-se a responder, manifestando total concordância com os fundamentos de facto e de direito invocados pela Recorrente, entendendo ser a Autora dotada de legitimidade ativa devendo, por isso, ser revogado o despacho recorrido e determinado o prosseguimento dos atos.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS

- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações da recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.
Assim, a questão a decidir é a seguinte:
- Da legitimidade da Associação Autora para propor a ação popular.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos provados com relevância para a decisão constam já do relatório que antecede, resultando a sua prova dos autos, e não se reproduzindo por tal se revelar desnecessário.

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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
- Da legitimidade da Associação Autora para propor a ação popular.

Apresentou a Autora recurso de apelação da decisão que julgou procedente a exceção dilatória da ilegitimidade ativa, e, em consequência, absolveu a Ré da instância (ao abrigo dos arts. 278.º, n.º 1, al. d), 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. e), e 578.º, todos do CPC), formulando a pretensão recursória de seja declarado ter ela, uma associação de defesa dos consumidores, legitimidade, processual, ativa para intentar a ação popular.
Comecemos por deixar claro ser a questão a apreciar no presente recurso a da improcedência da exceção dilatória da ilegitimidade processual ativa.
Questão diversa, de que não curaremos, por não fazer parte do objeto do recurso da decisão proferida (de forma), prendendo-se, antes, com o mérito, é a relativa à ilegitimidade substantiva, a do direito da Autora à ação popular, a da verificação ou não dos fundamentos da ação, a da verificação ou não de interesses que justifiquem o recurso à ação popular, a da verificação ou não do pressuposto essencial para poder ser usado o meio “ação popular”. Saber se, atendendo ao “tipo de interesses em causa na ação” existe ou não direito de ação popular e se o que a recorrente visa é seja ação “financiada por terceiros”, não são questões a tratar no recurso, limitado pelas conclusões das alegações, pelo que nunca seria de satisfazer a, suprarreferida, pretensão da apelada, que, pelo referido, se indefere.
Com efeito, a questão a decidir é a, adjetiva, da verificação do pressuposto processual da legitimidade ativa, não questões a prenderem-se com direitos substantivos, como a da inviabilidade da ação.
Apreciemos, pois, o objeto do recurso.
Como já foi considerado por este Tribunal, pela ora relatora no proc. 10902/23.0T8PRT.P1, em que era Autora a ora apelante:
“Bem refere o MP reconhecer o n.º 3 do artigo 52.º da Constituição a ação popular como uma espécie de legitimidade ativa dos cidadãos (individualmente considerados ou através de associações), a exercer perante qualquer tribunal, para a defesa de interesses difusos, sem que tenha que ser invocado um interesse pessoal e direto ou demonstrada uma qualquer conexão com a relação material controvertida, encontrando-se tal ação popular regulada na Lei n.º 83/95, de 31 de maio. (…) E bem analisa: “Como refere o Professor Miguel Teixeira de Sousa, in “A Legitimidade Popular na Tutela dos Interesses Difusos”, Lex, 2003, página 9: “A Lei n.º 83/95, de 31/8, relativa ao direito de participação procedimental e de ação popular, regulou o direito de ação popular previsto no então vigente artigo 52.º, n.º 3, CRP/92 e no atual artigo 52, n.º 3 da CRP”.
Na página 75 da referida obra, o Ilustre Professor refere (…) A tutela dos interesses difusos através da ação popular – cfr. artigo 52.º, n.º 3, CRP; artigo 12.º LPPAP) pode ser abstrata ou concreta, pois que ela pode compreender qualquer meio de tutela admissível na área administrativa e civil (cfr. artigo 12.º LPPAP) e, portanto, não exclui nenhum dos meios de tutela abstrata ou concreta que se compreendem nestas áreas.”
A fls. 119, da citada obra, o mesmo autor, refere o seguinte: “Verificado que, no direito português, a tutela jurisdicional dos interesses difusos é realizada através da ação popular prevista no artigo 12.º LPPAP, importa chamar a atenção para o facto de que o regime para ela definido nos artigos 12.º a 21.º LPPAP não é autossuficiente, pois que esse regime deve ser completado com aquele que corresponde, nos termos gerais, à ação instaurada, pelo autor popular. Conforme decorre do estabelecido naqueles preceitos, a Lei n.º 83/95 não contém um regime completo da ação popular administrativa e civil, encontrando-se nela apenas as especialidades que devem ser introduzidas no regime da ação administrativa ou civil que for adequada”.
(…) Refere o Ilustre Magistrado do Ministério Público, João Alves, sobre a intervenção acessória do MP na Jurisdição Cível, in Revista do MP, n.º 160, de 2019: “(…) a ação popular não é uma ação especial “e citando José Eduardo Figueiredo Dias e Carla Amado Gomes, “o que está em causa é apenas um direito de ação judicial e não um meio ou forma de processo…”.
Refere ainda o mesmo Magistrado no artigo citado, que “a ação popular permite apenas o alargamento da legitimidade atribuída aos titulares para defesa dos bens mencionados no artigo 1.º, n.º 2 da Lei n.º 83/95, artigo 9.º, n.º 2 do CPTA e 52.º, n.º 3 da CRP. De facto, a mesma é intentada através de meios processuais existentes no foro cível ou administrativo (artigo 12.º da Lei n.º 83/95), constituindo os artigos 13.º e seguintes da Lei n.º 83/95, especificidades face ao CPC e CPTA.””.
Assim sendo, resulta que a ação popular não é um meio processual, mas uma espécie de legitimidade ativa para intentar ações necessárias à salvaguarda de interesses difusos. E, na verdade, assim se decidiu no Acórdão deste Tribunal de 10/10/2023, proc. 1854/23.8T8PNF.P1, onde se considerou:
“A ação popular corresponde, antes, a um alargamento da legitimidade processual ativa (legitimidade originária específica[9]) a todos os cidadãos e a outras entidades legalmente previstas, para, independentemente do seu interesse individual ou da sua relação específica com os bens ou interesses difusos[10], recorrerem a juízo no sentido de os proteger[11].
O artigo 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, é claro a este propósito, quando dispõe:
“É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:
a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural;
b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais”.
E a Lei 83/95, de 31 de agosto (que “define os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de ação popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição” – artigo 1.º, n.º 1), encaminha-se no mesmo sentido, ao elencar os titulares dos direitos de participação procedimental e do direito de ação popular e os requisitos necessários para o gozo desses direitos, por parte das associações e fundações.
Dispõe o artigo 2.º dessa Lei:
“1- São titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de ação popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse direto na demanda.
2- São igualmente titulares dos direitos referidos no número anterior as autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respetiva circunscrição.
Por seu turno, o artigo 3.º, prescreve que:
“Constituem requisitos da legitimidade ativa das associações e fundações:
a) A personalidade jurídica;
b) O incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objetivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de ação de que se trate;
c) Não exercerem qualquer tipo de atividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais”.”[1].
Destarte, e como de modo simples e claro bem refere o MP, descrevendo o específico regime aplicável, que alargou efetivamente a legitimidade processual ativa a todos os cidadãos e a associações, verificados os requisitos expressa e especificamente consagrados no art. 3º, da Lei que regula o direito de ação popular, é a Autora dotada de legitimidade ativa dado:
“A Constituição da República Portuguesa dispõe o seguinte no seu artigo 52.º, n.º 3:
"3. É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:
a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural;
b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.
A ação popular encontra-se, assim, regulada na Lei n.º 83/95, de 31 de maio, dispondo o seu artigo 1.º, o seguinte:
Âmbito da presente Lei
"1 - A presente lei define os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de ação popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição.
2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, são designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a proteção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público.
E no artigo 2.º, n.º 1 da mesma Lei:
Titularidade dos direitos de participação procedimental e do direito de acção popular
1 - São titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de acção popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda.
Têm legitimidade para intentar uma ação popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse direto na demanda.
A Constituição da República Portuguesa e a Lei que regulamenta tal direito constitucionalmente consagrado conferem legitimidade a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa”.
Como se refere no Ac. RG de 17/12/2019 “A acção popular tem como fim a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções de interesses previstas no nº 3 do artigo 52º da Constituição (artº 1º, nº 1 da Lei 83/95, de 31.08) ou, ainda, nas palavras daquele normativo, a promoção, o asseguramento e a defesa dos mesmos.
Quem está legitimado para promover a acção popular, a par da participação procedimental em procedimentos administrativos, segundo o disposto no artº 2º da Lei 83/95, de 31.08, sob a epígrafe “Titularidade dos direitos de participação procedimental e do direito de acção popular”, são os cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras de interesses previstos quer no artº 52º, nº 3 da CRP quer no artº 1ª da mesma lei.
Os interesses prosseguidos pelo artº 52º, nº 3 da CRP, sob a epígrafe “Direito de petição e direito de acção popular” são: a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural, a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.
Na Lei 83/95, directamente, identificam-se grosso modo os mesmos interesses, ainda que de forma não taxativa e inteiramente coincidente em termos nominais: a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público.
Este é o objecto da tutela da acção popular.
Mas o que da conjugação destas normas resulta seguramente, depois do nº 1 do citado artº 52 referir-se a “todos os cidadãos” e no seu nº 3 a “a todos, pessoalmente” é que para além dos cidadãos, pessoas singulares no gozo dos direitos civis e políticos apenas as pessoas colectivas que representem aqueles, as referidas no nº 3 do preceito constitucional e do nº 1 do artº 2º estão autorizadas a instaurar e mover esta espécie processual, ou seja, “associações de defesa dos interesses em causa” ou “as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior”, consoante o preceito, e, atento à natureza de alguns desses interesses naturalmente, segundo o nº 2 do artº 2º, “as autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição”.
Acresce, no domínio da tutela dos interesses difusos, a legitimidade para a as acções e procedimentos cautelares é configurada em termos idênticos no artº 31º do CPC”[2].
São, pois, aquelas previsões especiais, as aplicáveis, conferindo o artº 2º, nº 1, como se analisa no referido Acórdão, legitimidade a quem diretamente refere, não sendo de acrescentar limites, restrições ou condicionantes que a lei aplicável não aporta e que nunca poderiam deixar de ser vistas como restritivas do direito de ação popular constitucionalmente consagrado em termos amplos.
Como referem António dos Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa o referido artigo 31º, do CPC, regulador da legitimidade para a instauração de ação, “procura ultrapassar dificuldades que seriam suscitadas pela aplicação do critério definido no art. 30º com base no interesse direto. Nas situações a que o preceito se reporta, não existe propriamente um direito subjetivo nem uma relação jurídica de que o Autor seja titular. Por isso se concedeu especialmente legitimidade ativa a cidadãos no gozo dos seus direitos cívicos, a autarquias locais, associações e fundações defensoras dos interesses em causa e ao Ministério Público, devendo observar-se o que concretamente emerge dos diplomas reguladores de cada uma das matérias”[3], entre eles a Lei nº 83/95, de 31/8, alterada pelo DL nº 214-G/15, de 2/10 (direito de participação procedimental e de ação popular), nos precisos termos que dela constam, definidor do direito de ação popular.
Acresce que, na verdade, o nº3, do artigo 52º, da CRP, confere “o direito de ação popular a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, designadamente para prevenção, cessação e reparação de violações de interesses coletivos difusos. … O direito de ação popular veio a ser regulado na Lei 83/95, de 31 de agosto, que o concedeu também às fundações defensoras de interesses coletivos e difusos. O elenco exemplificativo destes interesses consta do art. 1-2 da Lei 83/95, onde se apresenta mais vasto que o da Constituição”[4].
Indo mais longe na imposição de requisitos/pressupostos do que a própria Lei nº 83/95, de 31 de agosto, que os estabelece, julgou o Tribunal a quo procedente a exceção da ilegitimidade ativa para intentar ação popular, por a Autora ter menos de 3.000 associados.
Ora, na verdade, na ação popular não se faz distinção de associações e de número de associados. Não se pode inferir que somente algumas associações possuam legitimidade para representar os consumidores em ação popular quando a lei pretende, ao invés, um amplo exercício do direito de ação popular, nos termos especificamente previstos no diploma que o regula (a Lei nº 83/95), nenhuma restrição daquelas vindo consagrada quanto a este direito. E se a intenção do Legislador fosse restringir o direito de ação popular às associações com base no seu âmbito, tal, para poder ser aplicado, teria de se mostrar expressamente consagrado (o que se não revelaria conforme à constituição) e, a não suceder, não podem ser restringidos direitos amplamente concedidos, desde logo pela lei fundamental.
Bem refere a Autora não ser admissível aos intérpretes e aplicadores da lei criar normas ad hoc, sendo as associações de defesa dos consumidores dotadas de legitimidade ativa para propor ações populares sem que estejam sujeitas à restrição que o Tribunal a quo entendeu impor.
Com efeito, a legitimidade é reconhecida independentemente de se mostrarem cumpridas as exigências específicas do artigo 17º, da Lei 24/96, pois a ação popular é um direito conferido a qualquer cidadão individualmente, ainda que não afetado pela violação em causa, e a uma associação de defesa dos consumidores (cfr. nº1, do artigo 52º, da CRP, artigo 2º, da Lei nº 83/95, e art. 13º, al. b) e 18º, al. l), da Lei nº 24/96, de 31/7).

Não impõe a lei constitucional nem a ordinária restrições quanto ao número mínimo de associados para conferir legitimidade às associações de defesa dos consumidor e resulta, mesmo, que interpretação no sentido de exigência de um número mínimo de associados para determinar a legitimidade das associações em ações populares restringiria os direitos fundamentais de acesso à justiça e à ação popular, sem qualquer justificação na necessidade de tutelar um outro interesse constitucionalmente protegido, pelo que se apresentaria como desproporcional e não adequada.

Nenhum interesse existe em limitar a legitimidade processual das associações nas ações populares a um número mínimo de associados, antes se pretende que tal direito possa ser amplamente exercido, sem restrições, estas a originar, efetivamente, discriminações entre associações e a criar desproporcionais entraves no acesso à justiça, de interesse público.

Interpretação no sentido da exigência considerada pelo Tribunal a quo violaria o direito de ação popular (cfr. nº3 artigo 52º, da CRP) e o de acesso aos tribunais e uma tutela jurisdicional efetiva (cfr. artigo 20º, da CRP), não constituindo as exigências do nº2 e 3 do art. 17º, da Lei 24/96, um pressuposto ou requisito condicionador da legitimidade ativa na ação popular.
A Autora, possui legitimidade ativa para propor ação popular, dado ter personalidade jurídica, natureza não lucrativa e não exercer atividades profissionais que concorram com empresas ou profissionais liberais, preenchidos se mostrando os requisitos previstos no art. 3º, da Lei nº 83/95, de 31/8, como consagrado no art. 13.º, da referida Lei de defesa do consumidor (Lei nº 24/96, de 31 de Julho, com a epígrafe “Legitimidade ativa”, que dispõe: Têm legitimidade para intentar as ações previstas nos artigos anteriores:
a) Os consumidores diretamente lesados;
b) Os consumidores e as associações de consumidores ainda que não diretamente lesados, nos termos da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto;
c) O Ministério Público e a Direção-Geral do Consumidor quando estejam em causa interesses individuais homogéneos, coletivos ou difusos” (negrito nosso)),
não efetuando, pois, a lei nenhuma distinção quanto a associações. Ora, onde a lei não distingue não deve o interprete distinguir, seguindo-se, pois, face à remissão efetuada pela al. b), a Lei nº 83/95, de 31/8.
No Capítulo IV da Lei nº 24/96, com o título “Instituições de promoção e tutela dos direitos do consumidor” vêm definidas as associações de consumidores e os seus direitos[5], entre eles o “Direito à ação popular”.
Neste conspecto, não podemos deixar de considerar que o específico regime da ação popular, conforme à constituição, e para o qual remete a Lei de defesa do consumidor, tem de ser observado, sendo ele a ditar as regras em matéria de legitimidade ativa.
Assim se decidiu no recente Ac. RL de 20/6/2024 que considerou: “Para uma associação, seja ela de consumidores ou não, ter legitimidade para propor ação popular na área do consumo, basta a verificação dos requisitos previstos no art. 3º da Lei 83/95”[6], nenhuns outros se mostrando consagrados.
Procedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, como bem concluem quer o apelante quer o Ministério Público, devendo, por isso, a decisão recorrida ser revogada.

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As custas do recurso são da responsabilidade da recorrida dada a total procedência da pretensão recursória a que a recorrida se opôs (nº1 e 2, do artigo 527º, do Código de Processo Civil).
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação procedente e, em consequência, sendo a Autora dotada de legitimidade, revoga-se a decisão recorrida e, julgando-se improcedente a exceção da ilegitimidade ativa, determina-se o prosseguimento dos autos.
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Custas pela apelada.



Porto, 7 de outubro de 2024

Assinado eletronicamente pelos Senhores Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Teresa Pinto da Silva
Jorge Martins Ribeiro


____________________________
[1] Ac. RP de 10/10/2023, proc. 1854/23.8T8PNF.P1, acessível in dgsi.pt
[2] Ac. RG de 17/12/2019, proc. 6324/17.0T8GMR-A.G1 (Relator Eduardo Azevedo), acessível in dgsi.pt
[3] António dos Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág. 65.
[4] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 1º, 3ª Edição, Coimbra Editora, pág. 73 e seg.
[5]Artigo 17.º
Associações de consumidores
1 - As associações de consumidores são associações dotadas de personalidade jurídica, sem fins lucrativos e com o objetivo principal de proteger os direitos e os interesses dos consumidores em geral ou dos consumidores seus associados.
2 - As associações de consumidores podem ser de âmbito nacional, regional ou local, consoante a área a que circunscrevam a sua ação e tenham, pelo menos, 3000, 500 ou 100 associados, respetivamente.
3 - As associações de consumidores podem ser ainda de interesse genérico ou de interesse específico:
a) São de interesse genérico as associações de consumidores cujo fim estatutário seja a tutela dos direitos dos consumidores em geral e cujos órgãos sejam livremente eleitos pelo voto universal e secreto de todos os seus associados;
b) São de interesse específico as demais associações de consumidores de bens e serviços determinados, cujos órgãos sejam livremente eleitos pelo voto universal e secreto de todos os seus associados.
4 - As cooperativas de consumo são equiparadas, para os efeitos do disposto na presente lei, às associações de consumidores.
Artigo 18.º
Direitos das associações de consumidores
1 - As associações de consumidores gozam dos seguintes direitos:
a) Ao estatuto de parceiro social em matérias que digam respeito à política de consumidores, nomeadamente traduzido na indicação de representantes para órgãos de consulta ou concertação que se ocupem da matéria;
b) Direito de antena na rádio e na televisão, nos mesmos termos das associações com estatuto de parceiro social;
c) Direito a representar os consumidores no processo de consulta e audição públicas a realizar no decurso da tomada de decisões suscetíveis de afetar os direitos e interesses daqueles;
d) Direito a solicitar, junto das autoridades administrativas ou judiciais competentes, a apreensão e retirada de bens do mercado ou a interdição de serviços lesivos dos direitos e interesses dos consumidores;
e) Direito a corrigir e a responder ao conteúdo de mensagens publicitárias relativas a bens e serviços postos no mercado, bem como a requerer, junto das autoridades competentes, que seja retirada do mercado publicidade enganosa ou abusiva;
f) Direito a consultar os processos e demais elementos existentes nas repartições e serviços públicos da administração central, regional ou local que contenham dados sobre as características de bens e serviços de consumo e de divulgar as informações necessárias à tutela dos interesses dos consumidores;
g) Direito a serem esclarecidas sobre a formação dos preços de bens e serviços, sempre que o solicitem;
h) Direito de participar nos processos de regulação de preços de fornecimento de bens e de prestações de serviços essenciais, nomeadamente nos domínios da água, energia, gás, transportes e telecomunicações, e a solicitar os esclarecimentos sobre as tarifas praticadas e a qualidade dos serviços, por forma a poderem pronunciar-se sobre elas;
i) Direito a solicitar aos laboratórios oficiais a realização de análises sobre a composição ou sobre o estado de conservação e demais características dos bens destinados ao consumo público e de tornarem públicos os correspondentes resultados, devendo o serviço ser prestado segundo tarifa que não ultrapasse o preço de custo;
j) Direito à presunção de boa fé das informações por elas prestadas;
l) Direito à ação popular;
m) Direito de queixa e denúncia, bem como direito de se constituírem como assistentes em sede de processo penal e a acompanharem o processo contraordenacional, quando o requeiram, apresentando memoriais, pareceres técnicos, sugestão de exames ou outras diligências de prova até que o processo esteja pronto para decisão final;
n) Direito à isenção do pagamento de custas, preparos e de imposto do selo, nos termos da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto;
o) Direito a receber apoio do Estado, através da administração central, regional e local, para a prossecução dos seus fins, nomeadamente no exercício da sua atividade no domínio da formação, informação e representação dos consumidores;
p) Direito a benefícios fiscais idênticos aos concedidos ou a conceder às instituições particulares de solidariedade social.
2 - Os direitos previstos nas alíneas a) e b) do número anterior são exclusivamente conferidos às associações de consumidores de âmbito nacional e de interesse genérico.
3 - O direito previsto na alínea h) do n.º 1 é conferido às associações de interesse genérico ou de interesse específico quando esse interesse esteja diretamente relacionado com o bem ou serviço que é objeto da regulação de preços e, para os serviços de natureza não regional ou local, exclusivamente conferido a associações de âmbito nacional” (negrito nosso).
[6] Ac. RL de 20/6/2024, proc. 14454/23.3T8SNT.L1-8, acessível in dgsi.pt. Aí se refere: “A associação pode assim atuar no interesse dos seus associados ou no interesse, mais geral, desses e outros consumidores; mas é, ela própria, uma associação de consumidores.
Compreende-se que, estando em causa uma sua atuação material, isto é, uma intervenção nas condições de funcionamento do mercado ou na ação administrativa (por exemplo, a representação dos consumidores em processo de consulta ou audição pública, na solicitação da retirada de bens do mercado ou de uma resposta ao conteúdo duma mensagem publicitária, ao lado de muitas outras enunciadas no art. 18-1 LDC), a sua dimensão, expressa no número de associados, releve na definição do campo geográfico em que atua.
Mas tal deixa de fazer sentido quando passamos para o campo adjetivo do exercício da ação popular, tido nomeadamente em conta que qualquer cidadão, individualmente, a pode exercer. Se se considerasse que a exigência do mínimo de 100 associados é requisito constitutivo da associação ou pressuposto do exercício das suas funções, esse mínimo ser-lhe-ia sempre indispensável para exercer o direito de ação popular (art. 3-a LAP). Mas não é assim: trata-se apenas de requisito exigido para a generalidade das atuações da associação, como bem mostram os n.ºs 2 e 3 do art. 18. Não é este o caso da ação popular, como inequivocamente resulta do art. 3 LAP, que só faz depender a legitimidade ativa das associações da sua personalidade jurídica, do seu fim estatutário e do não exercício de atividade profissional concorrente com empresa ou profissão liberal. Aliás, só para a LAP, que não faz qualquer exigência desse tipo, remete o art. 13-b LDC, ao reconhecer a legitimidade para propor a ação popular aos consumidores e às associações de consumidores, ainda que não diretamente lesados.
Acresce que a associação de defesa dos consumidores não tem de coincidir com uma associação de consumidores. Mostra-o, em primeiro lugar, a Constituição.
Das associações de consumidores trata o art. 60 CRP, que lhes reconhece legitimidade processual para defesa dos seus associados ou de interesses coletivos ou difusos. Ora esta atribuição não faria sentido se constituísse mera repetição da atribuição de legitimidade feita no art. 52-3 CRP, que, como se viu, já confere o direito de ação popular às associações de defesa dos direitos dos consumidores. A dualidade significa que os conceitos de associação de consumidores e de associação de defesa dos consumidores não coincidem: uma associação de cidadãos que tenha como fim estatutário a defesa dos interesses dos consumidores em geral ou de determinada categoria de consumidores não tem de ser constituída por consumidores ou por consumidores dessa categoria; perante ela, não se põe a questão de ter atuações concretas no interesse dos seus associados ou dos consumidores nela não associados; por definição, atua no domínio dos interesses coletivos ou difusos, podendo, aliás, defender também, se assim disserem os seus estatutos, outro tipo desses interesses.
Tida em conta a disposição do art. 60 CRP, a associação de consumidores é, por inerência, uma associação de defesa dos consumidores, podendo exercer a ação popular se o consentirem os seus estatutos. Mas a inversa não é verdadeira e a associação de defesa dos consumidores que não seja uma associação de consumidores não está sujeita à mesma exigência de representatividade que para esta se põe. Muito menos, como se deixou dito, quando se trata de propor ações populares» (Lebre de Freitas, Regime da ação popular do art. 19 da Lei 23/2018, Revista de Direito Comercial - 2022, pág. 562-565, acessível em www.revistadedireitocomercial.com).
(…) Para uma associação, seja ela de consumidores ou não, ter legitimidade para propor ação popular na área do consumo, basta a verificação dos requisitos previstos no art. 3º da L 83/95”.